quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Coisa de macho e de gay


MMA e filmes pornô são lugares onde homens adoram homens. Observam seus corpos e performance. O rosto da atriz ou do adversário dizem o quanto um homem é forte, pegador, viril. Os adversários e as mulheres são comentados, mas na qualidade de bons ou maus coadjuvantes.

Na Ilìada, Pátroclo era o companheiro do grande Aquiles. O guerreiro estava enfurecido com seu próprio exército. Seu amado o elogiava e lhe dava razão, mesmo com os gregos caindo às centenas, pelos troianos. O comandante dos gregos havia pego uma mulher de Aquiles, um desplante!

Quando ficou imperiosa a necessidade de Aquiles voltar ao combate, devido ao cerco dos troianos, Pátroclo fez-se de Aquiles, vestindo a armadura dele. Assim o fez para enganar os adversários, e com o desconhecimento do amado. Nada lembrava a suavidade de garoto. Levantou-se como um homem, e assim morreu. Patroclo morto esperou pelo resgate e vingança do verdadeiro homem.

Poucos de nós são heróis. Somos Pátroclos: mantemos nossos ídolos, que vencem vilões e nos salvam. Permanecemos em casa, torcendo. Ou vamos ao bar torcer ao lado de outros homens, todos admiradores das habilidades e corpos potentes. Reconfortados com a vitória sobre os inimigos, injustiçados com a derrota.

Nos lugares masculinos, o masculino é uma posição para poucos. A maioria é gay.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Rindo da autoridade

Um adulto fica de pé. Ele anda por aí, mexe em coisas e fala com pessoas. Ele fala com crianças que, quando não lhe respondem como ele gostaria, recebem a "ajuda" da mão dele.

A criança acabou de ficar de pé. Costuma cair. Quer fazer o que o adulto faz e, como este, faz as coisas a seu modo. Mas, por lhe faltar certas informações e habilidades, sua vontade expressa-se sem mediação, sem cálculo. Ela também age em relação a outras crianças. Quando está diante de uma criança mais nova, quer passar orientações, dar ordens. Porta-se como um adulto, nesta relação.

O adulto é alto e, agindo com seu corpo, também usa sua boca. Há uma inseparabilidade entre o que diz e faz, mesmo que, algumas vezes, o que ele diga vá para um lado, e o que faz, para outro. Como dizer também é agir, o adulto acaba agindo de duas formas diferentes, ao mesmo tempo.

A criança não tem tanto repertório de fala. Por isso suas mãos, pernas, rápidos redirecionamentos dos quadris, etc, acompanhados de gritos, choros e músicas são empregados para darem logo o recado. Este gestual também acompanha a fala do adulto.

Quando um adulto tem sentimentos contraditórios por alguém, com relação a ele o adulto agirá ora de um jeito, ora de outro (mesmo que não faça a segunda ação no mesmo espaço físico em que fez a primeira). Ele apresentará dois comportamentos.

A criança apresenta uma pequena diferença, neste ponto: ela pode dizer que não gosta de você mas, logo em seguida, te fazer um carinho ou buscar o seu colo. Nem sempre ela declara a afeição que sente por alguém. Brincar junto ou adormecer sob o seu carinho são formas com que a criança expressa o que sente.

No entanto, quando este alguém estiver falando com ela, a rejeição, da parte da criança, pode surgir. Isso porque uma fala pode soar como uma ordem, mais do que uma mão pegando sua mão e a conduzindo. A criança vai querer se livrar do falador, inclusive recusando-se a escutá-lo. Ela sente-se mais à vontade com uma parceria, de sono, por exemplo, do que com uma indagação sobre o que pretende fazer.

Além disso, a fala do adulto para ela é uma espécie de abuso: ele domina suas próprias palavras, e se apresenta ao jogo menos verbal da criança com uma vantagem injusta. Por isso esta esconde a afeição, usa o que diz e como age para confundir e vencer o adulto, o que significa fazer as coisas do jeito dela.

A criança mostra a língua e ironiza a fala do adulto, zombando do seu poder e tomando-o para si. Um adulto que passe muito tempo com elas, e que não seja a figura de principal afeição dela, como a mãe, o pai ou a professora, receberá chutes na canela e, se estiver sentado, tapas na cabeça e nas costas. Atreveu-se a deixar as alturas seguras da sua fala, e pôs-se ao nível em que a criança exerce total domínio.

O adulto reconhece as ações da criança, as legitima. A criança mostra o não para quem costuma limitá-la. A ordem do adulto tem um limite. Mas, então, o que a criança fará? Ela também não pode fazer o que quer... Ambos se sentem com a boa oportunidade de serem parceiros no afinamento de um agir junto, e no aprendizado do que podem ou não fazer.

Uma brincadeira tem início. Ou é hora do jantar. O adulto se levanta e diz à criança o que fazer. Desta vez, eles apenas deixam-se ir. A brincadeira está divertida, o prato parece bom.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Ser filha. Ser mãe.


Em um dos seus episódios, Peppa e seu irmão, George, vestem-se, respectivamente, com as roupas da mãe e do pai. Peppa senta-se diante do pc da casa e começa a digitar. Saem letras embaralhadas. Ela, vestida de mãe dela mesma, e o irmão, vestido de pai dele mesmo, saem pela casa, arrumando o que fazer.

Surge a outra mãe dela, ou a mãe dela que nao é Peppa, e a chama e ao irmão pelos nomes. Peppa responde que não é Peppa, mas mãe de Peppa. A outra mãe diz que isso é uma pena, pois ela tem sorvetes para dar a Peppa e a George. Estes, então, rapidamente tiram a roupa dos pais.

Desde as primeiras explorações em seu ambiente, a criança, que também explorou e conheceu os pais, levará algo do jeito destes para o contato com as coisas. Tão logo perceba que a manipulação de objetos é feita com vistas a um fim, ela tentará, o máximo que puder, seguir aquelas etapas, os movimentos adequados e realizar o fim.

Os indivíduos da nossa espécie desenvolvem-se imitando aqueles que vieram antes e se apresentam como cuidadores. Se os pais mexem no fogão, e depois me põe sentado para comer, esse é um comportamento a ser repetido. É um comportamento a ser aprendido, mas este aprendizado quer ocorrer com o uso da prática.

"Mas mexer com fogo e faca é perigoso!". Menos dramaticamente: "ele não sabe mexer no pc.". Tentamos barrar o acesso deles ao que apresenta risco físico a eles mesmos, e mediamos o acesso deles aos outros aparelhos. Mas, quando estiver sozinha, a criança vai querer repetir o que já fez, ou o que nos viu fazendo. Afinal, também fazemos estas coisas quando estamos sozinhos.

Desde cedo, porém, a criança não está sozinha: ela tem um anjo da guarda, um deus protetor, cuja proteção não é contra danos físicos, mas contra a solidão. É um parceiro, um amigo imaginário. E este não diz não à criança, no sentido de "não faça isso, que é perigoso". Muito menos explica o porquê desse não. Isto fica para os pais. Se o amigo imaginário diz um não, é no sentido de "você não gostaria de fazer isso, não é o que você quer, isso não será divertido".

A criança não pensa sobre o que está pensando fazer. Ela pensa e faz. O adulto cuidador quer que ela dê um passo a mais, antes de mexer no fogão: ela deve parar e pensar se pode fazer aquilo. E esse limite inicialmente não é "um não posso porque não sei" ou "porque é perigoso", mas porque "a mãe não quer que eu faça". Da criança se espera a formação de algo interno para o qual ela deve submeter sua ideia, e ter refletida a aprovação ou desaprovação.

Todos sabemos da dificuldade de se formar esta sofisticação a que damos o nome de consciência. A consciência pode ser entendida como um outro eu, como um si mesmo, com quem devo conversar e me entender. Os pais, inicialmente, fazem o papel de auxiliares do eu da criança, no que tange as orientações e ordens. Orientações e ordens às quais ele ouvirá menos do que se enganjará no impulso de imitar os próprios pais.

A criança percebe que certas atividades requerem habilidades a mais do que ela mesma tem. Para cozinhar algo, é preciso estar vestido de mãe. Vestir-se de mãe será feito pela menina quando ela brinca que está saindo sozinha. Para fazê-lo sem as interpelações da mãe, a menina veste-se da própria mãe, vira a responsável da menina. Ou vira alguém que não precisa ouvir outros. Ninguém fica falando à mãe o que ela deve ou não fazer.

Tem horas em que é bom ser a mãe de si mesmo, ou ser um eu sem mãe. Mas logo chega a hora em que a criança para de explorar, e quer descansar. Quer deitar e deixar que as ideias apenas passem por ela. E no colo da mãe encontra o simples abrigo, uma cinestesia já bem conhecida, e que proporciona o acalanto.

Encher a boca de sorvete é outra coisa que proporciona uma atmosfera, um envoltório dentro do qual fica tudo bem (Sloterdijk fala da boca que é tomada pelo caramelo, e da sensação de abrigo que isso produz).

Dedico este texto aos meus dois amores, Lili e Lalá.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Baudelaire quer pegar mulher


Em "A uma passante", Baudelaire vê, no alarido da rua, uma mulher passar. Alta, sutil e suntuosa. Ele se paralisa. Ela ganha distância, perde-se na multidão. Talvez ele nunca torne a vê-la. Ou talvez a eternidade lhe presenteie o reencontro com ela.

"A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz... e a noite após! - Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez, Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
("A uma passante". in. Baudelaire, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira)

A cidade é de encontros fortuitos. No momento em que viu a passante, Baudelaire a absorveu, gravou-a na memória. Um rápido acontecimento, mas uma experiência de longa duração. Os salões, festas e cerimônias eram os lugares para o burguês flertar. O pobre conhecia sua mulher na fábrica e no trabalho de rua. Do convívio social, ia-se para um lugar reservado. Dele, ia-se para a casa de um dos dois, e dela, para uma casa em comum. Formariam um lar burguês, a salvo dos movimentos da cidade, com objetos de propriedade do indivíduo refletindo a sua imagem. A propriedade dele ninguém tomaria. Os objetos são o espelho para o si mesmo. Se os primeiros permanecem, o eu também permanece. O mal é que ele viu aquela interessantíssima passante, completa desconhecida dos seus círculos sociais. A inacessibilidade é o segredo do charme dela.

Lá pelos meus quinze anos, um amigo estava de encontro marcado com uma menina a quem conheceu trocando cartas. Tínhamos revistas de rock, e nelas havia uma seção de anúncios de gente à procura de amizade e namoro. A caracterização do anunciante era os gostos e interesses que ele dizia ter, além do nome. A menina do meu amigo era Michele "Cobain", um nome estilizado. Nenhuma foto havia dela, no anúncio. Mas meu amigo disse que eles haviam trocado fotos.
Uma revista de rock não é a rua: é um ambiente particular, o "do rock", e não o mar de "qualquer um", da cidade. O indivíduo encontra um lugar para si mesmo. A revista o espelhava. E o tempo das cartas ritmava o encontro com o outro, que, após o decorrer de algum tempo, entre escrita, espera, leitura, nova escrita, e assim por diante, ele tornava-se conhecido. A passante da rua, inacessível, e o correspondente sem imagem e com quem se dividia um tempo longo, são, para o indivíduo, não outras pessoas, mas a própria experiência de incomunicabilidade e perda, no primeiro caso, e espera e imagens feitas só pela imaginação, no segundo caso.

As palavras e as fotos que cabiam numa carta eram o material com que meu amigo formou a sua garota. Eles ficaram um bom tempo nisso, até marcarem de "se conhecer". Ponho entre aspas pois eles já se conheciam, por cartas. Sting, em "Message in a bottle", não conhera revistas especializadas e clubes sociais: o cantor enviou um S.O.S. para o mundo vago, o aberto, esperando que alguém o notasse. As colegas da escola e do prédio eram quem havia de imediato, para se conhecer. Nem sempre a emoção facilitava a conversa com o intuito de namorar. Ou nem sempre alguém da comunidade era interessante. Além do que, raramente eles tinham os mesmos gostos que um garoto que ouvia e se vestia de Nirvana justamente para se diferenciar deles. A revista tinha gente diferente e selecionada. Levava para fora da comunidade do prédio e da escola. Era a comunidade conquistada pelo próprio jovem. Com a internet, a troca de cartas ficou muito mais ágil. Eram os e-mails. Dali a pouco, as salas de bate-papo e os messengers permitiriam a efetiva conversa. Podia-se dizer uma frase e ter a resposta na hora. O tempo de espera desaparece: era o tempo de chegar em casa e conectar, e no mesmo horário que o outro.

Nos programas de bate-papo, conversava-se com quem se havia encontrado pessoalmente ao menos uma vez, e pedido o e-mail. Já nos sites de bate-papo, encontrava-se pessoas novas, mas dentro de um filtro de interesses (sexo, namoro, amizade, faixa-etária, etc) e de localidades.
Devido a estes filtros, e ao não uso de fotos, esses sites funcionavam como a revista de rock, e outras revistas com seção de anúncios para relacionamento. Os programas de mensagem permitiam a troca de imagens. A imagem passou a ser importante, junto do texto, e este ficou mais ágil e conversacional, e menos longo, demorado e com menos chance de enlevos literários, do que ocorria com as cartas.

O orkut baseava-se em reunião virtual de pessoas por características, gostos, localidades, e muitas outras coisas, em comum. Conversava-se com pessoas que se auto-selecionavam, por aqueles critérios. Via-se as opiniões de alguém. Via-se um perfil, postagens e fotos. Aqueles critérios e as fotos faziam-no ser interessante, ou não, para um flerte. Pelo bate-papo privado, estreitavam-se os contatos. Agora, o facebook tem como ênfase o estreitamento dos contatos de quem já se encontrou pessoalmente. Funciona como um programa de bate-papo, mas cada usuário tem um album de fotos, para se apresentar, e expressa suas opiniões, em público. Este aspecto da apresentação por imagens e opiniões, e não por textos elaborados, faz desse site um "jornal do eu", complementado com o bate-papo. Conhecidos de muitos anos atrás se contatam no facebook, e também conhecidos de lugares não-virtuais, com quem ainda não se conversou muito. As conversas muitas vezes se aprofundam, e relações amorosas podem se desenvolver. Se você um dia encontrou alguém, em qualquer lugar, tem chance de "conhecê-lo melhor". Ninguém mais está perdido.

Chego ao programa Tinder e ao site POF (Plenty of Fish). Imagine que você está há meia hora no metrô, com alguém atraente, à frente. Essa pessoa abre um livro que você também gosta. A cidade reúne indivíduos diferentes, e com tal direito a circular e a adentrar lugares que a cada um, em circuntâncias comuns, não é exigido responder perguntas. A pessoa do metrô tem direito ao silêncio, não importando sua aparência ou as outras coisas que ele exiba. Você o verá como interessante, mas, como Baudelaire, não poderá falar com ele. Tinder e POF mostram pessoas de diversas aparências, através de fotos e breves descrições de si, para despertar o interesse amoroso de alguém. Não é o programa de bate-papo e o face, que estreita relações que começaram como não-virtuais, pois, neles, se encontra pessoas pela primeira vez; não é como o orkut, que se baseava em interesses comuns; e é completamente diferente das cartas, pois estas baseavam-se no texto, o texto que deveria favorecer a criação de imagens.

Esses sites mostram pessoas possivelmente interessantes, no aspecto amoroso, para o indivíduo. Aproveitam o interesse dele próprio em se mostrar interessante. São especializados em encontros entre desconhecidos, que se atraíram mutuamente, e tendo as fotos como ponto de desencadeamento. São como uma rua, com a diferença que, neles, você pode abordar a pessoa. A autorização para isso é dada justamente pela confirmação do mútuo interesse. É como se, no metrô, um terceiro perguntasse a você do seu interesse por aquela pessoa, e perguntasse a ela o interesse dela em relação a você. O programa e o site fazem essa mediação. Neles, Baudelaire encontraria uma mulher elegante, e poderia abordá-la. Mas então ele não seria Baudelaire, o poeta da solidão de um indivíduo numa multidão, e do encontro amoroso impossibilitado pelo urbano. Ele não ficaria curtindo longamente a experiência de ter visto a bela mulher. Até mesmo porquê, a mulher seria abordável. Além dela, ele veria um sem número de outras mulheres que poderiam interessá-lo. A própria rua de hoje exibe uma variedade e quantidade maiores do que na época dele, e a internet acompanha isso. O outro é cada vez mais o abordável, e menos um estranho. Eu sou cada vez mais comunicativo, e menos isolado. Isso é verdade, conquanto esse outro esteja no site, e o mediador tenha nos preparado para o encontro. Ou seja, ele pode ser desconhecido, mas precisamos confiar no mediador. Sem um mediador, sem alguém para me apresentar a foto do outro, não falo com ele, permaneço isolado. As pessoas no metrô podem curtir-se virtualmente, enquanto não se atrevem a trocar olhares, por cima do celular.

Criamos nossos meios de não ficarmos sozinhos. E de nos aproximarmos da imagem vista e sonhada. Não há experiência vedada. Por isso, a experiência única que se tem não é ruminada, pelo indivíduo. Fomos pescar, e os peixes foram atirados em nosso barco, bastando que pedíssemos por isso. O desejo pelo peixe foi atendido. E pegamos não apenas um. Atendemos também o nosso desejo de quantidade. Enquanto isso, mantemos a ideia de que uma relação amorosa deve dar-se por mútua dedicação exclusiva por "aprofundar" o conhecimento do outro, e uma troca de promessas de que um ficará somente com o outro.

Copo

Uma folha quadrada e reta, de plástico maleável, foi dobrada para dentro, por duas mãos, de modo que adquirisse o desenho de um copo. O que era plano, bidimensional, ficou tridimensional, com volume. O novo copo foi levado a uma fonte de água, da qual deixou-se derramar no interior, que é o exterior dobrado. Tão logo adquiriu a forma do copo, a água aquietou-se. As mãos seguravam aquela quantidade de água quieta. Os indicadores bateram de leve, nas laterais. Um tremor subiu copo acima, ondas formaram-se na superfície. As mãos viram a água parar, deixando novamente ver o fundo do copo. Parecia não haver nada dentro.

O bom destino


A rainha leu o destino de seu filho: a palma da mão dele dizia, pela pouca extensão da linha da vida, que ele morreria cedo. Para a mãe não ter que vê-lo quando chegasse a hora de ele morrer, ele decidiu viajar para longe.
Ao filho, a mãe não mais prometia uma vida. Houve o rompimento de uma situação de estabilidade e, consequentemente, de conforto.
Esta história chama-se "O bom diabo", e está no Histórias de Tia Nastácia, do Monteiro Lobato.
Após umas horas de caminhada, o jovem encontrou uma pequena igreja. Entrou e viu o teto meio caído, as paredes mofadas, as cadeiras quebradas. Uma estátua de São Miguel e uma do diabo completavam o quadro de ruína. O príncipe reuniu alguns homens da localidade e ordenou que reformassem tudo.
Terminado o serviço, os homens chamaram-no. A igreja estava uma beleza, a madeira das cadeiras e confessionário novinha, o piso e o telhado como se não tivessem visto o tempo. São Miguel estava renovado. O diabo, contudo, fora deixado na mesma.
"Porque não pintaram o diabo? Eu ordenei que reformassem tudo.", disse o príncipe, que bem havia reparado que sobrara material para fazer reforma. "Consertem e pintem o diabo!".
O príncipe seguiu viagem. Com o fim dos últimos raios solares, ele teve de pedir abrigo na primeira casa que encontrou, naquele caminho de mato fechado. Uma velha o recebeu com amabilidade. Ela lhe disse que os moradores daquelas redondezas, ela, inclusive, estavam acostumados a receberem viajantes. Ele que não se preocupasse com nada, naquela noite!
A velha deu-lhe alimento e mostrou onde ele dormiria. Durante a madrugada, no entanto, a velha bisbilhotou os pertences do jovem. Encontrou o dinheiro que ele levava consigo. Pegou uma parte do dinheiro, guardou, e chamou a polícia. Ao policial a velha disse que uma quantia em dinheiro dela havia desaparecido, e que ela desconfiava do jovem que ali encontrava-se hospedado. O policial fez uma busca no meio das roupas do jovem, e realmente viu que havia dinheiro guardado. A velha sempre vivera naquela região, era conhecida. Não parecia haver razão para se acreditar num forasteiro.
Isto tudo se passou distante do reinado da família do príncipe. O rei dali não conhecia aquele jovem. Por ter roubado a velha, este foi condenado a morrer na forca.
No dia da execução, São Miguel e o diabo estavam de conversa. "Que linda essa pintura, heim? Estou em plena forma!", disse o diabo. "Pois, é. Um jovem príncipe passou por aqui e cuidou para que tudo fosse restaurado. Mas você sabia, diabo, que este príncipe está pretes a ser enforcado, por uma condenação injusta?". São Miguel contou ao diabo a obra da velha. "Preciso fazer alguma coisa.", disse o diabo, que transportou-se para o castelo do rei, solicitando que o chamassem.
O diabo contou ao rei tudo o que havia se passado. O rei mandou suspender a execução do jovem, e que a velha fosse trazida até ele. Ela resistiu um pouco a dizer a verdade, mas acabou confessando. Seu castigo foi ser amarrada no lombo de um burro bravo, a ser solto para uma infinita galopagem, na floresta. Ao príncipe foi apresentada a filha do rei, que estava a espera de um noivo.
Nesta história, o príncipe havia perdido a base para sustentar sua expectativa de vida. Caiu na estrada. Contudo, esperança ele possuía, e cuidou de São Miguel e do diabo. Este não esqueceu do príncipe, aparecendo para ajudá-lo, na hora certa.
Provavelmente, o diabo passará a acompanhar o príncipe, falando em seu ouvido para que pare a cada vez que ele estiver na iminência de fazer algo que o prejudique.
De forma maniqueísta, dizemos que determinadas figuras voltam-se exclusivamente ao mal, outras ao bem. O diabo, aqui, não é o demônio, mas um anjo da guarda, com quem o príncipe comporá uma dupla, uma relação de intimidade, ao mesmo tempo animadora e protetora.

O terceiro e o amigo: dois tipos de desconhecidos

A mãe quer que o filho faça ou não faça alguma coisa: "se eu chegar no três, você vai ver! um, dois...". O filho obedece. Um dia ele pergunta o que acontece quando ela chega ao três. "Eu não sei.", é a resposta.

A criança é ela e a mãe + ela e o anjo protetor + ela e o pai + ela e o amigo da escola. Um pequeno universo de parceiros, com os quais a criança faz dupla, e passa a existir junto com o passar a existir de cada um deles. Não há o terceiro.

Os parceiros mãe, anjo, etc, são nomeáveis. O terceiro seria inominável. O terceiro está fora desse universo. Nenhum dos seus participantes o conhece. A mãe lembra a criança deste terceiro, deste sem rosto que faz com que a passagem do dois para o três, na contagem, seja ansiosa para os que compartilham e existem em dupla.

Ninguém quer o terceiro, pois ele divide a dupla, talvez para sempre. A mãe chama o homem do saco, rezando para que seu desejo não se realize.

Tem um desconhecido que não está fora. O amigo não é a mãe, não é um parceiro. Agambem, em "O amigo" (http://www.bsfreud.com/AgambenCaon.html) o diz como um "outro si mesmo", hetero autos, do Aristoteles. Com ele se sente e pensa as mesmas coisas. Com ele se existe junto, como ocorre com um parceiro, mas sem que se constitua um "eu e ele", mas, sim, um "eu e meu amigo", muito próximo de "eu e outro eu".

Com um amigo, não dá para saber quando começa o outro e termina o um, como um pote de sorvete tomado junto: ele não está sendo dividido. Se dividimos o pote de sorvete, mesmo que irmãmente, estamos no campo da parceria a fim de paz, da justiça, não mais do existir junto e misturado.

"Meu filho Adriano sabe dividir o sorvete com o irmão", "Minha mãe é boa cozinheira": Dizemos essas frases a respeito de parceiros. Agora, "eu te amo" ou "eu te amigo", "amor" ou "amigo", não aceitam predicado, lembra Agambem. Nelas o sujeito está referido a si mesmo. Lembre-se de como é fácil fazer um programa na companhia de um amigo: basta escolher sua pizza e filme preferidos, que serão exatamente o que o amigo estava querendo.

Porque você ama alguém? Como responder isso sem falar de si mesmo? E, da mesma forma que ê difícil olhar para si mesmo, é igualmente difícil olhar para um amigo. O que se faz é apontar o rosto para um lado e ter o do outro também apontado para lá. Conhece-se um amigo quando não se o conhece.