sábado, 12 de março de 2016
Presidentes são desonestos. Lula, jamais.
Em relação ao negro, o imaginário social marcou traços e comportamentos dele como referindo-se a uma inferioridade intelectual e a uma moralidade desconfiável. A sociedade utilizou estes estigmas para responder prontamente a todo negro que entrasse em um shopping, andasse numa rua à noite ou se pusesse atrás de um volante. Respostas prontas, ou seja, dadas sem que se faça perguntas e se lhe elabore respostas, são pré-conceituosas.
Uma vez um homem disse a um negro que ele não era culpado pela exclusão que sofria. O negro é um indivíduo como os outros e, como tal, tem direitos. Como ser humano, ele merece estudar, trabalhar, consumir, etc. Ele não é alguém que não merece essas coisas. Ele as merece. Essa é a ideia que um dia lhe foi apresentada.
Um movimento pelos direitos do negro fala à sociedade que os negros não são imerecedores de tudo aquilo com que o ser humano pode desejar. Eles também são seres humanos, portanto merecedores do que é mais desejável. A partir disso, todo os não-negros são olhados (e se olham) como pessoas que, intencionalmente ou não, podem acabar tratando os negros como imerecedores dessas coisas.
Um menino negro que, estando desanimado na escola, diz que não merece passar de ano. Chega alguém e diz que sim, ele merece, mas que precisa batalhar, pois a "vida do negro não é fácil". Exceto nos esportes e na música, o negro não ingressa em pé de igualdade com o branco. Encontra dificuldades e, lógico, desanima. Imediatamente, então, chegam várias vozes dizendo que ele precisa se reanimar para, quem sabe, vencer. Isso é bom. Mas em uma situação de competição em que o negro está em iguais condições do que o branco, e o negro esmorece, desanima, apresentamos a ele aquela ideia de que do negro foi histórica e socialmente feito um não merecedor, e que ele sempre deve se ver como merecedor.
O sentido do merecedor é aplicado, então, tanto em situações de inferiorização, que precisam mesmo ser revertidas, tanto em situações de igualdade, em que o indivíduo negro apenas acha que não merece vencer, pois tem consciência de que não se preparou como devia, e por vontade própria.
Há uns anos vem ocorrendo essa mudança de sentido de não merecedor para merecedor, não apenas com os negros, mas com o pobre, o gay e outras minorias.
Com base nisso, vamos imaginar a seguinte história psicológica para o Lula: trabalhando como metalúrgico, ele ouvia seus companheiros dizendo que aquela vida era uma merda. E olha o carro novo do patrão, com uma baita loura! Havia sindicatos operários, com comícios lotados de gente atenta e esperançosa. Lula subiu no palco para dizer aos seus companheiros a lição que já havia aprendido: o trabalhador é o verdadeiro dono da fábrica, então é o verdadeiro dono da economia, então é o verdadeiro dono do Brasil. Ele tem o direito de ganhar mais, de ter melhores condições de trabalho e de comprar o que está na tv.
Sem deixar de ser operário, Lula deu a si mesmo o direito especial de ser um líder de operários. E um bom líder, aquele que apontava para "benefícios" nas vidas deles. Lula se via como merecedor de recompensas. Após caminhar um bocado na política, Lula concorreu a eleições presidenciais, e perdeu. O seu adversário obviamente havia se aproveitado do preconceito existente contra o nordestino analfabeto. Mesmo tendo concorrido ao cargo de maior poder, no país, Lula ainda era um pobre. As pessoas ainda não estavam isentas de preconceito, para aceitá-lo.
Mas isto mudou em 2002, quando a população enfim soube ver o Lula sem o véu do preconceito. Ele era corajoso, comprometido com o povo, e honesto. Este lado da sua persona pública Lula explorava alternando com "nordestino operário analfabeto", o pobre, enfim, para contar a própria história de pobre aguerrido, de modo que o povo se sentisse merecedor de ter benefícios em suas vidas. E que a oposição caísse no lugar da personagem preconceituosa.
Recentemente foi divulgada uma matéria no Jornal Nacional desta época de Lula no cargo de presidente (https://www.youtube.com/watch?v=72V6e0aiSAM). Um homem que trabalhava como faxineiro encontrou uma bolsa com dez mil dólares. Devolveu o dinheiro, pedindo apenas para encontrar o presidente. O "nordestino operário analfabeto" do Palácio do Planalto era igual a ele, não se diferenciando nem por ser presidente. Lula na verdade via esse cargo com desdém, um período em que ele se vestiu de burguês, andou no carro do patrão. O que importava para o Lula era falar ao maior número de pessoas possível que elas eram merecedoras, e que os ricos lhes faziam uma oposição natural. Esse drama era contado como sendo o da população, e que encontrava uma síntese perfeita no próprio Lula.
No encontro com o faxineiro, Lula perguntou se ele conhecia outras pessoas que fariam o mesmo que ele fez, de devolver o dinheiro encontrado. Sim, foi a resposta. O faxineiro completou dizendo considerar desonestidade não devolver o dinheiro. Lula o corrigiu, dizendo que se o dinheiro está sem dono, e trará benefícios para a vida de quem o encontrou, então retê-lo não era desonestidade.
O faxineiro ganha pouco, num trabalho que ele termina todos os dias a uma determinada hora, e sai para retornar à própria casa. O trabalho não é a sua casa, em casa ele é o Manuel, não o faxineiro. E o Manuel usa o dinheiro que o faxineiro ganha, sem nenhum problema, pois o faxineiro é uma persona do próprio Manuel. Agora Lula era ele mesmo em todos os lugares, seja nos compromissos, seja em casa, com Dona Marisa. Sempre o líder dos pobres. Sempre o "nordestino operário analfabeto" e, como tal, eternamente precisando trazer benefícios para a própria vida.
Apesar de ocupar o cargo de presidente, dinheiro sempre faltava a Lula. Tal qual um bulímico. Ele mantinha o radar alerta para o que pudesse beneficiá-lo. Fazia obras sociais, proferia discursos motivadores aos pobres, então fazia jus ao dinheiro público que pudesse pegar. O valor do seu salário e o fato do dinheiro da Petrobrás ser da própria empresa pública eram meras formalidades burguesas, bobagens abstratas. Ele não tinha que se orientar por esses parâmetros, e tinha direito, enquanto líder, a pegar o quisesse. E enquanto pobre, a pegar o que necessitasse.
Alguns anos após o impeachment de Collor, Lula foi ao Programa Livre, que o Serginho Groisman tinha no SBT (https://www.youtube.com/watch?v=iJqvleZhP2E). Em um momento, ele conta que na campanha à presidência do ano de 89, acusou Collor de abuso de poder econômico nos cargos públicos que ocupou até então. Lula prossegue a entrevista dizendo que três anos depois, aquele comportamento de Collor foi deflagrado no cargo de presidente. Lula pediu que as pessoas não se esquecessem que, da mesma forma que haviam eleito um presidente, também haviam retirado-o do poder.
Esse vídeo me fez ver alguém se sentindo prestes a entrar num ninho de cobras. Por mais que ele fosse corajoso, havia receio em seus olhos. Mas, hoje, podemos dizer que, embora ele não seja mais presidente do Brasil, caso ele seja preso, simbolicamente isso significaria a sua derrocada enquanto presidente.
Mas eu diria, ainda, uma outra coisa: na entrevista, Lula referiu-se a presidentes. Ele mesmo não se viu como presidente, quando ocupou este cargo. Em suas ações, ele comportou-se como o próprio Brasil, Lula-Brasil, discursando e agindo com pouco decoro. Os desvios de dinheiro da Petrobrás, portanto, de forma alguma foram desonestidade. Para ele, o dinheiro não era de ninguém, e podia beneficiar a sua vida. Errados são os que hoje querem prendê-lo.
Aquele vaticínio da entrevista não se aplica a ele: presidentes desonestos devem ser alvo da indignação popular, perderem o cargo e serem investigados pela polícia. Ele foi outra coisa que não um presidente. Algo de grandioso, como que uma entidade espiritual. Isso é o que ele pensa, e também os que o vêem como líder a quem se deve sacrifícios e obediência.
A respeito dele chegaram a dizer: "rouba mas faz". Pegar dinheiro público não é desonesto, se você é o Brasil.
quinta-feira, 10 de março de 2016
"Lula, a cara do povo"
Qual o político que o brasileiro conhece? O Lula. De onde veio o Bolsonaro? O Cunha? O Aécio? Ninguém pergunta. Ninguém apresentou-os às pessoas. Sobre a Dilma a propaganda para elegê-la só falou da sua participação na militância contra a ditadura e a prisão que sofreu. Falou o necessário para aproximar, aos olhos do eleitorado, uma burguesa da garra do metalúrgico. Mas quem é Dilma?
Todos falam sobre o Lula. Um ex-presidente que tem muitos simpatizantes. Um ex-presidente que, agora, está sob investigação da Polícia Federal. Um político que sempre enfrentou adversários. Um político que sempre teve não simpatizantes. Um ex-presidente que, desde que o governo do PT começou a ser muito criticado, tem defensores. Um político que, pela possibilidade de ser preso, tem gente disposta a pegar em armas por ele, ou se colocar como escudo para protegê-lo.
Nas últimas eleições presidenciais, Dilma foi eleita em parte por votos favoráveis a Lula, em parte por votos temerosos do não-Lula. O segundo lugar nessas eleições foi de votos brancos, nulos e dos eleitores ausentes. Esses votos são de gente que não se sente mais representada por político nenhum. Não vêem nenhum rosto à frente, estão com esse espaço vago, e querem uma nova forma para o seu preenchimento. Aécio ficou em terceiro. O voto nele não foi nele, mas no anti-Lula.
O anti-Lula se baseia no rosto do Lula. O personagem em torno do qual giramos todos é o Lula. Alguém que aposte no governo para o equacionamento de um problema educacional, de saúde, econômico, da própria honestidade da administração pública, etc, apontará para o Lula, seja o exaltando ou o rejeitando.
Após a condução coercitiva sofrida por ele, em 4 de março, para que prestasse depoimento na Polícia Federal, cartazes com os dizeres "Injustiça contra Lula, não! Mexeu com ele, mexeu comigo!" foram colados em grandes quantidades no centro do Rio de Janeiro. A imagem do cartaz era a de Lula em meio a uma multidão, com o detalhe de um garoto negro, seguro pelo pai, esticando o braço para tocar no sorridente Lula.
Ele é aquele que aparece para multidões. Há um tempo atrás, talvez antes da primeira eleição de Lula para presidente, falava-se muito sobre "a apatia política do brasileiro". Após essa eleição, passou-se a observar os passos de Lula como se se observasse a condução do "milagre da transformação do Brasil". Ao invés de se dizer que a educação ia mal, passou-se a dizer que Lula estava indo bem ou que estava indo mal.
As multidões que querem tocar o Lula são muito mais do que o que está na foto, muito mais do que quem vai às ruas. São pessoas que pela primeira vez, desde Vargas, não viam um rosto, um corpo para representar o que vai bem e o que vai mal.
A partir da frase "Injustiça contra Lula, não! Mexeu com ele, mexeu comigo!", pode-se dizer que a percepção das pessoas era de que os problemas sofridos pela população, antes de Lula, eram injustiças perpetradas por não se sabe bem quem. Poucos comentam a história do FHC. As injustiças não possuíam um agente bem definido. O culpado era abstrato. Os injustiçados se sentiam sozinhos. Parecia até irreal falar dos problemas sociais, ou ideológico. No Lula foi enxergado, antes de tudo, um companheiro de pobreza. Ao ser assim, ele foi tomado como um espelho dos problemas sociais, deixando-os mais tangíveis. A figura dele foi formada, então, com essa mistura com o que é da população. E a chegada dele ao poder só podia ser vista como uma revanche contra aqueles agentes abstratos da injustiça.
Hoje, o modo como se defende Lula das acusações de crime é o de quem luta contra uma "massa amorfa historicamente produtora de injustiça contra o povo, e logicamente contra o Lula." Pensando bem, a frase que melhor combina com a percepção das pessoas é a que diz que elas lutam contra uma "massa amorfa historicamente produtora de injustiça contra o Lula." O Lula tomou o lugar da população, o lugar de quem sofre injustiças. É como se toda a história dos problemas do Brasil tivesse se tornado a história dos problemas do Lula. E os problemas de educação, saúde, etc, tivessem se tornado o problema da perseguição ao Lula. Como diz o Paulo Ghiraldelli (https://www.facebook.com/ghiraldelli.filosofia/videos/989989031037940/?pnref=story), "tem gente achando que para ser de esquerda tem que defender o Lula".
A avaliação das pessoas é que a situação que se tem é a de uma disputa entre Lula e os muitos poderosos contrários a ele. O rosto de Lula é formado pelo corpo da multidão, que o ergue acima dela como se fosse seu próprio rosto, a cara que ela quer ter. "Ele é o cara!" é uma frase que demonstra isso. O garoto da foto alcança o rosto de Lula, que é o dele próprio. Se Lula sofre, causa dor no corpo-multidão.
Encontra-se adormecida a ideia de que temos participação política nula. Hoje nos vemos todos ou como apoiadores ou como opositores de Lula. As investigações dos atos dele são corretas. Mas são vistas como ataques contra ele. Os que o defendem agem por auto-defesa. Não querem que o próprio rosto seja destruído, e que se volte a ser injustiçado sem representante e com problemas também difíceis de entender, coisa de "gente carente". Pior do que isso: pessoas incomodadas por se sentirem passivas. Por isso alguns rebolam e falam em pegar em armas.
Contra ou favor de Lula, não sabemos o que fazer sem ele. É por isso que se o chama de "Lula", ao invés de "ex-presidente". É como se o brasileiro tivesse deixado de ser despolitizado, quando se elegeu presidente. E não quer perder o mandato. Mas ao menos um dedo falta, para o povo.
P.s. Lula é o rosto sustentado por um corpo formado pela multidão, pessoas que, antes dele, não encontravam uma forma de expressar seus anseios. Ao custo de um populismo autoritário, Lula prestou-se a ser a objetivação dessas pessoas, que agora não querem ficar órfãs dele. Moro, assim como foi Barbosa, também é um aglutinador de anseios, mas anti-Lula. Os que têm esta posição apontam no juiz para indicar as decisões que acham que deveriam ser tomadas. E não se dão espaço para um pingo de discordância em relação ao juiz. Tal fanatismo é o mesmo dos lulistas. Agora vejam a juíza que vai decidir sobre a prisão do Lula: ela não é famosa, nem tem grandes feitos no currículo (http://oglobo.globo.com/brasil/perfil-uma-juiza-apaixonada-por-gatos-viagens-18850671). É um indivíduo que tem a sua profissão, e é apaixonada por gatos e viagens. Enquanto uma massa elege seus rostos para poder falar de si mesma, seja como "carentes injustiçados", seja como "revoltados com a corrupção", surge um indivíduo bem-sucedido na vida, trabalhando e curtindo coisas. E que vai decidir por conta própria, usando a própria razão. Os animais de rebanho só podem se roer, não?
domingo, 6 de março de 2016
O espírito (vontade) e a alma (razão) em Santo Agostinho
Agostinho perguntava a Deus o que era ele próprio, Agostinho. Uma pergunta que interrogava sobre o homem, e sobre o ser que Deus ordenava que o amasse. Para responder a esta pergunta, Agostinho fez um exame rigoroso dos crimes do seu coração. As confissões eram contra si mesmo! Ímpio, o coração de Agostinho, quando este era jovem, errava distante de Deus.
Agostinho não se lembrava das coisas que fizera quando bebê. Entretanto, ouviu outras pessoas falando das malícias que os bebês fazem. E também fez suas próprias observações de bebês. Pôde, então, deduzir os seus próprios mal feitos. Quando bebê, seu corpo desejou comer, beber, receber. Ele não tinha os meios de exprimir estes desejos a quem poderia satisfazê-los, pois os desejos estavam dentro dele, e as pessoas estavam fora. As pessoas não o compreendiam. Ou, então, simplesmente achavam melhor não satisfazê-lo. Agostinho chorava, com a intenção de vingar-se dos insubmissos.
Que outros pecados ele cometera, nesta época? Em ansiar pelos peitos ricos da sua mãe, buscando alimento? Se ele, hoje, ansiasse desta forma os alimentos que gosta, seria repreendido. Ao crescer, o homem joga fora a sofreguidão do apetite. Ele pôde ter recebido reprimendas, enquanto bebê. Mas não as percebia. Ao contrário, encolerizava-se contra os pais e outras pessoas livres e sensatas, por não se curvarem aos seus caprichos.
“A debilidade dos membros infantis é inocente, mas não a alma das crianças.” (p.34) Agostinho viu um menino no peito de sua mãe, olhando encolerizado o irmão que se alimentava junto dele. A cólera dominava o pequeno rosto. Mães e amas têm suas maneiras de esconjurar esse mal. Agostinho gostaria muito de ser exato em suas confissões, saber os males que praticou. A primeira idade, contudo, escapava-lhe totalmente do conhecimento. Em pecado ele nasceu ou foi alimentado pela mãe? Está oculto nas trevas do esquecimento.
O aprendizado da fala de Agostinho deu-se com a observação atenta dos que falavam. Alguém pronunciava uma palavra, enquanto movia o corpo para algo. Agostinho percebia a existência de um nome para um objeto, e determinada afeição da alma de quem fala, em relação a ele. Os movimentos nos olhos, os gestos e o tom da voz indicavam se o objeto era solicitado ou rejeitado por quem falava. Agostinho retinha estas informações, e passava a domar a expressão da própria boca e corpo. Não mais exprimia os sentimentos do seu coração por meio de gemidos, gritos e movimentos diversos do corpo. Eles não estavam sendo eficazes, no interesse de Agostinho em dobrar os outros à sua vontade. Satisfazer à própria vontade era o importante para Agostinho.
Adolescente, ele queria agradar aos amigos. Devia ser visto como alguém interessante, e espalhava-se em situações de satisfação de desejos. O desejo o fazia arder. Ele competia com os amigos, em ignomínia, devassidão. Seria vergonhoso ter vergonha e recuar. Certo dia, em grupo, furtou peras da árvore de alguém. Não teve o intuito de comer os frutos, pois ele mesmo os possuía em casa, e em melhor qualidade. Mordeu uma pera e jogou as demais fora. Ele queria desfrutar era do roubo em si, a sensação de fazer o errado. Falando aos amigos, inclusive, deixou seu feito mais grandioso. A malícia era o motivo de si mesma.
Mas o erro de Agostinho era mais abrangente do que o episódio do furto. O interesse em peras, ou em ter bom desempenho nas aulas de retórica, era uma dispersão por entre bens inferiores. Estes bens inferiores porventura podiam até ser bons, mas buscando-os o homem abandona bens mais elevados, como a Verdade de Deus. Apenas ela lhe traria unidade, enquanto as coisas lhe dispersavam e, por um dia deixarem de existir, levá-lo-iam a ser um nada.
Outro prazer extraído do furto foi o consórcio com os amigos. O atrito de almas atiçava ainda mais o fogo da cobiça pelas coisas. A cumplicidade dos pecadores criou uma falsa unidade entre indivíduos dispersos. Cometendo uma vez um crime, ocorre a consciência culpabilizadora. Havia também o medo de ser pego pelos homens, e a persistência da pobreza, mostrando a futilidade do furto. A honra, o poder e a riqueza que eles prometiam compensavam o medo, a desonra e a pobreza.
“Tive ao menos o gosto de lutar pela fraude contra a Vossa lei, já que não o podia pela força, a fim de imitar sendo cativo, uma falsa liberdade, praticando impunemente, por uma tenebrosa semelhança de onipotência, o que não me era lícito?” (p..60 e 61) Imitação perversa de Deus. Deus deveria ser seu porto-seguro. O homem que tem mulher já encontrou o seu porto. Por isso, ele deve voltar-se às coisas do mundo, para oferecer o melhor à mulher. Deus é o firme apoio para a alma. Longe dele a alma peca, busca algo puro e transparente, mas em vão.
Os seres nascem e se esforçam por existir. Quanto mais depressa crescem para existir, tanto mais se apressam para não existir. O fim de um ser dá lugar ao nascimento de outro. Cada um é parte de um todo, mas esse todo não é visto pelas partes que o compõem. As coisas caminham para deixar de existir. O homem, contudo, prende-se a elas pelo amor. Sua alma deixou-se seduzir pelos sentidos do corpo. Ela quer descansar no que ama, mas o que ama é passageiro.
Melhor do que cada coisa é aquele que as fez todas, sendo ele mesmo o todo, não a parte. Cada beleza encontrada no mundo provém dele. É justo, portanto, que se o ame mais do que tudo. E é mais seguro, pois nada veio antes ou virá depois dele, pois Ele é aquilo que não passa. Viemos dele, quando ele desceu ao seio da virgem. A união entre o Espírito Santo e a carne mortal fez com que esta deixasse de ser mortal. Ele não pôde permanecer junto de nós, e subiu. Erramos pelo mundo. Ele passou a aguardar o dia em que fecharíamos os olhos do corpo, e o encontraríamos em nosso coração. Então subiríamos para junto dele. A morte do homem foi suplantada pela abundância de vida.
Ao não amar as coisas do mundo pela pertença delas no eterno, mas pela estima que elas têm entre os homens, o homem enferma a sua alma. Agostinho louvava comediantes, mas, se ele tivesse a arte deles, iria preferir manter-se oculto aos demais homens. Nas Confissões, fez-se a pergunta: Como pode amar em alguém o que repele para si mesmo? Também amava professores e, tivesse a arte deles, iria querer ser celebrizado. Amava para si o que via como digno de honra, e não exatamente o que possuía méritos.
O que os homens consideram grande, louvável, era o que atraía a atenção de Agostinho. Um imã para o espírito dele, que se deixou levar pela paixão. Os prazeres carnais ocupam o espírito, produzem nele afetos. O espírito assim afetado atira-se contra a alma, sede do atributo da avaliação, no homem. A alma contaminada pela viciosidade do espírito comete erros, falsas opiniões. Avalia o que lhe acontece a partir dos afetos, do domínio do espírito, e não da razão.
A morada do espírito, a vontade e os afetos, é o incorpóreo. Perdido no corpóreo, o espírito se agradava com o conveniente, não com o belo. Agostinho define o belo como o que agrada por si mesmo, e o conveniente como o que agrada pela acomodação a alguma outra coisa. A música é bela por ela ser bela em si mesma, não como um meio para cumprir determinado fim. Já um sapato não pode ser belo, mas deve ser conveniente. A alma de Agostinho, do jeito que estava, era incapaz de fazer esta distinção, enxergava apenas o que lhe comprazia os sentidos.
A alma não é da mesma essência da verdade. Para distinguir o belo em si, para participar da Verdade, ela deveria ser ilustrada por outra luz, que não a dela mesma. O que é belo é belo por participar de Deus. Ele as criou, as coisas dele vêm e nele permanecem. A alma deixa de perceber isto, atendo-se à utilidade delas. As características físicas das coisas deixam de existir, encontram um fim. Só no artista divino elas são estáveis. O amor a Deus é uma retribuição pelo que ele oferece ao homem. Ele está no íntimo do coração do homem, e este deve escutá-lo.
Este é um estudo dos capítulos I a IV do livro Confissões, de Santo Agostinho. Utilizei a versão da editora Vozes, ano 2011.
P.s.: Este não é um texto sobre religião, mas sobre uma teoria psicológica.
sexta-feira, 4 de março de 2016
A defesa do pai Lula
O bandido decente e o bandido indecente são personagens de muitos filmes. O decente usa terno e gravata, faz seus negócios em restaurantes caros e em carros pretos com vido fumê. Fala baixo, é sempre discreto, de modo a não ser notado por outra coisa senão pela aparência de confiável.
O bandido indecente usa camisa aberta e passa o dia falando alto, em pequenos grupos localizados em pontos próximos a loterias ou pontos de táxi. Está sempre com um celular preso à cintura, e com um copo de cerveja preso à mão. A quem passa perto, não disfarça que está falando de um negócio que não deu certo ou de uma cobrança feita, geralmente resultado na morte ou, no mínimo, na tortura ou no desmembramento de alguém.
O bandido decente não tem origem popular, e almeja ter o que em qualquer lugar do mundo é considerado um bem de luxo. Este luxo tem a característica da exclusividade: poucos sabem apreciá-lo, reconhecer o seu valor. O bandido indecente tem origem popular, e almeja ter o que na sua cultura é considerado "de vida boa": uma cobertura de frente à praia, um carro caro e uma viagem à Europa.
Do bandido decente não se suspeita. Quando ele recebe uma acusação, apresenta-se com um bom advogado. Em nenhum momento se mostra aturdido. Do bandido indecente se suspeitava antes de ele ser acusado, pois o pobre está sempre sob suspeita. E se revolta com isso. Ele conversa à vontade com a polícia, sobre negócios. Mas quando a polícia se comporta como defensora da lei, põe o bandido indecente no lugar do contraventor. O põe pra correr.
Lula sempre foi atacado por beber e pela baixa escolarização. Ataque de quem vive no mundo da decência, que é o mundo legal e ilegal com verniz civilizado, contra o pobre que erra principalmente por não disfarçar sua ilegalidade. Neste dia 4 de março de 2016, Lula foi coagido a acompanhar a Polícia Federal, para depor sobre acusações de recebimento de dinheiro e vantagens de empreiteiras, dentro de um esquema de desvios na Petrobras. Lula vinha se esquivando às solicitações da Polícia para que contribuísse com as investigações.
No Facebook, muitas opiniões circularam, dizendo que a investigação contra Lula é injusta. Um grupo foi criado, nesta rede social, com o nome "Mexeu com o Lula, mexeu comigo", com mais de 30 mil inscritos (https://www.facebook.com/groups/mexeucomlulamexeucomigo/?ref=ts&fref=ts).
Freud, em "Totem e Tabu", conta que, em clãs totêmicos, a vida se organiza com o tabu do assassinato e do alimentar-se do totem, e do incesto. Além de não servir-se sexualmente de nenhuma mulher do seu clã, cada homem tinha o dever de proteger o seu totem da ação violenta dos outros membros, dele mesmo e, obviamente, de indivíduos pertencentes a outros clãs.
O totem é um animal, um lugar ou uma pessoa que protegem e dão identidade e história ao clã. Freud entendeu que o totem era o substituto de um pai primevo, que governava tiranicamente a sua horda, e era por todos amado e odiado. Ele expulsava os outros machos, e servia-se sozinho das mulheres da horda.
Certo dia, os indivíduos deram vazão à sua agressividade, e uniram-se para matar o pai. A culpa pela expressão da agressividade fez com que eles sentissem medo de serem punidos. Por isso, ergueram um totem e estabeleceram os preceitos tabu. O respeito ao tabu garantiria que eles não seriam punidos. O tabu também permitia a cada homem manter seus impulsos agressivos e eróticos sob controle, de modo a que ele mesmo não fosse dominado por estes impulsos e, assim, causasse problemas em seu clã.
A mística em torno de Lula é a de que ele é um "pai dos pobres". Ele é o pai primevo, vigente para aqueles que parecem pensar como o homem do período pré-totêmico. O bandido indecente é o primeiro a beber e a cantar uma moça que acaba de ganhar corpo. Entre risos, ele manda dar dinheiro ou uns tiros em alguém, de acordo com a necessidade e a ética dos negócios. Os outros homens, rapazes, perto dele, baixam a cabeça e sonham com o dia em que também serão senhores. Esta é uma caricatura.
A defesa de Lula se faz por pessoas que, geralmente, colocam-no como alguém que trouxe benefícios aos mais pobres. Ele é como um pai que cuida da sua horda, mesmo sendo autoritário. Os que os atacam são membros de outras hordas, por isso, são seus inimigos naturais.
O momento da humanidade em que se matou o pai e, em seu lugar, ergueu-se um totem, mostra uma certa abstração, distanciamento da figura que organiza a coletividade e a vida mental de cada um. O momento posterior, de criação de deuses, foi mais um passo nesse distanciamento. E mais ainda foi o momento de criação de um Estado.
Conforme explicaram Hobbes e Weber, cada indivíduo doou seu uso da violência para uma entidade superior, que a aplicaria, justamente, sob a forma de legislação. Cada criança passou a aprender na família que não podia bater em alguém que lhe pegasse o doce. E aprendia na escola que esta regra servia à boa convivência social. Aprendia também que há uma figura neutra, como a professora ou o juiz, para avaliar as responsabilidades e aplicar as punições.
Ao fazer com que se pensasse em bem comum, leis, infrações e penas, a educação permitiu que cada um aplicasse um raciocínio sobre si mesmo e os próprios impulsos. Esse é o surgimento individual da civilização. Caso um indivíduo assim formado cometa uma infração, a última coisa que ele quer é que os outros vejam. Ele tem consciência do mal que fez, mas não sente a punição como estando próxima.
O homem da horda paterna não possuía vida mental, era puramente físico: uma infração que ele cometesse o fazia ser alvo de dedos apontados, e a punição era um golpe de clava na cabeça. Um totem, por sua vez, é um objeto representante do pai.
Esse simbolismo só foi possível quando o homem foi capaz de perceber que algo podia agir sobre ele sem que estivesse fisicamente diante dele. O totem tinha uma energia misteriosa que rapidamente ocupava o infrator, e o fazia ser perturbado pela certeza de que a punição ocorreria logo.
Com as outras concepções de mundo, como eu falei, a fonte da lei e da punição vai ficando mais distante, e o homem vai desenvolvendo cada vez mais uma elaboração mental sobre essas figuras. O modo animista de pensar era uma demonstração da onipotência do pensamento do homem, ou seja, a certeza de que, se ele pensa com afinco, ocorrem chuvas, guerras, graças ou punições.
Essa onipotência do pensamento persiste como orações aos deuses, quando a humanidade passou a ter o pensamento religioso. Os deuses têm vontades próprias, e planos para o que acontece no mundo e no destino do homem. Mas o homem pode fazer sacrifícios e orações, para influenciá-los.
O modo de pensar que sustenta o Estado não é místico, é uma razão de causas e consequências. O homem é um ser que elabora internamente essas razões. Sua onipotência de pensamento é alojada na expectativa de que estude as bases da sua sociedade, teorize sobre elas e proponha modificações. E destas modificações espera-se que atendam aos interesses de um legislador que se regozije com o próprio brilho, e seja bem pago por ele. Isso é tão importante, embora não tão dito, quanto o aspecto da generosidade, do atendimento ao bem comum do seu trabalho.
Em países como o Brasil, vivemos, entretanto, uma situação de fragilidade das instituições de garantia de direitos e de assistência social. E um aparelho de negócios e benefícios, em grande parte ilegal, que serve a enormes e micro negociantes, e a enormes e micro dirigentes. Muitas vezes o negociante é o mesmo indivíduo que o dirigente. Ele está fisicamente próximo dos que administra. É "companheiro", exerce um forte impacto. É difícil para os outros elaborarem, raciocinarem sobre o que ele faz, sobre o lugar em que ele os coloca.
Lula é o pai de uma horda de oprimidos. Em todos os discursos, quando fala dos ataques que sofre, afirma que é contra o seu grupo que estes ataques se dirigem. O corpo dele é o corpo do povo. Lula disfarça a agressividade, com sua pinta de rudeza. E o caso extra-conjugal, que teve, apareceu timidamente. Mas comanda os negócios do partido (isso não ficou só com o José Dirceu, como se pensava) com empresários. Comanda o coração dos militantes, no Brasil todo.
A elaboração mental que os militantes conseguem ter é o sentimento do pobre eternamente agradecido, e do intelectual eternamente culpado pela existência dos oprimidos. Este rebaixamento dá ódio, lógico, mas este ódio é projetado para os inimigos do pai. Cada um deles se coloca imediatamente em sua defesa, como corpo, mesmo. E um corpo belicoso. Gostariam de terem sido eles próprios os conduzidos à PF.
O Estado está distante, abstrato demais para que eu, com minha falta de estudo, consiga enxergar nele uma possibilidade para realizar meus ideais. Surge um "presidente do povo", alguém em quem posso depositar minhas antigas queixas. Passo, então, a amar alguma coisa: a visão de mundo dele. Minha balança amor-ódio completa sua reequilibração quando eu ganho adversários políticos. Fica fácil, então, sustentar o ódio que sinto pelo autoritarismo desse presidente indecente.
O corpo e a corpo com o líder populista produz um efeito de pai sempre presente, que cala o ódio contra ele e direciona este sentimento para os inimigos externos. E este pai aguça nos filhos o desejo por objetos tão imediatos quanto a comida e o dinheiro, inibindo o sonho em almejar algo melhor. A obediência a esse pai torna-nos um cão que late ferozmente contra o vizinho a quem não conhecemos. E com uma visão que não vai além do amor à ração.
Lula é como Deus de carne e osso: não preciso de nenhuma elaboração para entendê-lo e obedecê-lo; ele me conhece por inteiro, por ser pobre, como eu; sinto-me importantíssimo, influente, por causa desta proximidade; e um ataque que ele sofra chega imediatamente a mim, pois meu corpo é o mesmo que o dele.
quarta-feira, 2 de março de 2016
Vamos rir disso tudo, um dia.
O garoto estava no quintal. Comia jabuticabas, ouvindo, um pouco longe, a voz do moleque da outra casa. Lembrou-se das histórias que ouvira dele: de quando subiu num coqueiro, de quando deu um beijo na professora bonitona, de quando passou duas semanas fora de casa. Essas coisas podiam ser verdade. O que a mãe achava? O que as outras crianças achavam? Dependendo do jeito, dava para fazer. Será que a corda do pai, a casca do pé e a própria coragem aguentam o peso dele, no coqueiro? Pensou a sério.
Anos depois, ser advogado é mesmo o que ele quer? O direito é legal, come os grossos livros com os colegas, saboreia Maquiavel, Locke e Kant. O estágio já realiza o atravanco que sofrem os processos, uma injustiça com a justiça. Não dá para ser professor da matéria, pensador, palestrante, falar só do que deveria ser, e falar mal do que é? E esse governo, que já tá impossível de apoiar? Vão dizer, ele vai dizer para ele mesmo que votou e depois mudou de opinião. Mudou. Ele votou, mas não precisa ser o Cara que Votou.
As coisas que os outros lhe diziam, quando ele era criança, e as que hoje lhe dizem, o raciocínio que teve sozinho e o que está em um livro, o medo do escuro e o medo de se achar volúvel, a certeza inicial e agora a vontade de mudar, valem o mesmo. As ideias resolvem as questões do momento em que surgem. As emoções e ações também, e isso encerra sua validade. Encerra no sentido de que guarda e conclui. O momento passa e torna-as fúteis. A consciência não aumenta, de época a época. Quando é sincera, a consciência vence as próprias ingenuidades, e vai se achando livre até que descobre novas ingenuidades. O tempo decorrido entre uma vitória e outra sobre a ignorância é justamente a passagem de uma época a outra.
Uma criança mistifica a causa de algo. A professora ensina diferente. A criança vai tendo experiências, e sabendo de novas possibilidades de causas para aquilo. Mas mantém a mistificação, parte por apego, parte por apego ao que ganha com a mistificação. Estuda filosofia, teologia, matemática, ciências humanas. Depois de explicar a matéria para uma colega, ele apresenta a causa não refletida. Ocorre de esta colega também não ser totalmente crescida, e topar a mistificação.
A consciência que não é curiosa, não lança hipóteses para o que é curiosa, não vê seus acertos e erros, e se modifica, não é rigorosa. Mantém uma verdade, fazendo o tempo não passar. É como se o garoto ainda comesse jabuticabas no pé, mesmo estando de terno. Usa, com o cliente em dificuldades, aquela explicação mistificadora. Não era o melhor que podia dar a ele: se tivesse reunido teorias, o clima do lugar, o que ele próprio sente e o que a empatia dele com o cliente podem lhe informar, teria dito algo útil e importante. E que, com o próximo cliente, não valeria mais nada.
Crianças pequenas costumam dizer: "quando eu era pequena". É como se cada aprendizado deixasse uma era para trás. O que a criança pensa é, em grande medida, determinado pelo que ela sente. Uma ideia se absolutiza com o absoluto de uma decepção, uma frustração, uma expectativa ou uma grande alegria. Um adulto pode considerar determinado livro o seu grande mentor, pois este, mais do que lhe dar o que pensar, deixa-lhe num clima que não se quer que termine.
Não querermos que as sensações gostosas terminem. E, convenhamos, também não queremos que algumas sensações ruins passem. Elegemos, então, como a verdadeira razão, o melhor amigo, a comida preferida ou o grande livro aqueles que proporcionam isso. Mas uma clima emocional é como um fenômeno climático da atmosfera: impressionam pelo tamanho e vida própria, mas passam. O amigo torna-se indiferente, a comida fica sem graça, o livro vira coisa do passado. "Como pude ser tão besta?" "Virei a página."
Você ganhou um presente novo, é o melhor da turma, está apaixonado, se formou, é um grande empresário, é o Presidente da República: não se preocupe, tudo isso vai passar. O velho que passou a vida abraçando e despedindo-se do que quis, ri da ironia disso tudo.
P.s.: Inspirado em "O cenário do saber", de Cioran.
terça-feira, 1 de março de 2016
Gloriosos bastardos
Um jornalista desenvolve o assunto sobre o qual fala, inserindo-o numa narrativa com personagens, dados sobre lugares e datas, e curiosidades. Há anos o Oscar, na Globo, tem sido apresentado pela bela jornalista Maria Beltrão. Ela cumpre estes aspectos da sua função, e também o que vem sendo uma nova exigência do público: a opinião pessoal. A tv quer manter-se relevante, diante das redes sociais de internet, em que o eu é o show.
Maria Beltrão conta com o convidado especialista para falar de forma técnica, ou melhor, dar uma opinião pessoal com verniz técnico. Mas ela também não deixa de comentar sobre a elegância da Meryl Streep, do talento ainda surpreendente do Di Caprio.
As pessoas, hoje, tornam-se celebridades ao associarem a atração de milhões de views na internet com uma história pessoal contendo algum lance curioso. Não é necessário que se tenha mais de vinte e cinco anos de idade, pois a história da celebridade deve caber em um vídeo de youtube, ou em uma entrevista de tv aberta, ou ainda em seis meses de produção de um livro de duzentas páginas.
Qual foi a atitude que determinou aquele sucesso, ou qual foi o percalço da vida que precisou ser superado, são os pontos em que se apoiam as autobiografias das novas celebridades. A própria vida as torna especialistas no assunto sobre o qual elas falam, que vai do marketing à maquiagem. Uma psicóloga torna concorridas suas palestras com o "conhecimento sobre espiritualidade" que obteve ao passar por momentos difíceis em sua vida. O saber técnico, oriundo da formação, não interessa. Formação lembra curso longo, alguém formado lembra discurso longo, enquanto o que se quer são dicas associadas a imagens.
Algumas dessas celebridades surgidas na internet, inclusive, publicaram vídeos chamados "Draw my Life", em que contam suas vidas através de cartazes com desenhos e palavras escritas. A narrativa oral segue as imagens, muitas vezes as secundando em importância. Como não pode demorar, a celebridade fala animada, divertindo-se consigo mesma. A objetivação de si, em vídeo, permite esse auto-entretenimento. Um acontecimento triste entra nessa história como uma pedra rapidamente superada. Como a pessoa que está ali é o resultado daquele percurso, o que era um grande problema virou essa pedra pequena.
As antigas celebridades da tv são cobradas a essa exposição acelerada e com muitas informações, unindo especialismo e pessoalismo. Glória Pires foi acusada de não ter visto os filmes do Oscar, a que foi chamada, pela Globo, a comentar. Maria Beltrão passava as informações objetivas sobre os filmes, e jogava para a atriz a fala meio pessoal, meio especializada.
Glória Pires é atriz de tv e cinema brasileiros, tem cancha neste tipo de produção. Na mentalidade nossa, não se espera dela cursos com grandes diretores ou em grandes escolas, mas a vivência de quem esteve onde poucos estiveram: sets de filmagem, convivência com galãs (de preferência com a ocorrência de beijos e sexo), maquiagens e roupas para aparecer mais bonita do que as outras mulheres, apresentações espetaculares, etc. Ela não tinha que ser deslumbrante e inteligente como A Mulher, mas ser mais do que as mulheres que vemos em nosso dia-a-dia. Nossas experiências são muitas, então a metafísica que temos é um salto a partir desse concreto que passa rápido. A Mulher é estável demais para o nosso tempo.
Ninguém se impressionou com o "atuação maravilhosa", dito por Glória. O "não assisti esse filme", que ela disse a respeito da animação Divertidamente, mostrou o que ninguém imaginaria ver na transmissão de uma festa glamourosa, ocasião exclusivíssima: Glória simplesmente não tinha nada a contar sobre aquele filme, não havia nada em seu saco para dizer a respeito dele. E ela estava ali, na tv, desanimadamente.
Ao dizer que não havia assistido ao filme, Glória deixou indisfarçado que estava ali como uma igual ao telespectador, que também não tinha nada a contar sobre os filmes do Oscar, exceto a opinião, formada no facebook, de que o Di Caprio deveria ganhar. Não pergunte o nome do filme, não seja chato de perguntar a alguém se assistiu. Di Caprio tinha que ganhar, de acordo com o consenso da rede social, produzido com memes, imagens e frases curtas e bem humoradas com o ator. Produziu-se a opinião de que ele deveria vencer, assim como a de que Glória estava perdida na transmissão ao vivo.
As muitas imagens que as pessoas têm na cabeça acerca do Di Caprio formam uma história de gritos, emoções e caras que mais que justificam o prêmio para ele: como um ator "veterano" ainda não recebeu a estatueta? Sobre Glória Pires as pessoas pensam nas gêmeas Ruth e Raquel, e nada mais se sabe sobre ela. O que se sabe sobre algo são as imagens que se vê a respeito dele. Glória apareceu na transmissão do Oscar comportando-se como eu e você nos comportamos na sala de nossa casa (inclusive, foi o que ela mesma disse que havia feito, em um vídeo divulgado posteriormente: https://www.youtube.com/watch?v=BE0Y1wiigHU).
Alguém como nós, com imagens e uma narrativa conhecida por poucos, queríamos ser projetados na tv, na noite do Oscar. Era para sermos celebridades. Glória já não era mais tão célebre, pois seu desempenho não apresentou nada de notório. Ou melhor, ela celebrizou-se por estar desanimada e perdida, semelhante a nós mesmos. As pessoas no sofá, de short e sem camisa, que esperavam viver como se fosse delas o desempenho de se vestir, gesticular e falar sobre Oscar, viram-se representadas por elas mesmas, pois Glória agiu como se estivesse de pijama mesclado furado embaixo do braço, há dois dias sem tomar banho.
No vídeo em que respondeu às críticas recebidas, Glória aparece sem maquiagem e chamando as pessoas de "gloriosas e gloriosos". Com essas palavras, ela inseriu-nos no seu público. Somos gloriosos, compartilhamos da glória dela. Mas ela diz isso em tom baixo, sem afetação, sem parecer uma celebridade. Se as novas celebridades falam muito e alto, a "celebridade da Globo" quer mostrar preeminência aparecendo blasé e low profile, depois do banho.
A atmosfera viciada dos satisfeitos e dos insatisfeitos
Um homem, ou uma mulher, queixam-se dos problemas da sua sociedade. Sua condição é a de seguidores exemplares de certas regras. Por terem ouvido falar, no início das suas vidas, que devem respeitar o outro, então seguem-no à risca. Respeitam muito o outro. Por terem ouvido falar, no início das suas vidas, que devem respeitar a si mesmos, então seguem-no à risca. Respeitam muito a si mesmos. Acreditam estar em honesto contato com o outro e consigo mesmos. Dizem-se contrários à hipocrisia.
Estas regras tornam-se hábitos, dos quais são sujeitos; o segredo não pode existir. Alguns dedicam-se ao combate a quem desvia da regra de ouro, do respeitar o outro e a si mesmo. Passam a diariamente se atrasar para a mesa do almoço familiar. Desviaram o olhar da paisagem do tédio, para a da melancolia. Toda a exultante promessa humana, que verdeava os morros do lado do tédio é, deste novo lado, um mal sem contornos. Uma dor imprecisa, diferente da tristeza, recobre tudo.
O sujeito do hábito não é diferente do sujeito queixoso. Toda a sinceridade e liberdade que adorava, olhando para um lado, agora teme, ao olhar para o outro lado. As expectativas de felicidade, que o sujeito projetou de um lado, voltam para assombrar-lhe como monstros. A dúvida se o tédio da felicidade alcançada compensa, ou se alguém a goza mais do que eu, levaram a isso. Como precisa enunciar o temor, tornar inteligível o mal impreciso, o sujeito organiza alguns problemas: machismo, racismo, capitalismo. Este é um texto sobre psicologia, não sobre os problemas das mulheres, dos negros e dos pobres.
A expectativa em ser feliz, e o medo de não conseguir sê-lo, são os ventos da primeira paisagem. A certeza dos problemas dizem as nuvens da segunda. E, como se quer garantir ser o seu militante, o medo é de que os problemas deixem de existir. O infinito da vida é um inferno. É a vida sem morte, portanto, sem novidade. Este inferno queima em fogo ameno, e o sujeito burocratizado não quer outra coisa. Ele queima igualmente tanto do lado das regras para o ser feliz, como no lado dos saneadores do mal. Falta a este sujeito, que igualmente olha para lá, como para cá, suspeitar da própria falsidade.
Para cada amor declarado, há um ódio velado. Para cada eu posso, há um eu não consigo. Para cada eu sou, um eu não sei quem sou. Mas são coisas, como eu disse, a se suspeitar, não a se afirmar como novas verdades, de sinal trocado. Tanto o satisfeito, quanto o insatisfeito, no fundo sabem a insanidade da própria certeza. Se a vida é boa, lembre-se que se é carne, que apodrece. Se a vida é ruim, lembre-se que se está, deliberadamente, deixando de ver o que há de bom. O sujeito tem que se enganar. Torna-se bobo quando acredita na própria mentira.
Um grande hipócrita vive bem, mas não vive consigo mesmo. Sua autoacusação é mortal. Um grande acusador da hipocrisia vive mal, mas tampouco vive consigo mesmo. Projeta nos outros a própria hipocrisia, e vive de vociferar contra eles. Aquele que acredita em si mesmo, recrimina os próprios desejos diferentes. Aquele que acredita nos outros, esmera-se em ser o policial deles. Não nos relacionaríamos com ninguém, caso disséssemos o que realmente pensamos dele. E isso inclui nosso próprio eu. Mas não vivemos sem um eu e um outro.
Não se trata de ser um grande hipócrita ou um grade acusador da hipocrisia, mas de rir secretamente deles. O comediante ri igualmente do insider e do outsider, do branco e do negro. Ambos querem ser felizes, ambos querem ser caçadores de demônios mas, para uma coisa ou outra, não são suficientemente bons. Por isso não empenham-se suficientemente em seus propósitos.
Aquele que desconfia da hipocrisia é só mais um hipócrita. Aquele que desconfia do eu, não abre mão das próprias ideias. Um comediante é o único que consegue dar um tempo no que está fazendo, e respirar fora da atmosfera viciada de ser um insider ou um outsider.
P.s.: Texto inspirado em "O autômato" e "Sobre a melancolia", de Emil Cioran. São trechos do "Breviário da Decomposição".
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