quarta-feira, 27 de julho de 2016
Mais do que os olhos podem ver
"Precisamos de um líder que seja digno das promessas que faz às crianças, dos seus sonhos mais altos."
Há oito anos, Michelle falou em público, pedindo votos para um homem que ela conhecia bem: doce, capaz e persistente. Barack demonstrou ser tudo isso. Agora, Michelle, uma teacher, veio assegurar-se de que estávamos vendo o mesmo que ela. E de que víamos o que acontecera conosco.
O homem que Michelle conhecia tornou-se de todos. O olhar generoso e alegre, de Barack, pôde cobrir a América. Alguns comentaristas de televisão um dia questionaram a nacionalidade e a fé de Barack. Mas isto não chegou a abalar a fé das filhas dele e Michelle, pois a mãe estava lá para mostrar o que elas já sabiam.
O novo discurso de Michelle é o de uma mãe da nação: a mãe explica o sentido do que o pai faz; esmiuça, esclarece os mal-entendidos e apazigua os mal-estares. A mãe restabelece a fé das crianças no pai. E a fé, sabemos, é o único modo de vermos mais do que os olhos podem ver.
Os anos de presidência de Barack foram os anos centrais no desenvolvimento das suas filhas. Ele tinha o dever de ser um grande presidente, se quisesse ser um grande pai. E ele seria um grande presidente se pudesse ser um grande pai.
O exemplo de Barack, para suas filhas, o que ele mostrava para elas, foi o mesmo que ele mostrou para a América (para todas as Américas). E Michelle agora nos fez ver os últimos anos da casa dela e do nosso país.
Em situações de crise, o líder reúne-se com as diferentes pessoas e conversa. Em condições de desigualdades as mais diversas, o líder entra para reequilibrar, não para deixar alguém para trás, pois sabe que as diferenças é que fazem o todo ser forte. Em situações de conflitos, o líder se informa, reflete e toma decisões firmes, e baseadas em princípios.
Um líder, enfim, preocupa-se se o país que está deixando para as crianças é mais próximo dos sonhos delas do que dos objetivos colocados por especialistas do déficit, da miséria, da falta. As crianças olham para si mesmas e o mundo. O tanto de desconhecimento, de curiosidade, que elas têm, é o tanto que elas são capazes de esperar coisas maiores e melhores. A criança olha um docinho e imagina um doce grande. Ouve uma promessa de passeio e imagina uma grande viagem. Ela olha para algo e lhe vem uma coisa muito melhor do que aquilo.
Esse olhar generoso a criança também oferece a quem está mal. A criança não vê as coisas como estando determinadas, mas sempre como podendo ser mais do que são. Essa generosidade permanece sob a forma de os princípios que uma pessoa tem: o ser honesto, o respeitar alguém, o não jogar lixo no chão da rua são regras que a pessoa coloca para si justamente porque um dia ela esperou coisas maiores e melhores do que o que via à sua frente.
Um papel de bala no chão é um mal maior do que um pedaço de plástico que precisará ser varrido por um gari, pois entupirá os esgotos e causará uma enchente catastrófica. Essa ideia infantil permanecerá como uma impressão ou uma fé, no adulto. Um adulto assim é atento ao que acontece, e ao mesmo tempo tem um olhar mais amplo sobre isso.
Michelle chama nossa atenção para as crianças que estão sendo educadas. Ao fazer isso, insere-nos na sala de educação infantil: por que não querer o que ela está dizendo? Por que não posso querer esse mundo melhor?
Trump e Bolsonaro são revólveres: você só via sua própria insatisfação, alguém apontou o motivo dela e te ofereceu a solução. Basta apertar o gatilho. Afastam-se os diferentes, limpa-se a vida social dos objetos nefastos, e sobra o homem seguro num cenário onde nada acontece. Então este homem arrumará outra coisa para odiar e querer deletar do mundo, pois ele não consegue imaginar nada, precisa de objetos à frente para serem apontados como maus.Sua visão é estreita. Ou é cansada, vê tudo igual e, geralmente, tudo ruim.
Eis uma nação de gente com medo do vizinho. De crianças ensinadas que em todas a esquina há bandidos. Crianças que tiveram os olhos generosos roubados por homens que lhes impuseram seus olhos paranoicos. De adultos acostumados a falarem em necessidades e dívidas, e a pleitearem uns dos outros, e do Estado, atendimento ou vingança por atendimentos não prestados.
A lição da teacher une a casa e o país: o bom exemplo de um é o bom exemplo do outro. Não é possível haver um presidente que roube, e que seja um homem que durma em paz. Menos possível, ainda, se ele está publicamente desacreditado, e apenas grupelhos o defendem.
O líder firme e doce tem a nação ao seu lado, e justifica a admiração dos próprios filhos. É visto por todos como bom. E como tendo tudo para ser melhor. Tal é a fé que se tem nele.
O homem que abandona seus princípios, aquilo que aprendeu quando criança, será ou o homem da "rápida resolução dos problemas" ou o homem das "ilegalidades justificadas". Ambos se alimentam das mágoas do mundo, e apresentam-se como magoados-mor e, por isso, vingadores.
Homens assim fazem a própria família ser envergonhada e perseguida junto deles. E em lugar nenhum eles são vistos como estando além da mediocridade e da baixeza. Bolsonaro e Trump têm cara de baixos, indignos, e de que vivem esbravejando por causa disso (no caso de Bolsonaro, com uma má dicção).
Os Eua, com Barack, viram-se de forma mais leve do que se viam no governo Bush. Não houve animosidades internas, e o presidente jamais chegou a ter um índice expressivo de rejeição. Mas essa paz não se deu com Barack evitando mexer em grandes empresas e intervir em líderes de outros países. Barack fez o necessário para melhorar o equilíbrio social e econômico do país.
Há oito anos o clima é de paz, e isso permitiu aos americanos serem um pouco mais como crianças, ou seja, a quererem mais do que os olhos podem ver: a quererem o melhor.
terça-feira, 26 de julho de 2016
Sobre a vontade de ter poder
Você simplesmente gosta de ir na casa daquele amigo. Senta no sofá e olha para as pessoas de lá, sabendo o que elas vão falar. Comenta o que eles já sabem que você vai dizer.
Mas é gostoso, são aqueles personagens novamente. Você tem o seu jeito, seu amigo tem o dele, a mãe dele tem o dela, a cachorra tem o dela. Ela gosta de se enfiar entre vocês, no sofá, de início arranhando o tecido, depois se aquietando. Ela chega, é um show, depois fica ali, como bichinho.
"Não repara a bagunça" é o que te dizem para fazer você se sentir em casa. Mas um dia você não o escuta. Você não está no clima, e repara em tudo. Olha para as coisas, estranha a opinião da mãe do amigo, a cachorra estragando o sofá, a mesmice e o jeito meio bobo do amigo.
Seu olhar é como o de alguém de fora, alguém que não tem mais familiaridade com eles. Caso você diga "o que está pensando", mesmo que você receba uma resposta que não te peça para se explicar, você continuará falando "o que está pensando". Não poderá fechar a boca, pois quem começa a falar tem que continuar.
Assim, você continuará distante daquela casa. Se tiver sorte, a mãe do amigo pensará consigo mesma:"hoje ele está precisando botar algo pra fora. Deixa ele."
Caso você não diga "o que está pensando", e permaneça escutando, terá chances de ver algo bom naquilo, e se desarmar. Verá que mais valia a pena ter deixado a arma na soleira da porta, pois com ela não se pode ouvir nada e fica-se propenso a falar logo.
Quem carrega uma arma fica surdo. Quem carrega uma certeza fica surdo.
Quem "fala o que pensa" diz algo que está martelando na cabeça, uma ideia fixa. O que ele fala não provém de um pensamento. Já quem pensa fica lacônico, pois está escutando o ambiente e a si mesmo. Fica caladão, mas sem que ninguém repare, pois está com brilho nos olhos. Os olhos brilham, quando estamos interessados, receptivos.
A "vontade de potência" de Nietzsche é vontade de expandir-se, ir além. Não é vontade de ter poder, vontade de influenciar as coisas e a vontade dos outros. Nietzsche não falou de um princípio de socialização.
A pessoa interessada em ter poder mostra-se contida, um "exemplo de seriedade e educação". Pense no Hitler. A pessoa com vontade de potência ri. Vai direto para o sofá do amigo e recebe quem vem até ele.
Um cara esticado no sofá da sala enquanto as visitas chegam. Ele sem camisa. Roncando ou comendo amendoim. Os mais chegados sentam no braço do sofá, na ponta da almofada, no chão em frente ao cara. Usam o corpo dele como apoio para um prato. Próximo do short, até.
Muitas vezes eu sentei na cadeira da sala, guardando raiva do folgado. Neste texto estou admitindo que um folgado é coisa de um lar.
O controlador se contém, esconde seus interesses. Faz sugestões para que os outros também se contenham. Quando todos estiverem contidos, educados até à cachorra, o controlador se sentirá com poder.
A maioria, porém, apenas tem momentos assim.
Brigamos com meio mundo, dando a entender que fazemos melhor, que em nossa casa não tem daquilo (nessa hora fala-se em "minha casa" e em "sua casa", não em "mi casa, su casa"). Voltamos para a nossa própria casa e continuamos brigando com os objetos, arrumando tudo de uma vez só.
Mas isso passa assim que você senta na sala. E levanta-se, vai até a cozinha, pega um copo, enche, e volta para o sofá da sala. E deixa o copo em qualquer canto.
domingo, 24 de julho de 2016
O amor por Davi
O corte ainda estava quente. A cabeça de Golias ainda estava na mão de Davi quando Jonatas o conheceu. Desde o primeiro momento, Jonatas amou Davi. Amou-o como a si mesmo.
Saul, o pai de Jonatas e ainda rei de Israel, vendo que Davi se saía bem em todas as expedições militares para onde era enviado, estabeleceu o jovem como chefe dos homens de guerra.
Toda a tropa e os ministros de Saul estimavam Davi. Saul vinha, contra ele, alimentando um crescente ódio. Isto começou quando Saul e sua comitiva haviam retornado da vitória sobre os filisteus, aquela em que Davi havia derrotado Golias. As mulheres de Israel receberam-os alegremente, cantando "Saul matou mil, mas Davi matou dez mil."
No dia seguinte, Saul fora apossado por um espírito mau. Justamente Davi era o encarregado de acalmá-lo, tocando harpa. "Vou cravar Davi na parede", pensou Saul, e contra o jovem atirou a lança. Não o acertou.
Estes acessos ocorriam a Saul desde que Javé afastara-se dele, ao tê-lo desobedecido: no ataque aos amalecitas, ao invés de exterminar todos os homens, mulheres e animais, Saul poupara o rei Agag e os melhores animais. Almejara, com isso, satisfazer suas próprias ambições.
As vitórias de Davi, agora como comandante, demonstravam que era sobre ele que agora estava Javé. E Saul o invejava e odiava por isso.
Um dia, Saul disse a Davi que que lhe daria sua filha Merob como esposa. "É melhor que ele seja morto pelos filisteus, e não por mim.", era a sua intenção. Davi estranhou a oferta do rei, visto que ele não era ninguém, seu pai não tinha importância em Israel.
Merob, porém, acabou sendo entregue a outro homem. Micol, a segunda filha de Saul apaixonara-se por Davi. Isto convinha ao plano de Saul.
Saul mandou os ministros dizerem a Davi que o rei lhe estimava. Davi respondeu-lhes que era um homem pobre, sem recursos. Os ministros levaram a resposta de Davi a Saul, que mandou-lhes dizer a Davi que o rei não se importava com dinheiro. A fim de expor Davi ao perigo, ele deveria pegar cem prepúcios de filisteus.
Davi considerou justa esta condição, para ser genro do rei. Davi matou não cem, mas duzentos filisteus. De cada um segurou o pênis, esticou-o e cortou a pele que recobria a glande.
Davi sempre vencia as batalhas. O povo lhe amava, assim como a filha de Saul. Saul queria matá-lo, e Davi finalmente percebeu isso quando, por uma segunda vez, tocava harpa para o rei e viu voar perto de si a lança sedenta de sangue. Micol, sua mulher, disse-lhe para fugir.
Micol pegou uma estátua, deitou-a na cama, sobre sua cabeça pôs uma pele de cabra e sobre o corpo um manto. Aos emissários de Saul, que vieram buscar Davi, Micol disse que Davi estava doente.
Saul ordenara que Davi fosse trazido até ele com cama e tudo. Ao constatar que na cama não havia Davi, Saul questionou a lealdade de sua filha. "Ele me ameaçou, e disse que me mataria se não o deixasse partir."
Davi foi encontrar-se com o profeta Samuel, aquele que um dia apontara Saul como rei, mas que, ao ver sua desobediência para com Javé, dele retirou o dom de ter a companhia de Deus e o transferiu a Davi. Davi e Samuel esconderam-se num convento.
Saul ficou sabendo disso, e enviou emissários para prenderem Davi. Os emissários encontraram os profetas em meio a um transe. O espírito de Javé também caiu sobre os emissários, inserindo-os no transe. Outros dois grupos de emissários Saul enviou, e estes também foram tragados.
Saul foi pessoalmente ao convento. Também ele foi tomado pelo espírito de Javé: tirou a roupa, deitou-se nu no chão, e assim ficou o dia e a noite inteiros, entregue à vontade de Javé.
Davi novamente fugiu. Encontrou-se com Jonatas. A ele perguntou que mal havia feito ao rei, para que este quisesse matá-lo. Jonatas assegurou-lhe que seu pai não movia nenhum plano contra Davi, pois de outro modo ele saberia. Davi disse que Saul sabia bem da afeição existente entre eles.
Jonatas disse a Davi que sondaria seu pai, a respeito de Davi. No momento da refeição familiar, Saul estava à mesa com seu tio Abner e seu filho Jonatas. O lugar de Davi estava vazio. Isso repetiu-se por dois dias seguidos.
"Por que o filho de Jessé não veio nem ontem nem hoje para a refeição?", enfim perguntou o rei. Jonatas disse ao pai que Davi fora a Belém, para um festividade em que sua família participaria. Saul gritou contra o filho: "Filho de transviada! Pensa que eu não sei que você está do lado do filho de Jessé, para sua vergonha e para vergonha da nudez de sua mãe?" E contra ele atirou a lança. Jonatas escapou ileso.
O terror de Saul completava-se com seu filho estando ao lado do seu inimigo. Seu desespero total vinha com a grande afeição de Jonatas por Davi.
No dia seguinte, Jonatas foi encontrar-se com Davi. Ao se verem, os dois se abraçaram e choraram bastante. "Nós juramos um ao outro em nome de Javé. Que Javé seja sempre juiz entre mim e você, e entre os meus e seus filhos.". Hoje, pessoas que se sentem mal-vistas pelos outros dizem "só Deus pode me julgar".
A história da perseguição de Saul a Davi continuaria.
Davi era jovem, vitorioso como guerreiro e amado por todos. Era admirado e amado por outro jovem, Jonatas que, por algum motivo, não saía para viver com ele.
Pátroclo e Aquiles, na Ilíada, também eram os melhores amigos um do outro. Aquiles era o ideal de homem e de lutador para Pátroclo. Aquiles era seu protetor, professor e maior amante.
Na Grécia antiga, um homem mais velho cuidava e ensinava seu trabalho a um jovem. Esta era uma relação de ensino e também homoerótica. A antiguidade judaica não tinha motivos para não conhecer isso.
No Levítico, Javé, por meio de Moisés, advertiu: "Não se deite com um homem, como se fosse com mulher: é uma abominação". No Antigo Testamento, o homem devia depositar suas sementes em sua mulher, ou em suas mulheres, para constituir sua linhagem, fazer seu nome prosseguir depois que ele morresse.
A Bíblia não explorará a especificidade da relação entre os guerreiros, como fez a Ilíada. Entre um grande guerreiro e seu aprendiz, a relação não era como a de um homem e uma mulher. Pelo contrário, não poderia haver afeminação, submetimento de um pelo outro. Entre os homens havia sobretudo o cultivo da masculinidade e da expertise. No caso de Davi e de seu exército, da expertise guerreira.
Jonatas amou Davi "como a si mesmo". Freud falará que o homossexual é alguém com investimento grande de amor por si mesmo, e a partir daí amará homens, que são como ele próprio. À parte da ênfase sexual que damos para o amor, reconhecemos que um amado nos inspira naquilo em que queremos nos tornar.
O amor de Jonatas por Davi era um anseio para entregar-se a este jovem semelhante a ele, mas que levava uma vida excitante. E que a vivia com talento e beleza. Davi era tudo o que Jonatas poderia almejar para si mesmo.
P.s.: Esta leitura de Davi e Jonatas não é uma "distorção da história". A Bíblia tem histórias que inspiraram os Judeus e os cristãos, e o fazem segundo cânones de leitura. Mas muitas interpretações são possíveis, visto que são textos de caráter literário. Davi é tradicionalmente conhecido como um grande rei e grande guerreiro. Contudo, entre nós é possível uma leitura no sentido da ampliação das características e das possibilidades deste personagem. É a época da diversidade, do indivíduo que pode narrar a si mesmo de diversas formas (saiba mais sobre isso: http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/homossexualidade-heroica.html). Isto poderia ser problemático se pensarmos que um guerreiro ou um rei só podem ser donos de uma história unívoca, como se devessem guardar uma "Verdade". Mas um rei ou um guerreiro não podem ser assim, se forem ricos personagens. Não se forem personagens de magníficos livros, como o foram Davi e Aquiles. Portanto, ao invés de repor uma antiga visão sobre Davi e a bíblia, procure ler de outro modo.
sexta-feira, 22 de julho de 2016
Médico não chora
Alguém que estuda cozinha saboreia melhor pratos, do que outra pessoa. Alguém que estuda pintura tem a melhor apreciação para quadros. Um dentista repara mais na perfeição de um sorriso. E em dentes amarelados e tortos. Um médico curte ver alguém saudável. E lamenta ver alguém muito doente.
As opiniões sobre o que seja uma comida boa variam pouco. Qualquer pessoa poderia concordar com a opinião de um gourmet, ou dizer que o prato dele é o melhor. As opiniões sobre o que seja um belo quadro talvez variem mais do que as opiniões sobre uma comida boa.
Muitos diriam que um outro quadro, uma hq ou até uma capa de disco são mais bonitos do que o apontado pelo especialista em pintura. O que faz um belo sorriso é o rosto que o contém, se está com ou sem batom, as expressões que a boca faz e as palavras que ela fala.
Muitas coisas levam nossa percepção de sorrisos para um lado ou para outro. Neste assunto, a opinião estética do dentista acaba sendo pouco levada em consideração. Ah, mas o dentista avalia um sorriso não só pela estética, mas pelo que ele demonstra de correção e também de saúde dos dentes. Quando a isso, ninguém compete com o que o dentista diz.
Mas, quando falamos de um elemento do corpo do homem, o que é falado se diversifica: o brilho intelectual, atlético, moral e físico. E a maneira como um órgão ou o organismo funcionam, realizando bem suas funções ou sendo capaz de manter a vida do corpo. O que é dito por pessoas que estudam o funcionamento e a saúde do organismo é considerado não como opinião, o que eu ou você podemos dizer, mas saber técnico.
Um cardiologista pode me dizer, enquanto andamos no shopping, que uma blusa na vitrine está cheia de corações, sem que eu ache que ele está falando do órgão com o mesmo nome. Ali ele não é cardiologista. Mas em seu consultório o que é nomeado de coração, ou de bom coração, tem um sentido específico.
Um coração que a mulher desse cardiologista desenhe para ele, no meio de uma mensagem, deixa-o comovido. Ele sorri, ele chora, ele retribui. A imagem do coração de um paciente o deixa atento. Ele não se comove, e sua ação é uma só, técnica.
Os saberes técnicos, especificamente biomédicos, sobre o organismo humano, levam a discursos e a ações específicos e sem a variabilidade que outras pessoas podem demonstrar quando tratam do "humano".
Uma pessoa que esteja morrendo será vista, chorada e falada de uma forma pelo evangélico, outra pelo católico, outra pelo indígena, outra pela criança da cidade, etc. E cada um tomará uma atitude diante dele. Já o evangélico, o católico, o indígena ou a criança que sejam médicos, se forem realmente médicos, farão uma mesmíssima intervenção.
Um médico que trabalhe em CTI diz não se sensibilizar mais com a morte de alguém. Ele passa os dias vendo organismos entrando e saindo, muitos saindo sem vida. Preocupa-se ele em estar perdendo a capacidade de "ser humano". Cachorros permanecem, tristes, nos locais onde viviam seus donos, depois que estes morrem.
Um filho despede-se de sua mãe, mas despede-se apenas da materialidade dela, mantendo-a consigo, na forte experiência que ele ainda tem dela.
O médico de CTI não quer perder essa vinculação emocional e espiritual com os seus queridos, ou com pessoas estranhas que bem poderiam ter se tornado seus queridos. Seria como se ele também perdesse a ligação emocional e espiritual com todos os outros homens.
Os pacientes continuam saindo da CTI, alguns mortos, outros vivos. E o médico sem chorar pelos primeiros ou comemorar pelos segundos. Ele olha para aparelhos, exames e papéis. Estaria ele se tornando um aparelho a mais, apenas um órgão naquele organismo que é a CTI?
Lá não é local de realizar ações diversas, as intervenções devem ser precisas e suficientes com os seus objetivos. Os corpos que lá adentram ou são de cuidadores ou de doentes de "funções vitais".
O CTI, junto de todos os que passam por ele, são a plena realização de um saber especializado. Lá não há pessoas.
Se um médico de CTI diz estar preocupado em "não ser mais humano", responda que ele assim diz por estar dentro de um CTI, ou ainda vestido de médico. Ele não está em casa, de shorts e sem camisa.
Ele não está com sua mulher e sogra num restaurante. Ele não está olhando para alguém a quem acabou de conhecer, encantado com a conversa dele.
A morte súbita de alguém, nessas situações, traria o desespero dele. O momento de indecisão. Faria o homem chorar. Assim espero.
Só depois é que ele colocaria a roupa de médico.
quarta-feira, 20 de julho de 2016
A cintura de Davi
Davi entrega a cabeça de Golias, na obra de Caravaggio. Davi sente a mão pesada, por ter matado. Mas expressa ter feito o que era necessário. Está contido, mas orgulhoso.
Golias tem os olhos totalmente perdidos: não sabe o que ocorreu, nem o que está ocorrendo. Sua expressão congelou-se no instante em que a morte lhe acertou.
O rosto de Golias é o de Caravaggio, especialistas em pintura dizem. O pintor é o personagem morto, e faz Davi entregar a cabeça dele.
Saul era rei de Israel. Ele deveria conduzir o exército de dez mil homens de infantaria e duzentos mil de Judá até Telém. Samuel, que havia ungido Saul como rei, lhe diz "Ataque e condene ao extermínio tudo o que pertence a Amalec. Não tenha piedade: mate homens e mulheres, crianças e recém-nascidos, bois e ovelhas, camelos e jumentos." (Samuel, 15:3).
Saul foi e matou os habitantes de Telém, os amalecitas. Mas não matou Agag, rei deste povo. Também deixou de matar as melhores ovelhas, cordeiros e vacas.
Javé, então, falou a Samuel que estava arrependido de ter escolhido Saul como o rei. Saul justificou-se a Samuel, dizendo ter poupado aqueles animais para fazer um sacrifício a Javé.
"Por que você não obedeceu a Javé? Por que se apoderou dos despojos, fazendo o que Javé reprova?", "O que é que Javé prefere? Que lhe ofereçam holocaustos e sacrifícios, ou que obedeçam à sua palavra?", Samuel pergunta a Saul.
Samuel fez vir Agag, e o degolou. Javé entregaria o reinado a outra pessoa. Ordenou a Samuel que enchesse a vasilha de óleo e procurasse a família de um homem chamado Jessé. Javé apontará o novo rei a Samuel.
Jessé apresentou a Samuel os seus filhos. Ao ver Eliab, Samuel pensou que aquele seria o escolhido de Javé. "Não se impressione com a aparência ou a estatura dele. Não é esse que eu quero, porque Deus não vê como o homem, porque o homem olha as aparências e Javé olha o coração", disse-lhe Javé.
Entra Abinadab, e Samuel também diz não ser ele o eleito. Jessé fez entrar sete filhos seus, mas não era nenhum deles. Samuel pergunta a Jessé se ali estão todos os filhos dele. Não. O menor estava pastoreando ovelhas. Fizeram-no vir e entrar.
Era ruivo e belo. Javé mandou Samuel levantar-se e ungir Davi. Sobre o rapaz o espírito de Javé agora estava. Enquanto isso, Saul começa a ser perturbado por um espírito mau enviado por Javé. Os servos dele saíram a procurar um harpista para, ao tocar, acalmar Saul.
Um dos servos diz conhecer um filho de Jessé que é belo, bem articulado e bom músico. Chega Davi, e é apreciado por Saul, que o toma como seu escudeiro. A cada crise de Saul o jovem responde com bela e apaziguadora música.
Filisteus e israelitas iriam se enfrentar. Um vale separava ambos os exércitos. Do exército dos filisteus adiantou-se um guerreiro de três metros de altura. Seu colete pesava mais de cinquenta quilos. Pesava seis quilos a ponta da lança de Golias.
Golias se disse filisteu, e chamou os inimigos de escravos de Saul. Mandou que escolhessem um adversário para ele. O derrotado faria com que seu povo fosse escravo do outro povo. Os israelitas tremeram.
Davi era um pastor de ovelhas. Seu pai lhe pediu para levar alimentos aos irmãos mais velhos, que estavam acampados diante dos filisteus. Ao chegar na linha de batalha, perguntou aos irmãos se eles estavam bem.
Davi estava presente no momento em que Golias fizera aquele desafio. Eliab, irmão de Davi, indagou a Davi sobre o que ele fazia ali, tendo deixado o trabalho de lado para assistir a luta.
Apresentando-se a Saul, comandante dos israelitas, Davi disse-se protetor de seu rebanho de ovelhas. Leões que pegassem uma delas eram por ele agarrados pela juba e mortos a pauladas. "Esse filisteu incircuciso, que desafiou o exército do Deus vivo, será como um deles."
Davi disse que Javé estaria com ele, para livrá-lo das mãos do gigante. Tentando mover-se com a armadura, Davi despiu-se. Pegou o cajado, cinco pedras lisas e a funda.
Golias riu de Davi. E sentiu-se ultrajado, como se sentiria um leão: "Será que sou um cão, para você vir ao meu encontro com um pedaço de pau?". Davi disse que Javé não luta com espadas, e que entregará os filisteus a ele.
Golias se aproximou devagar. Davi correu, ajeitou a pedra na funda, atirou-a na testa do gigante. A pedra afundou-se e derrubou seu alvo. Davi pegou a espada do gigante e decepou-lhe a cabeça.
Os filisteus tentaram fugir, mas foram perseguidos e dizimados pelos israelitas. Davi levou a cabeça de Golias até Saul.
Caravaggio viveu na miséria, como outros artistas de sua época (de qualquer época). Chegou a ser chamado para fazer obras com temas bíblicos. Com essas obras, ganhou algum dinheiro e prestígio.
Comentadores da vida de Caravaggio dizem-no violento. Uma vez, numa disputa amorosa, ele desafiou o rival para um duelo de espadas. A luta terminou com a espada de Caravaggio enterrada na virilha do outro.
A cabeça de Golias seria a sua própria, sendo entregue. Caravaggio matou, era um bruto, e a delicadeza fraca da lei o apanhara. O bruto estava perdido, com a cabeça pega pela pequena mão do rapaz seguro de si e amparado por Javé.
Caravaggio foi um pintor sofisticado e um vagabundo. Atualmente fazemos inúmeros vídeos, cada um na intenção de expressar algo. Caras, bocas e músicas são preferidos mais do que textos ou pinturas. A imagem em movimento promete ter um sentido movente, significar mais coisas do que a imagem parada.
Uma imagem de Caravaggio dá um longo texto. Nos temas bíblicos o pintor encontrou o muito sendo dito em poucas palavras. Davi e Golias é uma história da Bíblia e uma história de Caravaggio.
Nenhum leão pegava a ovelha de Davi. Javé sempre esteve com ele. O pastor Davi protegeu suas ovelhas da escravidão. Cortou aquele que quis apossar-se delas.
Ele, um jovem magro, mas bonito como um deus. Em nada altivo, preso ao chão feito uma ovelha. Um homem ou um exército, por maior que fossem, não tinham o direito de pegá-lo. Também estavam no chão, embora não vissem isso.
Só Javé estava acima de Davi, e o protegia porque Davi via isso. Para Davi só existiam as ovelhas e Javé, as primeiras para serem cuidadas por ele com a ajuda do segundo. Ele mesmo era protegido.
Davi não era um homem que buscasse se destacar do seu exército, para lançar desafios. Golias, não fosse tão grande, teria passado uma vida de brigas, para se destacar dos outros. Seu tamanho facilitou que ele fosse um bruto sem disputas. Ele vencia só ao ser visto. Apanhava seus inimigos pelo tremor que causava.
Golias teve a cabeça cortada e trazida pela mão de Davi, à altura da cintura do jovem. Ao rés do chão, os olhos do gigante se perdiam.
Ao se colocar na mão de Davi, Caravaggio posicionou-se abaixo de uma lei. O que demonstra isso não é apenas a sua cabeça sendo entregue, mas a sua cabeça estando na altura da cintura de Davi. Acima dele agora estava a expressão serena e severa de Davi. E acima de todos estava Javé.
Reis, brutos, todos os que se considerassem grandes seriam carregados pela mão de Davi, trazidos à real estatura deles. E ao fazer isso, Davi se punha como mediador entre eles e quem está acima de todos.
O Antigo Testamento fala que não pode haver homem maior do que homem, e que para que isso ocorra deve-se obedecer a Javé. Não estranhe, pois não é necessário tomar Javé como um homem, e como ou opressivo ou um privilégio pessoal obedecer a ele.
Você pode tomar Javé como um princípio de vida, uma ética. Esta é uma visão desumanizada de Deus, e que coloca ao homem a questão da sua estatura e limites.
domingo, 17 de julho de 2016
Homem: criatura e criador, criador e criatura.
Ouvi de minha mulher uma história engraçada: um garoto perguntou à mãe de onde vem o homem. De Adão e Eva, respondeu ela. O garoto diz ter ouvido do pai que o homem veio do macaco. A mãe responde que a família do pai dele é que veio do macaco. A dela veio de Adão e Eva.
Peter Sloterdijk, em seu livro "Regras para o Parque Humano", comenta o que Heidegger diz na "Carta sobre o Humanismo" sobre a essência do homem. Para Heidegger, o pensamento europeu não se colocou apropriadamente a questão dessa essência. Uma definição lançada para o que é o ser do homem, a de que ele é um animal racional, apresenta-o como aparentado aos animais, porém com um adendo metafísico ou espiritual.
O homem aparece aí como ao mesmo tempo pertencente ao reino dos seres vivos e o ser vivo superior. A Heidegger importa denunciar o quanto de mal foi causado por esta ideia a respeito do homem, acabada sob a forma de humanismo: ela levou o homem a buscar o controle de tudo, inclusive de si mesmo, certo dos poderes da razão.
Afastando-se do vitalismo e da metafísica, Heidegger diz, a respeito do homem, que "é como se a essência do divino estivesse mais próxima de nós que a desconcertante essência dos seres vivos" (Carta sobre o Humanismo). Os animais chegam a seus ambientes e neles devem sobreviver. Eles apresentam engenhosidades na criação dos seus meios de vida. O homem também faz isso. O homem, contudo, tem uma essência completamente distinta da do animal: ele tem um mundo, e está no mundo. Ele não é um animal num ambiente.
O essencial do homem é que ele, por possuir linguagem, é convocado a ser guardião do ser. Há um ser do homem que corresponde a uma fraternidade humana antiga, uma comunhão de fala. Cada homem é existente ao ser posicionado como amigo dessa humanidade antiga, ou seja, aquele escuta e fala pelo ser do homem.
A definição do homem se libera, então, do aparato metafísico e vitalístico. E, se se aproxima do divino, é pela ideia de que o homem é criador do mundo, do mundo em que vive.
As teorias do Big Bang e a do Evolucionismo são as principais das ciências naturais. O Papa Francisco levou adiante a consideração da Igreja de que elas são verdadeiras, afirmando que a forma primeira tanto do universo, quanto das espécies animais, originou-se de um criador (http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/10/1539614-teorias-do-big-bang-e-evolucao-estao-corretas-diz-papa-francisco.shtml). A partir do trabalho deste criador, o desenvolvimento de ambas ocorreu como o descrito pelas teorias.
Em sua encíclica Laudato Si, o Papa relembra que o homem é uma criatura responsável pelo que há no mundo. Ele tem capacidade de empregar e de às vezes modificar os processos naturais. Mas não pode agir como um explorador. Deve ser um guardião, criar condições para que a vida do ambiente, como um todo, seja bem cuidada e frutifique. Deve zelar por toda espécie viva, e isso inclui a espécie humana. É só assim que ele conseguirá viver dignamente.
Voltando à anedota do início deste texto, podemos dizer que o evolucionismo (que não afirma que viemos dos macacos, mas de formas longamente desenvolvidas e transformadas, que antecederam os macacos, passaram por eles e ganharam outros desenvolvimentos) nos sugere uma ética de respeito à vida na Terra, vida na qual nos inserimos.
Mas este respeito não é o de um ser dotado de um acréscimo espiritual especial, que porventura o fizesse superior a todos os outros seres, inclusive aos homens apontados como "insuficientemente razoáveis". Pelo Papa e a Igreja, o homem é uma criatura com a missão de ser guardiã da vida.
Por Heidegger, o homem é o guardião do ser, que fala longínqua e baixinho pra ele a essência, o ser de cada coisa. Com voz sutil, o ser chama o homem para fazer parte da antiga comunidade humana de criadores de mundos. E é num mundo criado por um homem, que este mesmo homem é criado.
quinta-feira, 14 de julho de 2016
O homem cansado e o sol
Aquele que tem algo para dar o faz sem requisitar nada em troca. O sol. O rei. O joalheiro. O escritor. Eles lançam seus produtos e sorriem. Não param para ver as reações das pessoas.
Quando lhes chega algum elogio, eles agradecem, enquanto dizem para si mesmos: "sim, eu já sei disso". O que alguém tem a lhes dizer sobre as coisas que eles lançam é menos importante do que essa certeza interna deles.
Uma moça de 19 anos está em seu primeiro emprego. Ela fez o treinamento, passa pelo segundo mês. O trabalho a deixa desconfortável, ela é obrigada a fazer o que não gosta.
Desde antes começar ela dizia para si mesma que faria tudo direitinho. Agora passa por sua cabeça conseguir um outro lugar para fazer isso mesmo, tudo direitinho. Um lugar em que ela não se sinta desconfortável.
O jovem é como o sol, que manda seus raios com esbanjamento, e permanece intocável. Qualquer sinal contrário ao que ele faz, qualquer sinal de censura, é um incômodo.
Nietzsche apresenta o tipo forte como aquele que se lança energicamente sem interrogar-se quanto ao que faz, sem ter a reflexão auto-censuradora do fraco.
Um cara já passado dos trinta diz para aquela moça que ela não deve desistir facilmente. Ele já trabalhou muito sem se importar com o pagamento que recebia. Mas sempre lhe importou o que lhe diziam, ou melhor, o que ele mesmo se dizia: era preciso fazer o bem às pessoas, para ter o sorriso delas.
Ele não foi um jovem como aquela moça. Faltou a ele ter dado de si, por si mesmo. Feito o que queria, e ter na própria sensação de fazer algo bem feito o seu pagamento. Aonde isso teria dado? Eu não sei.
Não sei se com quinze anos disso hoje ele estaria sendo bem pago por "trabalhar com o que sonhou". Talvez ele estivesse no mesmo trabalho em que está hoje. Mas ele não estaria dizendo à moça para ela não desistir facilmente daquele trabalho, nem de nenhum outro. Não há trabalho que possa recompensar suficientemente uma pessoa que é como dizem, "de brilho próprio". Uma pessoa assim nem pensa nisso.
O cara estaria dizendo à moça para ela não deixar-se interromper por ninguém. Nem por si mesma, se ela estiver buscando a aprovação dos outros. Ela deve ser como ela é, e expandir-se cada vez mais.
Um dia ela chegará aos trinta, aí sim com um pé atado numa família, pela corda do amor. Estará preocupada com o trabalho. Mas se lembrará dos tempos em que cruzou o céu rápido feito raio.
Ps.s: Neste texto inspiro-me nas ideias de Peter Sloterdijk, apresentadas pelo filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. Leia "A sociedade da generosidade de Peter Sloterdijk: http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/sociedade-generosa-de-peter-sloterdijk.html
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