terça-feira, 9 de agosto de 2016
Parabéns sinceros a Rafaela
Rafaela Silva ganhou o ouro no judô feminino nestas olimpíadas de 2016(http://aovivo.folha.uol.com.br/2016/08/08/4970-aovivo.shtml). Ela é moradora da Cidade de Deus, uma favela carioca, e aprendeu judô em um projeto social.
A quem Rafaela agradece à sua medalha? Rafaela pode agradecer ao projeto social, que ensina coisas a crianças e jovens desassistidos pelo Estado, e sem o qual eles ficariam mais à mercê da violência. Sem este projeto, lógico, não haveria sequer a judoca Rafaela.
Mas este agradecimento, quando feito pelos militantes de esquerda, tem uma mágoa que nega a vitória de Rafaela. No facebook tem havido comentários de que a luta que Rafaela empreendeu contra suas difíceis condições de vida, para que chegasse a ser judoca e às olimpíadas, é uma luta contra toda a sociedade, que lhe negou os direitos. Então, dizem estes comentários, ninguém a não ser Rafaela e os outros integrantes do seu grupo de minoria podem comemorar o ouro olímpico.
Os direitos à saúde, moradia e educação do pobre são mesmo inexistentes. O direito ao lazer e ao esporte, então, é impensável. Projetos sociais são implementados por gente interessada em doar seus recursos em prol dessas pessoas. Curiosamente, dentre esses projetos, os esportivos são os mais realizados.
O esporte é uma fuga da realidade, ao mesmo tempo em que deixa claro um programa a ser seguido para que alguém se torne excelente. Este programa é o de uma partida, em que um garoto se esforça, marca três gols e é adorado. E é o de um treino para o campeonato que ocorrerá em dois anos, em que a evolução do garoto recompensa o esforço dele.
Rafaela, enquanto aluna de um projeto desses, sabe o esforço que precisou fazer para disciplinar-se e desenvolver-se como judoca. Ela, sem dúvida, agradeceria ao projeto social, enchendo de orgulho o responsável por ele. Mas o responsável pelo projeto não é o responsável pelo brilho de Rafaela. Rafaela é a responsável pelo seu brilho.
Quando se diz que todos devem calar-se, culpados, por terem atrapalhado Rafaela, o que se está fazendo é diminuir a vitória dela. As olimpíadas, em sua origem, tinham a função de mostrar a excelência dos deuses. Um atleta, ao vencer, mostrava a todos que ali ocorrera a ação de um deus, que um deus havia estado com aquele atleta. A cidade se regozijava, com isso, e este era o espírito olímpico.
Hoje, apesar das nossas preferências por times ou seleções, queremos que “o melhor vença”. Mesmo acreditando no esforço do indivíduo, ainda queremos que algo maior do que nós se faça presente. É assim que olhamos para Rafaela. É um indivíduo que se fez excelente, e venceu. E é a demonstração de algo misterioso, que trouxe a vitória até ela.
Acredito que todos vejamos isso, mesmo aqueles que, num segundo momento, danem a falar que Rafaela é vítima social, mesmo sendo campeã olímpica. A vitória de Rafaela é para todos, pois mostra que o melhor pode vir de qualquer lugar, em nossa cidade. É uma vitória, também, que nos desce amargo, por ainda permitirmos que os projetos sociais pequenos sejam os únicos a olharem para os pobres.
E é uma vitória da Rafaela, não contra uma condição de vítima, a qual, se houvesse pesado sobre ela, certamente não teria deixado que ela fosse excelente como é, mas uma vitória contra a própria dificuldade em disciplinar-se. Esta luta é comum a qualquer atleta, viva aonde viva.
A mentalidade que cria a figura da vítima não compreende que um indivíduo possa ser o melhor por esforço próprio. Se ele vence, automaticamente é um usurpador do direito de alguém. Ou, no caso de Rafaela, é alguém que venceu usurpações. Não se chega no esforço do atleta. E fica-se incapaz de dar parabéns sinceros à Rafaela. E a nós mesmos, por termos visto aquele belo waza-ri.
Só a aceitação de que esta é uma vitória de todos é que nos fará valorizar e dar mais condições não só ao esporte, mas a todas as atividades formativas. Faremos isso porque queremos mais ocasiões para nos orgulharmos de nós mesmos.
Já a assunção de que a vitória de Rafaela é uma vitória apenas de uma minoria continua com o cultivo do vitimismo e da lógica da necessidade, que não leva nada de bom a ninguém. O parabéns que vem disso é cheio de mágoa.
segunda-feira, 8 de agosto de 2016
O luminoso corpo de Davi
Josué, quando precisou finalizar seu ataque aos filisteus, pedira à Javé que fizesse o sol e a lua esperarem para trocar de posição, no céu. Seu ataque deveria ser às claras. O que é do conhecimento de Javé, o que não precisa ser escondido de ninguém, certamente é bom. Só os perversos atacam à noite.
Por duas vezes Davi teve a oportunidade de matar Saul, que o perseguia furiosa e incansavelmente: a primeira vez foi quando o rei entrou numa gruta, onde se escondiam Davi e seus homens, e Davi apenas cortou-lhe um pedaço do manto; a segunda vez foi quando Saul e sua tropa dormiam pesadamente em um acampamento, e Davi aproximou-se e pegou a lança e o cantil dele. Nas duas ocasiões, Davi logo depois apareceu para Saul e seu exército dizendo-lhe que Javé havia entregue a vida do rei em suas mãos, mas que ele mesmo não poderia atentar contra aquele que fora escolhido por Javé.
Em Davi não havia um pingo de vontade de matar Saul: mesmo no escuro da gruta, ou no torpor do sono do outro, ele nada fez ao rei. As situações favoráveis não mudavam sua intenção. A lateral do corpo de Davi, frequentemente representada como estando desnuda, não tem gordura, pelos ou músculos, ou seja, não há qualquer sinal de um corpo de homem. O homem tem o aspecto de sujeira: a sombra que fazem os músculos ou a gordura, ou o turvamento que fazem o pó e os pelos ou a distração causadas pelas manchas de velhice impedem que se veja nele a superfície virgem de um anjo. Um anjo age numa história, decide-a, mas não tem qualquer intenção. A Davi, a esta altura da história, só importa fugir de Saul, fazê-lo cumprir sua derrocada.
Rei Saul, quando do ataque aos amalecitas, desobedeceu as ordens de Javé quanto ao anátema (o extermínio de tudo o que fosse vivo, do povo conquistado, de modo a evitar contaminação cultural. Mas um sentido mais profundo do anátema pode ser o combate da ambição aliada à desobediência. Ao homem cabe ser ambicioso, porém mantendo a obediência). Samuel avisou Saul que Javé arrependera-se de tê-lo feito rei, e que passaria a estar com Davi, e não mais com ele.
Javé agora mandou um espírito mau para Saul, turvador de sua consciência. Saul era frequentemente acometido de crises, e justamente o objeto causador do seu opróbrio, Davi, era terapeuta dele, tocando harpa para acalmá-lo. Na pintura acima, de Ernst Josephson, Saul tem a face escurecida e apontada para baixo, como quem tenta manter dentro da cabeça as próprias intenções. Davi tem a cabeça erguida e o corpo desnudo. Seu tronco seria o meio pelo qual Davi faria qualquer ação, boa ou má que fosse. O movimento das suas fibras o denunciaria.
Mas, nos retratos de Davi, principalmente naqueles em que está com Saul, ele está com o corpo relaxado, como se o que fizesse não estivesse em contradição com sua vontade, pois, se estivesse, ela tentaria puxar o corpo dele para fazer outra coisa e as fibras do seu tronco se retesariam. No quadro de Josephson, a único movimento causado por Davi é o das costelas da harpa.
Davi simplesmente está ali, tocando harpa, com seu corpo totalmente transparente. Já Saul é o tormento daquele que vive o prolongamento da punição pelo próprio erro. A perseguição a Davi é a ação que lhe resta como rei. Um líder derrotado dedica-se a perseguir inimigos imaginários, que o aterrorizam.
Algumas vezes Davi fugitivo confrontou Saul com a intenção de ambos, tentando fazer o rei ver a clareza da intenção do jovem. Mas Saul insiste em querer eliminar Davi, à medida que sabe que ele mesmo será eliminado.
Saul não sente inveja de Davi por seu crescente prestígio, pois seus olhos estão voltados para o terror nele mesmo. Caim invejou Abel, por ele ter sido elogiado por Deus, enquanto Caim é que se via como merecedor disso. Qualquer um diria que o trabalhador Caim merecia o elogio mais do que o irmão. Mas o funcionamento das coisas escapa ao entendimento dos homens. Deus escolhe quem ele quer. Ou talvez escolha justamente aquele que achamos que mereça menos, na razão de que nos seja dada alguma lição sobre nossa vontade de controlar os acontecimentos.
A ação de Saul não era fulminante como a de Caim. A tortura de sua alma era longa, e sua perseguição a Davi durou bastante tempo. Ele não se perguntava sobre sua desobediência a Javé, o que seria o motivo de ter sido por ele abandonado. Ele pensava apenas em sua nova tarefa de líder, que era eliminar Davi. Seu propósito particular deu a direção do seu governo. O egoísta perde-se em fantasmas internos. Saul queria recobrar a paz. Então só via à sua frente matar a pomba branca.
domingo, 7 de agosto de 2016
O torso
O Rei Tritão, pai da Pequena Sereia, tem um belo torso. Uma mulher tem rosto, seios, quadris e coxas. O homem só precisa do torso.
O abdômen sobe até o peito, que precisa ser duro feito uma caixa. Esta caixa armazena lembranças de feitos passados. E é vazia, para ser enchida no momento certo, pela energia da ação guerreira.
Os ombros devem ser largos, para apoiar o braço esticado da mulher ou do amigo. O amigo vai além, e aperta o seu ombro, com a mão. A mulher apenas pousa o braço.
Ao lado do peito tem a grande região da axila. Área de pele macia, a que os pelos da axila, propriamente dita, tentam alcançar a fim de protegê-la.
A espada do adversário escolhe este caminho para o coração, pois é ao mesmo tempo curto e macio. Atingido, o homem cai de joelhos, e assume que pertence ao outro.
Abaixo se encontra a sequencia de costelas. Elas há em boa quantidade, indicando quantos parceiros suporta um homem.
Passear no torso de um homem é conhecer as histórias da sua vida de mortal. É perceber a sua fragilidade e, justamente por isso, a força que aquele homem já foi capaz de gerar e empregar.
Uma moça abraça este torso, e em qualquer lugar dele deita sua cabeça. Nenhum travesseiro aceita tão bem ser segurado e trazido de encontro à sua cabeça. E dá a sensação de posse.
Um rapaz abraça o torso, em agradecimento a tudo o que recebeu. Longe de querer possuí-lo, ao jovem também não preocupa ser aceito amanhã: se pôde abraçar o homem, é porque está tudo bem para continuarem.
Aquele homem depois sentará no sofá, erguendo o livro até os olhos. O rapaz verá a pele alva da zona axilar dele, e sorrirá.
Um homem procura reparar na zona axilar grossa de um outro homem que ao longe trabalha. E também no padrão dos pelos das axilas e do peito: mesmo conhecendo os próprios pelos, os de outro homem guardam uma assinatura complicada, um brasão.
Olha-se o rosto, os braços e as pernas. O torso se quer junto do próprio torso, para que aqueles vizinhos, finalmente e por um momento, habitem uma mesma casa.
quinta-feira, 4 de agosto de 2016
Go, Pokemon GO, Go!
Sou fotógrafo. Vejo as coisas melhor do que qualquer um. Meus olhos são meu objeto, minha palavra.
Não vejo diferença entre objeto e palavra na sua função de apoiar, para um sujeito, suas ideias de mundo e de eu.
Aceitamos que um velho, na rua, seja definido por sua bengala. A objetificação é um meio de fazer um mundo e um eu.
Há anos meus olhos estão no Facebook. Muitos dizem que falta "contato social real". Falta a vergonha em se aproximar da garota que você viu no metrô. No Tinder você rapidamente fala com ela.
A palavra, o objeto, o virtual não fazem você perder o contato com uma tal "realidade". Tampouco (agora considerando aqueles um pouco mais simpáticos a estas coisas) eles são mediadores entre um sujeito e um mundo. Não há sujeito e mundo sem palavra, objeto e virtual.
Diga-se, palavra e objeto podem ser sinônimos pois, sendo empregáveis de diversas formas, têm vários sentidos. E o virtual nada mais é do que a abertura do objeto e da palavra para novas possibilidades de sentidos.
No Atari você se distraía. Diziam que você se arriscava a alienar-se. Nos simuladores você brincava de realidade com algo que, sendo um objeto usado por você, já era a realidade. E te chamavam de completamente alienado. Uma pessoa que tenha perdido um olho, num acidente, e implanta um olho que capta elementos externos e os transforma em impulsos nervosos. Maravilha da ciência, não? Ninguém pensa em dizer que falta a ele um olho a olho ao paquerar alguém.
Vídeo-game, simulador e olho-chip são objetos que, poderíamos pensar, trazem realidade até nós. Mas, volto a te dizer, eles são a própria realidade. Um garoto que joga vide-game não é um garoto que poderia estar jogando basquete. Eu não posso dizer do que ele não é, apenas do que ele é: um garoto que joga video-game.
Aqueles objetos são a nossa realidade, assim como a caneta-tinteiro deixou de ser a nossa e a esferográfica ajustou-se à nossa mão, enquanto nossa mão ajustou-se a ela. Da mesma forma perdemos precisão de dedos e de raciocínio, com o fim das máquinas de escrever, e ganhamos agilidade e multiplicidade da mesma faculdade, nos pcs.
Nas redes sociais escrevo, sou lido e converso. Eu não fazia estas coisas antes. E agora não posso parar. Quero ir além disso, como um amputado de ambas as pernas que coloca aquelas próteses de corredor. Sua natureza mudou.
Pokemon Go, pelo nome, me manda ir. Não é mais o mundo que vem. A ideia é que eu vá. Que eu vá à padaria de sempre e lá veja o que pode acontecer. Se você é escritor ou pintor, isso não pode ser mal. Ou talvez você se incomode porque a novidade no cenário foi gerado por um computador, e não pelo acaso ou por Deus. Um homem criou um bicho que se esconde na sua rua, e este homem nem está próximo de você, para te ouvir. Mas não é assim que é feito com as mercadorias?
A realidade não é algo eternamente ameaçado pela aparência, conforme pensa o senso comum. O garoto que joga, o escritor, o fotógrafo e o corredor são potencialmente tão sensíveis à necessidade exposta de alguém na rua quanto qualquer outra pessoa. A realidade nada mais é do que um conjunto, sob o acordo de outras pessoas, de apareceres. E há os apareceres que sensibilizam mais.
O escritor bem sabe o quanto o que os olhos dele vêem está misturado ao que ele imagina. Aquele aplicativo de Snapchat, em que sua imagem aparece como a de um cachorro, que lambe, é uma proposta, dentre muitas outras que podem ser oferecidas, de como posso expressar o que imaginei para o meu aparecer.
Então o virtual não é só o Street View, que vejo no meu pc (e me procuro!), nem o Waze, que, no meu carro circulante, traça uma rota imaginária por várias ruas (e eu o sigo!). Agora é o Pikachu na praça do seu bairro. Lá existem crianças, e cada uma tem a sua brincadeira. E tem o Pikachu, com as brincadeiras dele. Posso escolher uma criança ou o bicho. Tanto faz, pois elas também escolhem entre mim e o bicho. Ou brincamos juntos, com o bicho.
A virtual-realidade tem tudo para deixar as coisas mais divertidas. Pense em filósofos que podem conversar com o Sócrates criado diante deles. Pense em cirurgiões que operem um corpo virtual conectado ao de um paciente, e tudo o que se passa com este também se passa com o virtual: o cirurgião intervirá sobre o virtual, abrindo-o, sem precisar abrir o não-virtual. No interior deste, um pequeno elemento dirige-se ao ponto em que o cirurgião está mexendo, e realiza sua operação com o menor dano possível ao paciente. Pense no estimulante sexual que não seria, quando você estiver cansada do seu marido, mudá-lo completamente, e fazer sexo com esse marido mudado?
Podemos assumir que o virtual é o além-da-realidade. Isso incomoda os "realistas", que fazem suas visões a partir de teorias sociais e econômicas, atacam Grandes Males, e não olham para o mendigo na rua. Em relação a este mendigo, a virtual-realidade é olhá-lo imaginando-o melhor do que aquilo.
O virtual é o que pode vir a ser. Tem que ter inteligência livre e coração generoso para embarcar nessa. Por enquanto, vá experimentando-o no Pokemon Go.
Aliás, você já foi, né? Não é como esses bobos que gostariam de ir, mas estão pondo defeito.
quarta-feira, 3 de agosto de 2016
Mãe Gisele não está esgotada
Gisele foi assaltada por um jovem. A polícia tenta prender o jovem, mas Gisele o protege. Isso, na abertura das olimpíadas (http://emais.estadao.com.br/noticias/moda-beleza,organizadores-cortam-assalto-a-gisele-bundchen-na-abertura-dos-jogos-olimpicos,10000066397).
Os programas de crimes da tv têm enorme audiência. Eles são sintonizados em casa, no refeitório da empresa, no bar. São programas para se bater o olho a fim de saber duas coisas: "o que aconteceu?" e "a polícia pegou?". Todos os casos são mostrados em torno disso.
Você pode assistir almoçando, e terminar de ver com o término do almoço, pois aquilo continuará passando sempre igual. Imagine se um filme, ao invés de ter um começo e um fim, tivesse o começo atado ao final, de modo que ele se repetisse num loop infinito?
Quando se comenta esse tipo de "notícia", é elogiando o policial, condenando o acusado, lamentando pela vítima. "Poderia ser eu", pensa-se, não só pela vítima, fazendo a si mesmo experimentar alguma injustiça e reclamando dela: esta frase também é pensada a respeito do policial, experimentando punir o outro; e sobretudo, é experimentada a respeito do culpado, aquele que folgou, nadou de braçada no seu desejo e agora terá os braços decepados.
"As coisas não são iguais para todos. É preciso se contentar com isso. Ou a punição é terrível", tal é a lógica que alinhava os três papéis. Nestas cenas não há Gisele, para proteger o culpado. A versão da cena para as olimpíadas, então, tem algo errado.
Houve protestos para a retirada desta parte da abertura do evento. Não suportaríamos assistir a um assalto na nossa cidade estando ao lado de muitas outras pessoas, como olhamos um jogo de futebol ou uma votação. Um jogo ou um concerto são situações mantidas como reservatórios de boas promessas, promessas de que o mundo é alegre e bom. O pessimismo que expressamos com nossos pares é vivido em uma hora, o espetáculo do ser acariciado pelo artista ou pelo político é vivido em outra.
A cena de Gisele não poderia ser apresentada também pelo fato de não sermos Gisele. Assistimos a uma cena de crime, vivendo-a, mas sem que haja a possibilidade de perdão do criminoso. O homem que goza no roubo e no estupro não pode ser perdoado. Nunca devemos agir como ele, curtindo a sensação de fazer algo ruim. A "melhor sensação" de todas (assim considerada por nós justamente por ser a mais proibida) deve ter a maior punição.
Estar em uma multidão e ver o gesto de Gisele nos doeria muito. Ser perdoado, enquanto criminoso. Ser um policial tornado culpado de perseguir um jovem. Um espectador culpado por ter desejado o sangue do jovem. Aquilo que fazemos no escuro não queremos exposto. Gisele é como o sol, onde ela aparece tudo ao redor fica iluminado. Então, nada ruim ousa aparecer perto dela. Envergonhamo-nos do nosso ódio ao jovem que rouba. Este ódio é uma raiva de indivíduos que sentem que os bens do mundo são escassos, acham que todos vivem querendo pegá-los e que o que se tem deve ser defendido por armas.
Somos filhos ciumentos de uma mãe a quem achamos que privilegia nossos irmãos. A humanidade produz muita riqueza. De fato não nos falta nada. Mas insistimos em dizer que sim. Pensamos sob a lógica da escassez. Criamos sistemas de produção e distribuição de bens capazes de nos alimentar sem sentirmos fome. Criamos um modo de vida que nos faz sentir protegidos e estimulados como no útero da nossa mãe. Apesar disso, desde que caímos do Éden nossa experiência tem sido a da falta. É a experiência de que a vida é sofrida, de que sempre nos falta algo e, por isso, defendemos à unha o que temos.
Não percebemos que, se estamos aqui, escrevendo e lendo, algo nos sobra. E que este algo nos empurra à doação, inclusive para quem tem um grande potencial para desenvolver-se mas está na rua, pedindo dinheiro. Ou à adotar um cão.
Desde que perdeu a centralidade do poder, no Brasil, a auto-estima do carioca anda baixa. Ele pensa que só tem assalto e violência a oferecer ao mundo. A cena com Gisele quis mostrar algo além disso. Ela, sendo a beleza, não é o ódio da polícia e a carência do pivete. Ela é uma espécie de útero com recursos para ambos. Não é a mãe esgotada de crianças famintas e que se matam umas às outras.
Gisele quis mostrar que temos para dar ao mundo uma coisa diferente de carência e de porrada. Quis mostrar não só para os estrangeiros, mas também para nós, a beleza de um olhar mais generoso.
Não quisemos ver, e a cena foi cancelada.
terça-feira, 2 de agosto de 2016
Contra o fogo olímpico.
Queremos apagar o fogo olímpico. O fogo que corre nossas ruas e tenta evocar espíritos olímpicos em nós. E fazê-los girar em multidão de insetos na luz. Seria o "brasileiro que ama esporte".
Em época de Copa, Galvão gasta saliva e a paciência tentando fazer um Brasil, empurrando a paixão por futebol. É como se a Seleção, que "joga moleque", fosse como eu e você. E é como se ela desse exatamente o que nos falta: um povo carente precisa de um divertimento para a necessidade frustrada não virar abandono, e o orgulho ferido não virar ódio.
É por molecagem que eu e você falamos em apagar a tocha (enquanto a molecagem da Seleção é acrescida de habilidade, a nossa é para atrapalhar algo). Não há qualquer discurso, movimento, fazendo isso. Discurso e movimento são o olímpico.
Há esboços de discurso contra-olímpico lembrando das más condições das políticas públicas. É uma cutucada pela lógica da necessidade que não tem feito muitos adeptos, não está formando alguma coisa. É mais da ordem da reação.
Não sei o que é o Brasil. Somos algo indefinido. Quando há eleições presidenciais, mostra-se a multidão do candidato x e a multidão do candidato y. O Brasil, então, fica parecendo estar divido em dois. Para nós, o natural é sermos um. Tanto que, se grupos divergentes e pró-governo surgem durante um mandado presidencial, diz-se que o Brasil está patologicamente rachado.
O Brasil, na verdade, pode ser muitas coisas, e muitos. Mas os indivíduos têm brincado de tentar apagar a tocha. Se o Brasil que segura ou quer segurar a tocha é o "bom Brasil", que é pobre mas continua trabalhando, e levando fé nas olimpíadas, aquele que quer apagá-la é algo que não se importa com ela ou com o anzol da humildade, da fé e da alegria, que lhe lançam.
Não é o mau-Brasil. Não é o Brasil. Não é um todo, porque não há amor-necessidade, necessidade-que-faz-amar, unindo-o. São indivíduos que fazem pouco caso. Não são os que querem apagar a tocha por sentirem ódio. Até os há. Mas o espírito geral é o de não importar-se.
Se há a vontade de apagar a tocha, é quando ela "por um acaso passar perto da minha rua". Dou um pulo lá e jogo um balde d'água. Depois conto essa história, nos intervalos da atividade que eu faço, que considero um pouco mais importante para mim.
segunda-feira, 1 de agosto de 2016
Pai por um dia
"Seu pai disse que viria hoje, mas ele não vai aparecer". Ninguém diz uma verdade dessas à criança. À criança se dá o direito da inocência.
Inocente é aquele que não sabe das coisas. Mais especificamente, não sabe da intenção das pessoas. Ou do funcionamento do mundo. Ignorante é aquele que não sabe matemática ou é bruto no trato com os outros. Burro é quem não sabe matemática e nunca virá a saber, pois empaca.
O inocente não está sendo avaliado por sua capacidade de aprendizagem de conteúdo escolar. E é uma pessoa doce, que se deixa levar pelos outros, acredita neles.
Não tem outro jeito, a criança precisa esperar pelo pai que não virá. A criança espera algo, por isso espera um pai. Acredita que ele dará "isso" a ela. Talvez esse "isso" seja a virada na condição, dela mesma, de ser uma "sem pai" para a de "tenho pai". Ela terá um pai, a criança acredita. O pai chegará, o dia com ele será ótimo, e ela dormirá sabendo que o pai faz parte da sua vida.
Quando uma criança fala com outras crianças, ela lança os momentos que viveu com sua mãe, sua avó, e também com seu pai. Um pai é meio prático demais, meio explicado demais; meio bonzinho, meio severo; gosta de ficar no sofá, gosta de levar a criança pra um lugar legal; gosta de ficar sozinho e em silêncio, gosta da alegria saltitante da criança; etc. Ela percebe tudo isso. E conta aos amigos as coisas que seu pai lhe disse, ou que ela fez com ele.
A mãe proporciona boas histórias. Assim também é a vó. Mas são histórias de casa. O pai tem potencial para histórias maiores. Ainda mais o pai com quem não se mora. Ele é um marinheiro que voltará com histórias incríveis, objetos impressionantes e o melhor: com vontade de levar a criança para também viver isso! A criança quer o pai fujão quieto com ela. Assim, um dia eles poderiam fugir juntos, mas para voltarem à noite pois ela precisa dormir com sua mãe.
Já com o pai com quem se mora, mesmo que não seja pai biológico (ainda tem sentido falar isso?), a criança quer ser escutada e atendida. Quando ela fala "pai", é para evocar uma figura de proteção. "Pai, proteja-me do mal interno ou do mal externo, que me aflige". É o mesmo sentido do "pai" dito pela mãe ou pela vó: "Proteja a criança do mal interno ou do mal externo, que a aflige".
É fácil para uma criança chamar alguém de pai. A criança precisa de um pai, por precisar sentir-se bem e ter algo para levar aos amigos. Por precisar, eventualmente, proteger-se da frustração com a mãe. Mas a um pai é difícil dizer filho. O homem duvida muito de si mesmo. Ele se envergonha.
O homem gosta de estar com o filho, deixá-lo feliz, ensiná-lo coisas. Adora ser chamado de pai. Isto o faz sentir-se gerador de algo. Mas ele teme chamar a criança de filha. Teme o olhar dos que estão ao lado da criança. Este olhar lhe diz: "você diz filho, essa é a sua geração. Mas o que você tem feito por ela?". Este homem deixa-se perturbar pelo amanhã, ou pelo passado. Ele não confia se o que fará após aquele momento com o seu filho lhe permitirá que haja um novo momento com ele.
O homem acha que não está conseguindo gerar bem o filho. Não tão bem quanto a mãe dele o gerou. A mulher sempre gera o filho muito bem: se ele está vivo, a gravidez foi ótima; e é óbvio que a mulher não vai deixar o filho ao natural, nem ela ser primitiva a ponto de não vestir, não alimentar, não acariciar e não ensinar os rudimentos de educação ao seu filho. Então uma mãe não falha.
Já quanto ao pai, é muito comum ele ser covarde. E a criança sempre o perdoa, e acredita nele. A criança sempre acredita. Deixamo-la acreditar em Papai Noel, mesmo sabendo que um dia ela descobrirá que ele não existe. "O mundo tem algo mágico", é o que queremos que a criança pense, e que o adulto em que ela se tornará conserve isso. "Existe o bem máximo, alguém cuja única intenção é sorrir e dar presentes." (a exigência de ser um bom menino não é lá muito forte).
O pai tem as dificuldades dele, a criança fica à mercê. A mãe bem sabe disso, tenta ajudar o pai, mas também preocupa-se com a criança. E nunca diz a ela que Papai-Noel não existe. "De repente aquele homem toma jeito e vira pai"; "Um dia esse pai será um pai melhor."
Então a criança começa a esperar menos. Ela está fazendo outras coisas, arruma suas próprias aventuras. Um marinheiro que aparecesse nesse momento seria interessante de escutar, mas o garoto não largaria a própria vida para segui-lo. Pensaria em largar, pois ainda tem fantasias, mas não largaria.
Essa criança será como a mãe, que não é mais inocente, sabe que os outros prometem e não cumprem e que não se pode ficar à mercê deles.
Mas ela ainda conserva a pitada de esperança que a faz ser uma pessoa que busca fazer coisas boas, no mundo. E ainda esperar que aquele homem um dia seja pai. Ao menos por um dia. Com a ajuda dela.
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