sábado, 30 de abril de 2016

Satisfeita com o cocô


"Providencie um lugar fora do acampamento para as suas necessidades. Junto com o equipamento, tenha sempre uma pá. Quando você sair para fazer as necessidades, cave com ela e, ao terminar, cubra as fezes. Porque Javé seu Deus anda pelo acampamento para protegê-lo e entregar os inimigos a você. Por isso o acampamento deve ser santo., para que Javé não veja nada de inconveniente e não se afaste de você." (Deuteronômio. 23:13).

A manifestante do MASP (https://www.youtube.com/watch?v=xThzMlxHn7g) pôs uma foto do Bolsonaro no chão e cuspiu, vomitou, urinou e defecou em cima. A foto do Bolsonaro é como um totem, para ela: dela saem ordens que a manifestante leva a sério. Para ela, outras pessoas obedecem ao totem, mas ela se rebela. Ela também considera Bolsonaro um mito, mas o nega.

Cada um daqueles manifestantes rezou invertidamente ao Bolsomito. A foto no deputado, no chão, era um altar erguido por cada um. Altar individual. Por que não se deram as mãos, em circulo ou não, para uma vomitação ou defecação coletiva? Porque não há mais unidade. Há dispersão. Viemos do líquido. Submergimos no líquido, como um novo nascimento. Encontramos um Eu ao dissolvermo-nos no divino (Peter Sloterdijk, O Estranhamento do Mundo).

Não foi o que houve na manifestação: cada um quis ficar sozinho, mas não pôde, pois fez dupla com o seu deus perturbador Bolsomito. Este é um deus que não traz o aconchego, não é como o aquoso útero materno. O que ele dá a quem o ouve é merda, e merda foi o que a manifestante lhe devolveu.

São Paulo, para ela e os demais manifestantes, não é mais santa. Não é mais terra de Deus. Espantaram-no com os cuspes e defecações. Não consideram o acaso de encontrar o inimigo para conversar, ou o acaso de escrever uma crítica a ele, ajudado pelo estudo. De uma universidade eles podem até ser alunos ou professores, mas são militantes, não estudantes.

Estão entregues à primitividade da relação com um totem, do amor e ódio não simbolizados, vividos como medo da morte por fuzilamento ou oferecimento de si no tirar a roupa e ficar de cócoras.


Mostrar a bunda a alguém é lembrá-lo do seu ancestral de quatro patas, que cheirava a bunda e o sexo do outro. É um ato de cinismo, de fazer-se baixo para mostrar o quanto o outro não pode ser levado a sério (Peter Sloterdijk. A Crítica da Razão Cínica). É um riso. A manifestante que defecou na foto do Bolsonaro não deu o riso que faria o gesto ter um começo, um meio e um fim no efeito de ridicularizar o deputado. Ela defecou, não se limpou e continuou de pé no mesmo lugar, afirmando a permanência de quem fez o ato.

Com Agamben (https://www.youtube.com/watch?v=SNbKMjftAmM), somos modernos à medida em que a nossa vida é a vida nua, vida do corpo, não a vida da pessoa. Reduzimos o outro a receptáculo dos nossos despojos, objetificando-o. Se é alguém como Bolsonaro, que gosta de falar merda na televisão, tratando-nos como privada, objetificá-lo é uma boa reação, pois expressa que há uma pessoa, ali, não um objeto dele.

Mas, e se a pessoa permanece parada, após devolver o cocô para o Bolsonaro? A manifestante do MASP mostrou-se tão orgulhosa do seu feito que parou no gesto. Igual a uma saudação nazista. Bolsonaro elogiou o Ulstra, e a manifestante elogiou o Bolsonaro, ao satisfazer-se em ocupar o lugar dele. É como se não pudesse haver nada melhor do que isso, em São Paulo ou no Rio.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

O livro sagrado


Talvez você se considere um bom leitor. Isso quer dizer que você lê muitos livros, ou bons livros? Não quero escrever, aqui, sobre você, mas sobre livros. E não quaisquer livros: sobre livros que estão acima de tudo.

Os cristãos consideram a Bíblia a revelação da palavra de Deus aos homens. A história da libertação de um povo da escravidão no Egito dá o tom de muitas das outras histórias desta reunião de livros. Através de Moisés, Deus sobrepujou o poder do Faraó, e também conduziu pelo deserto e deu uma legislação para o seu povo escolhido. Acima do poder político e econômico há o que diz Deus, ou melhor, a Bíblia.

As aventuras de Aquiles e Ulisses eram contadas oralmente, na antiga Grécia. A história do seu povo e da sua cultura, a narrativa formadora do seu ethos eram ouvidos pelo homem na rua, que se formava cidadão grego.

Voltando à Bíblia, Santo Agostinho, no século III d.C., lia com admiração o livro sagrado. Entretanto, segundo disse nas Confissões, o bispo-filósofo não conseguia entregar-se a Deus, isto é, ele permanecia colocando a busca por honra, dinheiro e casamento como mais importante do que a busca por Ele. O problema disto é que estas coisas que ele amava são corruptíveis, e amá-las fazia sua alma também ser corrutível. Amar ao incorruptível Deus tornaria a própria alma também incorruptível.

A Bíblia, a Ilíada e a Odisseia apaixonam seus leitores, como se através deles uma força passasse de quem as escreveu para quem os lê, cativando-os e fazendo-os ao mesmo tempo sentirem ciúmes dos livros e quererem que outros também conheçam o quanto eles são especiais.

Em um vídeo recente (https://www.youtube.com/watch?v=VcKVkxJLkAE), Janaína Paschoal, professora de direito da USP e autora do pedido de impeachment da presidente Dilma Roussef, afirma dedicar sua vida à defesa da Constituição Brasileira. Ela quer que todas as crianças brasileiras aprendam e amem este livro acima de tudo. Ela lembra da ideia liberal que o norteia, de que ele garante o direito à diferença religiosa, cultural ou sexual. É um livro que está acima de cada prática ou gosto particular, garantindo que se possa ser indivíduo.

No vídeo, Janaína ergue o livro acima da própria cabeça, e fala entusiasmada. Na política, na mídia e nas universidades há indivíduos que falam sem entusiasmo. São ladrões frios, repetidores de notícias ou pessoas com discurso velho. Para eles, a razão deve vir apartada da emoção, e o discurso da Janaína soa como histeria. Janaína é bem formada, e domina a sua área. Ela fala emocionadamente sobre os ideais que defende, através do seu saber e prática, e estes são a justiça e a liberdade, a começar pela liberdade de pensamento.

Falando especificamente da universidade, além do professor desanimado há o professor entusiasmado. Falo de um desânimo e um entusiasmo que vem deles mesmos, e não dos livros. Estes professores colocam seus mal-estares pessoais à frente dos livros. Livros que poderiam inspirar ideias e circulação sanguínea novos são lidos com a cabeça cheia de ideias velhas, e sendo usados como justificativas para militâncias à esquerda ou à direita. A militância vem antes da leitura, para estes professores e seus grupos.

Estou preparando um evento em que se lerá a Ilíada. Estudantes de psicologia de uma universidade pública foram convidados mas, dentre eles, um grupo disse que não estuda cultura europeia, apenas estuda cultura afro. Digo que a universidade deve ser lugar de estudar, não de militar. Deve estar à salvo dos interesses políticos e das disposições pessoais de quem quer que seja. Deve ser um lugar a serviço da leitura e do encantamento pelo livro. Através dele, antes de sermos heteros ou gays, negros ou índios, somos humanos. E, sendo humanos, podemos ser o que for, com liberdade. Seremos militantes melhores. Por essa vivência do humano, através do livro, podemos falar de nós mesmos e, como as diferenças vêm depois da leitura humanizadora, podemos falar delas, também.

Há grupos de feministas que proíbem homens de falarem sobre mulheres. Há este grupo negro se proibindo de se encantar com os clássicos europeus. Há professoras dizendo "Lobato é bom, mas...". Estas pessoas não sabem o que é ler. Não foram fisgadas, ou se esqueceram de como é ser tomada por um livro e deixar de lado o que pensava antes, o que gostava e o que se era. Estas coisas que acontecem ao apaixonado pela beleza no homem, também acontecem com o apaixonado pela beleza no livro.

Só esta paixão livrará aquele que se acha diferente, da prisão da uniformização.

O herói que ninguém viu


A ideia de inferno serve para dar um desfecho à vida. A de céu também. O homem do Antigo Testamento vivia num tempo cíclico: um mal-feito a mim deverá ser vingado ou por mim ou por um descendente meu. Caso fizessem algum mal ao Caim desterrado, o retorno seria sete vezes maior. Um mal contra um descendente dele, seria cobrado setenta e sete vezes mais.

Moisés ouviu uma lei mais amena, de Deus: o preço a ser pago era o mesmo do dano causado, sem multiplicação. Mas ainda se transmitia o mal, por herança. Nós somos da nova aliança, da lei do amor aos nossos inimigos, do "bola pra frente". Nossa história tem acontecimentos inesperados, muitos desagradáveis. Com a ajuda de Deus, perdoamos uns aos outros. O mal ganha contorno.

Quando não há mais Deus, o mal fica sem contorno, espalhado pelo espaço. Em tudo respinga nossa má graça, mau destino, como conta Cioran. O mal incontornável só se dissolveria no inferno. Ou só se contornaria no céu, se Deus ainda existir em algum lugar que não na Terra.

Hoje vi um rapaz se abaixando e levantando, à cata de folhas de amendoeira. Ele não varria, o que daria o mesmo resultado, no mesmo feito. Sua esperança era que o porteiro que assistia ao seu esforço de sobe e desce considerasse o sobe e desce o seu feito. Logo o chão estaria novamente cheio. "Um herói de energia, de limpeza", mesmo que burro.

Tomar o caminho mais longo aumenta o feito para quem testemunha. "Ele não precisava ter se esforçado tanto. Que herói!". A história que esses olhos externos vêem, faz um "Ele". O herói de livros é um Ele. O autor do esforço sem sentido, e o leitor quixoteano, tornam-se Eu. Eu entusiasmado, como diz Sloterdijk. Ou o Eu pode ser feito como o deprimido. "na depressão, o indivíduo esgota-se na tentativa desesperada de querer aquilo que não quer" (Sloterdijk. O Estranhamento do Mundo. p.39).

Os Eus não querem morrer, mas manter-se na honra do heroísmo ou da miséria suportada. Um homem que vive de consertar as paredes, os canos, os fios, o carro de casa, de levar a esposa e as vizinhas ao médico, disse para mim que é muito ocupado, tem feito muito, mas que tal só seria notado se as coisas fossem deixadas por fazer. "Ele morreu, então, pois não está mais aqui quem fazia isso tudo".

Para ele, ele é um Eu, tem entusiasmo. Mas os outros não percebem, não presenciam todos seus feitos. Então o Eu entusiasmado, que quer ser herói como o Herói sobre o qual leu ou ouviu, corre o risco de não ser mais do que um herói para si mesmo, como o Dom Quixote.

Dizendo para mim tudo o que fazia, este homem queria me mostrar que ele é realmente um herói. Não o satisfaz a possibilidade de que Deus o reconheça, e deixe-o entrar no céu (ele acredita mesmo em Deus?). Mas Deus o livre de que o Diabo o tenha notado, e gostado dele!

sábado, 23 de abril de 2016

Obedecer à própria experiência


Em Deuteronômio, Moisés relembra ao povo de Israel todo o percurso deles, a partir do Egito. Moisés quer demonstrar o quanto Javé se fez presente neste percurso. Javé não limitou-se a inscrever os dez mandamentos. A todo momento em que foi necessário, ou sentia privação de algo, no deserto, ou quando deveria atravessar uma cidade populosa e mais forte, Moisés pôde consultar Javé. Com a escravidão daquele povo, no Egito, Javé compadeceu-se.

Em Totem e Tabu, Freud conta sobre os antigos clãs fraternos, organizados em torno dos tabus do incesto e do assassinato do animal totêmico. Estes grupos elegiam uma figura animal ou humana como totem, o protetor místico deles. Em troca, o grupo deveria protegê-lo e obedecer aos tabus. A punição era uma certeza para o violador dos tabus, que sabia que ela viria pouquíssimo tempo após a violação.

No desenvolvimento da humanidade, este costume de obedecer a um totem deu lugar ao de obedecer a deuses. Os deuses têm uma mitologia, uma explicação da sua origem, do porque de serem adorados e do que eles exigem dos homens. Os egípcios divinizaram animais. Os mesopotâmios divinizaram astros. Estes elementos representavam, aos povos que os elegiam como divinos, os benefícios que eles queriam receber no clima, nas plantações, nos confrontos, etc, ou os malefícios que queriam evitar.

Freud explica que o elemento divino é intocável para o homem, por ser portador de uma misteriosa energia que mata quem dele se aproxima. Javé fazia o mesmo com quem se aproximasse da sua tenda, excetuando Moisés. No entanto, Ele se afirmou um Deus presente, que fala às pessoas. Como exemplo disso, Javé lembrou de como forçou o Faraó a libertar o povo, e de como conduziu-os pelo deserto, na forma de uma nuvem, de dia, e de uma coluna de fogo, à noite. Além disso, Javé transmitiu a Moisés todas as regras de convivência social que, se obedecidas, garantiriam com o que o povo não restabeleceria uma situação de escravidão. Também transmitiu todos os rituais de adoração e de sacrifício para expiação de culpas, mostrando como o povo deveria comportar-se diante do Deus.

Moisés diz que Javé é um Deus ciumento, que proíbe que o homem tome qualquer objeto para adoração, mesmo achando que estão adorando a Deus. A explicação disso é que, para Javé, o homem que adora um objeto age como se fosse autossuficiente, pois considera a si mesmo como tendo o poder de fazer um objeto divinizado. Javé diz que este homem está distante dele, que é o Deus presente.

De Javé não se pode criar uma representação porque ele não pode ser apreendido num rosto. Ele é presença, cuja face se vê nas coisas que ele fez. Ao homem que foi escravizado no Egito, Javé proporcionou a experiencia da libertação. A ele foi prometido que alcançaria uma doce terra, para ele e as gerações dele. Javé conduziu os homens pelo deserto, e quis que eles se mantivessem no interior dos seus mandamentos, como numa esfera mantida pela ideia de que estão protegidos no presente, e que terão uma recompensa no futuro.

Peter Sloterdijk explica que cada um de nós vive em uma esfera, um circulo de aconchego e proteção contra o externo. Esta esfera é formada pelas trocas cinestésicas e sonoras travadas entre alguns elementos, sendo que um destes elementos será constituído como um eu, o eu que consideramos nós mesmos. A primeira relação que temos após a saída do útero da nossa mãe, antes mesmo de sermos um eu, é com uma voz interna reconfortante e aconselhadora. Os gregos antigos a chamavam de daimon, que para nós pode ser um gênio ou um anjo.

A Edição Pastoral (1990) da Bíblia, no Deuteronômio, tem a seguinte nota de rodapé: "Javé é o único Deus. Portanto, a vida do homem também deve ser única, expressando uma resposta de adoração ao único Deus. Tal resposta é um amor total, que penetra e informa a consciência (coração), o ser (alma) e a ação (força). Esse amor total deve ser interiorizado, tornando-se a base da consciência (coração)" (Deuteronomio, 6:4). A ação é o que os membros do homem fazem. O ser é o que o homem entende por suas características próprias. A consciência é o que o homem pensa. Ama-se a Deus com este todo. É pelo coração, contudo, que o homem escuta a Javé.

Santo Agostinho falará sobre os homens que não escutam o Deus nos seus corações, atentando-se apenas para o chamado das coisas fugazes deste mundo, que ele acha que existem para satisfazê-lo. Essa autossuficiência afasta o homem de Deus. A identificação com o perecível faz o homem perecer. Já escutar a Deus, no coração, e amá-lo faz com que o homem tenha uma vida única, ou seja, não seja corruptível como tudo o mais no mundo.

Deus conheceu o homem escravizado, libertou-o, prometeu-lhe benesses e cumpriu. Deus é presente como experiência histórica. O que Ele solicita ao homem é que este atente-se para a sua própria experiencia, através da consciência.

A obediência ao totem era desprovida de consciência: era como se o pai primitivo estivesse fisicamente presente para punir os membros da sua tribo. As mitologias de deuses permitem que se simbolize as leis, ou seja, que se tome distância física do legislador e da sua punição, e que se os mantenha como elementos da consciência.

O deus único Javé, apresentado no Pentateuco, solicita ao homem que ele tenha consciência da própria experiência, que ele atente-se para algo que ocorre com ele mesmo. Ainda não se trata de uma experiência de si mesmo. É uma experiência de Deus, e que leva o homem à vida única, no sentido de além do mundo, além do corruptível.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

A falsa inteligência


Um pessoa inteligente pode decepcionar você. É preciso definir as coisas, aqui: o que eu chamo de pessoa inteligente, e o que estou dizendo que pode causar decepção? Como estou falando para você, um público aberto, a ideia de inteligente que trago é a que você utiliza: a pessoa que lê muitos livros. Se eu fosse definir o que é inteligente, se eu fosse dar uma definição minha, eu não diria que é a pessoa que lê muitos livros, mas a que sabe utilizar os saberes que tem para encontrar soluções para problemas.

Confesso que, ao conhecer uma pessoa que lê muitos livros, passa-me pela cabeça que ela é inteligente. Participo do senso comum. Mas rapidamente me decepciono com ela. Decepciono-me quando percebo que a pessoa, apesar de exibir uma riqueza de informações ao falar sobre história, geografia ou literatura, quando fala sobre política, repete o que outras pessoas falam. Pessoas burras. E o que quero dizer com burro? O oposto do inteligente, óbvio, ou seja, a incapacidade de usar os saberes que tem para resolver problemas.

A conversa sobre política é uma das mais desafiadoras, pois não é sobre exibir conhecimento de fatos históricos ou atuais, de dados, de políticos ou mesmo de filosofia política: trata-se de uma conversa onde a disponibilidade de abertura tanto para as ideias de liberdade, quanto de igualdade, estão em jogo. E essa disponibilidade determina se o falante consegue utilizar as informações de que dispõe de forma ideológica ou não.

A ideologia ocorre quando um certo enquadre teórico sobre a realidade é aplicado como um entendimento suficiente sobre ela, geralmente antes que se a analise. É um funcionamento similar a quando uma teoria é aplicada no entendimento de outra teoria, na expectativa de que este entendimento seja suficiente.

Enquanto escrevo este texto penso numa pessoa com quem recentemente conversei. Uma fala desta pessoa serve de exemplo para esta aplicação de um quadro teórico para entender a realidade, sem que seja feita uma análise sobre ela, e também para esgotar uma outra teoria, sem que se procure entender a especificidade desta segunda:

A pessoa falava que o Lula é um bandido, e que ele queria transformar o Brasil em uma Venezuela. Segundo ela, o comunismo não funcionou em lugar nenhum do mundo, pois fez as pessoas viverem com pouquíssimos recursos e sem liberdade. Marx era um vagabundo, sustentado por terceiros e que acabou dando um golpe numa mulher rica, com quem casou. É como o beneficiário do bolsa-família, ela completa, que recebe ajuda do governo para não trabalhar.

Agora comento: Do banditismo do Lula não faz parte a teoria de Marx. Marx era pobre, e recebeu ajuda financeira do seu parceiro Engels. Sua teoria sobre o mercado, incluindo suas noções de alienação e reificação, decorreram da análise de textos de economia política. Ele fez sua filosofia a partir da crítica a esta teoria científica, e também a partir das suas próprias observações e análises acerca das condições de vida e de inserção dos trabalhadores da sua época, ou seja, dos pobres. A teoria de Marx, portanto, tem sensibilidade igualitarista, aponta como humanamente desejável, como o que seria uma conquista da humanidade, a redução das desigualdades que se formavam na relação entre capital e trabalho.

No entanto, apesar de geralmente os militantes de esquerda não o perceberem, a teoria de Marx também tem um acento liberal. Quando ele fala que o trabalhador tem como propriedade a sua própria força de trabalho, e que ele procura vendê-la o mais vantajosamente possível para ele mesmo, mas que essa vantagem vai se perdendo pela combinação de uma grande massa de trabalhadores precisando vender seu trabalho, e de proprietários de fábricas tendo o poder de estabelecer o preço disso, Marx aponta para um ideal de que o trabalhador possa voltar a vender sua força mais vantajosamente para ele mesmo. É um ideal liberal, de fruição de uma propriedade.

O comunismo foi comentado por Marx apenas para dizer sobre o destino do capitalismo, foi tomado por Lênin como devendo se realizar. Lênin criou uma república quase que monárquica, governada por líderes que detinham todas as propriedades do seu território e decidiam que uso fazer delas. Esta experiência resultou em corrupção e em inúmeros assassinatos.

Lula e José Dirceu inspiraram-se no leninismo para fazerem o PT seguirem seu inteiro comando, e para venderem aos militantes e ao restante da sociedade a ideia de que cuidavam dos interesses do "social". Organizaram uma estrutura de roubo do dinheiro - o Petrolão -, para a compra do Congresso - o Mensalão - e para o custeio das propagandas eleitorais da Dilma. Nenhuma Venezuela Lula quis implantar aqui, exceto para o que ele fez seus militantes e opositores mais fanáticos acreditarem.

Minha interlocutora atacou o Lula pelo motivo certo - os roubos - e pelo motivo errado - o comunismo. O ataque dela ao bolsa-família pode sugerir uma visão liberal, quando ela diz que as pessoas não devem receber dinheiro sem que trabalhem, mas ela desconsidera que os beneficiários utilizaram o dinheiro para alavancar seus rendimentos familiares. Muitos, inclusive, puderam sair da condição de beneficiários.

O problema enfrentado por esta política está relacionado a um fato externo a ela: a crise econômica, que aumentou os níveis de desemprego e causou uma redução de consumo dos mais pobres. Dilma antes governou pelo PT do que pelo país. O Bolsa-família foi uma política de inspiração igualitária, com um efeito liberal. Minha interlocutora, imaginando entender da doutrina liberal, na verdade não entende dela, como permanece propositalmente distante da igualitária.

Em uma conversa sobre a corrupção do PT, o desafio é saber avaliar corretamente suas políticas sociais. Aplicar a ideia de que "comunismo é sustento de vagabundo" para entender o bolsa-família é não entender sobre políticas sociais em governos tendentes a serem liberais-sociais, como o que vimos tendo, nem perceber as necessidades da população do Brasil. E usar aquela avaliação contra Marx é apoiar-se na própria insensibilidade social para chegar à ignorância teórica.

Nesta conversa, um ponto verdadeiro ensejou uma porção de pontos falsos. As ideologias que muitos costumam trazer para o campo político fazem com que se tente falar de coisas que não se sabe. Já escutei opiniões políticas de artistas, por exemplo, que me fizeram pensar que eles não deveriam falar sobre política além do espaço das suas letras de música. Mas, enfim, essa é só uma sugestão, porque proibi-los seria anti-liberal da minha parte. O que é justo que eu peça é que desenvolvamos o hábito de estudar, consultar especialistas e ponderar antes de falarmos. Temos tido vontade de opinar sobre tudo, e de nos mostrarmos inteligentes. Mas a velocidade como fazemos isso é maior do que aquela que levamos para nos formar.

terça-feira, 19 de abril de 2016

O servo de um rosto e de uma voz


"Se o seu olho é ocasião de escândalo para você, arranque-o e jogue-o para longe de você. É melhor você entrar para a vida com um olho só, do que ter os dois olhos, e ser jogado no inferno de fogo." (Mateus, 18:9)

Se uma perspectiva que você tem está impedindo-o de pensar, arranque-a de você e jogue-a fora. Pensar é pensar o novo. Uma perspectiva anterior pode ser um apoio nisso, mas ela sempre sairá ao menos um pouco destruída do processo de pensamento (http://ghiraldelli.pro.br/sera-que-sou-original-na-minha-critica/).

Um rosto é uma forma de apropriar-se de uma aparição sem essência (esta ideia é do filósofo italiano Giorgio Agamben. Veja em "Rosto": https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome-instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-8#q=agamben%20rosto), fazendo um eu. Uma ideia é uma forma de apropriar-se do pensamento, que é sem ponto fixo.

"Quando você rezar, entre no seu quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente, e o seu Pai, que vê o escondido, recompensará você." (Mateus 6:6).

Recompensas vêm para quem contém o afã de mostrar o próprio rosto e a própria voz. O rosto e a voz são formas de apreender as inúmeras coisas que vão sendo mostradas. O eu, formado nisso, é inseguro de si e quer exibir-se para outros. O retorno que se tem é o do espelho, que apenas diz sim e não, está bom ou mau.

A recompensa dada por Aquele que é todos os rostos e todas as vozes é ser visto como novo, e dizer o novo. Deus vai no escondido, naquilo que ainda não arrumamos para exibir, para daí retirar novos eus. O resultado disso não é para os olhos dos outros homens, e nem para os olhos do próprio eu.

Deus vê o não apreendido, sem precisar apreendê-lo. Sem precisar que seja dito em voz alta ou apareça em um rosto. O eu arruma uma fala e um rosto para comunicar algo, pretende um resultado prático. Não se tem intenções com Deus. Sendo todos os rostos e todas as vozes, Ele é não apreensível. Está além do que qualquer um consegue domar para exibir como eu.

A um texto alguém dá uma resposta pronta. A uma imagem, faz uma cara-resposta pronta. Está ocupado com o que está exibindo. Dizer "não sei, vou me segurar, pensar" é frear o afã de apropriar-se das exibições e formatá-las num eu. É ser visto estando paralisado, absorto.

Após pensar, será por meio de um eu que dirá alguma coisa. Mas esta coisa não será a mesma que dizia antes.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Esquerda e direita sem pré-enquadramento


Janaína Paschoal, em entrevista ao Paulo e à Fran, no Hora da Coruja (https://www.youtube.com/watch?v=VGR6Db1QGRs), disse ser favorável à política de cotas étnicas implantada pelo Lula, em seu primeiro mandato. Entretanto, ela prossegue, a forma como o governo propagandeou esta e as outras políticas para minorias que implantou criou um clima de "nós" contra "eles".

Desde o surgimento destas políticas, circula, principalmente nas redes sociais na internet, a opinião de que estas políticas dividem o país e que, portanto, elas mais estimulam o preconceito do que o diminuem. A estas opiniões também circulou a resposta de que o preconceito já existe, e de que a política de cotas, por exemplo, era ou uma reparação histórica, ou uma inclusão educacional. Paulo Ghiraldelli Jr. escreveu inúmeras vezes (aqui está um destes textos: http://ghiraldelli.pro.br/cotas-etnicas-de-novo/) explicando o erro daquelas justificativas pró-cotas, e dizendo que esta política é de integração social, de inserção de pessoas de cor diferente em um espaço homogeneamente branco, e que esta convivência com o tempo reduziria o preconceito.

Junto a cada opinião sobre esse assunto, coladas a elas, vinha a ideia de que ela se refere a determinada posição política. Parecia fácil: ser favorável às cotas é ser de esquerda, ser contra as cotas é ser de direita. Historicamente, a esquerda é a posição atenta às demandas e às necessidades sociais, e a direita é atenta às demandas e necessidades dos "setores produtivos". Na defesa ou no ataque às cotas, o opinador vê a si mesmo, e é visto pelo seu leitor, como sendo de esquerda ou de direita.

Paulo Ghiraldelli Jr. sempre se colocou antes como filósofo do que como tendo posição política a priori. A posição de Janaína, expressa na entrevista, dificulta que se a coloque à esquerda ou à direita. Bem, eu diria que esta dificuldade é aparente. O que se segue explica isso.

As militâncias que se identificam como sendo de esquerda, no Brasil, ao defenderem a política de cotas do governo, frequentemente também afirmam que são contra o mérito (https://www.youtube.com/watch?v=sf6xBMNu774). Acusam o mérito como sendo um valor excludente e da direita. As posições contra as cotas, declaradamente à direita, por sua vez, confirmam as posições favoráveis, mas com o sinal invertido: esta politica interfere no mérito, que deveria ser o norteador do ingresso nas universidades. Como é possível, então, dizer-se, junto de Janaína, favorável às cotas e ao mérito?

Bem, para conseguir isso é preciso defender os interesses sociais ser alinhar-se à esquerda. Mas com esquerda estou apontando para os partidos e os militantes que se apresentam, hoje, com esta posição. Não é possível apoiar o discurso deles, sendo também favorável ao mérito. Então só é possível se, antes de se alinhar aos "defensores do social" que estão aí, buscar os interesses sociais de forma crítica. Não é porque os negros precisam entrar rapidamente na universidade que se vai abandonar o mérito.

Quanto aos militantes e partidos que se dizem de direita, também não é possível enquadrar-se em seu discurso se se defende as cotas. É preciso analisar as universidades e a sociedade brasileiras para se perceber que defesa do mérito, do reconhecimento do merecimento do esforço individual, não exclui a necessidade de que os brancos que frequentam a universidade, justamente para estarem em uma "universidade", precisam do aprendizado com a convivência com o negro.

Os partidos e militantes que se dizem de esquerda ou de direita revelam-se carentes de capacidade de análise. Mas eu não diria que sejam carentes de racionalidade. Hitler tinha muita racionalidade, e nenhuma emoção. Como Janaína lembra na entrevista, a emoção deve dirigir a razão. Isto contraria a ideia de que nossos pensamentos e decisões devam basear-se na razão e excluir a emoção, pois ela turvaria nossa capacidade de sermos racionais. Em nome disso a humanidade conheceu autoritarismos sangrentos que se diziam tanto à esquerda como à direita.

A emoção, o sentir o que está acontecendo ao próprio redor, o falar com as pessoas e ter empatia pelas sensações delas, a capacidade de identificação com suas experiências, deve ser o orientador da razão. É porque eu sinto que as pessoas e os animais não podem sofrer crueldade, e que devam ter totais oportunidades de se desenvolverem, que apoiarei políticas que favoreçam isso. E é porque eu me sentiria aviltado se um estudante aplicado não ingressasse na melhor universidade, ou um competente e original pesquisador não conseguisse bons financiamentos, que eu só posso apoiar a consideração do mérito no concedimento destes benefícios.

Penso porque sinto, não penso sob um esquema programado de partido. Por ser sensível às necessidades sociais, posso ser de esquerda para além daqueles que se dizem assim, pois estes só pensam, e pensam curto, dentro enquadramento das suas próprias posições. E posso defender os direitos individuais de quem produz conhecimento e riqueza, sem me dizer como sendo de direita, pois os que se identificam assim pensam da mesma forma fria e pré-programada.

É por estas e por outras que devemos devemos desvincular a esquerda de partidos e militâncias com velhas ideias totalitárias. E parar de achar que, para defender os direitos individuais, é preciso ser insensível com as questões sociais. É uma pseudo razão pensar a esquerda e a direita desta forma.


P.s.: Este texto requer que o leitor seja capaz de pensar além de esquemas já aprendidos.