terça-feira, 19 de abril de 2016

O servo de um rosto e de uma voz


"Se o seu olho é ocasião de escândalo para você, arranque-o e jogue-o para longe de você. É melhor você entrar para a vida com um olho só, do que ter os dois olhos, e ser jogado no inferno de fogo." (Mateus, 18:9)

Se uma perspectiva que você tem está impedindo-o de pensar, arranque-a de você e jogue-a fora. Pensar é pensar o novo. Uma perspectiva anterior pode ser um apoio nisso, mas ela sempre sairá ao menos um pouco destruída do processo de pensamento (http://ghiraldelli.pro.br/sera-que-sou-original-na-minha-critica/).

Um rosto é uma forma de apropriar-se de uma aparição sem essência (esta ideia é do filósofo italiano Giorgio Agamben. Veja em "Rosto": https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome-instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-8#q=agamben%20rosto), fazendo um eu. Uma ideia é uma forma de apropriar-se do pensamento, que é sem ponto fixo.

"Quando você rezar, entre no seu quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente, e o seu Pai, que vê o escondido, recompensará você." (Mateus 6:6).

Recompensas vêm para quem contém o afã de mostrar o próprio rosto e a própria voz. O rosto e a voz são formas de apreender as inúmeras coisas que vão sendo mostradas. O eu, formado nisso, é inseguro de si e quer exibir-se para outros. O retorno que se tem é o do espelho, que apenas diz sim e não, está bom ou mau.

A recompensa dada por Aquele que é todos os rostos e todas as vozes é ser visto como novo, e dizer o novo. Deus vai no escondido, naquilo que ainda não arrumamos para exibir, para daí retirar novos eus. O resultado disso não é para os olhos dos outros homens, e nem para os olhos do próprio eu.

Deus vê o não apreendido, sem precisar apreendê-lo. Sem precisar que seja dito em voz alta ou apareça em um rosto. O eu arruma uma fala e um rosto para comunicar algo, pretende um resultado prático. Não se tem intenções com Deus. Sendo todos os rostos e todas as vozes, Ele é não apreensível. Está além do que qualquer um consegue domar para exibir como eu.

A um texto alguém dá uma resposta pronta. A uma imagem, faz uma cara-resposta pronta. Está ocupado com o que está exibindo. Dizer "não sei, vou me segurar, pensar" é frear o afã de apropriar-se das exibições e formatá-las num eu. É ser visto estando paralisado, absorto.

Após pensar, será por meio de um eu que dirá alguma coisa. Mas esta coisa não será a mesma que dizia antes.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Esquerda e direita sem pré-enquadramento


Janaína Paschoal, em entrevista ao Paulo e à Fran, no Hora da Coruja (https://www.youtube.com/watch?v=VGR6Db1QGRs), disse ser favorável à política de cotas étnicas implantada pelo Lula, em seu primeiro mandato. Entretanto, ela prossegue, a forma como o governo propagandeou esta e as outras políticas para minorias que implantou criou um clima de "nós" contra "eles".

Desde o surgimento destas políticas, circula, principalmente nas redes sociais na internet, a opinião de que estas políticas dividem o país e que, portanto, elas mais estimulam o preconceito do que o diminuem. A estas opiniões também circulou a resposta de que o preconceito já existe, e de que a política de cotas, por exemplo, era ou uma reparação histórica, ou uma inclusão educacional. Paulo Ghiraldelli Jr. escreveu inúmeras vezes (aqui está um destes textos: http://ghiraldelli.pro.br/cotas-etnicas-de-novo/) explicando o erro daquelas justificativas pró-cotas, e dizendo que esta política é de integração social, de inserção de pessoas de cor diferente em um espaço homogeneamente branco, e que esta convivência com o tempo reduziria o preconceito.

Junto a cada opinião sobre esse assunto, coladas a elas, vinha a ideia de que ela se refere a determinada posição política. Parecia fácil: ser favorável às cotas é ser de esquerda, ser contra as cotas é ser de direita. Historicamente, a esquerda é a posição atenta às demandas e às necessidades sociais, e a direita é atenta às demandas e necessidades dos "setores produtivos". Na defesa ou no ataque às cotas, o opinador vê a si mesmo, e é visto pelo seu leitor, como sendo de esquerda ou de direita.

Paulo Ghiraldelli Jr. sempre se colocou antes como filósofo do que como tendo posição política a priori. A posição de Janaína, expressa na entrevista, dificulta que se a coloque à esquerda ou à direita. Bem, eu diria que esta dificuldade é aparente. O que se segue explica isso.

As militâncias que se identificam como sendo de esquerda, no Brasil, ao defenderem a política de cotas do governo, frequentemente também afirmam que são contra o mérito (https://www.youtube.com/watch?v=sf6xBMNu774). Acusam o mérito como sendo um valor excludente e da direita. As posições contra as cotas, declaradamente à direita, por sua vez, confirmam as posições favoráveis, mas com o sinal invertido: esta politica interfere no mérito, que deveria ser o norteador do ingresso nas universidades. Como é possível, então, dizer-se, junto de Janaína, favorável às cotas e ao mérito?

Bem, para conseguir isso é preciso defender os interesses sociais ser alinhar-se à esquerda. Mas com esquerda estou apontando para os partidos e os militantes que se apresentam, hoje, com esta posição. Não é possível apoiar o discurso deles, sendo também favorável ao mérito. Então só é possível se, antes de se alinhar aos "defensores do social" que estão aí, buscar os interesses sociais de forma crítica. Não é porque os negros precisam entrar rapidamente na universidade que se vai abandonar o mérito.

Quanto aos militantes e partidos que se dizem de direita, também não é possível enquadrar-se em seu discurso se se defende as cotas. É preciso analisar as universidades e a sociedade brasileiras para se perceber que defesa do mérito, do reconhecimento do merecimento do esforço individual, não exclui a necessidade de que os brancos que frequentam a universidade, justamente para estarem em uma "universidade", precisam do aprendizado com a convivência com o negro.

Os partidos e militantes que se dizem de esquerda ou de direita revelam-se carentes de capacidade de análise. Mas eu não diria que sejam carentes de racionalidade. Hitler tinha muita racionalidade, e nenhuma emoção. Como Janaína lembra na entrevista, a emoção deve dirigir a razão. Isto contraria a ideia de que nossos pensamentos e decisões devam basear-se na razão e excluir a emoção, pois ela turvaria nossa capacidade de sermos racionais. Em nome disso a humanidade conheceu autoritarismos sangrentos que se diziam tanto à esquerda como à direita.

A emoção, o sentir o que está acontecendo ao próprio redor, o falar com as pessoas e ter empatia pelas sensações delas, a capacidade de identificação com suas experiências, deve ser o orientador da razão. É porque eu sinto que as pessoas e os animais não podem sofrer crueldade, e que devam ter totais oportunidades de se desenvolverem, que apoiarei políticas que favoreçam isso. E é porque eu me sentiria aviltado se um estudante aplicado não ingressasse na melhor universidade, ou um competente e original pesquisador não conseguisse bons financiamentos, que eu só posso apoiar a consideração do mérito no concedimento destes benefícios.

Penso porque sinto, não penso sob um esquema programado de partido. Por ser sensível às necessidades sociais, posso ser de esquerda para além daqueles que se dizem assim, pois estes só pensam, e pensam curto, dentro enquadramento das suas próprias posições. E posso defender os direitos individuais de quem produz conhecimento e riqueza, sem me dizer como sendo de direita, pois os que se identificam assim pensam da mesma forma fria e pré-programada.

É por estas e por outras que devemos devemos desvincular a esquerda de partidos e militâncias com velhas ideias totalitárias. E parar de achar que, para defender os direitos individuais, é preciso ser insensível com as questões sociais. É uma pseudo razão pensar a esquerda e a direita desta forma.


P.s.: Este texto requer que o leitor seja capaz de pensar além de esquemas já aprendidos.

O homem e sua soberba


A alma do homem rejuvenesce em Deus. Recobra as suas forças. Quando escreve suas Confissões, Agostinho convoca a própria alma a confessar as misericórdias recebidas, para louvar a Deus. Os homens revoltados e maus fogem de confessar seus pecados a Deus. Esta é uma fuga do próprio rosto. Na verdade, eles estão fugindo daquele que os olha no rosto. “Fugiram para não vos verem a Vós que os estais vendo!” (p.106)

Entretanto, Deus não abandona nada do que criou. Aqueles homens divagaram para longe de Deus, mas conseguiram ficar longe de tudo, menos de Deus. Deus está no coração dos perdidos que agora choram, confessam. Choram e são consolados. Choro que é um gozo, então.

Agostinho também se apartava de si mesmo, e então se desencontrava tanto de si quanto de Deus. Mas era impossível ficar longe Dele, mesmo fugindo de tudo. Deus está em cada lugar, acompanhando o homem, querendo que ele olhe para a própria face.

É bem-aventurado o homem que conhece as coisas que Deus criou, mas não por causa delas mesmas, e sim por quem as criou. Conhecê-las é glorificar a Deus. O homem simples, que conhece a árvore a partir do seu uso, agradecendo por isto, é melhor do que o homem que a visita uma vez, para medi-la, mas que não come o seu fruto, não aproveita a sua sombra, não conversa com quem usufrui dela, não a guarda na memória, não sabe quem a pôs ali.

O homem utiliza a razão para contar as estrelas do céu, os grãos de areia do mar. Constrói teorias sobre os segredos da vida, e delas se orgulha. O homem simples, desconhecedor dessas teorias, permanece estupefato com os segredos do mundo. Orgulha-se de Deus, não de si mesmo.

Soberbo, o homem afasta-se da Luz divina. Apesar de também se dedicar a coisas grandes, como os eclipses, não encontra Deus. Não percebe que o objeto sobre o qual aplica sua razão é uma criação de Deus. E também não percebe que a própria razão, que pensa ser sua, é um talento doado por Ele.

O Verbo fez as coisas que são numeráveis, e os sentidos com que se as percebem e a mente com que se as numeram. A Sabedoria de Deus, ao contrário, é inumerável.

Jesus foi feito para ser como um dos homens, para que os homens o considerassem um caminho para Deus. Era um meio para o homem soberbo poder descer do próprio salto, descer de si mesmo e dirigir-se a Ele. O homem deveria ter compreendido a origem da sua magnífica razão, e tê-la entregue ao Criador para que ele fizesse sua conservação. Isso teria livrado a sua razão de todo o lixo acumulado, que a turva, como os pensamentos altivos, as curiosidades e as luxúrias. Mas, não obstante, ele julgou-se alto e cintilante como as estrelas. Atribuiu como proveniente de si mesmo a razão recebida de Deus. Em retorno, atribuiu a Ele as falsidades próprias do homem, transformando “a glória de um Deus incorrupto na imagem e semelhança do homem corruptível” (p.108).

Próximo aos 30 anos, Agostinho lecionava retórica em Tagaste, no norte da África. Incomodava-o profundamente o comportamentos dos estudantes, que invadiam as salas em que estivessem ocorrendo aulas. Esta falta de disciplina e destempero indignava Agostinho. Segundo ele, Deus impelia-o a mudar-se para Roma, para que sua alma fosse salva. Mas a forma como ocorreria este salvamento, o real motivo da mudança de Agostinho, apenas Deus sabia.

A mãe agarrou-o, chorando amargamente a sua partida. Num momento em que a mãe recolheu-se para chorar e orar, Agostinho partiu, confiante na realização do motivo profundo de Deus. Deus ouvia o objeto principal dos desejos daquela mãe - a salvação do filho -, não atendendo ao pedido pela permanência dele. Os homens desconhecem as alegrias que a eles são reservadas por aquele que preordena o acontecimento de todas as coisas.

Em Roma, Agostinho travou relações com filósofos maniqueístas. Permaneceu, portanto, inapto a abrir-se a Deus. Segundo diz, parecia-lhe que este pecado não era cometido por ele, mas por uma outra natureza, desconhecida, estabelecida nele mesmo. Ele não confessava a culpa, pois a culpa recaía sobre outra coisa que, embora estivesse com ele, não era ele.

Esta é a divisão do homem ímpio em relação a si próprio. E a sua soberba, com ele se colocando acima da responsabilidade pelo que faz. Agostinho, jovem, procurava fazer com que Deus fosse derrotado no próprio interior, ao invés de ser vencido por Ele, para ser salvo. O pecado da soberba é cometido pelo homem que se considera maior do que de fato é.

Seu espírito queria voltar à fé católica, mas a ignorância o impedia. Agostinho não admitia que pudesse existir alguma coisa que não fosse material. Ele formava, portanto, uma ideia de Deus dotado de um corpo. Para ele também havia uma susbtância do mal, feita com massa feia e disforme, grosseira como a terra, ou tênue como o ar.

Agostinho cria, contudo, que Deus não criou nenhuma natureza má. Então havia duas substâncias opostas entre si: a do bem, mais extensa, e a do mal, mais diminuta. Supunha, também, que Cristo proviesse da substancia do corpo de Deus. Para que ele nascesse, fora necessário que a carne de Deus houvesse se juntado à da Virgem, manchando-a.

Agostinho ignorava o que era Deus, e que o governo das coisas humana pertence a Ele. Mas jamais deixou de crer na existência Dele. A razão, que de outro modo é transparente e apta a alcançar a Verdade, em Agostinho estava comprometida. Os livros santos faziam-se, por isso, necessários a ele, com a sua autoridade. Como Agostinho poderia crer que seus pais eram aqueles que assim se declaravam? Justamente deste modo, pela declaração. Se ele não cresse no que ouvia, não saberia.

Os livros santos abrem-se a todos, acolhendo os sinceros de coração. Por meio deles, Deus dispõe as almas a considerarem os muitos fatos em que devem crer sem presenciar, sem ver. Deus está em toda parte, escondido e presente. Ele é constante, assim como sua Verdade, e ambos só podem ser alcançados por meio da inteligencia purificada.

Na doutrina católica, não se entende que Deus, infinito, esteja circunscrito ao espaço, finito. Ele, portanto, não pode encerrar-se num corpo, como o homem. Essas dúvidas ocupavam Agostinho, tendo ele abandonado a doutrina maniqueista mas ainda não abraçado totalmente a fé católica. Sua mãe veio visitá-lo, e felicitou-se pelo primeiro fato, mas inquietou-se pelo segundo. Ela intensificou suas súplicas a Deus.

Agostinho aspirava a honras, riquezas e a casar, mas vinha encontrando dificuldades em tê-los. Nas Confissões, ele entende estas dificuldades como um benefício de Deus. Quanto mais fosse penosa e difícil a busca por estas coisas, mais se demonstrava que Deus não as consentia a Agostinho. “Picáveis a parte mais sensível da ferida, para que, deixando tudo, voltasse para Vós, que estais acima de todas as coisas” (p.135).

Certo dia, Agostinho se apresentaria ao imperador, em Milão. Devia proferir louvores que, na sua boca, eram mentirosos. A agitação no seu coração o atormentava. Neste mesmo dia, andando na rua, viu um mendigo bêbado e alegre. Os falsos louvores, as honras, a riqueza, o casamento, pra que serviam? Para se chegar à alegria que aquele mendigo alcançou com algumas esmolas. Isto se realmente aquelas coisas o fizessem chegar a ela. Sem falar que esta era uma felicidade temporal, ou seja, não eterna.

A alegria do bêbado não era verdadeira, tampouco a que Agostinho poderia alcançar com os bens que almejava. Naquele momento, Agostinho só queria viver menos inquieto, mas também não exatamente ser alegre como um bêbado.


P.s.: Este é um estudo do livro "Confissões", de Santo Agostinho, compreendendo o intervalo entre as páginas 105 e 140.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

A loucura do amor




Eventualmente, em nossas vidas, amamos e somos amados. Experimentamos o amor. Mas como defini-lo? Poetas e escritores inspiram-se nele, e fazem belas obras. A pretensão de construir um discurso racional sobre o amor, contudo, parece ser mesmo uma pretensão, uma alta pretensão de alguns homens. O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. afirma que, apesar disso, a filosofia insiste em investigar o amor. Mas esta investigação filosófica, pelo seu objeto, não poderia distanciar-se da poesia e da literatura. Platão deixou-nos as mais belas obras sobre o amor. Seus escritos oferecem tanto um discurso racional sobre ele, como imagens de rara beleza.

Ghiraldelli Jr. (2011) define as noções de eros e de philia, utilizadas pelos gregos antigos, e de ágape, definida pelo Apóstolo Paulo e utilizada a partir do alto cristianismo. Ágape era entendido como o amor de Deus para com os homens, e ensinado por Jesus. No livro Levítico, Javé transmite a Moisés a seguinte lei:

“Se alguém ferir o seu próximo, deverá ser feito para ele aquilo que ele fez para o outro: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente. A pessoa sofrerá o mesmo dano que tiver causado a outro.” (Levítico, 24:20)

Esta é uma ideia de justiça como reparação. Jesus significou o rompimento disto, com uma lei baseada no irmanamento de todos pelo amor de Deus. Recuando no tempo, até a civilização grega, temos philia e eros como manifestações do querer humano. Mas há diferenças entre um e outro. Philia implica num querer deliberado: “Eu quero ser amigo dele.”, “eu quero entrar para aquela turma, pois ela parece se divertir muito.” Trata-se de um querer da vontade, racional. Já eros é um querer do desejo. Este amor leva o mesmo nome do deus Eros.

Eros é filho da Carência com a Astúcia. Isto significa que falta-lhe algo a que ele sempre busca ter. E ele realiza esta busca lançando mão de estratégias, astúcia. O amor de desejo, o amor sentido pela alma possuída por Eros, se sobrepõe à razão. Este desejo é o de fundir-se com o outro, como no mito do andrógino, apresentado por Aristófanes no Banquete (2012), de Platão:

Diz Aristófanes que existia um ser esférico, possuidor de uma cabeça com um rosto masculino, de um lado, e um rosto feminino, de outro. Seus quatro braços e quatro pernas lhe conferiam grande agilidade e poder. Ele também era dotado de grande inteligência. Um dia, o andrógino resolve subir o Olimpo e desafiar os deuses. Zeus, furioso com esta insolência, parte o andrógino em duas metades. O lado em que cortou cada uma das metades foi suturado no umbigo. Desde então, cada metade vive desafortunada, sempre à procura da outra metade, sem descanso, sem paz.

“Cada um de nós não passa de uma metade que combina de um ser humano inteiro, uma vez que todos exibem, como o peixe chato, os vestígios de ter sido cortado em dois; e cada um se mantém à procura da metade que combina.” (Platão, O Banquete, p.54)

Este mito explica o fortíssimo desejo de união que há no amor Eros. Entre nós, o amor erótico ganha as feições do amor-paixão. É um amor com a característica da posse, do ciúmes. O amado precisa estar sempre próximo, se possível colado, e a própria ideia de perdê-lo causa sofrimento e exasperação no amante.

Sócrates (469-399 a.C.), mestre de Platão (427-347 a.C.), figura como personagem principal da maioria dos diálogos do discípulo. Um dos temas favoritos dele era o amor. Sócrates se dizia mestre na arte de amar.

No diálogo Fedro, Sócrates discursa sobre a alma do homem apaixonado, ou seja, a alma possuída pelo deus Eros. Estar apaixonado é bom ou mau? Lembre-se que o apaixonado superestima o seu amado, e promete-lhe coisas que, se o amor acabasse, não seriam cumpridas. Além disso, ao viver uma paixão, a pessoa acaba afastando-se da própria família e amigos, e obriga o seu amado a fazer o mesmo. Enciumado, o apaixonado é capaz de cenas constrangedoras, envergonhando o seu amado.

A possessividade, a avaliação errada que faz do amado, o afastamento das outras pessoas com quem tem relação e as cenas de ciúmes são demonstrações de que o apaixonado é desrazoável. Ele está louco, fora de si. A principio, Sócrates concorda com Fedro sobre a impossibilidade de se confiar em alguém que se encontre nesse estado. Mas logo Sócrates se dá conta de que Eros, sendo um deus, não pode ser mau. Ele, o filósofo, não quer ser pego falando mal de Eros, e acabar sendo punido por ele, não sendo mais agraciado com a dádiva do amor.

Outro aspecto da loucura por que passa o apaixonado é o distanciamento dele com relação ao que os outros normalmente vêem. Ou em relação ao que este mesmo homem pode ver quando não está louco. Por ser inspirada por um deus, esta loucura abre para o homem um tipo de conhecimento especial. Na Grécia antiga, consultava-se profetizas, mulheres em transe, para saber o destino de alguém ou de uma cidade. Hoje, vamos a médiuns e a outros religiosos nos consultar, e suspeitamos se eles não estiverem realmente enlouquecidos. Se é para encontrar alguém nas mesmas condições do que nós, vendo as mesmas coisas, qual a vantagem de consultá-lo?

“Os maiores benefícios nos são transmitidos através da loucura, quando são enviados como uma dádiva dos deuses. De fato, a profetiza em Delfos e as sacerdotisas em Dodona, quando fora do seu juízo, concederam grande número de benefícios esplêndidos à Grécia, tanto na esfera dos assuntos privados quanto naquela dos negócios públicos, mas pouco ou nada conferiram em benefício quando se encontraram em seu juízo perfeito.” (p.45)

Certo dia, você encontra na rua um homem lindo. Você está atrás dele, na fila do supermercado. Gentilmente, ele cede a vez para você. Você agradece e passa à frente. Ele mantém-se reservado. Você comenta o absurdo do preço da carne. Ele responde, e você percebe a inteligência dele. Um calor sobe por dentro do seu corpo, e também uma vontade de que aquela conversa dure pra sempre.

Platão diria que a beleza deste homem entrou pelos seus olhos e inundou a sua alma. O seu novo amado te fez recordar de um querido professor, ou do seu primeiro namorado, ou de um príncipe da Disney. Ele tem as características que você admira. Mas você também tem vontade não de admirar, e sim de lançar-se no pescoço do seu amado.

Para Platão, a alma do apaixonado é como uma parelha de cavalos com um condutor. Um dos cavalos é negro, e é o cavalo da impetuosidade. Ele é o responsável por o apaixonado ser “meio atirado”. Esse cavalo anseia ardentemente por desfrutar da beleza física do seu amado. O outro cavalo, porém, diferentemente, ajoelha-se diante do amado, admirando-o respeitosamente. Esse é aquele lado do apaixonado que devaneia sobre o objeto do seu amor, ao olhar para as nuvens ou para o rosto dele. O condutor puxa o cavalo negro com força, obrigando-o a sentar-se.

“Quando o auriga vê esse rosto (do amado), sua memória é conduzida de volta à verdadeira natureza do belo e ele a vê colocada sobre um pedestal sagrado junto ao autocontrole; a essa visão, ele se amedronta e recua intimidado, e ao recuar se vê obrigado a puxar as rédeas tão violentamente para trás a ponto de fazer os dois cavalos se apoiarem sobre suas ancas, um deles o fazendo voluntariamente sem esboçar qualquer resistência, enquanto o outro animal, insolente, o faz de maneira inteiramente involuntária.” (p, 67)

A parte racional da alma do apaixonado tenta controlar sua parte impulsiva. Toda pessoa apaixonada sente uma louca vontade de estar com o amado, mas tem medo de parecer insistente. Não quer parecer uma pessoa que não consegue se controlar. Este controle é difícil, contudo, ao não iniciado na filosofia, àquele que desconhece o que aquele belo homem causou com a sua alma, não sabendo lidar com os próprios arroubos apaixonados. O filósofo é portador de uma alma que um dia passeou por entre as coisas divinas, entre elas a Beleza. Quando o filósofo vê alguém belo, reconhece essa Beleza. O filósofo é aquele que aprendeu a arte de amar no amor ao saber e aos rapazes.

“Bem, aquele que não foi recentemente iniciado, ou que foi corrompido, não ascende rapidamente daqui a uma visão da beleza ela mesma quando vê seu homônimo aqui. O resultado é não reverenciá-la quando a contempla, passando a ceder ao prazer e como um animal de quatro patas devotar-se à luxúria e à geração de filhos; faz da licenciosidade sua companheira e não teme nem se envergonha de buscar o prazer que viola a natureza. Aquele, entretanto, que foi recentemente iniciado, alguém que contemplou muitas de tais realidades, ao ver um rosto de semelhança divina ou uma forma corpórea que constitui uma boa imagem da beleza, principia por estremecer, algo como o velho pavor que sentia antes dele se apoderando; então, à medida que contempla, passa a reverenciar aquele que é belo como um deus, e se não recear ser julgado completamente louco, oferece sacrifícios ao favorito como se o fizesse a um ídolo ou a um deus. E enquanto o contempla, uma reação ao seu [anterior] estremecimento dele se apossa, acompanhada de suor e um calor incomum, pois à medida que o fluxo da beleza o penetra através de seus olhos, ele é aquecido e esse fluxo irriga a semente das penas de suas asas, ao passo que, ao tornar-se aquecido, as partes das quais se desenvolvem as penas, que antes eram rígidas e obstruídas, e que barravam o brotamento das penas, se tornam macias, e à medida que a nutrição circula por ele, os cálamos das penas se intumescem e principiam a se desenvolver a partir das raízes sobre toda a forma da alma, pois esta era outrora toda emplumada.

Ora, a alma inteira durante esse processo pulsa e palpita. Tal como na primeira dentição as gengivas doem e coçam, é exatamente o que experimenta a alma quando as plumas de suas asas começam a crescer; à medida que estas começam a crescer, ela se mantém febril, incomodada e experimenta cócegas. Quando, contudo, contempla a beleza do jovenzinho e capta a corrente de partículas que para ela fluem a partir da beleza dele, razão pela qual isso é chamado de desejo apaixonado, ela é irrigada e aquecida, aliviada de sua dor, que é substituída por alegria; mas quando ela se acha sozinha e torna-se seca, as aberturas das passagens nas quais as penas se desenvolvem são obstruídas pela secura e impedem a germinação das asas; os brotos no interior, encerrados com seu desejo, pulsam como artérias, cada broto aguilhoando a passagem em que se encontra, resultando que toda a alma é aguilhoada em todas as suas partes, o sofrimento a pondo em fúria. E, então, novamente, recordando-se do belo, ela se regozija. Assim, devido à mescla bizarra dessas duas sensações, ela é bastante transtornada por conta de sua estranha condição. Está confusa e enlouquecida, e na sua loucura não consegue dormir à noite ou permanecer estável em qualquer lugar durante o dia; tomada de saudade, ela se apressa rumo a todo lugar onde espera ver o belo. E quando o vê se banha mediante as águas do desejo apaixonado, as passagens que estavam bloqueadas são abertas, a alma libera-se do aguilhoamento, experimenta o cessar de sua dor e frui do mais doce dos prazeres do momento” (Platão. p.60, 61 e 62)

Distante do amado, a alma do apaixonado enlouquece de dor. A pessoa fica irritada, mal-humorada e sem descanso. Só a presença do amado alivia a alma das terríveis dores que está sofrendo, faz o apaixonado voltar a sorrir. Quando está perto do amado, o não-filósofo, porém, não controla o seu desejo, e procura usufruir intensamente da beleza física do seu amado. O filósofo, diferentemente, consegue conter este desejo e dosar o prazer com o curtir a beleza do amado, que o faz lembrar-se do Belo. O amante filósofo, ao ver o corpo daquele a quem ama, vê além desse corpo, porque ele vê além do que os olhos do seu próprio corpo vêem. Quando está apaixonado por alguém belo, o filósofo pode vislumbrar as coisas do Bem, como o Belo, o Justo, o Corajoso, etc.

O não-apaixonado é sensato. Equilibrado, ele perde o emprego já pensando em que lugar tentará trabalhar. O apaixonado por um trabalho se desespera, se for demitido. Sente-se injustiçado e lutará até provar que está certo. O sensato está num mundo em que o emprego, assim como a paixão acabam, mesmo. O apaixonado não acredita que as coisas que ele ama possam acabar. O amor é o meio privilegiado por onde o homem, mortal, pode tocar o eterno.

Se você já se apaixonou, ou está apaixonado, você sabe que, nesta condição, não se vê nada além da própria paixão. Isso é ver pouco? O apaixonado está numa especial condição para aprender a filosofia. Sendo filósofo, ele usufrui do prazer físico sem, contudo, se perder nisso, pois ele quer o desenvolvimento da parte intelectual da própria alma. E também quer isto para o seu amado.

O amante quer que o seu amado, além de belo, também cultive a parte nobre da alma dele. Ele se decepcionaria se o bonitão fosse só um bonitão, não usasse a própria beleza, quando ela atrai um amante-filósofo, para desenvolver sua intelectualidade e outras características nobres de sua alma. O apaixonado-filósofo e seu amado, conjuntamente, vão conhecendo as próprias almas, e podendo, então, cuidar delas.

O que fazer com a própria vida? Em que se tem mais aptidão para trabalhar? Como motivar-se para seguir este plano? Como usufruir da arte e das coisas belas, sentindo prazer e conferindo sentido à própria vida? Essas perguntas o amante-filósofo e seu amado fazem a si mesmos, e conseguem responder. Eles conhecem o que sabem, o que desejam e o que devem fazer em suas vidas, e estão com a alma suficientemente animada para buscarem essas coisas.


Referência

Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Editora Paulus. São Paulo, 1990.
Ghiraldelli Jr., Paulo. Como a filosofia pode explicar o amor. Universo dos Livros, São Paulo, 2011.
Platão. Banquete. Edipro. São Paulo, 2012.
Platão. Fedro. Edipro. São Paulo, 2012.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

"Sou livre x sou manipulado": uma preocupação que não vale nada


Quando jovem, Agostinho de Hipona lia a bíblia. Reconhecia-se como criatura de Deus, ao lado do restante da criação. Amava ao seu criador, por Ele ter feito as coisas amadas por Agostinho, inclusive ele mesmo. No entanto, nas Confissões, Agostinho declara ter demorado muito para entregar-se a Deus, amar a ele mais do que às coisas do mundo. Ou seja, demorou para ele deixar sua alma descansar no criador, ao invés de viver preocupado se conseguiria ter honra, dinheiro e casar-se. Destas, a preocupação com o matrimônio era a maior. Conheceu uma jovem, que lhe foi prometida. Ele sentia que o celibato era uma decisão do homem, e que se lhe era difícil mantê-lo, a culpa era dele mesmo. Agostinho não pensava que o celibato deveria ser algo a que Deus ajudasse ao homem manter e que, portanto, era Nele que deveria buscar forças. Buscar forças apenas em si mesmo, além de não dar em bom resultado, era soberba, crer-se maior do que se é.

A Sabedoria e a força para, por exemplo, manter-se celibatário, o homem recebia do Criador. Elas não vinham do próprio homem, ou daqueles com que ele se relaciona. O homem, num erro que o faz afastar-se do que considera a verdadeira sabedoria, força e vontade, preocupa-se com o que ele pode vir a saber apenas em livros, discursos, como se estes bastassem a si mesmos, e com a direção que pode dar à própria vontade. Preocupa-se em "pensar por si mesmo" e em "decidir por si mesmo", e reclama quando um pai ou o telejornal falam, unidirecionalmente, para ele. Estas instâncias de poder assemelham-se, para quem está no afã por ser autônomo e com medo de ser autômato. O cara da esquina, falando, não incomoda tanto, é logo esquecido.

O jovem, de qualquer idade, busca afirmar-se a si mesmo se antepondo às figuras que falam sem ouvir. Ele quer deliberar sobre si mesmo, sem nenhum vínculo de filiação. Aceita os vínculos fraternais, com pessoas e mídias de igual poder com os dele, no falar e ouvir. Daí o sucesso das redes sociais, onde toda recepção de informação inclui o ato de comentar e compartilhar. Todo o investimento que o jovem faz nessa auto-afirmação através do pensamento e da deliberação é ataque a quem lhe fala sem ouvir, parecendo-lhe querer pensar e deliberar sobre ele. O grito por manipulação vem junto desta auto-afirmação, ou melhor, é um trampolim para ela. O jovem reclama da tv, para abrir uma brecha para ele mesmo falar. Mas, de tanto fazer isso com professores, os pais e a própria tv, quando consegue o espaço pra falar, nada sai da sua boca.

Falta a ele a lição de Agostinho, de ouvir diversos discursos, e saber que nenhum deles é a Verdade. Esta Verdade é que atrai o amor dele, numa postura que o faz ler e escutar qualquer pessoa, como conteúdos a serem considerados e dialogados com outros, mas como coisas que deixam de existir. De permanente só há a Verdade de Deus, que é o fato de ele ter criado a totalidade das coisas. Isto pode ser lido por nós como um conselho por não darmos importância vital ao que morre, incluindo a nossa própria identidade e vida. Importante é a serenidade de quem se volta ao que é imortal que, para o que o homem pode alcançar, são as certezas acolhedoras com todas as verdades, generosas com todas as pessoas. Os ideais combinam bem com essas certezas. As atribulações do jovem Agostinho, e de qualquer jovem, incluindo o medo à manipulação e a vontade de manipular-se a si mesmo, é sofrimento que não resiste a um sopro do tempo.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Uma leitura livre sobre o Lula



Assisti a uma entrevista da jurista Janaína Paschoal ao programa de rádio do Pânico (https://www.youtube.com/watch?v=QLxWifXFIV0). Era o dia 8 de março, e Janaína havia acabado de entregar um novo pedido de impeachment da presidente Dilma ao Congresso, pedido este redigido por ela conjuntamente com os juristas Miguel Reale Jr. e Hélio Bicudo. Até então, Janaína ainda não havia recebido a atenção da mídia, atenção que veio a receber quando foi espalhado na internet um vídeo com o depoimento dela na Comissão do Impeachment (https://www.youtube.com/watch?v=RQJiJuUvSuw&nohtml5=False).

Na entrevista para o Pânico, a doutora em direito pela USP e professora desta instituição, falou as justificativas legais do pedido. Falou com clareza e mostrou ter domínio do saber que sustenta suas decisões. Não isentou-se, contudo, de ter emoção. Em um outro vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=xif8mqLG6gc&nohtml5=False), divulgado há dois dias, Janaína fala não em um programa de rádio ou tv, e não na Comissão, mas em um palanque. Grita, agita os cabelos, enlouquece para falar de sua indignação e de seus sonhos para o Brasil. É a mesma Janaína do discurso técnico, mas que não abandona seu lado timótico.

O thymos, na psicologia que Platão apresenta principalmente na República, é a parte da alma responsável pelo homem sentir uma forte dor no peito quando se sente injustiçado e que, para descarregar essa energia, o faz lançar-se à ação restauradora da justiça. O indivíduo movido pelo thymos está enlouquecido, pensando a partir da ira. Mas trata-se de uma ira justa, cabível diante do que o fez se sentir como tendo sofrido um ataque injusto, uma afronta. Este indivíduo sentir-se-á orgulhoso de ter se alarmado pelo dano sofrido, de ter batalhado para repor a justiça. Ele dirá, como Aquiles: "eu sou quem venceu centenas de homens em combate, dando vantagem aos gregos na guerra contra os troianos. E eu sou aquele a quem o próprio general desonrou, e que fez esse general arrepender-se disso". Diz como Janaína: "vamos matar a cobra que manda no Brasil, com uma paulada bem na cabeça." Ela sabe que está fazendo história.

No palanque, Janaína falou que "devemos pensar de forma livre". Ghiraldelli(https://www.facebook.com/ghiraldelli.filosofia/videos?fref=photo Vídeo "Janaína Paschoal decreta o fim da prisão de almas e mentes") aponta que esta frase é bem dita aos professores universitários, devendo eles não doutrinarem seus alunos, seja à direita ou à esquerda, mas abrirem-se aos livros. Abrir-se a um livro é deixar de lado os próprios saberes, e estar aberto para receber um autor, de modo a sentir toda a novidade do que ele está falando. Ou então sentir toda a bobagem do que há ali, e jogar o livro fora com uma careta. Abrir-se a um livro é o leitor lembrar-se das suas próprias experiências, acordadas pelo texto. É trazê-las à tona para entendê-las de uma outra forma, reparando em elementos que não tinha reparado antes, e conversando com as interpretações que já tinha dado a elas.

Nossa psicologia esqueceu-se do thymos, retirando o lugar próprio da ira. Identifica este sentimento como uma paixão que turva a razão. O indivíduo que sente um golpe deve calmamente reagir indo para casa, ligando para o advogado e entrando com um processo. Viver o thymos, diferentemente, é não se furtar de sentir o que as circunstâncias provocam. Em mais uma outra entrevista, desta vez de alguns anos atrás, para a Fátima Bernardes (https://www.youtube.com/watch?v=kGZnqb0V34M), Janaína fala sobre redução da maioridade penal. Seu discurso, como convém a um programa de tv, foi abertamente técnico e emocionado (na Comissão de Impeachment a técnica dela foi fácil de se ver, mas a forma dela pensar só é possível por que nela também há emoção). Em um momento ela falou que já existe punição a menores infratores, em alguns casos até mais severa do que para adultos infratores. Esta foi uma demonstração do aspecto técnico da fala dela. Então um outro entrevistado discordou dela. Era um pai que teve o filho morto por alguém menor de idade. Janaína volta a dizer que as os menores infratores ficam em condições degradantes, ou seja, o Estado não realiza uma punição dentro dos limites dos direitos da pessoa presa. E que abaixar a maioridade penal jogaria o jovem para a convivência com bandidos perigosos, fazendo-o perder-se no crime e piorando a criminalidade em geral. Estas falas são exemplos do aspecto experiencial da fala de Janaína.

Pensar livremente é tanto abrir-se para os livros como abrir-se para as próprias experiências. Janaína não pode aceitar a redução da maioridade penal por motivos tanto racionais quanto vivenciais. Essas coisas não se separam, exceto para a psicologia que nos acostumamos a adotar, que quer esconder o próprio thymos.

Pretendemos lidar com o que nos acontece de forma técnica, usando leituras como fornecedoras de teorias-objeto adequadas a determinadas situações, a que também queremos manipular como objetos. Na psicologia de Janaína a paixão, a emoção que a possui como uma entidade, a deixa super atenta aos jovens que viu apodrecendo na prisão, sem deixar de ver o pai que teve o filho assassinado. Sente a dor de ambos, e fala em punição para o jovem sem, contudo, que dele também seja feito um cadáver. A ira de Janaína a faz pensar melhor, atentar-se às diferentes experiências que lhe chegam, trazendo a teoria que visa fazer a justiça para um uso realmente justo, e não justo só com um dos lados dessa história. Ela não dormiria em paz se tivesse jogado um jovem num poço de leões, enquanto todos parecem querer fazer isso. Ela não vai deixar o Brasil ser uma República das Serpentes, enquanto os poderosos serpenteiam cinicamente.

Santo Agostinho fala que ao longo da nossa vida acumulamos explicações sobre as coisas, e passamos a achar que sabemos tudo delas. Caímos no erro, inclusive, de achar que nossa razão vem de nós mesmos. Esta soberba deixa-nos distantes do experienciar as coisas. A teoria poderia aproximar-nos delas, fazer-nos curti-las mais, mas a utilizamos como um instrumento de domínio. Agostinho diz para lembrar-nos que tanto as coisas que julgamos conhecer, quanto a nossa própria razão, vêm de Deus. E que devemos levar até Ele a nossa razão, para que ela seja limpa dos pensamentos altivos, curiosidades e luxúrias acumuladas, que estão turvando nossa capacidade de ver. Estar aberto a um livro ou ao que nos acontece é vê-los sem as barreiras da altivez de quem a priori se acha sabedor, da curiosidade vã de quem sempre quer estar "por dentro das novidades", mas nunca se satisfaz nem sente nada, e de agir como se fosse mais importante a glória de ter certa profissão ou diploma do que exercê-los de forma sábia e sensível. Tem bom orgulho quem é sábio e sensível.

O conselho de Agostinho é para que não deixemos as paixões do espírito, ligado ao corpo e ao mundo através dos sentidos, turvarem nossa alma racional. Mas tomo-o, aqui, para dizer que a limpeza que ele diz que Deus faz na alma do homem soberbo, deixando-a aberta para conhecer a Verdade de tudo, que é a pertinência delas Nele, pode significar estar atento à totalidade de um ato ou de algo. Lula fez políticas sociais. Mas ele roubou. Não há porque ver uma verdade e fechar os olhos para a outra. Ele deve ser reconhecido como um presidente que fez algo pelos pobres, mas deve ser investigado e punido pelos crimes que cometeu. Deve-se reconhecer e vibrar pelas pessoas que puderam consumir mais, e aguçar o olhar e ficar puto pelos desvios de dinheiro e compra de apoio político. Isto é estar aberto a Lula, mais do que ele mesmo e o militante dele estão. É aceitar as boas políticas do primeiro mandato dele. E é colocá-lo atrás das grades por causa do Mensalão, do Petrolão, etc etc.

domingo, 3 de abril de 2016

O que é importante para o homem?


Agostinho habitou, por um tempo, com seus discípulos e amigos Alípio e Nebrídio. Após ocupar um cargo de juiz, e de ter sido assessor, pela terceira, vez, de um senador romano, Alípio começava a buscar clientes. Agostinho possuía alunos, a quem ensinava a arte da retórica. Nas horas livres, ia à igreja. Nebrídio também era professor, mas procurava manter o próprio espírito, o quanto possível, livre e desocupado para investigar a Sabedoria.

Um dia, com Nebrídio ausente, recebem a visita do amigo Ponticiano, africano como eles. Ao entrar na casa, Ponticiano reparou em um códice que estava sobre a mesa. Pegou-o, abriu-o e encontrou as epístolas do Apóstolo São Paulo. Ponticiano sorriu para Agostinho, imaginando que aquele era um dos livros aos quais ele se debruçava nos estudos. Agostinho declarou ao fiel cristão que todo o seu cuidado ia para aquela bíblia.

Ponticiano começou a contar de quando ele e três amigos saíram a passear pelos jardins que acompanhavam as muralhas da cidade de Tréveris (da Alemanha). Iam em duplas, e a dupla em que Ponticiano não estava encontrou uma cabana. Lá também havia um códice, ao qual um dos amigos de Ponticiano tomou e começou a ler sobre Antão, um grande monge egípcio. A leitura provocou nele uma profunda admiração, vontade de abraçar a vida que tivera aquele homem.

Ele e o amigo eram agentes dos negócios do imperador. O leitor, "cheio de santo amor e salutar confusão, irado consigo mesmo" (Santo Agostinho. Confissões, p.192), perguntou ao amigo aonde pretendiam chegar com todo o trabalho, toda a militância deles. A defesa do imperador valia os perigos e a incerteza por que passavam? Se ele quisesse ser amigo de Deus, poderia sê-lo imediatamente! Agitado, o leitor voltou-se novamente ao livro que o transformava interiormente, em uma gestação de vida nova que só Deus podia ver. Seu pensamento saíra deste mundo. Disse ao amigo que, nesta hora e lugar, decidia pôr-se a serviço de Deus. Se o amigo não pudesse imitá-lo, que não se lhe opusesse.

Ambos deixaram tudo o que possuíam para seguir a Deus. Ponticiano e o amigo que com ele estava finalmente encontraram estes dois. Deles ouviram suas novas resoluções e como elas haviam se realizado. Ponticiano e o amigo comoveram-se e felicitaram-os. Encomendaram-lhes orações para os seus nomes. Os recém-convertidos, "fixando o seu coração no céu, ficaram na cabana" (Confissões, p.193). As noivas de ambos tomaram conhecimento destas resoluções, e a eles consagraram suas virgindades.

Ao ouvir esta história, Agostinho sentiu-se como se tivesse sido virado para si mesmo: enxergava agora aquele a quem não via. O livro veicula uma mensagem de um desconhecido, que a lança para que o acaso cuide de lhe dar leitores e amigos. É o que Sloterdijk conta, em Regras Para o Parque Humano. Se mantivermos o espírito da história contada por Ponticiano, diremos ter se tratado não de acaso, mas de providência divina.

A humanitas romana era um ideal de educação integral, sendo tanto transmissão de saberes quanto formação de virtudes. Enquanto os espetáculos de sangue atraíam e escravizavam multidões, a escola pesava a balança na inibição dos impulsos bestiais do homem. Entre nós, o humanismo vai inspirar uma educação que equilibra a inibição e a desinibição destes impulsos.

Agostinho, imerso na cultura romana, passou um longo tempo se sentindo aquém dos livros sagrados a que amava ler. Apesar de amar a Deus, sentia ele que a Verdade lhe escapava, e identificava que isso se devia ao fato de ele não conseguir se desvencilhar das atrações do mundo. Não tanto as riquezas e glórias o prendiam, mas o desejo por mulheres.

Agostinho demorou para conseguir ser amigo dos autores daqueles textos, sentir aquela Verdade junto com eles. Para ele, isto implicava em uma vida de renúncia aos prazeres do mundo, ao que os seus sentidos lhe proporcionavam. Entre nós se espera um homem que possa ser um estudante, que passe um período de leituras e reflexões com outros, mas que não deixe de agir. Espera-se dele tanto inibição quando desinibição.

Consideramos sumamente importante que o indivíduo se engaje nas atividades que socialmente lhe são oferecidas. Na verdade, o engajamento e a fuga da reflexão vêm sendo imperativos. Sloterdijk nos pergunta onde buscaremos parâmetros para dirigir as ações que empreendemos para nos auto-construir, se Deus se escusou deste trabalho e se largamos as mensagens dos sábios do passado, constantes nos livros, em porões (http://ghiraldelli.pro.br/clareira-de-peter-sloterdijk/). E, aproveitando o Heidegger de Sloterdijk, pergunto o que guardaremos, se estamos indo rápido demais para sermos sensíveis aos delicados sussurros do ser? Como cuidaremos do que é importante ao homem, não como uma possessão dele, mas como o ser para o qual ele existe, se nem sabemos do que se trata?