domingo, 26 de março de 2017

Ponha-se em um lugar melhor


Acompanho como psicólogo um jovem de 16 anos. Todos os dias de manhã ele está na escola, cursando o segundo ano do segundo grau. Às tardes ele revisa as matérias, faz exercícios, estuda para as provas. Em tudo isso eu o ajudo. Cada atividade dessas ocorre entremeada a uma gesticulação e comportamentos pertencentes a um mundo particular dele. Mundo particular todos temos, e sempre a partir deles é que agimos. Mas V., assim como outros autistas, interrompe qualquer atividade que lhe solicitem, ou nem a começa, para fazer o que ele sugere a si mesmo. Mas, só fazemos o que sugerimos a nós mesmos. Para o filósofo alemão Peter Sloterdijk, sujeito é aquele que se autoconsulta e então se autodesinibe. Qual a particularidade do autista? Talvez seja que a voz interna dele fique distante das outras vozes, que não são dele. E que ela seja autoritária.

Na matéria Literatura, o professor dita a teoria, recita a poesia, empolga-se ao falar sobre romantismo, realismo e naturalismo. Ele diz que aquela turma é animada, amiga e mal comportada. Ele chama o V. para falar o que pensa da turma.V. o realiza. O professor pergunta se os alunos o ouviram bem. "Isso foi dedicado a vocês", e uma lágrima lhe corre as entradas do rosto.

A coordenadora da Educação Especial, na escola, determinou que o V., por seu aprendizado mais lento do que o dos outros, e o tempo maior que leva para fazer uma prova, fizesse metade das provas neste momento e a outra metade faltante quando viesse o segundo período de provas. Vinícius tem estudado comigo na véspera para responder à prova do dia seguinte. Algumas noites ele está agitado, incomodado, bufa. Outras nem tanto, e me expulsa de sua casa sorrindo. Sorrindo, no dia seguinte ele chega, e anda pela escola e logo senta. Noutros dias entra correndo, com todo o seu mal estar, dando pequenos gritos.

A mãe diz do ano passado, em que eu não estive com ele (as pessoas sempre falam de um passado mítico, a um interlocutor que não o viveu), que V. cumpriu todas as provas e terminou o ano em completo surto. O psiquiatra até proibiu novas exigências. A mãe não quer de jeito nenhum isso acontecendo de novo, e diz que neste ano já tem havido um crescente mal-estar por parte dele. Eu retruco, com a observação de que ocorre uma renovação de um dia para o outro, e de um final de semana para a segunda-feira.

O professor de Literatura, ao saber que não estava programado que V. fizesse a prova dele, pediu para que eu arrumasse de ele fazer a prova. Levando o assunto à mãe, prontamente foi recusado pois, ela disse, as provas são todas estressantes para ele. Além disso, as matérias se encontram acumuladas, e fazer mais uma prova significa perder mais um dia de aula e de estudo à tarde. Uma palavra que define o professor de literatura, coloquei à mãe, é "amoroso". O amor pode ter uma definição bem simples: é alguma coisa que leva alguém a querer algo, assim como o ódio é alguém não querer algo. O professor quer os alunos, e sua prova é um presente, um mimo. Não é uma prova para que se prove, mas para que se prove, experimente-se, tenha-se prazer.

A mãe falou que, para V., a escola, os exercícios e as provas são coisas mecânicas. Uma ideia do Sloterdijk eu falei (e é a segunda que aparece aqui), adaptada à situação de fala: todo homem é dado a fazer algo como um exercício, de modo que amanhã o faça melhor. Ressaltei o "todo", incluindo, então, os autistas. No começo de sua carreira de psicóloga, ela disse, passava 10 horas por dia trabalhando em escritório. Saía correndo de lá, para atender. Aquele trabalho ela não queria fazer melhor, ela disse. Se ela fizesse pior, demoraria mais tempo, eu disse. Também seria penoso para ela o dia em que demorasse mais no percurso entre o trabalho e o consultório. Ou então, tal trabalho era mesmo miserável, não oferecia nenhum ganho humano para ela.

Nenhum exercício é pouca coisa, é um mero exercício. O homem é um ser de exercício. A miséria da mãe não tem que ser a do filho. A mãe diz que um problema que eu tenho é não me colocar no lugar de V.. Em que lugar me coloco? Não trabalho para que V. não surte. Trabalho para que ele, após fazer um exercício, sorria. Isto já aconteceu. Trabalho para que ele tenha experiências, momentos prazerosos e interesse pela escola. Muito se diz, com o nome de psicologia, em colocar-se no lugar do outro. É um senso comum. Prefiro me por num lugar melhor.

"V., você quer fazer prova de literatura?", pergunta a mãe ao filho. "Eu quero." "Você quer fazer a prova de literatura depois das outras?", nova pergunta. "Aí não. Não quero fazer no mesmo dia." Esta pergunta o confundiu. "Não, fazer em um outro dia?" "Ah, quero.". Sugeri que ela perguntasse ao filho porque ele quer. "Quero ficar mais esperto".

sexta-feira, 17 de março de 2017

O terror de ser um igual


Os homens se relacionam com objetos, assim como se relacionam com outros homens e consigo mesmos. Digo isto sem apontar como algo ruim. Os homens querem ter coisas, querem dar coisas. Crianças querem ganhar presentes: isto mostra para elas que são amadas, que estão no escopo de dar, de um adulto.

No mundo sempre se está dando algo. Se você tem algum dinheiro a mais, ou tempo a mais, e usá-los só para si mesmo, poderá se sentir sozinho. Nem sempre o si mesmo é uma companhia clara. Então dar presentes, assim como passar um tempo com o outro, é um carinho. Carinho em si mesmo. Este dar de si no mundo da generosidade é o que falta àquele que não tem. O indivíduo que não tem o que dar vale menos. “Não se espera nada dele”: isso o destrói. “Dele eu espero algo grande, que não sei bem o que é.”: esse vai longe.

A questão não é ter ou não ter, mas ter para aparecer ou não ter para aparecer. Aqueles que não têm, que nunca foram vistos como alguém à altura de dar, têm tudo para roubar. "Já que não dou, eu tiro. Assim você me reconhece." E é uma miséria querer ser reconhecido. Então não se trata de esperar para receber de quem tem, mas de ser aquele que determina quando quem tem dará ou não. Ghiraldelli conta, a partir do filósofo coreano-germânico, Buyng Han (http://ghiraldelli.pro.br/filosofia-social/somos-todos-terroristas-sociedade-contemporanea-e-individualismo-partir-de-buyng-chul-han-e-peter-sloterdijk.html) que a ação que visa causar impacto é uma tentativa de singularidade no mundo da igualdade de todos. Não ser só mais um consumidor, ou só mais um bandido. Ser O Consumidor, O Bandido, é o que importa.

Na sala a menina fala ao professor que uma vez foi à delegacia reclamar de ter sido roubada, e o policial não fez nada. Ele não diria para ela as histórias de grandes crimes, grandes bandidos, que conta aos colegas. Dessas histórias, ela não tem qualquer participação. Se ele lembrar, contará aos colegas sobre o quanto, frente ao que é grande, deixa de atender ao pequeno. O crime que ameaça o indivíduo é um drama pessoal, o outro que o subtrai. Este crime, um atentado bastante subjetivo, é tomado pelo policial como meramente subjetivo, querer chamar mais atenção do que os grandes crimes. Assistimos aos crimes como novela. Já que são abstratos, dão um crime-novela.

O crime pessoal é o que me faz sofrer, é meu drama. Para mim, é a pior coisa, e contra quem o cometeu eu quero a pior punição. Isto é pleiteado com força, justamente porque ninguém reconhece meu sofrimento em não poder mais dar. Ou melhor, riem dele.

O crime que me singulariza, como vítima ou bandido, é tomado como coisa nenhuma. A minha perda, ou o meu ganho, são triviais. Os objetos de que eles tratam são ridículos. Agora, falar de grandes crimes, grandes bandidos e grandes policiais é falar de objetos que importam. Esses personagens giram em torno desses objetos. O bandido tocou o terror. A vítima sofreu o terror. O policial também tocou o terror. Ninguém quer ser um qualquer. Na sala de aula, grandes são as ideias. A elas, o professor subordina os casos em que a polícia diminuiu a menina, ou aquele em que ele mesmo esteve sob a mira de uma arma. Mas a menina parece querer se singularizar mais pelo que passou com o policial do que com o fato de ser aluna. Lógico, o que é um aluno? Ou um professor?

terça-feira, 14 de março de 2017

Juventude contemporânea


Na sala de aula, a jovem observa ao professor: "Contemporâneo é uma palavra que me parece vazia. Todos dizem isso. Eu acho que é balela." O professor, após anos, talvez décadas de estudo, fala que o contemporâneo é uma ideia do presente. A jovem, por sua vez, está fora do presente, e também está dentro do presente, como Agambem, em "O que é o contemporâneo", leva a dizer.

Contemporâneo é aquele que odeia o seu tempo mas não arreda o pé dele. A academia usa a palavra "contemporâneo" em todos os seus textos, sem conceituá-la, ou seja, sem dar a ela um caráter universal, e por isso mesmo discutível (a má formulação é indiscutível). Esta palavra, então, acaba não saindo do senso comum, e não servido em nada para observá-lo. A pergunta da jovem mostra esse furo dos teóricos, esse desconhecimento que eles não percebem que têm.

A jovem mostra que formulações imprecisas não a satisfazem, não respondem às suas urgências. Estas urgências são sempre presentes, e delas a jovem lembra enquanto escuta do professor teorias contemporâneas. Ela percebe, ainda seguindo com Agamben, a escuridão que acompanha as luzes do presente. A jovem é de fato contemporânea porque está no presente e o mesmo tempo consegue olhar para ele. A vida do dia a dia é a motivação original de todas as teorias: a pergunta feita em sala traz essas questões não resolvidas, e que a todo momento se insinuam, inconvenientes.

Enquanto alguns se regozijam por suas teorias, que apontam para diferentes direções, aquele que está insatisfeito, que procura uma formulação que o ajude a convencer o seu pai obtuso (e se não o faz, ele próprio não se convence verdadeiramente, pois os problemas da vida não se separam dos resmungos do pai), quer um fio para atar as antigas urgências e aquilo que se põe como o presente. A jovem marca uma ruptura com o professor, ao mostrar que a prática da teoria não a atende, e que talvez não atenda mais ninguém verdadeiramente. Mas ela permanece escutando as aulas, quer se formar, só não esquece o que a levou ali. Da mesma forma como ela separou um passado insistente de um presente que não se enxerga, ela pode dizer algo diferente do que andamos pensando.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Jovem adulto




Entre crianças de 5 anos, um adulto brinca. Corre, é o Lobo Mau, o monstro. Foge do Lobo Mau, do monstro. Senta e é pintado. Pinta de volta. Algumas crianças vêm e dão-lhe tapas.

Entre jovens de 15,16, um adulto conta piadas no intervalo do estudo. Suas tiradas engraçadas fazem a maioria rir. Alguns jovens o excluem do grupo de bate-papo, da turma.

Nas duas situações o adulto está fazendo algo que foi recentemente superado pelos indivíduos do grupo. Ou melhor, o que eles querem deixar para trás. Incomoda quando há alguma perturbação desse amadurecimento, dessa mudança de comportamento, desse aprendizado de certo autocontrole.

Crianças não riem de piadas: são coisa se "adulto maluco". Elas gostam do adulto que corre e cai no chão, pois isto elas já deixaram bem para trás, e virou brincadeira.

Que o colega excepcional se apresente mais infantil, vá lá. Mas o adulto deveria ser o exemplo de obediência ao Totem, e por isso mesmo mostrar as recompensas das renúncias que todos têm que fazer. Isso falando com Freud.

Falando com Sloterdijk, o sorriso de cada um, assim como todo rosto, é desenvolvido com uma mãe. Ali na escola, o que cada um tem para dar é o desempenho após bastante exercício. O clima é de certa apreensão. Nos intervalos eles se divertem, dão e recebem sorrisos, e excedem-se em movimentos corporais e palavras. O adulto entra como parceiro, mas enquanto contraponto, pólo avançado que deve puxá-los para o exercício.

Todo adulto, só por sua presença, já intimida o jovem. É implacável o destino daquele que só oferece graça, e não o desafio que o jovem quer.

quarta-feira, 8 de março de 2017

O trabalho dos sonhos


Saiu em uma reportagem que o ator Mario Gomes vende sanduíche na praia (http://m.extra.globo.com/famosos/aos-64-anos-mario-gomes-vende-hamburguer-na-praia-fazendo-uma-experiencia-21022042.html). Segundo alguns comentários no face, não há problema nenhum nisso, pois é uma "ocupação honesta". Na reportagem, o ator afirma estar dando os primeiros passos para um food truck. Olhando diretamente para o caso, temos um ator vendendo sanduíche na praia. Um ator deveria atuar, não fazer outra coisa.

Existe o trabalho de ator, com remuneração. A partir disso, o ator paga seu sustento e o de sua família. Um ator vendendo sanduíche na praia é algo errado, no sentido de "fora do lugar". Mas no imaginário comum, o trabalho do ator é um dos menos associados a remuneração e sustento: é visto como algo meio mágico, cuja capacidade de se realizar vem por mágica ("ele tem um dom") e o seu resultado produz efetiva mágica na terra ("ele nos encanta, sua atuação é sublime"). Alimentar-se e pagar a conta de luz, entre outras coisas, não é visto como estando associado ao trabalho do ator. Por isso, o que nos causa embaraço não é Mario Gomes vendendo sanduíches na praia, ou fazendo qualquer outra coisa para se sustentar, mas a mancha na aura de ator.

Talvez Mario Gomes esteja vendendo sanduíche na praia porque neste momento o que ele recebe como ator (atualmente ele participa de uma série) não faz frente aos seus gastos. Vender sanduíche na praia, então, viria a cumprir essa função. Lógico que "é honesto", não apenas no sentido de que não é o roubo de ninguém, mas no de que satisfaz necessidades objetivas. Na expressão "trabalho honesto" também há esse sentido de "trabalho que satisfaz demandas objetivas". Mas como podemos encarar um ator com necessidades objetivas? Nunca cobramos do Tony Ramos que ele coma um bife da Friboi.

A existência de reportagem e dos comentários a ela mostram uma razão não enunciada: o ator é para estar num palco e ser admirado, e o homem que é o ator não deveria fazer um trabalho para se sustentar. De que forma olhamos para um gari ou para um frentista? Como pessoas que ganham seu pão. Excetuando os momentos em que negamos a valorização do espetáculo, e reagimos a ela, querendo valorizar o "ganha pão" (quando dizemos "o gari tem uma profissão tão nobre quanto à do médico"), valorizamos trabalhos ao quais atribuímos certa aura.

A desvalorização do professor correu no passo das suas greves (pensamos que o professor é um "morto de fome"). Não damos aos médicos, aos atores, aos engenheiros ou aos juízes o mesmo direito a fazer greves, a ter necessidades objetivas. Essas profissões possuem uma essência transcedente, são o que a sociedade quer comentar, são ideais de profissões.

O outodoor de uma universidade pergunta: "Sucesso financeiro ou sucesso profissional?". Uma falsa pergunta, não porque a profissão deva acompanhar o dinheiro, ou vice-versa, mas porque a palavra "sucesso" refere-se, de uma tacada só, a ser incrível, um especialista, um mago, e também a nunca perguntar o preço de nada, nem olhar para o interior da própria carteira.

A profisão que almejamos não pode parecer em nada com algo que dê trabalho, também não deve referir-se a nenhum custo ou necessidade concreta de quem trabalha. Mostrou-se do Mario Gomes um lance de bastidor que ninguém queria ver.

sábado, 4 de março de 2017

A hospitalidade



*Dedicado ao meu tio, Mauro Ricardo de Mattos.

Após lutar com o furioso mar, Ulisses chega à terra dos Feácios. Está exausto, dorme atirado na vegetação. Escuta vozes de donzelas. Levanta-se. Aparece para as donzelas com o corpo carregado de sal, suor e cabelos. Tal visão aterroriza as mulheres. Elas correm em debandada. Apenas Nausica permanece, pois no espírito Atena lhe incutira coragem. O estrangeiro, mestre das palavras, fala que se há uma deusa, ela está diante dos olhos dele. A jovem repreende as criadas, e as faz voltarem e mostrarem ao estrangeiro a hospitalidade daqueles que temem a Zeus.

As criadas banham o desconhecido, esfregam azeite em seu corpo. Atena lançou um encanto, fazendo Ulisses parecer mais alto e mais musculoso. Aos cabelos deitaram-se cachos aloirados. Nausica comenta com uma das criadas como seria bom se um deus a concedesse desposar aquele homem. A princesa orienta o estrangeiro a chegar na casa de seu pai, e destaca um grupo de criadas para acompanhá-lo.

Ulisses parte e logo chega ao destino. Ao contrário do que fizera em outras terras, quando anunciou a si mesmo “Ulisses, de fama conhecida pelos deuses, e agora cantado pelos aedos”, desta vez não dissera o próprio nome. Ajoelhado, pediu à rainha ajuda para voltar para casa. O rei disse que lhe ajudariam, e ordenou que lhe alimentassem e acolhessem.

Naquela tarde, os jovens começaram uma competição atlética: lançamento de discos, de dardos, corrida a pé, a cavalo e pugilato. Um deles convida o estrangeiro, pois havia reparado em seu porte atlético. Ulisses afirma estar muito cansado da dura briga com o mar para chegar até a terra deles. O jovem, então, diz que logo se via que ali não estava um atleta, mas um comerciante cioso apenas dos seus ganhos, e que por acidente viera ter ali. Ulisses sente-se atingido, e afirma que em Tróia ninguém rivalizava com o seu arco e sua coragem, os guerreiros amigos contavam com ele e os inimigos o temiam. Ele participaria, então, do pugilato, do lançamento de discos e de dardos. Não participaria, contudo, da corrida a pé e de cavalos, pois para o primeiro ele realmente estava desabilitado, e no segundo, ele reconhecia a superioridade dos feácios. Caso fosse novamente envolver-se em combates, Ulisses faria jus àquele povo, chamando seus cavaleiros.

Ulisses atira o disco muito além das marcas dos competidores locais. Também atinge grandes resultados no lançamento de dardos e no pugilato. Mesmo estando ali como um estrangeiro desconhecido, Ulisses diz ao rei que se sentira ofendido com os comentários daquele jovem. Sabendo reconhecer as virtudes de quem as possui, assim como Ulisses reconhecera as virtudes dos feácios na montaria, Alcino ordena que o jovem faça uma ação de desagravo. O jovem, reconhecendo os valores de Ulisses, dirige-lhe um discurso de desculpas, também entregando um presente valioso.

Posteriormente, enquanto confraternizavam, um aedo cantava sobre a Guerra de Tróia. O Grande Ulisses era louvado como um bravo combatente, excelente para os amigos, sofredor de grandes dores. O estrangeiro esconde o rosto em lágrimas. Percebendo isso, Alcino pede àquele homem que fale sobre si mesmo, sobre as coisas pelas quais passou. Ulisses toma o lugar do aedo, e conta o caminho que o levou ali, passando pelo cíclope, pela feiticeira Circe e até pelo Hades. Finalmente, ele apresenta a si mesmo, dizendo o próprio nome.

Um homem pode não precisar falar de sua virtude para pessoas que sabem ser hospitaleiras com estrangeiros. Receber bem significa não só dar de comer e beber: inclui considerar a possibilidade de o desconhecido ser digno de louvor. Tratar bem um estrangeiro é abrir-se ao que ele tem de bom e que pode, é claro, beneficiar o grupo. O menosprezo é um sinal de descortesia, é uma quebra da aliança entre povos, aliança esta que existe entre pessoas que não se conhecem, por pertencerem a povos diferentes. A hospitalidade é um “receber em casa”, em uma casa que antes não era a dele, e um “fazer com que o outro se sinta em casa”, na própria casa dele. Mostra a virtude de quem é hospitaleiro.

Em um outra terra, poder adentrar a casa de alguém, e fazer desta casa a sua própria, mantendo, logicamente, a primazia do primeiro aspecto, o do “adentrar a casa do outro, respeitar o seu ethos”, ou proporcionar isto a um estrangeiro, é permitir que haja trocas ao mesmo tempo conservadoras e renovadoras das características do local, além de oferecer ao estrangeiro um solo para ele dar o melhor de si.

Quando um homem, porém, está entre conhecidos e não é considerado em sua dignidade e em seu valor próprio, o ataque que ele sofre é o de estar sendo retirado da comunhão, da comunidade, e o de ser lançado a ter que provar a própria importância. Isto faz com que o trabalho de sua vida seja dobrado, pois ao que ele já realizou deve somar a prova do que realizou. Se entre desconhecidos a consideração com o outro é devida, entre familiares ela é fator de sobrevivência do grupo. Uma família ou comunidade funda-se em histórias de pessoas que fizeram o que foi essencial para eles estarem ali, e indicam o caminho do que ainda há por ser feito, e do que é preciso que alguém tenha, para fazê-lo.

Ter o próprio valor questionado por sua família é ser posto no caminho inverso ao da hospitalidade: no primeiro momento, desaloja-se o indivíduo da casa dele mesmo, dos muros que ele construiu e que guardam as suas caracteristicas; no segundo momento, coloca-se o indivíduo na soleira da porta, próximo à expulsão da “casa dos outros”. Primeiro, “você não tem um lugar”; segundo, “você não tem lugar aqui.”

A hospitalidade, acolhida de vidas, traz bençãos dignas de Zeus. O contrário disso não pode levar a boa coisa.

Imagem: Jean Veber – Ulysses and Nausicaa, 1888.

Um jovem como Telêmaco


Telêmaco partiu em busca do pai. Ulisses, o grande rei de Ítaca, saíra de casa há 20 anos para combater em Tróia. Ninguém em sua terra natal sabia de seu paradeiro ou morte. Penélope esperava angustiada o marido. Telêmaco via a mãe sendo assediada por muitos homens, e os bens de sua família sendo dilapidados por eles. Guiado por Atena, na figura de Mentor, Ulisses foi a alto mar.

Ao chegar em Pilos, Telêmaco hesita sobre o que deveria fazer. Atena diz para ele não ter vergonha, pois é justo o propósito dele, e foi com o nobre objetivo de saber o destino do próprio pai que ele atravessou o mar. Ele falará com Nestor, ancião que vira muitas gerações de guerreiros, e ao lado de Ulisses combatera em Tróia. Telêmaco pergunta a Mentor sobre como deverá cumprimentar Nestor. O rapaz afirma não possuir experiência com palavras sutis, “e que é natural que um jovem se iniba de interrogar um homem idoso”.

O filho do grande e famoso Ulisses era ainda sem importantes feitos e sem fama. Ele teria suas próprias aventuras, onde mostrará as qualidades herdadas do pai. Telêmaco sabe bem da sua estatura atual, e não supõe saber sobre o que lhe é novo. Como portar-se diante do experimentado guerreiro e conselheiro Nestor? Na conversa com o ancião, Telêmaco se apresentará cuidadoso, educado e atento. Telêmaco tem berço. É impossível não ver nele reflexos de um jovem Ulisses.

Em nossos dias, vemos jovens que parecem acreditar já saberem de tudo, pois apresentam-se sem cuidado e apressadamente. A forma como se comportam na rua é a mesma com que se comportam em casa, que é a mesma com que se comportam na escola e em todos os lugares. “Tá tranquilo”, dizem, sem considerar os saberes e os comportamentos necessários para lidar com cada pessoa e lugar. Acham que com o seu “jeitinho”, conseguirão tudo: empregos, mulheres, posições sociais, etc.

Atena diz a Telêmaco: “algumas coisas serás tu a pensar na tua mente; outras coisas um deus lá porá: na verdade não julgo que foi à revelia dos deuses que nasceste e foste criado.” (Odisseia. Canto III, verso 25). Telêmaco possui atributos vindos dos deuses. Ou vindos de um grande pai, o que dá no mesmo. Simultaneamente, esses atributos são dele mesmo. Aqui não há a necessidade de distinguir os atributos próprios daqueles que “vieram de outras pessoas”. Telêmaco não é como eu e você, que anseia por ser individual.

Entretanto, quando, por exemplo, no esporte, assistimos a um desempenho excelente, sentimo-nos presenciando algo além de uma capacidade humana. Vemos um talento inexplicável. Por isso dizemos que quem tem talento, ou quem trabalha muito, é ajudado pelos deuses, ou tem sorte. Diferentemente da pessoa que já acredita saber de tudo: ela não é ajudada pelos deuses. Ela move-se depressa demais, e os seres divinos não conseguem alcançá-la. Você já deve ter visto um anjo da guarda chegando atrasado para evitar uma catástrofe, com o seu protegido. É isso.

A comitiva de Telêmaco é bem recebida por Nestor e seus homens. Telêmaco diz a Nestor que apresenta-se como suplicante, por qualquer notícia sobre o paradeiro de seu pai. No início de sua fala, disse de quem era filho. Mas logo mostrou não querer chegar rápido demais à posição deste. Por isso, ajoelhou-se. Nestor conta ao jovem sobre os mortos em Tróia, os melhores guerreiros: Ájax Telamônio, Aquiles, Pátroclo, e também o seu próprio filho. Acompanhado de Ulisses, ele próprio saiu de Troóia, após vencerem a guerra. Mas eles se dividiram em naus distintas, e estas tomaram rumos diferentes. Nestor chegou em sua casa. E de Ulisses, infelizmente, ele não possuía mais notícias.