sábado, 27 de fevereiro de 2016
Freud, o primeiro a sentir o desconforto
No Natal de 1920, Freud escreveu a seu médico, Pfsiter, que havia recebido de vários lugares respeitáveis obras de popularização da psicanálise. "A causa avança por toda parte" (Peter Gay. Freud, uma vida para o nosso tempo. p.453). Em Viena, os termos freudianos tornavam-se de uso comum. Nos salões, serviam ao novo humor refinado. Pregadores, jornalistas e pedagogos apontavam a obscenidade e a má influência das ideias freudianas sobre as crianças e as famílias.
No âmbito científico, a psicanálise não recebia tratamento mais cuidadoso. Em um simpósio ocorrido em Nova Iorque, no ano de 1924, o dr. Brian Brown afirmou que Freud reduzia tudo ao sexo. Esta sempre foi a acusação numero um sofrida pela psicanálise. Dr. Brown também afirmou que "a ideia de [Freud] era a de que havia um compartimento externo onde as ideias prejudiciais eram armazenadas, prontas para se precipitarem à nossa consciência" (Gay, p.455).
Sim, era disso que se tratava a psicanálise: de algo externo à consciência, de onde ideias e intensidades psíquicas vinham às vezes como riso incontrolável, às vezes como tempestade com raios. Freud distinguiu um inconsciente da mente. Distinguiu a própria pesquisa, então, da psiquiatria organicista, da época, e também da psicologia dos processos mentais conscientes. Por fim, ele também estava inadequado para a moralidade da sua época, conforme expressavam as preocupações dos educadores sociais, a respeito das suas teorias.
A mãe de Freud era muito jovem quando casou-se com o pai dele. De um casamento anterior, Jacob Freud já possuía dois filhos, Emanuel, pai de John, e Philipp. John, sobrinho de Freud, tinha uma idade próxima da dele. Foram amigos de infância. Contudo o ponto de estranheza da família ficou por conta de Philipp, com apenas um ano a menos do que a nova esposa de Jacob Freud, Amália. Freud suspeitava que o meio-irmão e a mãe, secretamente, tinham uma relação distinta do tipo enteado-madrasta. Este era mais que um segredo de família: era um mistério.
Freud notabilizou-se por ser o escavador de um novo continente. Para ele, as pessoas estavam longe de serem o que lhe mostravam à primeira vista. Durante anos manteve do pai Jacob uma imagem de fraco e subserviente. Quando pequeno, viu o pai tendo o próprio casaco derrubado na lama, por um homem, enquanto eles andavam na rua. Pacificamente, o pai apanhou o casaco e não se indispôs com o sujeito. Sigmund sugeriu que ele tirasse satisfações, mas o pai não tinha esse temperamento.
Freud cresceu odiando o antissemitismo que cresceu em Viena, durante a sua infância. Essa mesma energia combativa foi a que empregou na defesa das suas primeiras formulações sobre histeria e hipnose, contra neurologistas que desqualificavam estes objetos de pesquisa. Tanto como membro de uma família, assim como um judeu, e também como pesquisador, Freud não conheceu uma integração com o seu ambiente. A pesquisa primordial com as histéricas foi o abraçar de um mistério, cujos resultados foram defendidos com uma gana de quem desde criança se sentia revoltado com o antissemitismo e a passividade do pai.
Próximo do ano de 1900, Freud empreende uma auto-análise. Aquilo que nunca pareceu integrado foi formalmente desintegrado, desmembrado em partes que foram examinadas. Como um relógio que funcionava esquisito, e ao qual se desmontou para se saber o motivo. Era precisamente disto que se trata a psicanalise: desmembrar as falsas sínteses, quebrar o amálgama do sintoma em suas partes constituintes. A estranheza de um paciente, todo o "não mostrar dos seus verdadeiros motivos", Freud experimentou primeiro consigo mesmo.
Freud possuía um certo desencontro em relação ao judaísmo e ao seu pai, e que se deslocara para a pesquisa dos fenômenos mais cercados de más palavras. Foi como um desbravador solitário, muitas vezes incompreendido, que Freud viu a si mesmo, não sem razão. Ele confrontava as opiniões correntes no meio científico e no senso comum, no tocante às neuroses, à hipnose, à sexualidade infantil, aos sonhos e a muitos outros temas.
Os primeiros anos da psicanálise, de isolamento, de falta de adeptos, de polêmicas públicas e de falta pacientes jamais foi de falta de vigor investigativo. Freud tinha mais de sessenta, nos anos 20. Com a incompreensão e o escândalo por parte de alguns círculos, principalmente em Viena, Freud não pôde sentir-se confortável com a fama e a aceitação. E nem um pingo mais satisfeito com o homem.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016
Fernandinha no caminho das formigas
Escrevo para ser livre. Quem fica um pouco ao meu lado percebe que sou falante. Uma frase puxa uma ideia, que puxa uma reação, que puxa uma ideia e depois uma frase, e assim vai. No texto ocorre o mesmo. Minha ideia inicial transforma-se à medida em que vou batendo bola com o papel do Word. O resultado é livre inclusive de mim, que tive a ideia-start, aquela que me fez ir para a frente do pc. Escrevendo encontro o caminho do que quero escrever.
A plataforma da escrita, o outro indivíduo ou até eu mesmo são eixos com quem converso. O papel pode estar torto. Pode ter a seguinte frase sem poder se apagada: "Fã do Bolsonaro". Reajo a ela e escrevo a segunda linha. O outro indivíduo pode ter a mesma ideia fixa na cabeça. Se for alguém com quem não convivo muito, direi a ele algo sobre sua ideia fixa. Estas coisas não me desanimam.
Papel e pessoa são velhos conhecidos, cresci com eles. Literalmente, Fernanda Torres cresceu com Millôr Fernandes e Miele. Segundo ela (http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/22/mulher/), machões preconceituosos. Irresistíveis. Li Millôr. Um gênio. Fico só imaginando o quanto eu viveria se tivesse convivido com ele, como Fernanda. Eu me inibiria de escrever? Como Fernanda, eu sentiria amor por essas companhias, e sempre as louvaria.
Em meus textos sempre há o nome daquele que foi o meu parceiro mais evidente. Vivi num bairro em que o pipoqueiro, o velhinho doente do prédio, o dono da banca de jornal e o lavador de carros da concessionária eram os mesmos de anos. Machistas, homofóbicos, autoritários, militaristas. Eu ouvia de tudo. Eram meus companheiros de dia-a-dia, eu não os confrontava.
Hoje sou um observador paciente. Quando pequeno, via o caminho das formigas. A ideia vinha se desenvolvendo, subterraneamente. Quando chegava, a ideia era minha, para eu fazer o que quisesse. Não era do companheiro, não tinha que devolvê-la. Formigas não escutam.
Nunca gostei de violência, discriminação, e estas coisas injustas. Não sei com quem aprendi essa generosidade. Bem, talvez eu saiba... Não foi com nenhum companheiro humano em particular. Volta e meia o que eles diziam feriam essa minha sensibilidade, mas meu interesse por ouvi-los era maior. E no que lhes respondia, não mirava na mudança daquela ideia específica.
Mantinha minhas conversas leves, com meus queridos querendo falar mais coisas para mim. Eram tardes de sábado, com brisa balançando amendoeiras, Hoje continuo conversado, e com a mesma sensibilidade para a dor dos outros. A dor de qualquer um, mesmo a do bicho, da planta, do preso, etc. Talvez tenha ficado mais sensível. Isso que eu sou, que traz uma história predominantemente inconsciente, é o pano de fundo de tudo o que digo e escrevo.
Militantes feministas reclamaram do texto de Fernanda (um exemplo: https://medium.com/polemiquinhas-com-a-carol-patrocinio/ref%C3%A9m-uma-resposta-%C3%A0-fernanda-torres-71a5a1a5cbed#.4f2n2seyn). Disseram que, ao ter escrito que "a irrita o vitimismo do feminismo", ela ignorou os problemas das mulheres. Fernanda, inclusive, reconheceu isso e desculpou-se (http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/24/mea-culpa/). Eu não teria me desculpado: por alguma razão, o primeiro texto saiu daquele jeito. Tem uma dignidade a ser defendida. Não é para ser apagado. Ou será que o pedido de desculpas de Fernanda não é uma ironia, um fazer de conta de que dá o braço a torcer para as chatas? Pode ser!
Sim, eu disse chatas: todo mundo tem um pai escroto, ou pelo menos um tio, a quem ama e odeia. Essa complexidade é difícil traduzir em frases. Ocorre muito de uma filha brigar com o pai, acusando-o de machista. Mas ela mesma faz o namorado dormir na sala, pois "o pai não vai gostar dele no quarto". O pai é um caso sério, dessa moça. Quanto mais tiver algo engasgado para dizer a esse pai, sem saber como, mais responderá de forma confusa para quem cruze seu caminho.
As militâncias deram às pessoas uma gramática para as suas emoções e palavras presas. Um escoamento fácil, que situa bons e maus na história das mulheres, dos negros, dos gays, etc. Em troca, a militância, que é um espírito, exige engajamento. "Já que eu te dei o que dizer ao seu pai, agora te dou o que dizer ao homofóbico da esquina. A fala dele tem consequências ruins para os gays. Aponte isso para ele, para ele mudar." Por ter descomplicado a sua vida, a militância escraviza, obriga a trabalhar para ela.
Nunca fui complicado. Acho que o caso de Fernanda deve ser parecido com o meu: figuras que eu amo não são como eu gostaria, mas amo mais estar com elas do que persegui-las. Não jogo nelas a consciência pesada de uma militância. E minhas ideias vêm se desenvolvendo sem pressa. Mentira, quando estou em casa, corro para o pc.
Posso pensar em como as pessoas são autoritárias, e no problemas das mulheres. Uma coisa não tem diretamente a ver com a outra. Um homem que canta mulheres na rua pode ser amorosíssimo com a mulher dele, procurando sempre se antecipar aos desejos dela. No filme "Homens brancos não sabem enterrar" (dir. Ron Shelton, 1992), o personagem de Woody Harrelson acorda ao lado da sua namorada, feita pela Rosie Perez. Ela esboça que também irá acordar, mascando a própria boca seca.
Ele busca um copo d'água. Ao voltar, ela se revolta: se ela quer água, ela pedirá. Ele não tem que se adiantar. Aquilo é dominação masculina. Rosie brinca com o militantismo de filmes como os de Spike Lee, por exemplo, com quem trabalhou algumas vezes.
Os problemas das mulheres são coisas a serem resolvidas. Elas precisam de mais condições para serem livres. Cada minoria tem atravancamentos que é responsabilidade de todos ajudar. Alguns problemas das mulheres demandam resolução urgente. Aí o caso talvez seja criação de leis. Mas o feminismo, assim como outros movimentos, tem criado o problema da falta de socialidade. Você já reparou que quem se apresenta como militante geralmente é irritadiço?
As emoções da infância, que podem se expressar nessa gramática, não se esgotam. A criança tem ódio inconsciente pelo pai, e culpa consciente. A militância se oferece ao jovem que quer saber como expressar a vinda à tona, para a consciência, da própria agressividade. O ódio passa a ser o conhecido, e como o discurso militante é obsessivo, repetitivo, o amor ao pai não encontra chance de voltar.
É sinal de crescimento conseguir tomar distância de si mesmos, inclusive das próprias paixões. Observar a si mesmo. A má-consciência é, no caso aqui discutido, consciência engajada. Um pesado carrasco. O militante é quem mais sofre, nessa história. Um dia, quem sabe, ele possa andar devagar até a padaria, ver a mulher nua na capa do jornal, achar graça da manchete "machista", e não perder a leveza.
Civilização, amor e medo
“Totem e Tabu” é a primeira incursão de Freud na antropologia. Seu mote inicial é a semelhança entre o homem primitivo, com sua crença em totens e tabus, e o neurótico obsessivo que a psicanálise estuda. O resultado alcançado por Freud, com este texto, foi uma narrativa mítica sobre o surgimento da civilização. Aqui, apresento esta obra, e a utilizo para um início de análise sobre como, em situações sociais, vivemos nossos impulsos eróticos e agressivos.
Darwin havia observado os hábitos dos macacos superiores. Deduziu que, em seus primórdios, o homem vivia em pequenas hordas governadas por um macho mais velho. Em um grupo de macacos, apenas um macho era reconhecido como adulto. Tão logo um jovem crescesse, disputava poder com o líder, e o mais forte matava ou expulsava os demais. Já na horda primeva humana, o pai era ciumento e violento, reservando para si todas as fêmeas e expulsando os filhos, assim que eles cresciam. Certo dia, porém, os irmãos expulsos uniram-se, mataram o pai e devoraram-no. Isso pôs fim à horda primeva.
Cada um dos irmãos rivalizava com os demais, querendo ter todas as mulheres para si. Nenhum deles era tão mais forte do que os outros, como o pai era. Se disputassem poder, destruir-se-iam a todos. Impossibilitados de serem como o pai, abriram mão do uso da força, a fim de poderem viver juntos. Abrem mão também do amor incestuoso, com as fêmeas do grupo, a fim de que os afetos fossem mantidos frios, ou seja, os impulsos agressivos não fossem atiçados.
Em relação ao pai, o filho sentia ódio, por ele ser obstáculo à satisfação das suas necessidades de poder e sexuais. Mas também sentia amor e admiração. Com a morte do pai, satisfez-se o impulso de ódio, do filho. O impulso amoroso, antes subjugado, agora se impõe como arrependimento. Tudo o que o pai proibia agora os indivíduos proíbem a si mesmos. O morto ganha força.
Os irmãos elegem um totem como substituto do pai, e a ele vinculam os dois tabus fundamentais da organização social: a proibição do assassinar e comer o totem, e a proibição do servir-se das mulheres do clã. Esta reação moral é decorrente da impossibilidade de os filhos ocuparem o lugar do pai. O impulso agressivo e erótico, uma vez reprimido, leva aos indivíduos a tornarem-se vigilantes da mesma moralidade que visa reprimi-los.
O totem é um lugar, um objeto ou um animal que o clã relaciona ao pai primevo. É o protetor do clã, o guardião da sua história e a fonte de identificação para cada um. Vestidos tal como o animal totêmico, ocasionalmente os membros do clã repetem o ritual da refeição totêmica. Nestas ocasiões, este animal é morto cruelmente e devorado cru. Todos no clã participam deste momento de liberação da agressividade. Eles dançam, imitando os movimentos e os sons do animal totêmico.
Após a cerimônia, o animal é pranteado, mostrando o arrependimento dos participantes e desresponsabilizando-os pelo que fizeram. Esta é a repetição da história de ambivalência em relação ao pai, em que estão presentes a morte, a culpa e a expressão do amor identificatório com o pai. O pai é o primeiro rival de toda criança. Assim o é porque a mãe é seu primeiro objeto de escolha sexual. Esta é a uma descoberta da psicanálise.
Ao longo do seu desenvolvimento libidinal e psíquico, a criança se libertará desta atração incestuosa. Inicialmente, a criança tem na própria boca a fonte do auto-erotismo. O instinto sexual buscará a obtenção do prazer, com a ajuda dos objetos que se relacionam com esta parte do corpo. O objeto externo preferido é o seio materno. À fase oral se segue a anal, em que o prazer se obtém com o controle da retenção e da expulsão das fezes, sendo o ânus a fonte de erotização. E à fase anal se segue a fálica, em que a criança explora os genitais dela e das outras crianças, e gosta de se tocar e ser tocada nesta região. Após esta fase, a criança deixará de centrar-se nas partes do próprio corpo, e elegerá objetos externos como fonte de promessa de satisfação sexual, ou seja, como objetos de interesse amoroso.
Há, porém, entre o estágio de autoerotismo e o estágio da escolha objetal, um estágio intermediário, no qual o instinto sexual, antes particionado, ganha unidade e liga-se a um objeto. Mas este objeto ainda não é externo. É o próprio Eu. O narcisista toma os próprios pensamentos como a realidade. Se a mãe chega a seu quarto, ele entende que isto foi para atendê-lo. Se o pai sai para uma longa viagem, deverá trazer uma lembrança para ele, como se fosse passar a viagem inteira procurando aquele presente. O neurótico obsessivo é o que melhor representa uma fixação psíquica na fase narcísica. Ele demonstra isso, ao imaginar que pode evitar ocorrências ruins, e provocar boas coisas, com a intenção afetiva do seu pensamento.
Voltando falar da história da humanidade, houve uma fase animista, em que o homem atribuía a si mesmo a total potência sobre o mundo. Posteriormente a esta fase, acompanhando a história individual de saída de si em direção aos objetos externos, há a fase religiosa. Os deuses são os criadores do mundo, e os donos da vontade que o governa. No entanto, o homem mantém a convicção de que, através de cultos e orações interfere nas decisões deles.
Por fim, na fase das concepções científicas, o homem estuda o universo e o tamanho do seu planeta, os animais e o lugar de sua espécie, seu próprio nascimento, desenvolvimento e morte. O homem é obrigado a se haver com a sua estatura e limitações. Ele não tem poder sequer sobre a própria vida, então é claro que não poderá fazer o que bem entende com os seus instintos sexuais e agressivos. Deverá adequar-se aos regramentos da realidade, da vida em comum junto aos outros. Ainda assim, cada saber que situa este homem em relação às outras coisas existentes, relativizando a sua estatura e o seu poder de ação, tem embutida a confiança deste homem na própria racionalidade, herança da crença da onipotência do seu espírito.
Enquanto possuíam uma concepção de mundo animista, os homens tomavam as restrições do tabu como válidas por si mesmas. Não havia qualquer autoridade divina que as fundamentasse, junto a um sistema de privações tomado por necessário numa organização social fundada em uma ordem religiosa. A punição pela infração ao tabu ficava a cargo da instância interna ao violador. O castigo severo era esperado para ocorrer pouquíssimo tempo após a falta.
Há o caso de um homem robusto que encontrou restos de comida na estrada. Ele os comeu, e só após isto lhe avisaram que aqueles restos foram deixados pelo rei. O homem começou a sentir violentas dores, e a ter diarreias. No dia seguinte, estava morto. Todos os objetos pertencentes ao totem, ou por ele tocados, assim como ele próprio, possuem a poderosa e misteriosa energia do que é proibido, ou tabu. O infeliz, ao tocar os alimentos deixados pelo rei, entrou em contato com esta energia, muito acima da sua capacidade de assimilação. Caso ele não houvesse morrido, seu povoado trataria de isolá-lo e fazer com que ele passasse por diversos ritos de purificação. Durante este tempo, ninguém mais se aproximaria dele. Ele mesmo tornara-se tabu, portador da energia.
Vivendo sob o sistema totêmico, o homem mantém um contrato com o pai primevo, em que este oferece proteção em troca do compromisso de que os filhos não repitam o ato que destruiu o pai real. E que não esposem as mulheres do clã, a fim de não despertarem o desejo incestuoso dos outros membros. Isso os faria guerrearem e se esfacelarem enquanto sociedade. Os homens do clã vivem fraternalmente, não se tratando mutuamente da mesma forma como o pai uma vez fora tratado por todos os homens unidos.
O totem, enquanto representante do pai, recebe os cuidados dos membros do clã fraterno, e os agradecimentos por protegê-los. O homem, contudo, jamais deixa de desejar o proibido. A destruição do totem e o incesto ou endogamia são tudo o que ele mais gostaria de fazer. O neurótico obsessivo, estudado pela psicanálise, tem uma ambivalência afetiva com relação ao próprio pai. Este neurótico tem desejos de agressão contra o pai, mas os nega obsessivamente. Em sua consciência vicejam a consciência de culpa, e o amor pelo pai.
A má-consciência é o maior carrasco que alguém pode ter, pois é a certeza da condenação contra os atos através dos quais realizamos desejos proibidos. O homem primitivo teme a punição pela infração a um preceito tabu. Os membros do clã aguardam a punição para o infrator. Caso ela não ocorra em breve, o sentimento coletivo de estarem todos ameaçados faz com todos se unam e punam o infrator. Cada homem é movido por impulsos incontroláveis, aos quais tenta manter sob controle. Realizam um linchamento coletivo do infrator, para afastar a sua má influência. A nenhum membro do clã é permitido se ausentar da punição, pois esta é a ocasião em que eles são autorizados a darem vazão ao ímpeto agressivo, expiando aquela falta e afastando-a do convívio dos irmãos.
O desejo de morte da pessoa amada, do neurótico obsessivo, ao ser reprimido, é substituído pelo medo de que essa pessoa morra e pela autoacusação. O altruísmo do neurótico encobre o seu egoísmo. Quanto ao homem primevo, o desejo de destruição do pai e do amor incestuoso pela mãe faz com ele estabeleça os tabus do seu clã. A partir das proibições fundamentais, os vetos se ramificam para outros comportamentos, animados pelos impulsos proibidos: mulheres durante a menstruação e logo após darem à luz, as propriedades dos homens, os rapazes em iniciação masculina e os mortos são incluídos no tabu. Estas proibições organizam a convivência dos membros do clã, e os protegem deles mesmos.
O temor que cada um tem em ser punido é objetivado no tabu, e o homem passa a crer que há um poder demoníaco oculto no elemento totêmico. Objetivados as proibições e a punição, o homem organiza-se coletivamente para lidar com eles. Os tabus são proibições muito antigas, impostas a gerações de homens. O lugar, o objeto ou a pessoa considerada totem é vedada ao toque. Mas, para qualquer um, tocá-lo seria o máximo deleite. Esse desejo é inconsciente, e a proibição, consciente. “Nada gostariam mais de fazer, em seu inconsciente, do que infringi-las, mas também têm receio disso” (Totem e tabu. p.26).
Semelhante ao obsessivo, o homem primevo tem medo do toque. Nem em pensamento se pode tocar no totem. Quem infringe essa lei é passível de eliminação. O infrator é contagioso e, alternativamente à morte, ele é conduzido a um período de isolamento e de grandes renúncias, para e expiação da sua falta.
Uma mudança mitológica ocorreu com a passagem da crença no demônio para a crença em deuses. Os objetos aos quais se entendia como portadores do poder demoníaco, venerados, serão considerados impuros. A crença no poder de deuses, e na sua sacralidade, rebaixou os demônios para objetos de horror, aversão. Essa dualidade mítica colocou de um lado a fonte da lei e das punições, os deuses, e a fonte da tentação, os demônios. Os deuses eram intocáveis porque sagrados, sumamente bons. Os demônios assediavam os homens.
Trago para cá a narrativa que está nas primeiras páginas do Genesis. O paraíso era a perfeita harmonia entre o homem, a mulher, os animais e inclusive as plantas. Bastava esticar o braço para se apanhar o que comer. Não havia mortes provocadas, não se derramava sangue. Também não se morria por velhice. Não se sentia fome, sede, privação de nada. Na esfera de Deus, o homem desconhecia o que era necessidade. Deus criou e colocou tudo para funcionar de forma perfeita, sem a possibilidade de que um ser disputasse qualquer coisa com o outro. E sem que o homem em si mesmo sentisse alguma sensação desagradável. Todos eram irmãos.
Certo dia, a serpente foi ter com Eva. Subiu em uma árvore, e falou-lhe ao ouvido as coisas maravilhosas que aconteceriam a quem experimentasse o fruto da Árvore do Conhecimento. A única proibição de Deus, para o homem, era comer o fruto dessa árvore. A serpente falou que o poder de Deus não era tão grande assim, não tão distinto do poder que teria aquele que comesse o fruto proibido. A mulher comeu a maçã. Em seguida, deu-a a Adão, sem que ele soubesse de que fruto se tratava. A desobediência de Eva foi intencional. E, por um momento fatal, Adão voluntariamente obedeceu a ela, comendo o fruto, e afastando-se do Pai.
A sabedoria era sagrada, havia sido vedada ao homem por ser propriedade do criador. O homem não precisava dela. O filho mexeu nas gavetas do pai. Tornou-se um mau-exemplo para os demais habitantes do jardim. A serpente foi amaldiçoada, para que todos soubessem que ela havia se tornando como que um tabu ou, no vocabulário bíblico, um ser maldito. Deus era verbo falado, comandos de ações: “faça-se a luz”, “crescei e multiplicai-vos”, etc. Quem era a serpente para querer mandar junto dele? Só poderia mandar quem tivesse a sabedoria, quem soubesse o que falar. Deus tornou a serpente maldita, um ser do dizer o mal. Foi condenada a mover-se arrastando-se sobre o próprio abdômen. Deste modo, a serpente não conseguiria chamar ninguém, para escutá-la. Todos os seres deveriam ter aversão por ela, pela energia maligna que a habita e o risco da tentação.
Já a maldição do homem foi a inserção dele na mortalidade. Ele agora nasceria, cresceria e fatalmente morreria, perdendo seus filhos e coisas queridas. O homem ganha um desenlace. Enquanto vivo, derramaria o próprio suor no solo para dele retirar seu sustento. Lançado sozinho no mundo, ele começou o trabalho para fazer o seu destino.
Voltando ao clã fraterno, a obediência ao pai totêmico é transmitida pela mãe. Ela dá geração às sementes do homem, os filhos provêm dela e são inseridos na ordem totêmica. Esta ordem são prescrições para as relações entre homens e mulheres com o totem, entre si e com membros de outros grupos totêmicos. No interior do próprio grupo, é claro, vigoravam a proibição da destruição do totem e o incesto. A mãe é um território vedado ao próprio filho, quando ele nasce. O exílio é sem retorno.
No texto “A Cabeça da Medusa”, Freud diz que a deusa Atena tinha, no centro do seu escudo, uma imagem horrível, porque proibida: a cabeça da Medusa. Não se podia olhar para a Medusa. A punição era instantânea. Freud identifica a cabeça da Medusa com a vagina da mãe, exatamente o solo que gera o homem e do qual ele parte para a própria vida, sem olhar para trás. A imagem da vagina da mãe é petrificante.
A nossa sociedade é uma reunião de pessoas de diferentes origens. Diante do olhar de um transeunte em uma grande cidade, multiplicam-se as diferenças, capas que conferem identidade ao portador, que é não mais do que um suporte, um cabide. O indivíduo circula neste ambiente, cuidando dos seus afazeres. Estes afazeres incluem, certamente, encontrar um cantinho para que possa vivenciar o que sua libido constantemente o empurra a fazer.
Um garoto começa a namorar uma menina que já está crescendo, moradora do prédio em que moram. Os adultos que cuidam dele acham bacana. O namoro ultrapassa a barreira de um mês. A mãe diz ao pai que ele deveria conseguir uma namorada na escola em que estuda. O namoro de vizinhos que cresceram juntos causa certo incômodo das gerações mais velhas.
A escola é um apanhado de crianças com aquelas diferentes origens. As idades são separadas por turma, e os critérios de seleção incluem o nível de renda da família. Em escolas com crianças de famílias de classe média, há barreiras impedindo a entrada de muitas crianças negras. A homogeneização inicial das turmas se encerra aí. Elas formarão um grupo regido pela professora, dentro de sala. Serão Pedro aluno da Professora Helena, Maria aluna da Professora Sìlvia, etc. A professora lhes dá uma identificação. Mas os nomes das crianças são completados com o nome da escola: Pedro aluno da Professora Helena da Escola Patinho Feliz. A ordem que rege todos é a da instituição, ela dá o último nome à criança. O nome da professora é o do meio, como uma transição do primeiro nome da criança, aquele com que ela chega à escola, e o último, o nome da escola. Um dia ela se formará naquela escola, reconhecida como um indivíduo, mas um indivíduo formado pelos ensinamentos da instituição.
Os garotos comentam baixinho, entre risos, sobre o decote da professora. Mas ninguém ousa desrespeitá-la. As meninas inspiram-se nela, para fazerem seus cabelos. Elas não sabem, mas quanto mais vão se tornando semelhantes à professora, mas fazem as cabeças dos meninos virarem em sua direção. Contudo, sobre elas também existe aquela proteção contra as investidas eróticas dos meninos. Um deles, contudo, resolve assumir-se apaixonado por uma colega de sala. Todos já suspeitavam desse interesse dele. Os mais chegados insistiam para que ele contasse logo a coisa para todos. Uma vez falada, a relação torna-se assunto da turma. Enquanto era escondida, incomodava pela proximidade com o proibido. As meninas aprovam. Os meninos desaprovam. E os dois engatam namoro. Logo as meninas já querem casar os dois, e brincam de falar o sobrenome de cada um deles.
O casamento, ou seja, o sobrenome comum, ainda é o avalizador do contato sexual, em nossa sociedade. É a prova de que um indivíduo não pegou qualquer uma na rua, para satisfazer seus impulsos. Os alunos da sala, cada vez mais homogeneizados, agora pelo mesmo aprendizado na série, são heterogêneos demais para que se autorize o seu envolvimento sexual. Um menino não pode mexer com a menina, “não tem intimidade”. Uma jovem pergunta a um jovem mais ousado: “você me conhece?”
Cada indivíduo, contudo, não deixa de ser puxado para a realização dos seus impulsos sexuais e agressivos. Na escola não se permite brigas, mas por ela saber a importância de alguma válvula de escape da agressividade, faz vista grossa para a enxurrada de garotos que corre, após a aula, para uma rua sem saída, para a briga que terá lugar lá. O que acontece lá, fica lá. No máximo se conversa sobre ela na diretoria. Os detalhes do rosto cortado e sorridente do garoto não podem ser conhecidos pelos outros.
Um homem foi preso por atacar sexualmente uma mulher. O direito à propriedade, o que inclui o próprio corpo, é um resquício dos regulamentos totêmicos sobre a relação entre indivíduos de clãs diferentes. Uma mulher estranha é um tabu de propriedade, por estar vinculada a outros homens, seus irmãos. Os presos têm seus próprios regulamentos para sexo e uso da força, de modo a que não se destruam mutuamente. Um indivíduo preso pelo crime de estupro terá um tratamento diferenciado, na prisão. A vítima, o juiz, os policiais e, sobretudo, a nova vítima já sabem que o pior castigo será aplicado pelo grupo de presos.
O primitivo clã fraterno, pela demora na punição do infrator, unia-se para a punição dele, liberando momentaneamente seu impulso destrutivo. Os presos unem-se pelo sentimento de vingança pelo tabu tocado. Espancam o abusador e, particularmente, estupram-no selvagemente. As regras sociais para sexo e força, que mantém a nossa civilização, não existem ali. E dentro do mundo infernal da prisão, o estupro e o assassinato do estuprador são medidas específicas destes casos.
A prisão é um lugar esquecido por Deus. A imagem social a respeito dela é a de um lugar regido pelo demônio. Para lá vão os que não seguiram as leis sociais, que fazem um indivíduo ser bom. Nesta visão, a prisão e quem está nela só podem ser maus. Todos eles são tabu. O demônio é o líder autocrático, tirânico, que mata e come quem quer. Os homens tentam mantém distância dele. Eles mesmos têm estes desejos. E, na prisão, os regulamentos do grupo de presos não proíbe totalmente a mútua destruição e o sexo, mas os regram de forma específica. Há uma hierarquia de poder que determina a agressividade e o sexo permitidos a cada um. As execuções e os estupros são metodicamente aplicados por um motivo que concerne àquela sociedade.
O regozijo demoníaco, contudo, ocorre na situação em que os presos unem-se para lidar com quem cometeu um estupro fora da cadeia. Cada um, em conjunto, torna-se ele mesmo semelhante ao demônio, se imbui da sua energia. Se o divino é distante do homem, o diabo permite-lhe um gostinho do seu poder. Algumas vozes surgem, na sociedade, dizendo que os presos fazem isso porque estão simbolicamente defendendo suas irmãs ou mães. Chegam a dizer que um acusado de estupro deve ser morto, deque forma for, pois “imagina se fosse com a tua filha!”.
Um homem ousou agir como o pai da horda. Ele, que não é mais forte do que todos eles juntos. Os irmãos se animalizam, e destroem-no. A sociedade tem lugares expulsos da lei geral, divina, para os quais olha com horror. São como Sodoma e Gomorra, lugares onde vicejam os piores vícios e impulsos. Não se faz a mínima questão de torna-los dignos de um ser humano. São receptáculos de todo o ódio da sociedade, que neles objetiva suas obsessões, o desejo punitivo e o medo que sentem.
Referências
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Editora Penguin e Companhia das Letras. 2015.
A Cabeça da Medusa. In: Psicologia das Massas e Análise do Eu e Outros Textos. Editora Companhia das Letras. 2015.
Nova Bíblia Pastoral. Editora Paulus. 2014.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2016
Uma nova forma de repressão
Eu estava achando bobo meu texto sobre o Rambo (http://psicfilo.blogspot.com.br/2016/02/rambo-macho-toda-prova.html). O homem se curte e se pavoneia tanto que chega a ser gay. Qual a novidade disso? Mas as reações dos homens a ele me mostraram coisas interessantes. As mulheres riram. Era um texto para rir, mesmo. Uma disse que o marido que fala da própria infância com o Rambo não é tão macho quanto pode pensar.
As mulheres ficaram à vontade com um texto que fala sobre algo que os homens escondem, sem saber que escondem. Alguns homens comentaram o quanto o texto ressalta a masculinidade, e os fez lembrarem, com carinho, da própria infância. Ou que os fez serem mais machos ainda. O sentido do texto está um pouco velado, é claro. Esse assunto é velado para alguns homens. Os que fizeram estes comentários talvez não percebam o quanto o macho é gay. Talvez nem tenham que perceber, pois se a brincadeira do menino é de luta, músculos e armas, é óbvio que o erotismo identificatório dele esteja nessas coisas. E ouvir que Rambo seja gay não incomoda esse adulto.
Também me disseram que eu verdadeiramente não assisti ao filme, como se eu houvesse o entendido errado. O Rambo e a macheza são intocáveis. Este sujeito, inclusive, sugeriu que eu apenas lesse os comentários dele e não os comentasse de volta. Quem fala sobre gays não pode se misturar com ele.
Agora, houve um comentarista que travou extensa troca de mensagens, comigo. Ele questionou o porque de eu ter sugerido que o Rambo fosse gay. Segundo ele, a sexualidade de ninguém é para se comentar. E falou como se o meu texto fosse ruim para os gays. Bem, no texto eu mostro o quanto Rambo é homoerótico. Não falei abertamente, para que as pessoas percebessem as sutilezas homoeróticas que há nelas mesmas e, a partir disso, não se espantem e não comentem, ou riam, ou tenham essa reação, para mim inesperada, de dizer que eu não posso dizer certas coisas.
Os gays são vítimas de violência, e têm lutado, com o apoio de grande parte da sociedade, em prol de mais direitos. Contudo, há parte da militância pró-gay que se queixa de piadas, programas de tv ou textos sobre gays. Segundo essas pessoas, esse tipo de material fomenta o preconceito e a violência contra os gays. Eu penso de outra forma: a evitação de que se fale sobre gays leva ao desconhecimento, ao preconceito e à violência.
Quando pequeno eu via o Costinha imitando bicha na Escolinha do Professor Raimundo, e cresci achando as bichas engraçadas. E com "engraçadas" não estou dizendo nada que inferiorize as bichas. Não estou dizendo que elas não devam ter liberdade para fazerem o que quiserem, inclusive amor, no espaço público ou no privado, ou de estudarem ou ocuparem qualquer cargo ou função para a qual se preparem. Estou dizendo que elas são espirituosas, leves, pessoas boas para se ter por perto, melhores do que os militantes que vêem homofobia em tudo.
O combate à homofobia é algo que será tão mais eficaz quanto mais inteligentemente analisar os conteúdos e os comportamentos relativos ao gay, combatendo a violência e as atitudes discriminatórias e estimulando a convivência e a alegria. Mas, se como diz o filósofo alemão Peter Sloterdijk, na era da leveza busca-se engajamentos para se dar peso à vida, dizer que existe uma "realidade" com a qual se lidar, os militantes pró-gay conseguem deixar pesado o que é o símbolo da leveza, que é o próprio gay. Então, que não se comente sobre gays, a opção sexual de cada um é assunto irrelevante. Sim, é mesmo irrelevante na hora de uma disputa de emprego de executivo ou de presidente. Mas, quando se trata de comportamento, abarcando o gestual, os modos de olhar, a valorização da masculinidade, e até o jogo de não se comentar sobre seu profundo erotismo, o ser gay entra na jogada, é relevante mencioná-lo.
Agora estou aqui pensando: se eu tivesse afirmado, dito claramente, que os filmes do Rambo são homoeróticos, teria se queixado aquele que não gostou de eu ter falado sobre gays? Acho que não, pois ele diria que meu texto era uma denúncia da falsidade daquele que se diz heterossexual. Então seria bom o texto que traz mais pessoas para o campo do gay, e ruim o texto que comenta o gay. Eu digo ser bom o texto que me faz olhar de formas alternativas para mim mesmo, seja um texto que me faz me ver como negro, ou um que me faz me ver como um e.t., ou um bicho, ou branco. Um texto que me faz ter novas experiencias, e pensar sobre novas coisas sobre o outro. E sempre que se pensa novas coisas sobre o outro, retorna-se a si mesmo e se vê também a ele de outra forma. E é bom o texto que comenta o gay, para que os aspectos dele se multipliquem tanto, ou para que se ressalte a positividade deles, que fique difícil alguém não se identificar com eles. E também fique difícil uniformizá-lo e protegê-lo dos olhares e dos comentários da sociedade, pondo-o de volta no armário.
Rambo, macho à toda prova
- Macho era o Rambo.
- Rambo era gay, disse minha esposa.
- Que isso! O Rambo ensinou a gente a ser macho. A cada filme ele vinha mais forte, mais bravo, matava todo mundo, explodia tudo. Ele é o macho máximo. Quando saiu o segundo filme, eu pedi: "mãe, me dá o novo boneco do Rambo?" Ela me disse: "mas você já não tem um boneco do Rambo? Para que outro?" "É que esse vem sem camisa, e com uma bazuca grandona." Chorei muito para ter o Rambo sem camisa.
No primeiro filme o Rambo usava um tipo de avental de pano cinza, todo rasgado, que ele mesmo tinha feito, na selva. Usou um cipó para prender na cintura, onde também carregava uma faca, sua única arma. Ele resolvia tudo na faca, naquele filme: matou todos os policiais que o perseguiam, inclusive os que estavam num helicóptero, que ele obviamente fez vir ao chão.
No segundo filme ele já começa sem camisa, e passa o tempo todo assim. Arranja uma bazuca comprida, e sua faca agora tem várias pontas, como uma serra. A namorada dele é séria, uma vietcongue que não fazia qualquer gracejo. Quando ela morre, é um companheiro de guerra que Rambo perde, a única pessoa com quem ele conversa alguma coisa o filme todo. Ela tinha o cabeço comprido, e ele resolve também deixar o dele crescer.
No terceiro filme, ele estava enorme de forte. Os cabelos chegavam na cintura. A falta de camisa era completada pela cintura baixa da calça, deixando ver todos os caminhos. As gotas de suor e de sangue percorriam um longo caminho antes de esconderem-se para molhar lá dentro. Na primeira cena aparece ele lutando com dois paus na mão, contra um adversário que também tinha dois paus. Trocaram pauladas até não aguentarem mais.
O abdômen do Rambo pulsava de respiração e dor, quando ele era torturado, cortado. Num balaço de raspão ele pôs pólvora, mordeu um pedaço de pau, pegou outro pau, em chamas, e tacou fogo na ferida, urrando com aquela boca torta do Stallone. Era ele contra o exército Russo. Um russão de dois metros lutou com ele numas pedras. Após uns socos para tontear, o russão deu um abraço nele, bem apertado. Rambo participou, dando cabeçadas na testa do parceiro, chegando a encostar os narizes.
Os três filmes terminam com o coronel Trautman aparecendo para defender Rambo das autoridades militares. Ele sempre demora os olhos azuis sobre os do protegido. A macheza que o Rambo ensinou tem força, coragem, honra, proteção, prazer e dor. Braços fortes, peitos grandes, líquidos densos, areia, torturas, e um par de olhos azuis paternais, reconfortantes.
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016
"Isso é mais do mesmo." Sim!
A filosofia não é senão outra coisa que o mais do mesmo. Sócrates demorava-se no análise de um discurso que escutava. Podia ser a respeito da matéria sobre a qual, no Fedro, ele se disse expert: a arte do amor. O discurso do jovem Fedro poderia trazer algo que ele não soubesse. E trouxe, levando o filósofo, por um momento, a maldizer o apaixonado. Sócrates, contudo, logo percebeu a falta de sentido do que fazia, pois um deus não podia ser mau. A fala de um homem levou-o a isso.
Sócrates, então, voltou-se respeitosamente ao deus Eros, para novamente inspirar-se nele. Não queria perder suas bençãos, "ter azar no amor, deus me livre"! Sócrates podia continuar sendo um colega do Fedro, assim como o era de muitos outros cujos discursos analisava. Muitos deles, porém, evitavam-no, pois sabiam que seriam chamados a verem os problemas internos ao que falavam.
Parar para pensar é parar para conversar. Isso requer bastante esforço. E poucos são os que realmente querem saber sobre o que estão falando, aproveitando as perguntas-guia socráticas. A maior parte das pessoas quer chegar rápido a um objetivo.
Quando Sócrates se aproximava, o objetivo da maioria era sair logo dali. A tigela, o cavalo, o amor, eram os temas de Sócrates. Coisas do dia a dia, que se fala com conhecidos, amigos e cônjuges. Escuta-se essas coisas sem problematização: "se eu tenho que ir ao mercado, comprar comida, algumas horas antes do almoço ser servido, é claro que eu vou." O uso denotativo das palavras muitas vezes não é errado. Mas o que consideramos realidade nem sempre precisa ser mantido, justamente em nome do ideal de criarmos melhores realidades.
O que alguém diz sobre o amor não precisa ser tomado por óbvio. Um enunciado com as palavras Jesus, pedofilia, política, etc, se quisermos ter algo mais do que uma comunicação telegramática e automatizada, se quisermos desenvolver nosso raciocínio, argumentação e capacidade de fazermos o bem, tem que nos levar a parar, escutar, entender e elaborar uma reação. E não responder correndo, como corriam da banalidade Socrática, corrosiva do orgulho grego. Temos corrido da conversa, orgulhosos de sermos autômatos.
As redes sociais da internet são onde mais se expressam opiniões, sobre tudo. É o lugar ideal para perguntar às pessoas sobre o que elas estão dizendo, convidando-as a voltarem sua atenção para o banal. Mas tem sido uma pista em que as imagens de cada um são apresentadas e consumidas com rapidez. Cada um deve cumprir um mínimo de "boa imagem social", que se banaliza, para a partir desse solo se mostrar a novidade da viagem, da comida, até do trabalho. Não pode haver rachaduras no solo. Não se diz palavrão ou palavras "polêmicas", que freiam a correria e obrigam a que se responda algo a quem as disse, o que expõe o respondedor.
Para os apressados, o Facebook é como um salão social, em que só se mostra a novidade, o belo e o rico, e não se comenta o corriqueiro. "Amor", "política" e "Jesus" são palavras banais, e por isso mesmo, são as que mais dão discussão e se prestam a mal-entendidos.
O salão foi um preparatório para a avançada tolerância do mercado. Mas um burguês nunca deixou de olhar para outro burguês, esperando travar com ele uma conversa que o fizesse se sentir aceito em sua "interioridade". Dentro da própria família, contudo, é difícil conseguir ser totalmente aceito pelo outro. Há algo no conjugue que não combina com você, e que permanece um assunto indiscutível.
"Minha mulher é mórmon, e eu sou democrata liberal. Mas eu a amo, quero ficar com ela para sempre. Não vou interrogar o que ela me fala. Concordamos com uma porção de coisas que me são importantes", podia pensar o filósofo Richard Rorty a respeito da sua segunda esposa, na época em que estava com ela (http://ghiraldelli.pro.br/democracia-liberal/comment-page-1/#comment-61323).
Não precisamos concordar com tudo. Mas um filósofo, em uma situação social, não pode ser um carente de amigos, dizendo o que garante receber concordância. Não precisa da polidez do comerciante, que se junta à carência de reconhecimento de si, burguesa.
O filósofo tem que se incomodar com o que os outros apresentam e nem percebem, de tão natural que lhes parece. E tem que ensinar os outros a se incomodarem consigo mesmos, com o "mais do mesmo" que lhes parece maravilhoso, e abraçam, ou péssimo, e fogem. O filósofo quer que as pessoas sejam a mesma coisa, só que melhorada. Ou seja, diferentes.
domingo, 21 de fevereiro de 2016
Uma confortável cama para sua alma
Veja o bonito entendimento de Santo Agostinho sobre a amizade:
Em seus primeiros anos de mocidade, Agostinho lecionava em Tagaste. Este município é o deu seu nascimento, em 354 d.C., e localiza-se onde hoje é a Argélia, na África do Norte. Agostinho cresceu junto de um rapaz, com quem fez escola e brincou. Na mocidade, ambos continuaram dividindo os estudos e as alegrias da mocidade.
A mãe de Agostinho era cristã fervorosa. Deixavam-lhe triste as crenças supersticiosas do filho. Agostinho não deixou de apresenta-las ao amigo. Um dia, este rapaz caiu em forte febre. Os cuidadores dele, vendo sua crescente piora, batizaram-no. Agostinho ficou contrariado com isso, mas acreditava que sua influencia sobre o amigo seria maior do que aquela cerimônia realizada sobre o corpo inconsciente dele.
O rapaz, então, recuperou-se. Agostinho ansiava por lhe falar, e tão logo pôde ser ouvido, ridicularizou o batismo. Eis que, então, o amigo olha para ele como a um inimigo, dizendo que se ele quisesse manter a amizade, que jamais falasse aquelas coisas. Perturbado, mas contendo a emoção, afastou-se Agostinho. Pouco tempo depois, o rapaz recai na febre violenta, e morre. Ele e Agostinho jamais voltaram a se conversar.
O coração de Agostinho encheu-se de trevas. Perdeu o chão. A pátria e até a casa paterna não eram mais seus. Os lugares em que antes encontrava o amigo agora estavam mortos, pois o amado nunca mais estaria neles. A alma de Agostinho perdeu totalmente o pouso. O que fazer com ela? E qual era razão daquela morte? Impossível saber, responderá o Santo, anos depois. Há um fosso entre os julgamentos de Deus e aos homens.
À época, contudo, “o homem tão querido que eu perdera era mais verdadeiro e melhor que o fantasma em que lhe mandava ter esperança.” (p.89). A um desgraçado, só o choro consolava. O doce choro era o único sucessor de um amigo.
O tempo passou, e o sofrimento amainou. Agostinho entra nas confissões a Deus. Desgraçado ele era quando jovem, por sua alma estar presa ao amor às coisas mortais! Com a morte do amigo, a amargura tomou o seu lugar nas afeições de Agostinho. Ele não morreria pelo amigo, pois passara a ter medo da morte. Tinha ódio da morte, que tranquilamente arrebatou seu amigo e o fazia com todos.
“Admirava-me de viverem os outros mortais, quando tinha morrido aquele que eu amava, como se ele não houvesse de morrer! E, sendo eu outro ele, mais me admirava de ainda morrer, estando ele morto” (91). A vida era totalmente insípida para quem vivia pela metade. Eles eram uma alma em dois corpos. Por isso, a fuga de Agostinho à morte era para que não se completasse a morte do amigo.
Sua alma sangrante só encontrava sossego nas lamentações. Ele mesmo não era um bom lugar para a alma dele. Mas como sair de si mesmo? Agostinho saiu da cidade em que seus olhos acostumaram-se com o amigo. Deixou Tagaste, foi para Cartago.
A passagem do tempo fê-lo ter esperança. Retomou antigos prazeres. Arranjou novas companhias, deixou-se seduzir por leituras conjuntas, por trocas de amabilidades e honrarias, etc. Novos amigos a quem pagava com amor o amor que deles recebia. A consciência humana se obriga a amar quem a ama.
A morte de um amigo transforma doçura em angústia. A única forma de não se perder um amigo, Santo Agostinho percebeu, era amá-lo naquele a quem nunca se perde, Deus. Para ele, a verdadeira amizade é aquela em que o Eterno enlaça os que se lhe unem.
Livro utilizado
Santo Agostinho. Confissões. Editora Vozes.
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