segunda-feira, 14 de abril de 2014

"Nós podemos fazer tudo"

Estive novamente no sarau mensal do Grupo de Teatro Paz e Amor, do Rio de Janeiro, voltado para a terceira idade. Levei minha avó, como o fiz na outra vez, nossa primeira ida ao sarau. Os participantes iam até a frente do palco para cantar músicas antigas. Também faziam apresentações de dança. Uma das mulheres que cantaram apresentou-se com uma linda roupa de espanhola. A roupa era de um vermelho forte, e tinha a cintura ajustada. Chamava a atenção também os seus cabelos loiros. Enquanto transcorriam as apresentações, um homem dançava com muito suingue, sempre sorrindo. Uma mulher foi ao palco contar uma piada. A apresentadora preveniu a platéia de que seria piada pesada. Um grupo apresentou o "beijinho no ombro", da Valesca, reproduzindo os movimentos da coreografia. Novamente a mulher das piadas foi ao palco. A mestre de cerimônias discursava entre as apresentações. Uma hora ela falou que o idoso não precisa mais preocupar-se com o que vão pensar dele, e pode fazer o que quer. O adolescente quer ser notado. Ao contrário do que se pensa, ele confirma as expectativas que a família tem sobre ele, pois o que ela espera é que ele justamente tente decidir com a própria cabeça, embora, ainda, imaturamente, e force os limites da família. Para Kant, sujeito é aquele que, no âmbito da razão, produz por conta própria suas ideias, e, no âmbito moral, elabora os próprios juízos acerca do que deve ou não fazer. Ele usa a própria razão para pensar sobre as coisas, bem como para decidir o certo a se fazer nas situações que estão diante dele. Esta é a imagem iluminista do homem, "consciente dos próprios pensamentos, responsável pelos próprios atos". Do adulto esperamos que saiba orientar-se na vida, observando, lendo e dialogando sobre acontecimentos, e estudos ou trabalhos que queira realizar. Esperamos que ele saiba o que fazer nas situações corriqueiras ou excepcionais, no trabalho e em sua família. Ele deve ponderar o que os outros lhe dizem, tomar decisões e incentivar a que outros também sejam sujeitos. Porque, então, só sendo velho para se fazer o que quer? Temos encontrado problemas em sermos sujeitos, ou melhor, em sermos adultos? Professores, chefe, familiares e amigos da namorada, filhos, proprietário da casa que alugamos, policiais, e outros, podem nos fazer ter dúvidas e querer pensar e dizer apenas o que é bem aceito, agir de forma que não levante questões nos outros, não faça-nos ter que explicarmo-nos. Vergonha, querer sobressair-se menos, e ter menos para responsabilizar-se. Sensação de que deve algo, deve algo para si mesmo, de que não faz o que deveria fazer para crescer na vida. Sentimento de ser indigno de ter algo, de ser amado e respeitado. Medo de perder, ser traído, roubado ("seria até justo, se o fosse"). O idoso tem sua aposentadoria, pensões, filhos criados, mandou as figuras ameaçadoras para longe. Bem, muitos permanecem receosos e envergonhados. Mesmo com o adulto tendo aqueles problemas em ser sujeito, como adulto ele é reconhecido: é quem trabalha, faz sexo, cria filhos, fala com a professora e o guarda, e vota. É quem dá e recebe dinheiro. E quem participa de conversa de adulto. O velho deixou de ser essas coisas. É incapaz, café-com-leite. Mas a falta de gente qualificada para preencher postos de trabalho mais técnicos e que exijam experiência; o viagra e os avanços nos cuidados médicos para a gravidez depois dos 40, gerando pais tardios e pessoas de mais idade saindo de casa para divertir-se, fazer turismo e consumir, etc, fazem o velho ser coisa do passado. Homens e mulheres de mais idade vestem-se bonitos e sensuais, dançam e vivem novas emoções. Deixam os netos para as babás que os pais arranjam. Seus filhos assistem boquiabertos a isso tudo, escondendo o rosto quando os vêem rir, despudorados, de piadas sujas. E dançando até o chão (a medicina e os demais tratamentos de saúde, e os crescentes incentivos a que divirtam-se, permitirão isso), com o dedinho na boca. Lidar com o corpo é para gente madura. E a maturidade tem coincidido com o atingir de uma idade avançada. No entanto, mesmo com imaturidade e falta de segurança, fazer uma família, encarar o cuidado dela, passar por uma formação e enfrentar o trabalho, são tarefas que ainda se espera que sejam realizadas pelos que têm mais de 25. É preciso passar por tudo isso até para que se atinja a posição de "ser maduro". Os idosos vêem os jovens assumindo namoro, mostrando-se apaixonados, e sorriem com um misto de alegria e percepção de ironia, pois sabem o que aguarda aqueles garotos. Enquanto os adultos querem ser donos de seus narizes, a pessoa com mais idade já chutou o pau da barraca. Tirem as crianças bobas da sala.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Livres, por isso iguais.

Os movimentos operários, nos quais Marx tomou parte, resultaram nos direitos de participação nas riquezas produzidas pela sociedade. São os direitos sociais, e eles objetivam reduzir as desigualdades, promover a justiça social. Sem isso, os direitos civis, direito à garantia de opinião, às propriedades e frutos do próprio trabalho, e à proteção da própria vida, ficam abalados: sem educação e saúde, como ter melhor emprego e renda, ter possibilidade de consumo? E, sem essas coisas, como ser olhado como um igual no direito ao respeito e ao ser ouvido em suas opiniões? A noção de luta de classes diz que há uma contradição entre o interesse do patrão e do empregado. Ela foi útil, e ainda é, mas num outro vocabulário: não se fala mais em classe social, mas em leis incontroláveis do mercado, de um lado, e da necessidade do Estado ser, além de democrático, social, de outro. Por isso a noção de luta de classes precisa ir pra estante: Marx tem que ser entendido e guardado com os outros filósofos (como diz meu amigo Paulo Ghiraldelli). Se se usa essa noção como o principal modo de leitura, não se entende as coisas direito. O problema com os direitos sociais foi sua defesa exclusiva (coisa que, em sociedades muito desiguais, pode acontecer). Em nome de um ideal socialista, de justiça social, os regimes comunistas colocaram para o Estado a definição do que cada indivíduo poderia precisar e almejar, igualizando-os. Pela igualdade, jogaram fora a liberdade. Não se podia opinar, querer algo diferente para a sociedade e para si. Sem falar que estes governos foram tão corruptos quanto os democráticos, com o agravante que não se podia falar sobre esses problemas. E sem poder opinar, fazer outros partidos, não há direito político, não há democracia. Hoje não se pensa nos mesmos direitos para todos, mas reconhece-se que diferentes setores sociais precisam de direitos diferentes para, no frigir dos ovos, terem liberdades equivalentes. Não se parte da ideia de que somos iguais, mas da ideia de que, distribuindo-se direitos civis (direitos de minorias) e facilitando o acesso aos sociais (programas de redistribuição de renda), chega-se a uma situação de igualdade (como equanimidade, não igualamento). Esse é o liberalismo de John Rawls: liberdade como justiça social. Porque é difícil pra esquerda entender isso? Estudo ruim, que leva ao desconhecimento do que seja capitalismo, liberalismo e direitos de cidadania, e, num contexto de muita desigualdade, apego cego aos regimes comunistas que estão aí, sacrificadores da liberdade.

Feito com amor biomecânico

Gosto de bolo de chocolate, seja ele de grife ou caseiro. Suco de laranja espremido na hora é bom, mas Sukita não é ruim, não. Sardinha com molho de tomate picante, da Gomes da Costa, e sardinha de feira, à milanesa, caem bem. Um bom livro da Companhia da Letras é lido com o mesmo prazer que um bom livro de uma editora pequena. O showzão dos Stones na praia foi legal. O dos Los Hermanos, no Garage, quando eles só tinham fita demo, foi bem legal. Teatro, quando é bom, é como boa novela. Uma mulher que sai com vários, quando bonita, não deixa nada a dever para a virgem bonita. Amor é ótimo, dinheiro também. Essas coisas não se opõem, uma não é inimiga da outra. O que importa é que a coisa seja boa. Quem critica o industrializado, o "de massa", o de grandes proporções, dizendo que não é feito com amor, que só visa o lucro, e diz sempre preferir o pequeno e o artesanal, é o mesmo que diz que só a virgem presta, e que acha vulgar a mulher que dá. São pessoas que adorariam fazer o sucesso e terem a alta cotação daquilo que criticam. De birra, dizem que é ruim. Não é esperto fazer a oposição "feito com amor x feito por dinheiro". Todos precisamos dos dois. Porque não avaliamos pela via do prazer? Será que ainda somos capazes de sentir prazer, e não é o enlatado que é sempre ruim?

Valesca, grande pensadora.

O que é um grande pensador? Para a maioria das pessoas, é difícil de dizer. E uma grande pensadora? É ainda mais difícil. Valesca é que não é, a maioria das pessoas pensam. A própria Valesca achou graça disso tudo. Então, quer aquele professor de filosofia tenha falado sério, quer não, ele "só pode estar de gozação". Porque é inconcebível que ela seja grande pensadora? Grandes pensadoras são poucas. As que existem, não podem se parecer com o tipo de mulher que mais se vê, no Brasil. Há uma ideia de que um elemento da cultura de massa é algo simples e de consumo rápido. Há outra, que diz que a cultura popular é de produtos mal-feitos, por e para gente ignorante. Juntando os dois, como o caso do funk que faz sucesso, é coisa simplória, que não ensina nada e que logo será trocado por outra coisa igual. Um grande pensador leva tempo para formar-se e pensar algo grande. E de grande será chamado se se espalhar e permanecer. Grande pensadora é a mesma coisa. A bunda da Valesca é grande, e demorou tempo para fazer. Mas bundas grandes tem muitas, por aí. Bem, Valesca canta funks sobre a mulher que quer dar, dar o troco no homem, fazer sucesso pelo corpo, ser invejada e devolver com um beijnho no "dar de ombros". Ela não se importa com ataques e elogios engraçados. As músicas dela, contudo, importam. Ela fala de momentos novos do drama homem-mulher, em que ela não é sofrida, mas também não é macho, nem mulher-macho. É outra coisa: feminina e forte nos próprios desejos. Põe o desejo, nascido das entranhas dela, no mundo, mas quer ser cortejada e desejada. As coisas que Valesca fala não começaram ou terminarão com ela. Tem outras mulheres e homens vivendo a "gostosa-forte", "desejável-desejante". É tarefa de pensadores, não precisando ser grande, não necessitando ser mulher, descrever essas coisas. Não será ela a pensar nessas coisas, que vive e mostra. Ela quer passar ligeira nisso, e em tudo o mais. O problema não está nela, mas nos grandes pensadores. Opa, neles também não: em quem fala sobre eles. É que estes divulgadores andam grandes demais, e nunca ouviram funk. Então, tá: salvo raras exceções, a grande pensadora que temos é mesmo a Valesca. Ao menos ela o povo entende.

É diferente o olhar entre amantes

Na novela das nove, Antonelli e a fotógrafa dançaram coladas. Beijaram-se à sombra. Fizeram mais coisas, off screen. Antonelli diz à pintora que o olhar entre elas mostra que tem algo diferente rolando. A pintora só quer saber se Antonelli sente a diferença do olhar que recebe. O olhar do amante é terno e desejoso. Quer cuidar e ser correspondido. Quer que o amado saiba, e demonstre, que o melhor olhar, o que pode vê-lo como ele realmente é, e cuidá-lo, é o do amante. É um olhar muito quente, de leão na gazela; cuidadoso, de leoa na cria. Não dá pra disfarçar. Olhar nos olhos do amado, ver os próprios olhos nos dele: isso prolonga a permanência de um na frente do outro. Então dá tempo para o amante aconselhar, falar, exibir-se. O amado toma essa exibição do amante como um espelho para ele próprio. O amado se conhece ali. E a beleza do amado é admirada pelo amante. Enche os olhos dele, e os transborda. Molha de volta os do amante, que também se apaixona. Ou seja: admiro meu amor, e demonstro isso, rindo com os olhos, piscando com a boca. Ele gosta, acredita, mostra-se mais belo, para ser mais admirado. Ama o olhar que recebe, então passa a reparar naquele que o amou primeiro. Um estado especial toma conta deles. Antonelli e a pintora olham-se muito. A pintora viu o melhor de Antonelli, e fotografou, deu eternidade e publicidade. Os olhares que elas trocam dizem tudo. Ninguém anda cobrando o beijo gay. Olhamos o olhar delas, o qual a novela nos chama atenção de que mudou. Automaticamente imaginamos tudo. Mas não temos mesmo curiosidade de ver aquele beijo e sexo? Como elas se beijam, entre aqueles olhares? Pelos olhares, relembramos o que é a paixão. Mas o modo com que se tocam, o toque trocado entre amantes, o toque do desejo e do carinho, também precisam ser relembrados. A dança é pura imaginação. Um pouco de curiosidade, amor de ver o amor, exercita e deixa excelente, sem vícios, a curiosidade. E inspira a que se viva o engrandecimento de alma que é o amor.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Sobre a greve dos garis

A greve dos garis recebeu maior aprovação das pessoas do que a dos professores. O gari trabalha com o que ninguém quer mexer. Diz-se que é a profissão que acena para quem vai mal na escola (embora esteja se percebendo a alta concorrência nos concursos de gari, e se diga que "até pra ser gari" um mau aluno não serve). Diz-se que são injustamente invisíveis. O carnaval mostra que todos aspiramos à nobreza, que nos pensamos essencialmente diferentes, para melhor, do que quem está do lado (reparem que uma porção de escolas chama-se Império de algo, e, em nome do luxo, utiliza-se penas de animais, quando poderiam ser sintéticas). É uma festa em que qualquer um pode ser nobre. Vivemos o resto do ano sem sabermos exatamente qual o manejo e o destino dado ao nosso lixo. Temos nossos escravos de uma só cor para cuidar dele. O gari, pensamos, difere de nós pela inteligência, por ter que sofrer concorrência (ninguém aqui pega condução lotada) e por não ter face. Então o gari aparece falando que quer aumento de salário. Sim, ele recebe salário! Eu sei, muitos de nós não recebe salário. Não um salário que apareça no jornal: R$ 800,00. Ganhamos mais. Podemos até ganhar menos, mas ninguém mais fica sabendo, assim tão fácil, quanto recebemos. E ninguém aqui recebe adicional de insalubridade. As ruas do Rio estão com montanhas de lixo, mas as pessoas apóiam a greve dos garis. Este apoio não me parece a defesa de um pagamento mais justo, pela insalubridade por que ele passa. Não me parece também a defesa de um salário que permita alguém viver dignamente, pois o professor ganha o mesmo e nosso apoio para eles foi menor (nossas reclamações com as montanhas de criança fora da escola, querendo retirada rápida, foram maiores). Apoiamos a greve dos garis porque o modo de vida liberal, dentro do qual fantasiamos que somos reis, mostrou sinais de abalo com a greve dos garis: achamos que se eles não tiram nosso lixo porque o governo, pago por nós, não os paga o suficiente para que funcionem sem parar ou ranger, que o governo pague-os mais. A frente da casa ainda pode receber mais uns sacos de lixo, mas os garis, a menos desejada das profissões, aquela em que mais o trabalhador parece igual, e diferente de nós, precisam de um bom ajuste, para ficarmos tranquilos. Os professores nos fariam mudarmos em nós mesmos - quem liga pra isso? "E vai chiar por causa do dinheiro dos lixeiros, meu nobre? Paga logo os caras aí!".

A mulher toda

Valesca Popozuda mostra que não só o corpo da mulher é todo dela, mas que o próprio corpo é toda ela. Meu corpo é todo eu. A Valesca apresenta suas lutas (inveja, traição, desejos) como relacionadas ao corpo próprio: invejam-na pelas jóias que ostenta, e por ser olhada por muita gente, ao que ela responde com beijinho no ombro; ela canta que, na exploração por que passava , ela "lavava e passava feito uma maluca", e que agora viraria puta; ela é desejada, mas a "porra da boceta é dela", e seu uso seguirá os desejos e vontades da dona. Há gente que ouve a Valesca, e outros artistas populares, tomando-os como engraçados. Realmente, o popular é o não refinado, o não espiritualizado: as opiniões saem espontaneamente, falando pelo corpo todo, e a expressão das emoções é "barraqueira". Rimos deles, mas, no momento em que começamos a dizer que nosso corpo nos pertence, que devemos viver, escolher e controlar os próprios desejos, é para esses artistas populares que olhamos, não para a cabeçudisse de Caetano, ou para a "alma feminina" oferecida pelo Chico. Aprendemos a ter prazer com o "lepo, lepo, lepo', e com o "quero te dá, dá, dá...". (Leiam também o texto do Vitor Lima, a respeito do Dia Internacional da Mulher, 8 de março: http://lima-vitor.blogspot.com.br/2014/03/o-corpo-e-todo-da-mulher-nao-pera.html)

Matam-se os pobres

Matar alguém pode passar na cabeça de qualquer um de nós. A maioria, porém, não o faz. Policiais vêm de um contexto de pobreza. Hoje carregam armas, mas ganham muito pouco. Lidam com pessoas que não são vistas como "um de nós", mas com desconfiança e até vontade de eliminação. A mulher baleada, jogada na viatura e arrastada era preta, pobre e favelada. É como a mãe de qualquer um daqueles policiais. Na favela, aquele contexto de falta de tudo, no qual a única saída é exercer a violência, o policial e o miliciano não vêem nenhum problema em matar quem lembra sua própria miséria. Eu gostaria de uma polícia que andasse com suas armas guardadas. Para isso, não poderia haver ninguém mais com posse de arma. Uma polícia que fosse agente de proteção, de educação para o respeito de direitos, e não de intimidação e assassinato , pagos com os nossos impostos.

A mosca e eu

Deixei o pote de doce de leite, vazio, sobre a mesa. Também permaneci, sentado, vendo vídeos no celular. Uma mosca veio rodeando e pousou na boca do pote. Agucei o olhar para encontrar a tromba dela. As moscas alimentam-se por uma espécie de tromba. A desta mosca era enorme. Ela sugou um pingo mínimo de doce, que em pouco tempo desapareceu. Seres mínimos realmente consomem as coisas, não é só a gente. Antes de a mosca terminar o pingo, porém, num movimento brusco, assustei-a. Foi sem querer. Ela voltou, rodeando e decidida. Foi sugando. Eu era apenas um observador. O homem é apenas um observador para o que é muito grande ou muito pequeno em relação a ele. Ele deve fazer o que pode para não destruí-los para que, enfim, possa continuar tendo o máximo e o mínimo para observar. O máximo mostra ao homem que há uma força além da dele. O mínimo, que a força dele tem que ter limites. O máximo, o mínimo e eu: Essas medidas passam diante dos nossos olhos. Pouco reparamos nessas medidas. Qual o meu tamanho? Qual o tamanho do pote e do pinguinho, para a mosca? Os milhares de olhinhos, arrumados nos três olhões dela, enxergam isso?
Uma mosca pode pousar num pote de doce de leite que você não quer mais. Não pode?

sábado, 5 de abril de 2014

Falsos demônios

"O estuprador é um demônio que feriu um direito meu", fala o direitoso. "Eu não mereço ser violado, mas o estuprador é fruto de um problema cultural", fala o esquerdoso. O direitoso cria uma figura de acusação e a mistifica. E mantém uma visão aparentemente racional sobre si, dizendo que é indivíduo de direitos. Joga suas fantasias e temores no outro. O esquerdoso tem explicações culturais, sociológicas e psicológicas para o problema do estupro. O estuprador não é estuprador: é alguém que estuprou, não uma essência e, por isso mesmo, pode ser mudado se tivermos mudanças culturais e se políticas públicas favorecerem isso. Até aí eu concordo com ele. Seu discurso começa a ficar problemático quando fala do próprio eu: seu eu é essencial, um santuário de onde emana a Vontade decisora sobre o próprio corpo. O eu é o centro da moral do esquerdoso. Tudo conspira contra ele. Quem comete um estupro não é o problema: o problema é sempre maior. Lógico que tanta racionalização para o social é, no caso do esquerdoso, uma mistificação, que é mistificação do eu-consciente-eterno lutador, e outro-vítima- alienado. Para o direitoso todos os problemas do mundo são resultado do mau uso que um indivìduo faz da liberdade dele. Esse mau uso fere a liberdade de quem o acusa, que é quem discorre sobre direitos civis, mas, na eleição de uma figura para ser o demônio do momento, temendo-o e esquecendo os direitos civis desse outro, mostra que o apego aos próprios direitos não é racional, mas paranóico. O outro é super consciente do que faz, por isso deve ser super punido. Eu suspeito dele, não sei do que ele é capaz, nem do que eu mesmo sou capaz. Sou um militar gay estuprador enrustido. E nem quero ter consciência disso, pois tenho muitas certezas do que fazer com o outro.

Dores mal entendidas

Indignar-se com a miséria; sentir medo de ser assaltado na rua: como usar a própria experiência para pensar nas coisas que acontecem, de forma melhor e mais ampla? Como não atolar em si mesmo? Constantino diz que puseram-lhe uma arma na cabeça. Para ele, quem comete crime não merece ser olhado como um não cidadão e um ser fadado a morrer jovem. Não o vi dizer, mas a expressão "pena de morte' cabe bem em sua boca. E a defesa que ele faz da propriedade privada revela-se não liberal, mas fóbica e anti-liberal. Não deve existir esperança de algo melhor para todos. Os sonhos terminam na "prisão do bandido". Por outro lado, há os que vêem como solução para o mendigo a retirada geral da liberdade de troca comercial e de ter propriedade. E que o Estado seja dono das empresas, das nossas ocupações e consumos. E da nossa voz, pois no totalitarismo, quem tem outra coisa pra falar? "O capitalismo não tem jeito, nele o governo favorece a exploração", então, que todos vivamos num inferno cubano. Que implante-se a utopia na marra. A direita ruim quer a eliminação dos pobres, não a resolução da pobreza. A esquerda ruim, o igualamento de todos num nível próximo do miserável, pois consumir é feio. De ambos os lados, falta de ponderação sobre o que vivem e afundamento em mágoas pessoais. Não há qualquer chance para o entendimento de nada, dos conceitos que usam à dor do outro. Da própria dor vêm, na própria dor ficam, os militantes de cá e de lá. http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/cultura/um-post-scriptum-na-carta-para-leticia-spiller/

Gritos com professores

Democracia é governo com o aval da maioria. Os indivíduos sob regime democrático apresentam suas opiniões sobre as necessidades da cidade e as próprias. Para isso funcionar, é necessário que haja uma identificação de interesses próprios e coletivos: "o que eu preciso é que o trânsito melhore". Além dessa identicação, para que um indivíduo possa apresentar-se na discussão política, ele precisa ser educado, passar por escolas e professores que o ensinem a pensar tecnica e moralmente, e a saber, na relação dele com a cidade e o Estado, quais são seus direitos e obrigações. Ele deve conhecer muito bem o que exigirá do governo. Não basta pedir saúde. Tem que saber o que é saúde, doença, tratamento, hospital, profissional de saúde, política de saúde, etc, para que uma exigência seja efetiva. Como também falta escola, não se aprende o que é saúde, e muito menos o que é escola. A democracia requer, portanto, educação e um modo de vida democrático, um gosto pelo opinar e pelo debate de opiniões. A democracia pode acolher, em seus debates, opiniões antidemocráticas. A educação pré-universitária é inexistente. Chega-se à universidade para tudo, menos para se estudar: faz-se amigos, namora-se e politiza-se, faz-se de tudo menos estudar. Professores mais rígidos, os que fazem o aluno tet disciplina, conseguir raciocinar e formar suas opiniões, e ouvir a dos outros, são detestados. Uma coisa que se consegue ouvir numa escola, mesmo que não se assista aula, é que a ditadura brasileira foi ruim. Ouve-se isso porque isso é dito em todo canto. Militantes à direita ou à esquerda não sabem o que elogiar ou nunca mais querer ver numa ditadura. Quem elogia jura que o país melhorou em tudo, e tornou-se menos violento. Quem não gosta de ditadura diz que nela não se podia falar, e quem falava era torturado, muitas vezes morto. A militância de esquerda fala o certo. Contudo, ela não sabe explicar porque é errado não permitir a expressão de uma opinião. O nível de elaboração dessa moral é baixo: "é proibido proibir", pronto, acabou. Não se constrói o raciocínio moral que explica que proibir uma opinião fere o direito do seu expressor. Ele deve poder falar o que quer, e educar-se para poder opinar melhor. E deve querer que o outro também dê a opinião dele. Mas o universitário e o militante não sabe porque o direito é o certo. Foi divulgado um vídeo (http://educacao.uol.com.br/noticias/2014/04/01/alunos-invadem-aula-de-professor-da-usp-que-defendia-revolucao-de-64.htm)em que alunos da USP interromperam uma aula do curso de História. Segundo a descrição do vídeo, o professor falava favoravelmente à ditadura, e esse teria sido o motivo da manifestação. Alunos calaram o professor no grito. A mesma cena ocorre em outras universidades. Educar-se não é importante. Educar-se para ser cidadão de uma democracia, também não tem valor. Instituições parecem peças pesadas demais para quem tem o furor de gritar. Todas as regras e figuras de autoridade parecem más. O bom é dizer o que vem à cabeça, mesmo que ela não tenha aprendido a pensar. Nos momentos pré-golpe de 64, o Brasil não estava ameaçado de ditadura comunista. Os militares acharam que sim, e fizeram a ditadura eles mesmos. Hoje o clima não sugere uma ditadura de direita. Mas nossos jovens vêem ditadores embaixo da cama. Agrupam-se, fazem cartazes, e aparecem para censurar e linchar publicamente professores. Acho que seu temor é que o velho conservador não tenha mais pulso para proibir nada. Por isso a turma do grito aparece para mostrar como é que se é autoritário de verdade.