terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Baudelaire quer pegar mulher


Em "A uma passante", Baudelaire vê, no alarido da rua, uma mulher passar. Alta, sutil e suntuosa. Ele se paralisa. Ela ganha distância, perde-se na multidão. Talvez ele nunca torne a vê-la. Ou talvez a eternidade lhe presenteie o reencontro com ela.

"A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz... e a noite após! - Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez, Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
("A uma passante". in. Baudelaire, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira)

A cidade é de encontros fortuitos. No momento em que viu a passante, Baudelaire a absorveu, gravou-a na memória. Um rápido acontecimento, mas uma experiência de longa duração. Os salões, festas e cerimônias eram os lugares para o burguês flertar. O pobre conhecia sua mulher na fábrica e no trabalho de rua. Do convívio social, ia-se para um lugar reservado. Dele, ia-se para a casa de um dos dois, e dela, para uma casa em comum. Formariam um lar burguês, a salvo dos movimentos da cidade, com objetos de propriedade do indivíduo refletindo a sua imagem. A propriedade dele ninguém tomaria. Os objetos são o espelho para o si mesmo. Se os primeiros permanecem, o eu também permanece. O mal é que ele viu aquela interessantíssima passante, completa desconhecida dos seus círculos sociais. A inacessibilidade é o segredo do charme dela.

Lá pelos meus quinze anos, um amigo estava de encontro marcado com uma menina a quem conheceu trocando cartas. Tínhamos revistas de rock, e nelas havia uma seção de anúncios de gente à procura de amizade e namoro. A caracterização do anunciante era os gostos e interesses que ele dizia ter, além do nome. A menina do meu amigo era Michele "Cobain", um nome estilizado. Nenhuma foto havia dela, no anúncio. Mas meu amigo disse que eles haviam trocado fotos.
Uma revista de rock não é a rua: é um ambiente particular, o "do rock", e não o mar de "qualquer um", da cidade. O indivíduo encontra um lugar para si mesmo. A revista o espelhava. E o tempo das cartas ritmava o encontro com o outro, que, após o decorrer de algum tempo, entre escrita, espera, leitura, nova escrita, e assim por diante, ele tornava-se conhecido. A passante da rua, inacessível, e o correspondente sem imagem e com quem se dividia um tempo longo, são, para o indivíduo, não outras pessoas, mas a própria experiência de incomunicabilidade e perda, no primeiro caso, e espera e imagens feitas só pela imaginação, no segundo caso.

As palavras e as fotos que cabiam numa carta eram o material com que meu amigo formou a sua garota. Eles ficaram um bom tempo nisso, até marcarem de "se conhecer". Ponho entre aspas pois eles já se conheciam, por cartas. Sting, em "Message in a bottle", não conhera revistas especializadas e clubes sociais: o cantor enviou um S.O.S. para o mundo vago, o aberto, esperando que alguém o notasse. As colegas da escola e do prédio eram quem havia de imediato, para se conhecer. Nem sempre a emoção facilitava a conversa com o intuito de namorar. Ou nem sempre alguém da comunidade era interessante. Além do que, raramente eles tinham os mesmos gostos que um garoto que ouvia e se vestia de Nirvana justamente para se diferenciar deles. A revista tinha gente diferente e selecionada. Levava para fora da comunidade do prédio e da escola. Era a comunidade conquistada pelo próprio jovem. Com a internet, a troca de cartas ficou muito mais ágil. Eram os e-mails. Dali a pouco, as salas de bate-papo e os messengers permitiriam a efetiva conversa. Podia-se dizer uma frase e ter a resposta na hora. O tempo de espera desaparece: era o tempo de chegar em casa e conectar, e no mesmo horário que o outro.

Nos programas de bate-papo, conversava-se com quem se havia encontrado pessoalmente ao menos uma vez, e pedido o e-mail. Já nos sites de bate-papo, encontrava-se pessoas novas, mas dentro de um filtro de interesses (sexo, namoro, amizade, faixa-etária, etc) e de localidades.
Devido a estes filtros, e ao não uso de fotos, esses sites funcionavam como a revista de rock, e outras revistas com seção de anúncios para relacionamento. Os programas de mensagem permitiam a troca de imagens. A imagem passou a ser importante, junto do texto, e este ficou mais ágil e conversacional, e menos longo, demorado e com menos chance de enlevos literários, do que ocorria com as cartas.

O orkut baseava-se em reunião virtual de pessoas por características, gostos, localidades, e muitas outras coisas, em comum. Conversava-se com pessoas que se auto-selecionavam, por aqueles critérios. Via-se as opiniões de alguém. Via-se um perfil, postagens e fotos. Aqueles critérios e as fotos faziam-no ser interessante, ou não, para um flerte. Pelo bate-papo privado, estreitavam-se os contatos. Agora, o facebook tem como ênfase o estreitamento dos contatos de quem já se encontrou pessoalmente. Funciona como um programa de bate-papo, mas cada usuário tem um album de fotos, para se apresentar, e expressa suas opiniões, em público. Este aspecto da apresentação por imagens e opiniões, e não por textos elaborados, faz desse site um "jornal do eu", complementado com o bate-papo. Conhecidos de muitos anos atrás se contatam no facebook, e também conhecidos de lugares não-virtuais, com quem ainda não se conversou muito. As conversas muitas vezes se aprofundam, e relações amorosas podem se desenvolver. Se você um dia encontrou alguém, em qualquer lugar, tem chance de "conhecê-lo melhor". Ninguém mais está perdido.

Chego ao programa Tinder e ao site POF (Plenty of Fish). Imagine que você está há meia hora no metrô, com alguém atraente, à frente. Essa pessoa abre um livro que você também gosta. A cidade reúne indivíduos diferentes, e com tal direito a circular e a adentrar lugares que a cada um, em circuntâncias comuns, não é exigido responder perguntas. A pessoa do metrô tem direito ao silêncio, não importando sua aparência ou as outras coisas que ele exiba. Você o verá como interessante, mas, como Baudelaire, não poderá falar com ele. Tinder e POF mostram pessoas de diversas aparências, através de fotos e breves descrições de si, para despertar o interesse amoroso de alguém. Não é o programa de bate-papo e o face, que estreita relações que começaram como não-virtuais, pois, neles, se encontra pessoas pela primeira vez; não é como o orkut, que se baseava em interesses comuns; e é completamente diferente das cartas, pois estas baseavam-se no texto, o texto que deveria favorecer a criação de imagens.

Esses sites mostram pessoas possivelmente interessantes, no aspecto amoroso, para o indivíduo. Aproveitam o interesse dele próprio em se mostrar interessante. São especializados em encontros entre desconhecidos, que se atraíram mutuamente, e tendo as fotos como ponto de desencadeamento. São como uma rua, com a diferença que, neles, você pode abordar a pessoa. A autorização para isso é dada justamente pela confirmação do mútuo interesse. É como se, no metrô, um terceiro perguntasse a você do seu interesse por aquela pessoa, e perguntasse a ela o interesse dela em relação a você. O programa e o site fazem essa mediação. Neles, Baudelaire encontraria uma mulher elegante, e poderia abordá-la. Mas então ele não seria Baudelaire, o poeta da solidão de um indivíduo numa multidão, e do encontro amoroso impossibilitado pelo urbano. Ele não ficaria curtindo longamente a experiência de ter visto a bela mulher. Até mesmo porquê, a mulher seria abordável. Além dela, ele veria um sem número de outras mulheres que poderiam interessá-lo. A própria rua de hoje exibe uma variedade e quantidade maiores do que na época dele, e a internet acompanha isso. O outro é cada vez mais o abordável, e menos um estranho. Eu sou cada vez mais comunicativo, e menos isolado. Isso é verdade, conquanto esse outro esteja no site, e o mediador tenha nos preparado para o encontro. Ou seja, ele pode ser desconhecido, mas precisamos confiar no mediador. Sem um mediador, sem alguém para me apresentar a foto do outro, não falo com ele, permaneço isolado. As pessoas no metrô podem curtir-se virtualmente, enquanto não se atrevem a trocar olhares, por cima do celular.

Criamos nossos meios de não ficarmos sozinhos. E de nos aproximarmos da imagem vista e sonhada. Não há experiência vedada. Por isso, a experiência única que se tem não é ruminada, pelo indivíduo. Fomos pescar, e os peixes foram atirados em nosso barco, bastando que pedíssemos por isso. O desejo pelo peixe foi atendido. E pegamos não apenas um. Atendemos também o nosso desejo de quantidade. Enquanto isso, mantemos a ideia de que uma relação amorosa deve dar-se por mútua dedicação exclusiva por "aprofundar" o conhecimento do outro, e uma troca de promessas de que um ficará somente com o outro.

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