quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Ser filha. Ser mãe.


Em um dos seus episódios, Peppa e seu irmão, George, vestem-se, respectivamente, com as roupas da mãe e do pai. Peppa senta-se diante do pc da casa e começa a digitar. Saem letras embaralhadas. Ela, vestida de mãe dela mesma, e o irmão, vestido de pai dele mesmo, saem pela casa, arrumando o que fazer.

Surge a outra mãe dela, ou a mãe dela que nao é Peppa, e a chama e ao irmão pelos nomes. Peppa responde que não é Peppa, mas mãe de Peppa. A outra mãe diz que isso é uma pena, pois ela tem sorvetes para dar a Peppa e a George. Estes, então, rapidamente tiram a roupa dos pais.

Desde as primeiras explorações em seu ambiente, a criança, que também explorou e conheceu os pais, levará algo do jeito destes para o contato com as coisas. Tão logo perceba que a manipulação de objetos é feita com vistas a um fim, ela tentará, o máximo que puder, seguir aquelas etapas, os movimentos adequados e realizar o fim.

Os indivíduos da nossa espécie desenvolvem-se imitando aqueles que vieram antes e se apresentam como cuidadores. Se os pais mexem no fogão, e depois me põe sentado para comer, esse é um comportamento a ser repetido. É um comportamento a ser aprendido, mas este aprendizado quer ocorrer com o uso da prática.

"Mas mexer com fogo e faca é perigoso!". Menos dramaticamente: "ele não sabe mexer no pc.". Tentamos barrar o acesso deles ao que apresenta risco físico a eles mesmos, e mediamos o acesso deles aos outros aparelhos. Mas, quando estiver sozinha, a criança vai querer repetir o que já fez, ou o que nos viu fazendo. Afinal, também fazemos estas coisas quando estamos sozinhos.

Desde cedo, porém, a criança não está sozinha: ela tem um anjo da guarda, um deus protetor, cuja proteção não é contra danos físicos, mas contra a solidão. É um parceiro, um amigo imaginário. E este não diz não à criança, no sentido de "não faça isso, que é perigoso". Muito menos explica o porquê desse não. Isto fica para os pais. Se o amigo imaginário diz um não, é no sentido de "você não gostaria de fazer isso, não é o que você quer, isso não será divertido".

A criança não pensa sobre o que está pensando fazer. Ela pensa e faz. O adulto cuidador quer que ela dê um passo a mais, antes de mexer no fogão: ela deve parar e pensar se pode fazer aquilo. E esse limite inicialmente não é "um não posso porque não sei" ou "porque é perigoso", mas porque "a mãe não quer que eu faça". Da criança se espera a formação de algo interno para o qual ela deve submeter sua ideia, e ter refletida a aprovação ou desaprovação.

Todos sabemos da dificuldade de se formar esta sofisticação a que damos o nome de consciência. A consciência pode ser entendida como um outro eu, como um si mesmo, com quem devo conversar e me entender. Os pais, inicialmente, fazem o papel de auxiliares do eu da criança, no que tange as orientações e ordens. Orientações e ordens às quais ele ouvirá menos do que se enganjará no impulso de imitar os próprios pais.

A criança percebe que certas atividades requerem habilidades a mais do que ela mesma tem. Para cozinhar algo, é preciso estar vestido de mãe. Vestir-se de mãe será feito pela menina quando ela brinca que está saindo sozinha. Para fazê-lo sem as interpelações da mãe, a menina veste-se da própria mãe, vira a responsável da menina. Ou vira alguém que não precisa ouvir outros. Ninguém fica falando à mãe o que ela deve ou não fazer.

Tem horas em que é bom ser a mãe de si mesmo, ou ser um eu sem mãe. Mas logo chega a hora em que a criança para de explorar, e quer descansar. Quer deitar e deixar que as ideias apenas passem por ela. E no colo da mãe encontra o simples abrigo, uma cinestesia já bem conhecida, e que proporciona o acalanto.

Encher a boca de sorvete é outra coisa que proporciona uma atmosfera, um envoltório dentro do qual fica tudo bem (Sloterdijk fala da boca que é tomada pelo caramelo, e da sensação de abrigo que isso produz).

Dedico este texto aos meus dois amores, Lili e Lalá.

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