sexta-feira, 20 de maio de 2016

O apaixonado está por dentro. O militante está por fora.


Rubem Fonseca tem um conto em que um casal passa por uma noite de sexo maravilhoso e, pela manhã, enquanto eles relaxavam na cama, o homem fala em Nietzsche. Uma gota disso foi o suficiente para transbordar: a mulher se levanta, veste-se a jato e vai embora.

Segundo Platão, no Fedro, apaixonamo-nos por aquela pessoa que se assemelha ao deus nosso de devoção. Por exemplo, uma pessoa que adore Ares, o deus da guerra, amará alguém que na vida se mostre firme e decidido; um adorador de Afrodite amará alguém de rosto e corpo impecáveis. A pessoa que é alvo deste amor tem a característica pela qual está sendo amada. Contudo, o apaixonado exagera em sua percepção. Ele vê o seu amado como mais batalhador, mais bonito, mais justo ou mais inteligente do que realmente é.

A qualidade que um amante mais aprecia em seu amado é o que mais o fará se regozijar, quando na companhia dele. Observando como ele lida com o seu trabalho ou problemas por que passe, ou conversando ou fazendo sexo com ele, aquele traço fisionômico ou comportamental encherá os seus olhos.

Além de aumentar o que ama no amado, o apaixonado diminui o que odeia no amado, o que odeia em qualquer um. A desonestidade de um belo rapaz não será facilmente percebida por quem está caído por ele. Uma mulher demorará a se incomodar pela falta de gosto pela leitura, de um empresário altamente assertivo e que é um garanhão na cama.

O apaixonado goza a todo o momento em que está ao lado do seu amado. O gozo sexual é um dentre eles. O esfriamento da paixão ocorre quando vai se tornando maior o que se desgosta no amado. Isso é óbvio. Então digo mais sobre o óbvio, para que reparemos nele: a mulher levantou-se da cama do homem que "desandou a maionese", resolveu "pagar de intelectual" numa situação de deleite pós-explosão sexual. "Pagar de intelectual" não cabe quando se está exausto depois de uma batalha, e seu oponente foi nada menos do que um excepcional lutador. O pretenso intelectual estraga o momento. E é um pretenso intelectual, alquém que quer ser intelectual.

Um intelectual lê, conversa, pensa, principalmente junto da sua amada. Ambos curtem isso. Não é por moralismo que eu digo que esta não é a hora de eles começarem os toques que levam ao sexo: um momento de prazer a dois, em torno de determinado gosto em comum, espera-se que tenha mais importância, naquele momento, do que todos os outros gostos que um deles possa ter. Se estou conversando com minha mulher, e estamos nos amando mais em torno dessa atividade, e ela começa a arrumar a casa, inclusive me ordenando que pare de sujar a cozinha, considero-o frustrante. Da mesma forma que, quando estou escrevendo um texto, fico absorto e indisponível para fazer outras coisas.

Quando um casal apaixonado está em um dos seus momentos de curtir o que gostam de fazer juntos, o que aparecer de distinto desse interesse ou das características pessoais envolvidas nele gerará incômodo. Mostrará que o parceiro não está envolvido no momento, não está entregue à paixão.

Um homem que gosta de filosofia se apaixona por uma militante do movimento negro. Ela é lindíssima, e ele vê bem isso. Eles vão ao shopping, pois o que mais desejam é passar um tempo coladinhos um no outro, andando por aí. Eles olham-se nos olhos e olham os passantes, com cara de apaixonados. Em um dado momento, a moça reclama que nas vitrines das lojas não há nenhuma mulher negra nas fotos de exibição dos produtos. Ele fala o quanto ela é mais linda do que todas, e que deveria estar naquelas fotos. Ela continua falando do absurdo daquilo, de que é racismo.

Vem ao rapaz o pensamento de que ele gostaria de ler um texto sobre racismo, com ela, e discutir. Mas depois. Ele considera que os casos devem ser analisados com calma, e um momento oportuno. E sua amada está tratando com mãos brutas demais aquelas vitrines. Ela insiste que a hora de conversar é aquela, pois deve ser quando "se sente o racismo ocorrendo".

O militante é aquele que fala em Nietzsche na hora errada. É o que fala coisa intelectualizada no meio de um filme Corra que a Polícia Vem Aí. É o que sai do transe do amor, para reclamar do que se passa no caminho. É o que interrompe uma aula, onde se devia entrar no clima de um autor, para falar de problemas educacionais.

O militante é aquele que está fora de determinado clima, enxergando e dizendo o que não convém. E ele é pseudo militante, pois não se engaja no círculo de pessoas que estudam o que as incomoda, elaboram ideias e ações em torno do que possam fazer para resolver isso. Ou seja, enquanto o militante aproveita o momento de estudar (é estudante), o momento da escrita (é escritor) e o momento da manifestação (aí, sim, será manifestante. E, por querer que sua demanda seja resolvida, ele deve esperar que sua atuação como manifestante tenha um fim), o pseudo militante é um incessante e eterno queixoso. Ele é aquele que se põe fora dos círculos. Ele está longe de estar apaixonado, coitado.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Um momento em um destino



A guerra odiosa dura para sempre. Consome vidas, tempos de vidas (lifetimes). No livro Ilíada, de Homero, os deuses decidem quem vencerá, protegem um homem, um exército ou uma cidade.

Os homens são folhas: surgem fortes e rijos, morrem com sua rigidez mostrando-se quebradiça. Cada homem sabe que morrerá. Sorte daquele que possuir um belo destino a cumprir. Os deuses favorecem o guerreiro destinado a grandes feitos. Seu corpo, ao morrer, é pranteado pelos outros mortais. Deuses e homens lembrar-se-ão dele, que tornou-se imortal em sua glória.

No filme Tróia (Petersen, 2004), Aquiles decepa a cabeça da estátua de Apolo, na entrada do templo deste deus. O rei troiano, Príamo, é devoto deste deus. A troiana Briseida, que está sob o poder de Aquiles, é devota de deuses. Os deuses têm inveja dos homens, disse Aquiles para ela: em uma eternidade de guerras, o momento de um homem não se repetirá. Este momento pode ser gerador de glória, encaminhando o homem para a eternidade. Este momento pode ser, por outro lado, válido por ele mesmo. A noite de amor entre Aquiles e Briseida é válida porque passageira.

No fim do filme, os troianos acreditaram que o grande cavalo negro de madeira era um presente dos gregos ao templo de Poseidon, mantido por eles. Os crentes levaram o grande cavalo para o interior do seu espaço protegido. Rindo deste deus e dos crentes, os gregos aproveitaram a noite para saírem do cavalo e destruírem Tróia de belas muralhas.

Menelau, Patroclo, Heitor e Aquiles, mortos importantes, amados ou gloriosos, passaram pelo ritual de entrega de seus corpos a Hades. O ritual que marca o encerramento da vida é prática comum, no filme. Os rituais aos demais deuses, responsáveis pelos outros aspectos da vida dos homens, não são, contudo, uma unanimidade. A mortalidade manteve um cuidado especial. A vida continua na glória. Por outro lado, a vida se encerra a cada belo momento vivido.

O corpo de Heitor está degradado, no filme. Aquiles o arrastou atrás de sua biga. O leão destroçou um homem. No livro, os deuses reprovam esta selvageria de Aquiles, e protegem o corpo de Heitor. Ele é amado pelos deuses, assim como Aquiles. Heitor vai íntegro para o Hades e a glória eternizadora.

No filme, ele vai esfacelado para estes lugares. Algo foi perdido, algo passou no filme. O rosto de Heitor era bonito durante a sua luta com Aquiles. Um retrato deste rosto o eterniza. Morrer pela espada de Aquiles era o seu destino. Esta morte, contudo, ocorre num segundo, e momentos são coisas que os deuses desconhecem.

Um momento no interior de um destino é um retrato de homem na parede de uma cidade divina.

sábado, 14 de maio de 2016

O ser que pergunta e fala


Você está conversando com alguém. Alguma coisa que esta pessoa lhe diz mostra uma ponta de como ela interpreta você. Você, então, pergunta: "por que me disse isso?" É uma pergunta para ela falar o que está pensando (apesar que, quando se fala, o pensamento ocorra junto).

Você também pensa em dizer algo que confirme ou desconfirme o que ela parece pensar a seu respeito. Uma confirmação, numa tal situação, seria para afirmar-se, senão parecido com essa outra pessoa, parecido com o que ela pensou de você. Em ambas as intenções, a busca é por alguma semelhança. Uma desconfirmação teria ou o propósito de apenas negar, querendo permanecer sendo o "não sou isso", ou de abrir caminho para que tanto você quanto ela digam outra coisa de você.

Mas você não muda a primeira pergunta que fez, "por que você me disse isso?". Essa é uma pergunta que deixa a conversa interessante. É quando se procura dar um tempo nas expectativas trocadas, e perguntar pelo que se está vendo e pensando.

Perguntar pelo que o outro está pensando, a respeito de qualquer coisa, ainda mais a respeito de você, que está diante dele, é pedir uma resposta difícil. Existe o temor de magoar um interlocutor. Na verdade um temor egoísta, pois o temor é por estar sozinho e se magoar. O outro tem impressões a seu respeito, e pensa coisas que pode levá-lo a conclusões. E esse outro, sem coragem de estar sozinho, apenas solta um rabicho do que pensou de você.

Sócrates era racionalista, foi o que aprendemos. Ele queria saber se sabíamos o que dizíamos. Queria saber sobre o que restaria do que sabíamos, ao sermos perguntados por ele. Mas, estranhamente, antes de ultrapassar a porta de entrada da casa de Agatão, onde ocorreria O Banquete, Sócrates estacou. Ficou um tempo, parado, sem nem responder. Logo saiu desse estado, e entrou na festa. Bebeu, escutou discursos e discursou, como sempre.

Em diversos momentos da obra de Platão fala-se do daimon de Sócrates. Sócrates ouvia vozes! Seriam essas vozes uma realidade divina ou uma astúcia, uma piscadela do grande racionalista? Estas questões são colocadas por Cioran, no texto "A Habilidade de Sócrates" (busque este texto aqui na biblioteca do Ghiraldelli: http://ghiraldelli.pro.br/biblioteca/). Sócrates desperta a nossa curiosidade. Ele não é bem racionalista, nem irracionalista. O que ele é? À filosofia ele deu o que pensar a respeito de ambas as coisas.

Seguindo o entendimento do Cioran, Sócrates quis escapar dos que o rodeavam. Aquela gente que insiste em falar das coisas sobre as quais realmente não sabem. Gente que se desconhece. Sócrates estava em outra, pois sabia o que não sabia. Ou então aquela gente querendo ensinamentos, acreditando que Sócrates tinha algum tipo de saber "a mais". Bem, o que ele dizia vinha das musas. E quem falava com ele era o daimon. O saber sobre as coisas não é para os mortais.

Sócrates era um solitário cercado de mortais. Ou um acompanhado daqueles seres divinos. Da mesma forma que não se sabe a natureza do seu daimon, não se tem acesso à natureza da sua razão, sendo ela inspirada pelo divino.

Estudo e escrevo sobre a Bíblia e Santo Agostinho. Sobre histórias e teorias a respeito da relação entre homem e Deus, entre o mortal e o imortal, o corruptível e o incorruptível, o particular e o absoluto, etc. "O Thiago acredita em Deus!" "Ué, mas ele parecia não acreditar, antes." A última coisa em que penso é nessas questões. Através dessas questões, busca-se testar, por identificação aqueles com quem se pode "ser amigo".

Sou amigo, viro amigo de quem se senta à minha frente e me fala sobre qualquer coisa, e responde às minhas perguntas. Ou que me pergunta. Amigo é aquele que puxa o pensamento do outro, produzindo-o boca afora, pela fala. Não importando se somos filósofos, evangélicos, negros, espíritos. A conversa filosófica é maior do que o indivíduo. Ela deixa sozinhos os eus que querem identificar-se com outros eus, pois ela estranha os elementos usados para produzir a identificação. E também estranha as diferenças.

Diante de um afoito por ser um amigo ou um inimigo, um igual ou um diferente, o filósofo refugia-se no pensamento. Nessas horas, sua melhor companhia é ele mesmo. Ele fica estranho, indiscernível ou sem paciência. Um mau amigo. Pior de se entender do que um inimigo. Para quem o escuta, ou tem a generosidade de dizer a ele o que pensa (inclusive de si mesmo ou do filósofo), o filósofo é alguém que existe desta forma, mesmo. Alguém que fala algo, que escuta algo. Que com você conversa sem a prisão de, a priori, ser alguma coisa.


sexta-feira, 13 de maio de 2016

O professor e o aluno politizados



O politizado quer ter amigos. Politizado pode ser o jovem, o estudante, o professor ou o profissional. Hoje isso se refere apenas à pessoa que fala aos outros sobre o que considera seus problemas. Aquele que quer que os outros confirmem que se trata de um problema. Que os outros lhe sejam espelho, para ele assegurar-se de si mesmo. Ter certeza. Um si mesmo baseado em problemas.

Na sociedade da leveza (Sloterdijk), do desimpedimento e da falta de gravidade, eus são baseados em problemas. O direito à diferença tem sido o direito a fazer da própria diferença um problema para si mesmo, criado pelos outros com quem não se sente haver correspondência. É como se o espelho fugisse. Quero me olhar, para ser um eu, mas o outro foge, não me deixa eu me ver, não permite que eu seja. Chamo-o de machista, homofóbico, racista, fascista, etc.

Não falo, aqui, do que ameaça à vida biológica, zoé. Falo do que ameaça a capa de dignidade que erguemos para proteger a zoé. Esta é uma distinção feita por Agamben, a respeito dos registros da vida na modernidade. Qualquer poeira no meu balão, na minha plena liberdade e leveza, é uma bigorna: um sério inimigo atingindo minha dignidade, ofendendo-me profundamente, fazendo-me mergulhar nas profundezas do lugar onde falta-me vocabulário, desenvolvimento conceitual para acusar o golpe: por isso falo os fáceis "machismo", "racismo", "fascismo", etc.

Foge-me espelho da diferença que eu gostaria de viver. À minha frente, o espelho da diferença que não me deixam viver. O outro é meu malvado favorito, aquele que sempre me acompanha, cortando as minhas asas. Mantenho este espelho, pois devo ser aquele que luta contra quem não me deixa ser.

Não sei o que ser. Sou mulher, mas e daí? Tenho que sofrer um machismo. Sou professora, mas e daí, o que é isso? Falta-me o conceito. E salário. Encontro o ser professora no ser professora e politizada, ou seja, viver em greve, viver procurando racismo ou machismo em livros e em alunos.

O problema que um dia motivou a greve já se perdeu. Não sei o que de prático quero com a greve, que honra pleitear. Faço greve porque o espelho do "contra-mim" eu não retiro da minha frente. Há os que culpam os alunos. E há os que juntam-se aos alunos para chorar pelo que apanham. Toda a proteção que o professor quer, chama o aluno para também querer. Chove racismo, machismo e homofobia em cima deles.

Estudar o conceito de liberalismo, de democracia, de minorias, as histórias deles, de modo a ponderar o que, hoje, é problema ou não, e que soluções pode ter, é algo que não é feito. Não se estuda, não se quer partir do que se sabe e se é para o que não se sabe e não se é. Não. Não se pode ser professor ou aluno, ter o que sabe e o que não-sabe-mas-saberá, encarando a dureza que é o não-saber. O não-saber é escamoteado, pois qualquer saber vale igual. E qualquer tentativa de ensinar ao aluno, apontar seu não-saber, é oprimi-lo. Ele é rico na sua miséria. E será bom aluno, se for aluno-militante. De um professor-militante.

Oxalá os estudantes que estão a fazer greves em suas escolas queiram que seus problemas sejam rapidamente resolvidos, e que eles possam logo voltar a serem alunos. Para isso, é preciso enxergar a greve como uma ação eventualmente necessária para que seja possível existirem alunos e professores. Só alunos e professores. Se conseguirem ser isso, está ótimo.

Colocar a politização como estado permanente, pelo contrário, é ter uma relação de animosidade com o mundo. É considerar a si mesmo como já tendo nascido pleno de saber, à medida em que o indivíduo crescido, porém chorão, é pleno na queixa e no se sentir "incompreendido". É não desgrudar do espelho em que se vê um perseguidor.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

A prisão no gozo


Alípio era um antigo aluno de Agostinho, em Tagaste. Ambos estavam em Roma. Agostinho lecionava, Alípio estudava direito. Agostinho via no amigo uma índole inclinada à virtude. Ele detestava os espetáculos de gladiadores, que atraíam multidões. Um dia, amigos de Alípio conduziram ele à força para assistir os jogos cruéis daquele dia. “Por arrastardes a esse lugar e lá colocardes o meu corpo, julgais que podereis fazer com que o espírito e os olhos prestem atenção aos espetáculos? Assistirei como ausente, saindo assim triunfante de vós e mais dos espetáculos” (Confissões, p.140)

Alípio mantinha os olhos fechados. O ambiente fervilhava nas paixões mais selvagens. As crueldades envenenavam os espíritos, que tornavam-se sequiosos, dependentes. Em certo momento, um lance atípico arrancou do público um grande clamor. A curiosidade bateu forte em Alípio. Ele poderia dar uma olhada, e depois tornar a fechar os olhos. Alípio julgava-se capaz de dominar o que a cena provocaria nele. Bastou aqueles olhos abrirem-se: o que eles viram atingiu a alma de Alípio, e o ferimento foi mais profundo do que o causado no corpo do gladiador golpeado.

A alma de um viciado foi ferida e encontra-se abatida pelos prazeres. Apesar disso, ela é presumida de si mesma. Alípio fixou-se no espetáculo, seus olhos vidraram-se. Deleitavam-se no combate, participavam do furor popular. Ele tornou-se amigo da bestialidade, mais um da turba.

A partir do momento em que considerou apenas a própria força para resistir ao espetáculo, e depois em manter-se no controle das sensações, Alípio pôs-se distante do Deus, de onde o homem recebe suas forças. A falta de confiança em Deus e na força que Ele dá levaram Alípio a ficar sozinho, e falsamente confiante em si mesmo.

Agostinho lembrava deste amigo, a quem Deus, com mão forte e misericordiosa, arrancou daquele caminho. Também lembrava de si mesmo, aos dezenove anos: desejava obter dinheiro, reconhecimento intelectual, e casar. Nas Confissões, qualifica estes desejos como frivolidades, loucuras enganosas. Aos dezenove, também desejava obter sabedoria. Imaginava que, uma vez tendo sabedoria, ele superaria os outros desejos. Aos trinta anos, via-se com sabedoria acumulada. Isso, contudo, não o livrava de dissipar-se na busca por aqueles bens. O que tinha de leitura faltava-lhe em direção na vida!

Não podia desesperar-se. Fixaria os pés no degrau em que o puseram seus pais, e procuraria, a partir daí, ascender à verdade. Buscaria disciplinar-se, reservaria um horário para a salvação da sua alma. A vida é miserável, e a qualquer hora a morte pode chegar. Quando ela chegar, em que estado ele quer que a morte o encontre? E em que outro lugar ele poderia aprender o que negligenciou saber, enquanto estava vivo?

Agostinho se perguntava o motivo por que tardava em dedicar-se totalmente à busca de Deus, e abandonar os bens do mundo. Eles são, entretanto, agradáveis, e não se deve distanciar-se por completo deles, pois vergonhoso seria voltar de novo a eles. E ele próprio, Agostinho, estava próximo de ter um cargo honroso. Faltava-lhe apenas casar. Desejava a vida feliz, mas o tempo fugia, sem que buscasse a morada de Deus.

Mesmo casado e obtendo uma profissão honrosa, Agostinho continuaria perseguindo a sabedoria. Alípio opunha-se a que o amigo se casasse. Uma mulher se colocaria entre ele e o amigo, impedindo que eles vivessem juntos, no amor à sabedoria. Alípio experimentara o prazer carnal na juventude, mas arrependera-se e agora desprezava isto, vivia casto. Agostinho lhe lembrava de homens casados que mantinham o amor aos amigos, e também o cultivo das ciências e a entrega a Deus.

Mas o próprio Agostinho se sabia preso à falta que lhe fazia uma mulher. E não eram os cuidados com esposa e os filhos, as virtudes matrimoniais, o que o motivava a se casar, mas a prisão dele no hábito da concupiscência. A prisão na busca por saciar o insaciável: era por isso que Agostinho queria uma esposa.

Através da boca de Agostinho, a serpente falava a Alípio, tentando prender seus pés inocentes e livres. Havia uma grande diferença, Agostinho dizia ao amigo, entre o prazer furtivo, dos quais não se lembra depois, e o deleite do matrimonio. Alípio, enfim, caiu nesta armadinha, quando foi vencido pela paixão da curiosidade: que felicidade era essa que seu amigo Agostinho tanto buscava, sem a qual ele tanto sofria? Esta enfermidade da carne e prisão da alma?

Agostinho viveu quinze anos com uma mulher, antes de com ela se casar. Ela viajou para a Africa, mas voltaria. Deixou com ele o filho de ambos, e prometeu-lhe jamais ter outro homem. Agostinho disse ter se impacientado com a espera pelo retorno de sua mulher. Escravo do prazer, que era, procurou outra mulher. Ele manteve este hábito até casar-se, mas temia a morte e o juízo que receberia de Deus.

Vivia miseravelmente, imerso no vício e cego para a luz da Virtude e da Beleza. O gozo corporal era a sua principal preocupação, e chegou a perguntar aos amigos se haveria mais a almejar na vida além de ser imortal e viver experimentando o prazer, sem receio de perdê-lo.



P.s.: Este é um estudo do livro Confissões, de Santo Agostinho, compreendendo o intervalo entre as páginas 140 e 150.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Angústia


Quem nunca sentiu aquele “aperto no peito”? Essa sensação pode aparecer em situações de muito estresse, medo ou ansiedade, como escolhas difíceis ou uma situação ruim. Infelizmente quem se sente angustiado só procura ajuda quando a situação está insuportável ou quando confunde com uma situação médica, como por exemplo, o infarto.

Algumas estáticas dizem que a angústia pode ser facilmente confundida com infarto. Em “ataque” os pacientes costumam procurar um cardiologista em busca de medicamentos e cura, quando tem a hipótese de infarto negada esse pacientes normalmente são encaminhados para uma psicoterapia. A cultura errônea de que a psicoterapia não é funcional faz com que muitos fiquem buscando medicamentos em vários médicos até conseguir e negar aquela “dor”.

Segundo Gentil, a angústia é um sofrimento relacionado ao presente, diferente da ansiedade que é uma apreensão exagerada em relação ao futuro. Entretanto, Freud diz que a angústia se caracteriza pela ausência ou perda do objeto e Lacan diz que é a presença do objeto (sendo esse objeto bem particular, objeto de análise).
*Objeto: esse termo é usado na psicanálise com um significado bem diferente do que utilizamos usualmente. Clique aqui para ver uma explicação de um psicanalista.

A angústia pode ser tratada em psicoterapia, procure ajuda. Ela pode vir por algo que você não saiba explicar ou que possa falar sobre, algo recente ou bem antigo, ou múltiplas questões. Você não precisa viver assim.
Em todo material estudado para a produção desse texto, não há um acordo sobre quando essa sensação começa. Uns estudiosos relatam que pode acontecer na infância, enquanto outros dizem que a angústia vai surgindo conforme você vai ficando perto da fase adulta, quando as responsabilidades tendem a ser maiores.

É importante saber o que você está sentindo
Saber nomear seus sentimentos e emoções não é uma tarefa fácil. É preciso se conhecer, conhecer as emoções e sentimentos e saber onde e como elas se encaixam. É uma prática que muitas vezes requer a ajuda de um psicólogo. Com as sessões terapêuticas o individuo começa a se perceber a partir de intervenções feitas e, assim, ele conseguirá aplicar as aprendizagens da terapia para fora do setting, chegando a um momento que ele conseguirá, sozinho, saber o que está sentindo e o porquê.

A angústia precisa de atenção; desate esse nó no peito.


autora: Dayane Marins

domingo, 1 de maio de 2016

O mundo não existe sem verdades absolutas


Pedro Álvares descobriu o Brasil. É preciso obedecer ao pai e à mãe. Comida tem que ter arroz e feijão. Ayrton Senna foi um herói brasileiro. Roberto Carlos é rei.

Estas e outras afirmações são apresentadas como verdades dogmáticas. Escutamo-las desde sempre, dos nossos pais, professores e tv, sem que eles nos dissessem a razão delas. São tão absolutas que nos parece estranho quando alguém as recusa. Conversando com esse alguém, ouvimos outros pontos de vista. Também dizemos o nosso próprio ponto de vista que, não raro, também nega aqueles absolutos. Mas, se um e.t. nos visitasse e quisesse conhecer o Brasil, certamente o levaríamos para comer uma feijoada, ouvindo Roberto Carlos e só dando uma pausa no som para escutar a hora da bandeirada para o "Ayrton Senna do Brasil!!!", gritado pelo Galvão.

Aprendemos essas verdades dogmáticas e nelas depositamos nossa fé e algo básico da nossa identidade. Falo em uma identidade que não é a do eu no sentido das ideias que colecionamos e que entendemos como formadoras de algo próprio, meu. Falo de um eu que é próximo ao "eu quero e vou fazer isso". Este eu é social antes de ser meu.

Todos quiseram ser o Michael Jackson do "Bad". Eu quis ser. Michael, sendo apresentado em todo canto como o Rei do Pop, era o meu herói. Através dele, eu me achava maneiro. Eu me via como um eu. Sloterdijk explica no "Estranhamento do Mundo" sobre esse eu entusiasmado por heróis. Quando eu era adolescente, começaram a dizer que Michael abusava de crianças. Mas este era outro Michael. O meu herói continuava o mesmo, e uma dançadinha a que ainda hoje me permito é autorizada por Ele.

Hoje em dia muitos pais e professores acham que, ao dizerem uma verdade a uma criança, devem explicar as razões. Desde cedo a criança é ensinada a argumentar e a escolher. É como se ela devesse ser sujeito, desde o início da vida. A verdade pelo consenso estimula o raciocínio. Mas a verdade absoluta é um espaço de segurança e conforto para uma criança, e a esperança de que ela sempre o terá permite que ela se lance para explorações. Essa fé básica permitirá o entendimento e talvez a crítica dos seus próprios pressupostos.

O Brasil já possuía os índios, e os espanhóis já haviam demarcado a América do Sul antes da chegada de Cabral. E a vinda dele não foi por um acaso, mas por interesses econômicos e políticos.

Nem sempre é possível fazer os que os pais mandam. Chega uma hora na vida em que a vontade de fazer o que se quer é imbatível, e se vai com tudo.

Arroz e feijão, dizem os especialistas, é uma combinação equilibrada e que provê grande parte da nutrição de que precisamos. Mas o jovem pode fazer o seu miojo, fritar a sua linguiça com cebola e dar um tempo no feijão com arroz dos pais.

O motorista de ônibus do Rio dirige melhor do que o Senna. Ele não aguentaria o tranco. Mas, vai, ele foi piloto talentoso, vencedor e carismático. O Brasil precisa de heróis, heróis que dêem bons exemplos e que não morram cedo.

Roberto Carlos não é um ótimo cantor, mas é um excelente artista. Suas músicas ecoam em nossos ouvidos, mais do que as de Agnaldo Rayol. Temos uma bagagem cultural básica que forma a nossa sensibilidade, coisas que ouvimos desde cedo e que até falam conosco, quando pensamos estar sozinhos. Coisas que nos fazem sentir em casa.

É preciso que a nossa formação escolar tenha Homero, Platão e a Bíblia. Eles nos fazem entender a cultura ocidental. Quando advogo o ensino da Bíblia nas escolas, sempre me dizem que a Igreja perseguiu e matou muita gente. Bem, se devemos começar com verdades absolutas, para que tenhamos material para o entendimento e a crítica delas, e do mundo, quando formos jovens, o conhecimento deve ser aprendido antes da crítica ao conhecimento. A Bíblia deve ser ensinada, para que um dia se possa falar algo sobre ela, contra ou a favor.

Quando a pessoa coloca a crítica antes do conhecimento, dizendo que a Bíblia ou outro livro servem à dominação política e cultural, ela está se comportando como um jovem que não foi uma criança que aprendeu a ter fé em heróis, livros sagrados e histórias mágicas. É um jovem que pára no saber que a crítica lhe dá, e não avança, pois lhe faltou o saber básico.

Uma criança que teve aula de filosofia, de religião e de poesia, que aprendeu a ouvir histórias diferentes e a distinguir gêneros literários, passará pelo período da crítica e se tornará um adulto. E o que é um adulto? É alguém que precisa saber muitas coisas? Sim. Mas em igual medida é alguém que precisa ter esperança, acreditar no que ainda não existe e deveria existir. É alguém que sabe sobre o que deveria ser e o que deveria ser considerado verdadeiro. Alguém que entenda ética e moral e que, portanto, poderá criticar a ciência. Alguém com chances de ser alguém melhor do que ele mesmo.

O básico precisa voltar a ser visto como obrigatório.


P.s.: Sobre a obrigatoriedade do que é básico, veja este vídeo: https://www.facebook.com/ghiraldelli.filosofia/videos/vb.180372365332948/869893103047534/?type=2&theater