quarta-feira, 1 de julho de 2015

Como falar de morte, com crianças?



De vez em quando, pensamos na morte. Não que busquemos pensar nela: na verdade, quando ela nos vem à cabeça, tentamos tirá-la de lá. Até que vem uma criança e nos pergunta sobre o que acontece quando alguém morre.

Uma resposta que comumente é dada para a criança pequena que pergunta isso é que a pessoa está no céu, ao lado do Papai do Céu. Segundo esta resposta, a pessoa continua existindo, mas em outro lugar. E num lugar que é melhor do que este, aqui.

Outra resposta também comum é que as coisas têm um começo, um meio e um fim. As pessoas nascem, crescem, se reproduzem e morrem, como diz a professora de biologia. A professora completa dizendo que todos os seres, e até a Terra, surgem, existem por um tempo, e deixam de existir. No caso dos seres vivos, a existência deles seria mantida com o fim da vida de outros seres, numa cadeia que faz com que os consumidores um dia sejam consumidos.

A explicação religiosa apazigua o mal-estar que o assunto da morte provoca, pois apresenta um sentido para a vida e a morte: vivemos e morremos por nenhum outro motivo que não ir para o céu. Claro, há coisas a serem feitas em vida, conquistas a serem alcançadas, mas o céu é o objetivo final e mais importante de todos. É fechar a vida com chave de ouro. Ou melhor, é continuar vivendo, existindo igualzinho, mas lá em cima.

Na explicação científica, ao contrário do falado na religião, os seres mudam, ao morrer: os corpos decaem, vão sendo assimilados por outros seres e deixando de ser o que eram. A vida, que não é propriedade individual, prossegue como energia para quem comeu uma cenoura arrancada, ou um boi abatido.

Esta narrativa certamente não apazigua quem gostaria de que a vida terminasse em um acalento. Ou que ela tivesse um sentido final que mostrasse que tudo valeu a pena. Este sentido teria que ser de algo que sobreviva à morte. O sentido da vida estaria além da vida.

Para a narrativa científica, a vida é algo que ocorre em nosso organismo, e um dia deixará de ocorrer. Para a de senso comum inspirada na religião, a vida é dividida em vida do corpo e vida do espírito: a vida do primeiro chega ao fim, a do segundo, não. A pessoa continua existindo espiritualmente.

Com essa divisão entre vida corporal e espiritual é possível para o senso comum ser biologicista, assumindo que um organismo, ao morrer, vira alimento para a vida de outros, mas combinando esta narrativa com a religiosa, que afirma a manutenção da vida do espírito.

Mas há algo que mesmo a narrativa de senso comum de inspiração religiosa deixa de abordar: o que é existir? Mais do que isso: o que é a existência e a inexistência de um ser em particular?

Temos falado em vida e morte de forma por demais geral. E a garantia de uma sobrevida espiritual, ou seja, a ideia de que uma pessoa não deixa de existir, não acaba, facilmente nos impede de pensar no que é que não acaba, em quem é que permanece existindo.

Uma vida é uma existência particular.* Quando alguém morre, quem é que morreu? Como foi aquela pessoa, como ela viveu, com quem ela se relacionou, o que ela gostava de fazer, quais eram seus gostos, sua profissão, suas ideias, seu jeito de ser, seus sonhos, seus problemas, suas chatices, o que ela fez de bom e de ruim, etc, são algumas coisas que se podem dizer de uma pessoa. Isto foi o que se perdeu, ao menos para os que ficam aqui, com aquela morte. Isto foi o que foi compartilhado, curtido ou detestado, pelas outras pessoas que conviveram com ele, enquanto ele existiu.

São estas coisas que nos fazem lamentar a perda de alguém querido, o motivo pelo qual ele era querido. É o que se pode lembrar e falar a respeito dele, são as coisas que ele fez, enquanto esteve aqui. São as coisas em que ele mexeu, as marcas dele, que permanecem mesmo com a saída dele. Falar sobre quem foi aquele a quem se perdeu permite que se entenda melhor quem existiu e deixou de existir. Não nos livra de sentirmos dor, por causa da perda. Mas é uma dor suportável, por vir junto do consolo de saber o quanto foi bom ter vivido com aquela pessoa.

*Atualmente atribuímos existência a humanos e aos animais com que os humanos se identificam (que são os mamíferos). A ideia que fazemos de existir é o de ser dotado de ideias, emoções, características próprias, história individual, memórias e, por fim, de consciência disto tudo. Portanto, existir nos parece não ocorrer com as plantas ou os insetos. Talvez, um dia, atribuamos existência a eles. Aqui fica patente o lugar do homem de atribuir ou negar o atributo da existência aos demais seres. Um lugar suspeito, diga-se de passagem, pois é uma fala para quem fala a mesma fala, usa o mesmo tipo de comunicação, até de frequencia sonora. Não podemos dizer, de fato, se os peixes, as plantas e os insetos não se comunicam, e existam enquanto individualidades, do jeito deles.