Eis o perfil de uma fatia dos que pedem o impeachment da presidente: têm faculdade, e sempre trabalharam na área em que se formaram; têm cônjuge, e um ou dois filhos, estudando em colégio particular; têm entre 40 e 60 anos; vivem em bairros de classe média ou média-alta; lêem best sellers, auto-ajuda espírita ou auto-ajuda de marketing. A respeito de política, ouvem articulistas e colunistas especializados em falar exatamente para pessoas assim, não deixando de mobilizar as suas emoções e montar as suas opiniões.
"O governo não fez o que deveria ter feito, em políticas públicas." Quanto a isto, a emoção, para aqueles com o perfil que tracei, é a de um parco patriotismo ferido. "O governo descuidou da economia, e deixou o país em crise de trabalho e negócios". A crise no trabalho, de novo, só dói no parco patriotismo. Quanto a dos negócios, pequenos empresários e profissionais liberais sentem uma diminuição do número de clientes e do que eles têm para gastar.
"Os casos de corrupção nunca foram tão alarmantes". O tipo que descrevi não tem uma reflexão sobre o cenário político, seus meandros e história. Ele é informado sobre o que tem para ser sabido na sua área de trabalho, mas quando perguntado sobre política, diz que "está tudo uma merda, precisa mudar tudo". Mais do que isto ele não é capaz de dizer.
Até pouco tempo, politizados eram os militantes pró-minorias, enquanto o restante não se metia nesse assunto. Os politizados de hoje são essa gente que quer por a mão na política inteira, iniciando-a do zero, pelo encerramento de um governo. Eles falam na internet e são escutados. São a voz mais forte da mesa das famílias. Entre gente sem boa cultura geral e educação, estes toscos fazem eco aos articulistas-de-uma-só-opinião, levando adiante a emoção do "finalmente cuidar" de um assunto que não suportam, e que é de uma sutileza que não é para suas mãos brutas.
sexta-feira, 21 de agosto de 2015
O exibido-rejeitado e o cafajeste
Eros é filho da Penúria com a Astúcia. O apaixonado quer o amor da sua eleita, e para isto, ele mostrará coisas para ela. Tem horas em que a mulher recebe estas coisas de bom grado, afagando o eu do apaixonado. Esse afago pode se dar por meio de um carinho físico. O eu é corporal.
Tem horas em que a mulher ignora as coisas que o apaixonado lhe mostra. Ele tenta mais um pouco, a fim de que a mulher o receba. Por fim, ele para de tentar. Nesta hora, a mulher olha e sorri para ele. O beija. Isso reaviva nele a promessa de ser aceito pela sua eleita.
Estas coisas que o homem exibe são elementos do eu (o trabalho, a profissão, o poder aquisitivo, a família, a biografia e as ideias que possui), e elementos que parecem ser de outro eu (a ousadia de faltar ao trabalho, de mudar dele, a liberalidade financeira, a capacidade de se afastar da própria família e amigos, de mudar de ideia e de características).
Algumas apresentações de elementos deste último tipo são atos inconscientes, pois passam ao largo da decisão do eu consciente. Mas, também, o próprio eu consciente pode incorporar, no exibir-se, elementos que ele considera diferentes dele mesmo, por achar que isto aumenta a sua atratividade, o seu charme.
Na passagem do casal para a situação de pós-paixão, o homem para de tentar a todo momento atrair a atenção da mulher. Isto ocorre porque ele sabe que o que oferece à mulher só ocasionalmente será aceito por ela. O homem é frustrado no seu investimento, e se retrai. Ele passa a simplesmente agir, às vezes dirigindo algo à mulher, sem que esteja intencionando atraí-la.
A mulher, em alguns momentos, por desejo, que é desejo pelo desejo do homem, chama-o para o sexo. Após este sexo, há homens que retomam aquela exibição, para a mulher, do eu e do outro eu deles, visando prolongar o interesse dela (sentem-se à vontade para falar do trabalho ou para contar piadas ridículas). E há os que viram para o lado e dormem. Estes são mais astuciosos que os primeiros, ao ministrar a dose de amor para suas amadas. Elas logo sentirão falta.
Já o exibido precisa aprender a não tomar como rejeição as recusas da mulher, e começar a também virar de lado.
Tem horas em que a mulher ignora as coisas que o apaixonado lhe mostra. Ele tenta mais um pouco, a fim de que a mulher o receba. Por fim, ele para de tentar. Nesta hora, a mulher olha e sorri para ele. O beija. Isso reaviva nele a promessa de ser aceito pela sua eleita.
Estas coisas que o homem exibe são elementos do eu (o trabalho, a profissão, o poder aquisitivo, a família, a biografia e as ideias que possui), e elementos que parecem ser de outro eu (a ousadia de faltar ao trabalho, de mudar dele, a liberalidade financeira, a capacidade de se afastar da própria família e amigos, de mudar de ideia e de características).
Algumas apresentações de elementos deste último tipo são atos inconscientes, pois passam ao largo da decisão do eu consciente. Mas, também, o próprio eu consciente pode incorporar, no exibir-se, elementos que ele considera diferentes dele mesmo, por achar que isto aumenta a sua atratividade, o seu charme.
Na passagem do casal para a situação de pós-paixão, o homem para de tentar a todo momento atrair a atenção da mulher. Isto ocorre porque ele sabe que o que oferece à mulher só ocasionalmente será aceito por ela. O homem é frustrado no seu investimento, e se retrai. Ele passa a simplesmente agir, às vezes dirigindo algo à mulher, sem que esteja intencionando atraí-la.
A mulher, em alguns momentos, por desejo, que é desejo pelo desejo do homem, chama-o para o sexo. Após este sexo, há homens que retomam aquela exibição, para a mulher, do eu e do outro eu deles, visando prolongar o interesse dela (sentem-se à vontade para falar do trabalho ou para contar piadas ridículas). E há os que viram para o lado e dormem. Estes são mais astuciosos que os primeiros, ao ministrar a dose de amor para suas amadas. Elas logo sentirão falta.
Já o exibido precisa aprender a não tomar como rejeição as recusas da mulher, e começar a também virar de lado.
Pensar e agir
Pensar é refletir: falar algo para si mesmo, elaborar e dar uma resposta como si mesmo, escutar a resposta vinda de si mesmo, e elaborar e dar uma resposta de volta para o si mesmo. E assim prossegue.
Agir é fazer alguma coisa, neste lugar e neste tempo. Essas coordenadas são sabidas, informam quem age. A partir de Hannah Arendt, os filósofos Paulo Ghiraldelli Jr e Francielle Chies (http://flixtv.com.br/tv/pensar-nao-e-conhecer-hora-da-coruja-flixtv/) definem o saber algo como o ter informações a respeito de alguma coisa situada em um lugar e em um tempo determinados. Os filósofos também definem o pensar como estando fora do tempo cronológico e do espaço geográfico, como sendo uma ação especial que ocorre numa temporalidade e numa espacialidade próprias ao pensar.
Em um determinado momento, você poderia fechar os olhos e dormir. Pega o celular, para mexer nas redes sociais em que participa. Você sabe o que quer fazer, se informa sobre o que está acontecendo na rede social, e sabe que resposta dará. Em outras palavras: você tem uma informação e uma ideia, age, tem outra informação e outra ideia, age, e assim por diante.
Quem está nesse processo não está pensando, mas articulando informação (sempre de um tempo e um espaço), ideia (imagem de algo que se queira fazer) e ação. Isso pode ser confundido com pensamento, e ser todo o pensamento que uma pessoa acha que é possível ter. E a pessoa que acha isso chamará de lentos, de perdedores de oportunidades aqueles que refletem sobre as coisas.
Quem reflete, reflete sobre coisas, não sobre o que vai fazer. Refletir sobre o que vai fazer seria já tomar como pressuposto que há algo a ser feito, e o pensamento, se é reflexão, conversa consigo mesmo, não pode aceitar o pressuposto de que há algo a ser feito, e que só resta decidir fazer, o modo de fazer, ou o não fazer. Isso não é pensamento: a pessoa que poderia fechar os olhos também poderia pensar sobre ela mesma indo dormir, ou sobre ela mesma pegando o celular. "Vai dormir? Está cansada ou consegue fazer outra coisa, ou quer fazer outra coisa?" "Vai fazer uma postagem no facebook? Sobre o que, como vai fazer? Não dá pra deixar para amanhã, ou vai acabar esquecendo? Como não esquecer?".
O pensamento não é a mesma coisa que a ação, e com ela não tem uma relação de continuidade. Pensando, pode-se evitar, refletidamente, uma ação que pode ser boa ou má. Ou pode-se agir, refletidamente, bem ou mal. Sem pensar, pode-se evitar fazer ou efetivamente fazer uma ação boa ou má, mas o fará irrefletidamente. Sem reflexão, como saber se o que se fez foi bom ou mau? Como impedir uma ação má, ou melhorar uma ação boa?
Agir é fazer alguma coisa, neste lugar e neste tempo. Essas coordenadas são sabidas, informam quem age. A partir de Hannah Arendt, os filósofos Paulo Ghiraldelli Jr e Francielle Chies (http://flixtv.com.br/tv/pensar-nao-e-conhecer-hora-da-coruja-flixtv/) definem o saber algo como o ter informações a respeito de alguma coisa situada em um lugar e em um tempo determinados. Os filósofos também definem o pensar como estando fora do tempo cronológico e do espaço geográfico, como sendo uma ação especial que ocorre numa temporalidade e numa espacialidade próprias ao pensar.
Em um determinado momento, você poderia fechar os olhos e dormir. Pega o celular, para mexer nas redes sociais em que participa. Você sabe o que quer fazer, se informa sobre o que está acontecendo na rede social, e sabe que resposta dará. Em outras palavras: você tem uma informação e uma ideia, age, tem outra informação e outra ideia, age, e assim por diante.
Quem está nesse processo não está pensando, mas articulando informação (sempre de um tempo e um espaço), ideia (imagem de algo que se queira fazer) e ação. Isso pode ser confundido com pensamento, e ser todo o pensamento que uma pessoa acha que é possível ter. E a pessoa que acha isso chamará de lentos, de perdedores de oportunidades aqueles que refletem sobre as coisas.
Quem reflete, reflete sobre coisas, não sobre o que vai fazer. Refletir sobre o que vai fazer seria já tomar como pressuposto que há algo a ser feito, e o pensamento, se é reflexão, conversa consigo mesmo, não pode aceitar o pressuposto de que há algo a ser feito, e que só resta decidir fazer, o modo de fazer, ou o não fazer. Isso não é pensamento: a pessoa que poderia fechar os olhos também poderia pensar sobre ela mesma indo dormir, ou sobre ela mesma pegando o celular. "Vai dormir? Está cansada ou consegue fazer outra coisa, ou quer fazer outra coisa?" "Vai fazer uma postagem no facebook? Sobre o que, como vai fazer? Não dá pra deixar para amanhã, ou vai acabar esquecendo? Como não esquecer?".
O pensamento não é a mesma coisa que a ação, e com ela não tem uma relação de continuidade. Pensando, pode-se evitar, refletidamente, uma ação que pode ser boa ou má. Ou pode-se agir, refletidamente, bem ou mal. Sem pensar, pode-se evitar fazer ou efetivamente fazer uma ação boa ou má, mas o fará irrefletidamente. Sem reflexão, como saber se o que se fez foi bom ou mau? Como impedir uma ação má, ou melhorar uma ação boa?
Identificação e empatia
No poema "Os olhos dos pobres", um casal está entre garrafas de vinho, em um elegante café de Paris. Homem e mulher olham a moderna avenida, que acabara de ser construída, e compartilham a admiração. Vinha uma família esfarrapada. Ela dá uma parada, a fim de também admirar a avenida. O homem que estava no café se envergonha por estar celebrando, enquanto aquelas pessoas estão em farrapos. Seu pesar pela dor (que supõe que seja) do outro é interrompido pelos gritos da sua mulher: ela exige que o garçom retire aqueles pobres da sua vista. O homem vê que a mulher não compartilha do sentimento dele pelos pobres. Mais do que isso: ela não percebe que ele o está sentindo. A identificação, entre eles, dá-se apenas em torno do esplendor da modernidade.
Parece haver sentimentos e impressões incomunicáveis entre as pessoas, em uma metrópole. Mesmo entre casais. Walter Benjamin se apoiará neste e em outros poemas, do "pintor da vida moderna", para dizer que há um declínio em nossa experiência dos feitos antigos e grandiosos, definidores de um povo ou uma coletividade e doadores de um campo comum de sentido. Concentramo-nos nas experiências que tomam os acontecimentos sob a ótica da ação e da afetação subjetivas.
Neste sentido, o que eu faço e o que eu vivencio dos acontecimentos derivam do que eu penso e sinto intimamente. Este empobrecimento da "experiência plena", e a hipostasia da "experiência íntima" levam, para Benjamin, à perda da nossa capacidade de comunicarmos vivências. Ficamos encapsulados na subjetividade.
O sociólogo Georg Simmel escreverá, pouco mais de meio século depois de Benjamin, que este ambiente lança um excesso de estímulos para o homem, mais do que ele é capaz de assimilar. Para se proteger da sobrecarga, o homem cria uma barreira de proteção, principalmente acústica, entre ele a cidade. Com atitude blasé, ele passa a andar nas ruas como se nada lhe dissesse respeito.
Computando estas coisas, desconhecemos a existência de uma alma que não seja a que se encerra numa subjetividade. Foucault diz que a confissão cristã, o exame psiquiátrico e o interrogatório jurídico serão buscas por desvendar as "verdades" sobre quem se é. Isto reforça a imagem de nós mesmos como almas internalizadas e não transparentes aos olhos, próprios ou dos outros.
Além do confessionário, da sala de interrogatório e do consultório do psicanalista, o único lugar em que a alma se revelaria é na relação de amor romântico. Sennet afirma que cada indivíduo empreende este trabalho de se contar e se explicar para o outro, e de esperar a mesma coisa dele, tentando fazer conhecer quem "de fato se é". Trabalho interminável e praticamente fadado ao fracasso, não porque as pessoas vêm de famílias, classes, cidades, etnias, sexos, e uma porção de outros elementos diferentes, mas porque é a escavação atrás de algo que não se encontra com certeza.
Enorme prazer sente quem acha que conseguiu fazer alguém entender as próprias razões, e compreender os próprios motivos emocionais. Este outro vira a "metade da laranja" ou o "best friend forever". Numa inspiração sloterdijkiana, com este outro eu me sinto em casa, no meu próprio mundo confortável e protegido.
Na internet chovem indicações de que signo seria o parceiro ideal. Ninguém vai te indicar, publicamente, alguém de uma profissão, idade, etnia, tipo físico, etc, específicos, por que isto poderia ser visto como preconceituoso. Contra signos ou "energia espiritual" não há preconceito. Se algo maior do que eu e você disse que combinamos ou descombinamos, não tenho problema em acatar. Agora, decidir buscar ou evitar relacionar-se com alguém, usando critérios "antropológicos" ou "sociológicos", não escaparia de ser visto como preconceito. Em conversas com amigos, no entanto, diz-se que foram estes os motivos porque você dispensou uma pessoa, e ficou com outra.
Os amigos te fazem se sentir seguro de que você não será acusado de preconceituoso. Eles entenderão como de valor secundário o embasamento antropológico-sociológico dos seus motivos emocionais, pois conhecem sua boa alma.
Olhando para as relações na cidade, Calligaris (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2015/08/1670800-sentir-ou-ficar-frio.shtml#_=_) conta que a queda do Muro de Berlin marcou um momento em que não havia mais barreira para a empatia entre as pessoas: não há mais motivo para a incomunicabilidade dos sentimentos e das ideias, entre as pessoas. A mulher do poema poderia finalmente sentir a dor do pobre. Nos anos 90, lembra o psicanalista, a preocupação recaía sobre o Asperger, incapaz de empatia.
Hoje nos expressamos publicamente, nas redes sociais. Queremos nos identificar com uma ampla gama de diferenças, e que elas se identifiquem conosco. Que todos saibam o que penso e o que sinto! Mas se teme quando há um psicopata ou um google que anota o que vê das suas escolhas, aprende, e lhe oferece exatamente o que você queria. Tem gente que você não conhece conhecendo você, tendo empatia pelo que você sente, pensa e gosta.
Também ocorre o seguinte: grupos se formam por pessoas que se consideram identificadas, umas com as outras, e não identificadas com as pessoas de fora do grupo. Tal coisa vem ocorrendo muito com aqueles que se identificam com determinada minoria. A ideia é de que quem se identifica com uma minoria, por se ver semelhante a uma característica da imagem social dela, terá uma comunicação mais fácil com outro também identificado por ela.
"Só uma mulher vai entender o que é sofrer um aborto". Parece haver aí um apoio na identificação em torno de determinada característica biológica, antropológica ou sociológica, para se experienciar uma identificação por almas, essências. Frases como esta, sobre a mulher, são essencialistas, recomendam que se busque e se feche num grupo, ou manda outros fecharem-se.
O mundo aberto é vivido, aqui, como dificultador do dar e receber identificações, e do dar e receber empatia, que nelas se apoiam. Faz-se, então, o exclusivismo ciumento do grupo de identificação. Ele parece assegurar um mundo particular, e uma experiência da harmonia entre quem se é e um ideal que se tem: me vejo como mulher, só mulheres sabem o que passam as mulheres, e me acho semelhante a Pagu; me vejo como negro, só o negro entende o negro, e sou como Zumbi, pelo que ele fez e passou; etc.
A identificação quer saborear um mundo particular caloroso. Os ciúmes são uma tentativa quase desesperada de fazê-lo durar.
A tragédia e a beleza de Helena
Alguns anos de separação de uma pessoa, de familiares ou de uma cidade, podem ainda dar saudades e vontade de reencontrá-los. Ou pode ser vivido como perda irreparável. Na Ilíada, Helena está há nove anos casada com Páris. Ela era casada com Menelau, irmão do general grego Agamênon.
Páris, um belo troiano, bateu os olhos naquela mulher de divina beleza, e a quis para ele. Apesar de viverem em uma época de saques e tomadas de mulheres de cidades conquistadas, não se sabe se Helena acompanhou Páris a contragosto. Deixou, além do marido e parentes, uma filha. Devido a este fato, gregos e troianos passariam os nove anos subsequentes em guerra.
Em um episódio, os gregos avançavam sorrateiramente. Os troianos os avistam, e Páris se adianta ao seu exército, apresentando-se para enfrentar os inimigos. Ao vê-lo, Menelau, grego, também se adianta ao seu exército. Ele esperava pela chance de enfrentar o capturador da sua mulher.
Os líderes dos povos vêem a necessidade de aqueles homens lutarem entre si. Combinam os termos da batalha, que pode resolver a longa e detestável guerra. Helena fora chamada a presenciar a disputa por ela. A bela mulher vivia triste. Bordava as batalhas em uma grande tapeçaria.
Quando Helena soube do que estava prestes a acontecer, a deusa insuflou, em seu coração, saudades do antigo marido. Príamo, pai de Páris, chamou-a para que ficasse a seu lado. Em reconhecimento nas notáveis qualidades presentes do lado grego, ele lhe pede que diga quem são determinado homem de porte e jeito de grande líder, determinado homem altíssimo e forte, etc. Perguntava por cada um, sempre se referindo a eles como povo, a família e o antigo marido de Helena. Não teve pudor em afirmar este fato.
Helena considerava a si mesma desgraçada por ter separado deles. Deseja a morte, para a "cadela" que era. As perguntas de Príamo faziam-na dizer, com detalhes, quem eram os personagens apontados. Este dizer a fazia reavivar a memória sobre todos eles. A respeito de Agamênon, disse ser o seu cunhado, "se é que chegou a sê-lo". A tristeza por uma longa perda tira o lugar, no coração, para a saudades e a vontade de reencontrar; martiriza a pessoa, a faz achar-se má e insegura quanto ao lugar que ocupava naquelas relações. Havia, Helena, alguma vez ter integrado a família perdida? Havia ela tido importância, para aquelas pessoas?
Helena esmerava-se no bordado das contendas. O grande tapete faria com que os acontecimentos daqueles nove anos fossem relembrados por gerações futuras. Haviam sido nove anos de rompimento dos seus laços, de perda de si mesma. O seu sofrimento não era mais só dela: era o da própria guerra. E à medida em que o tapete ia ficando lindo, Helena ia se acabando.
quarta-feira, 1 de julho de 2015
Como falar de morte, com crianças?
De vez em quando, pensamos na morte. Não que busquemos pensar nela: na verdade, quando ela nos vem à cabeça, tentamos tirá-la de lá. Até que vem uma criança e nos pergunta sobre o que acontece quando alguém morre.
Uma resposta que comumente é dada para a criança pequena que pergunta isso é que a pessoa está no céu, ao lado do Papai do Céu. Segundo esta resposta, a pessoa continua existindo, mas em outro lugar. E num lugar que é melhor do que este, aqui.
Outra resposta também comum é que as coisas têm um começo, um meio e um fim. As pessoas nascem, crescem, se reproduzem e morrem, como diz a professora de biologia. A professora completa dizendo que todos os seres, e até a Terra, surgem, existem por um tempo, e deixam de existir. No caso dos seres vivos, a existência deles seria mantida com o fim da vida de outros seres, numa cadeia que faz com que os consumidores um dia sejam consumidos.
A explicação religiosa apazigua o mal-estar que o assunto da morte provoca, pois apresenta um sentido para a vida e a morte: vivemos e morremos por nenhum outro motivo que não ir para o céu. Claro, há coisas a serem feitas em vida, conquistas a serem alcançadas, mas o céu é o objetivo final e mais importante de todos. É fechar a vida com chave de ouro. Ou melhor, é continuar vivendo, existindo igualzinho, mas lá em cima.
Na explicação científica, ao contrário do falado na religião, os seres mudam, ao morrer: os corpos decaem, vão sendo assimilados por outros seres e deixando de ser o que eram. A vida, que não é propriedade individual, prossegue como energia para quem comeu uma cenoura arrancada, ou um boi abatido.
Esta narrativa certamente não apazigua quem gostaria de que a vida terminasse em um acalento. Ou que ela tivesse um sentido final que mostrasse que tudo valeu a pena. Este sentido teria que ser de algo que sobreviva à morte. O sentido da vida estaria além da vida.
Para a narrativa científica, a vida é algo que ocorre em nosso organismo, e um dia deixará de ocorrer. Para a de senso comum inspirada na religião, a vida é dividida em vida do corpo e vida do espírito: a vida do primeiro chega ao fim, a do segundo, não. A pessoa continua existindo espiritualmente.
Com essa divisão entre vida corporal e espiritual é possível para o senso comum ser biologicista, assumindo que um organismo, ao morrer, vira alimento para a vida de outros, mas combinando esta narrativa com a religiosa, que afirma a manutenção da vida do espírito.
Mas há algo que mesmo a narrativa de senso comum de inspiração religiosa deixa de abordar: o que é existir? Mais do que isso: o que é a existência e a inexistência de um ser em particular?
Temos falado em vida e morte de forma por demais geral. E a garantia de uma sobrevida espiritual, ou seja, a ideia de que uma pessoa não deixa de existir, não acaba, facilmente nos impede de pensar no que é que não acaba, em quem é que permanece existindo.
Uma vida é uma existência particular.* Quando alguém morre, quem é que morreu? Como foi aquela pessoa, como ela viveu, com quem ela se relacionou, o que ela gostava de fazer, quais eram seus gostos, sua profissão, suas ideias, seu jeito de ser, seus sonhos, seus problemas, suas chatices, o que ela fez de bom e de ruim, etc, são algumas coisas que se podem dizer de uma pessoa. Isto foi o que se perdeu, ao menos para os que ficam aqui, com aquela morte. Isto foi o que foi compartilhado, curtido ou detestado, pelas outras pessoas que conviveram com ele, enquanto ele existiu.
São estas coisas que nos fazem lamentar a perda de alguém querido, o motivo pelo qual ele era querido. É o que se pode lembrar e falar a respeito dele, são as coisas que ele fez, enquanto esteve aqui. São as coisas em que ele mexeu, as marcas dele, que permanecem mesmo com a saída dele. Falar sobre quem foi aquele a quem se perdeu permite que se entenda melhor quem existiu e deixou de existir. Não nos livra de sentirmos dor, por causa da perda. Mas é uma dor suportável, por vir junto do consolo de saber o quanto foi bom ter vivido com aquela pessoa.
*Atualmente atribuímos existência a humanos e aos animais com que os humanos se identificam (que são os mamíferos). A ideia que fazemos de existir é o de ser dotado de ideias, emoções, características próprias, história individual, memórias e, por fim, de consciência disto tudo. Portanto, existir nos parece não ocorrer com as plantas ou os insetos. Talvez, um dia, atribuamos existência a eles. Aqui fica patente o lugar do homem de atribuir ou negar o atributo da existência aos demais seres. Um lugar suspeito, diga-se de passagem, pois é uma fala para quem fala a mesma fala, usa o mesmo tipo de comunicação, até de frequencia sonora. Não podemos dizer, de fato, se os peixes, as plantas e os insetos não se comunicam, e existam enquanto individualidades, do jeito deles.
segunda-feira, 15 de junho de 2015
Como viver um momento?
Você levou seu filho para a Disney. Ele adorou os brinquedos, os personagens, as lojas, tudo. Você gastou bastante dinheiro, e ficou satisfeito. Algo da sua satisfação se deve justamente ao fato de ter gasto dinheiro.
Em um dia, na escola, foi aniversário de um coleguinha. Os pais dele decoraram o pequeno pátio, levaram bolo, cachorro-quente, pipoca e suco. Puseram chapéus nas crianças, que enchiam a boca e subiam nos brinquedos já conhecidos, corriam com os amigos. A boca cheia de comida obrigava o sorriso a ser ainda mais forte, para que pudesse ser solto. Periodicamente, cada um voltava para reabastecer bocas e mãos para, então, voltar a perseguir e ser perseguido.
A festinha passou e virou assunto por algum tempo. “Disney custou mais”, pensava aquele pai. O custo importava era para ele mesmo. O filho se divertiu tanto na Disney quanto na festinha. Cada momento de emoção de uma criança é absoluto: se está feliz, a sensação dela e de quem a vê é de que dura para sempre; se algo acontece e a deixa triste, o lamento é profundo e parece sem solução. Tal como a arte, que respira, a situação emocionante é também “respirante”, e enche os pulmões da criança de ar, para sorrir ou chorar. Novamente, tal como a arte, essas situações roubam as suas palavras. Um adulto fica sem ter o que dizer, quando presencia uma arte. Uma criança ainda não tem repertório verbal para entender suas experiências e, por isso, as sente muito.
O passar das experiências, e das conversas sobre elas, faz com que a criança vá construindo uma bagagem de sentidos, que será usada para entender o que já aconteceu e o que acontecerá com ela mesma. O adulto tem muitas experiências, e sabe muitas coisas. Ele diz para uma criança que aquela tristeza irá passar. Mas ele próprio não é capaz de sentir a alegria que ela sente diante de uma situação nova. Ele não tem situações novas, é como se não tivesse mais experiências.
Walter Benjamin disse que perdêramos a capacidade de termos experiências plenas, e de contarmos histórias. Os acontecimentos da vida moderna eram acelerados e impactantes, e a vida tradicional se esvaía. O homem não se afetava mais com as coisas, e não encontrava mais com quem conversar, contar de si mesmo. Além disso, a Segunda Guerra devolveu soldados que viajaram, lutaram, mas que não tinham nada para contar, como se houvessem sido tão expostos ao horror que este ficou banal, e sem assunto. Os soldados nada diziam por não terem o que dizer. O apreciador de uma arte nada diz por estar estupefato. Os soldados nada sentem. O estupefato sente tanto que não sabe o que dizer.
Em uma loja de brinquedos, a criança entra feliz, e chora em três minutos, bastando o tempo de a mãe lhe dizer que não comprará nada. A entrada é apoteose de bonecos para se ter à mão, brincar. É a intensidade de emoções da criança espalhando-se e encarnando mil brinquedos, que sorriem de volta para ela. Ela escolhe dois ou três, para pegar. São a concentração de toda a alegria que foi trocada com a loja. O "não" que a criança ouve é um corte da ligação dela com os mil brinquedos, que havia chegado a uma definição quando ela segurou dois deles. Ela se desespera com o desmoronamento do castelo de areia que era esse vínculo. A mãe diz não ter dinheiro, não ser aniversário, dar depois, etc. Oferece sentidos para que a criança se desvencilhe da emoção que toma conta dela.
Aos poucos a criança vai aceitando as razões da mãe, deixando para depois o brinquedo que a religará com todos os outros. O choro vai diminuir também a alegria com a apoteose. A parte da alma responsável pelo ímpeto vai sofrendo com os “nãos” duros, e sendo domada. Algumas recompensas podem vir, e a criança relativizar a alegria e a tristeza, ou pode não vir qualquer recompensa, e a criança ficar dura, para não mais sentir. A apoteose se transformará em apenas brinquedos, a que, um dia, ela poderá ter, se se comportar, etc. Ou será uma festa para a qual nunca será convidada. No segundo caso, sempre voltará magoada, àquele momento. No primeiro caso, uma situação dará lugar à outra, e à outra, não mais havendo perduração de emoções.
O adulto tem momentos, vive uma história, enquanto a criança tem não-momentos, pois flerta com o absoluto, o sem história. Ela viveu pouco, tem poucas memórias, então sente como se tivesse acabado de chegar aqui, neste mundo. Por isso se agarra a cada coisa que acontece, e às suas emoções.
Assinar:
Postagens (Atom)