sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Política para os toscos

Eis o perfil de uma fatia dos que pedem o impeachment da presidente: têm faculdade, e sempre trabalharam na área em que se formaram; têm cônjuge, e um ou dois filhos, estudando em colégio particular; têm entre 40 e 60 anos; vivem em bairros de classe média ou média-alta; lêem best sellers, auto-ajuda espírita ou auto-ajuda de marketing. A respeito de política, ouvem articulistas e colunistas especializados em falar exatamente para pessoas assim, não deixando de mobilizar as suas emoções e montar as suas opiniões.

"O governo não fez o que deveria ter feito, em políticas públicas." Quanto a isto, a emoção, para aqueles com o perfil que tracei, é a de um parco patriotismo ferido. "O governo descuidou da economia, e deixou o país em crise de trabalho e negócios". A crise no trabalho, de novo, só dói no parco patriotismo. Quanto a dos negócios, pequenos empresários e profissionais liberais sentem uma diminuição do número de clientes e do que eles têm para gastar.

"Os casos de corrupção nunca foram tão alarmantes". O tipo que descrevi não tem uma reflexão sobre o cenário político, seus meandros e história. Ele é informado sobre o que tem para ser sabido na sua área de trabalho, mas quando perguntado sobre política, diz que "está tudo uma merda, precisa mudar tudo". Mais do que isto ele não é capaz de dizer.

Até pouco tempo, politizados eram os militantes pró-minorias, enquanto o restante não se metia nesse assunto. Os politizados de hoje são essa gente que quer por a mão na política inteira, iniciando-a do zero, pelo encerramento de um governo. Eles falam na internet e são escutados. São a voz mais forte da mesa das famílias. Entre gente sem boa cultura geral e educação, estes toscos fazem eco aos articulistas-de-uma-só-opinião, levando adiante a emoção do "finalmente cuidar" de um assunto que não suportam, e que é de uma sutileza que não é para suas mãos brutas.

O exibido-rejeitado e o cafajeste

Eros é filho da Penúria com a Astúcia. O apaixonado quer o amor da sua eleita, e para isto, ele mostrará coisas para ela. Tem horas em que a mulher recebe estas coisas de bom grado, afagando o eu do apaixonado. Esse afago pode se dar por meio de um carinho físico. O eu é corporal.

Tem horas em que a mulher ignora as coisas que o apaixonado lhe mostra. Ele tenta mais um pouco, a fim de que a mulher o receba. Por fim, ele para de tentar. Nesta hora, a mulher olha e sorri para ele. O beija. Isso reaviva nele a promessa de ser aceito pela sua eleita.

Estas coisas que o homem exibe são elementos do eu (o trabalho, a profissão, o poder aquisitivo, a família, a biografia e as ideias que possui), e elementos que parecem ser de outro eu (a ousadia de faltar ao trabalho, de mudar dele, a liberalidade financeira, a capacidade de se afastar da própria família e amigos, de mudar de ideia e de características).

Algumas apresentações de elementos deste último tipo são atos inconscientes, pois passam ao largo da decisão do eu consciente. Mas, também, o próprio eu consciente pode incorporar, no exibir-se, elementos que ele considera diferentes dele mesmo, por achar que isto aumenta a sua atratividade, o seu charme.

Na passagem do casal para a situação de pós-paixão, o homem para de tentar a todo momento atrair a atenção da mulher. Isto ocorre porque ele sabe que o que oferece à mulher só ocasionalmente será aceito por ela. O homem é frustrado no seu investimento, e se retrai. Ele passa a simplesmente agir, às vezes dirigindo algo à mulher, sem que esteja intencionando atraí-la.

A mulher, em alguns momentos, por desejo, que é desejo pelo desejo do homem, chama-o para o sexo. Após este sexo, há homens que retomam aquela exibição, para a mulher, do eu e do outro eu deles, visando prolongar o interesse dela (sentem-se à vontade para falar do trabalho ou para contar piadas ridículas). E há os que viram para o lado e dormem. Estes são mais astuciosos que os primeiros, ao ministrar a dose de amor para suas amadas. Elas logo sentirão falta.

Já o exibido precisa aprender a não tomar como rejeição as recusas da mulher, e começar a também virar de lado.

Pensar e agir

Pensar é refletir: falar algo para si mesmo, elaborar e dar uma resposta como si mesmo, escutar a resposta vinda de si mesmo, e elaborar e dar uma resposta de volta para o si mesmo. E assim prossegue.

Agir é fazer alguma coisa, neste lugar e neste tempo. Essas coordenadas são sabidas, informam quem age. A partir de Hannah Arendt, os filósofos Paulo Ghiraldelli Jr e Francielle Chies (http://flixtv.com.br/tv/pensar-nao-e-conhecer-hora-da-coruja-flixtv/) definem o saber algo como o ter informações a respeito de alguma coisa situada em um lugar e em um tempo determinados. Os filósofos também definem o pensar como estando fora do tempo cronológico e do espaço geográfico, como sendo uma ação especial que ocorre numa temporalidade e numa espacialidade próprias ao pensar.

Em um determinado momento, você poderia fechar os olhos e dormir. Pega o celular, para mexer nas redes sociais em que participa. Você sabe o que quer fazer, se informa sobre o que está acontecendo na rede social, e sabe que resposta dará. Em outras palavras: você tem uma informação e uma ideia, age, tem outra informação e outra ideia, age, e assim por diante.

Quem está nesse processo não está pensando, mas articulando informação (sempre de um tempo e um espaço), ideia (imagem de algo que se queira fazer) e ação. Isso pode ser confundido com pensamento, e ser todo o pensamento que uma pessoa acha que é possível ter. E a pessoa que acha isso chamará de lentos, de perdedores de oportunidades aqueles que refletem sobre as coisas.

Quem reflete, reflete sobre coisas, não sobre o que vai fazer. Refletir sobre o que vai fazer seria já tomar como pressuposto que há algo a ser feito, e o pensamento, se é reflexão, conversa consigo mesmo, não pode aceitar o pressuposto de que há algo a ser feito, e que só resta decidir fazer, o modo de fazer, ou o não fazer. Isso não é pensamento: a pessoa que poderia fechar os olhos também poderia pensar sobre ela mesma indo dormir, ou sobre ela mesma pegando o celular. "Vai dormir? Está cansada ou consegue fazer outra coisa, ou quer fazer outra coisa?" "Vai fazer uma postagem no facebook? Sobre o que, como vai fazer? Não dá pra deixar para amanhã, ou vai acabar esquecendo? Como não esquecer?".

O pensamento não é a mesma coisa que a ação, e com ela não tem uma relação de continuidade. Pensando, pode-se evitar, refletidamente, uma ação que pode ser boa ou má. Ou pode-se agir, refletidamente, bem ou mal. Sem pensar, pode-se evitar fazer ou efetivamente fazer uma ação boa ou má, mas o fará irrefletidamente. Sem reflexão, como saber se o que se fez foi bom ou mau? Como impedir uma ação má, ou melhorar uma ação boa?

Identificação e empatia


No poema "Os olhos dos pobres", um casal está entre garrafas de vinho, em um elegante café de Paris. Homem e mulher olham a moderna avenida, que acabara de ser construída, e compartilham a admiração. Vinha uma família esfarrapada. Ela dá uma parada, a fim de também admirar a avenida. O homem que estava no café se envergonha por estar celebrando, enquanto aquelas pessoas estão em farrapos. Seu pesar pela dor (que supõe que seja) do outro é interrompido pelos gritos da sua mulher: ela exige que o garçom retire aqueles pobres da sua vista. O homem vê que a mulher não compartilha do sentimento dele pelos pobres. Mais do que isso: ela não percebe que ele o está sentindo. A identificação, entre eles, dá-se apenas em torno do esplendor da modernidade.

Parece haver sentimentos e impressões incomunicáveis entre as pessoas, em uma metrópole. Mesmo entre casais. Walter Benjamin se apoiará neste e em outros poemas, do "pintor da vida moderna", para dizer que há um declínio em nossa experiência dos feitos antigos e grandiosos, definidores de um povo ou uma coletividade e doadores de um campo comum de sentido. Concentramo-nos nas experiências que tomam os acontecimentos sob a ótica da ação e da afetação subjetivas.

Neste sentido, o que eu faço e o que eu vivencio dos acontecimentos derivam do que eu penso e sinto intimamente. Este empobrecimento da "experiência plena", e a hipostasia da "experiência íntima" levam, para Benjamin, à perda da nossa capacidade de comunicarmos vivências. Ficamos encapsulados na subjetividade.

O sociólogo Georg Simmel escreverá, pouco mais de meio século depois de Benjamin, que este ambiente lança um excesso de estímulos para o homem, mais do que ele é capaz de assimilar. Para se proteger da sobrecarga, o homem cria uma barreira de proteção, principalmente acústica, entre ele a cidade. Com atitude blasé, ele passa a andar nas ruas como se nada lhe dissesse respeito.

Computando estas coisas, desconhecemos a existência de uma alma que não seja a que se encerra numa subjetividade. Foucault diz que a confissão cristã, o exame psiquiátrico e o interrogatório jurídico serão buscas por desvendar as "verdades" sobre quem se é. Isto reforça a imagem de nós mesmos como almas internalizadas e não transparentes aos olhos, próprios ou dos outros.

Além do confessionário, da sala de interrogatório e do consultório do psicanalista, o único lugar em que a alma se revelaria é na relação de amor romântico. Sennet afirma que cada indivíduo empreende este trabalho de se contar e se explicar para o outro, e de esperar a mesma coisa dele, tentando fazer conhecer quem "de fato se é". Trabalho interminável e praticamente fadado ao fracasso, não porque as pessoas vêm de famílias, classes, cidades, etnias, sexos, e uma porção de outros elementos diferentes, mas porque é a escavação atrás de algo que não se encontra com certeza.

Enorme prazer sente quem acha que conseguiu fazer alguém entender as próprias razões, e compreender os próprios motivos emocionais. Este outro vira a "metade da laranja" ou o "best friend forever". Numa inspiração sloterdijkiana, com este outro eu me sinto em casa, no meu próprio mundo confortável e protegido.

Na internet chovem indicações de que signo seria o parceiro ideal. Ninguém vai te indicar, publicamente, alguém de uma profissão, idade, etnia, tipo físico, etc, específicos, por que isto poderia ser visto como preconceituoso. Contra signos ou "energia espiritual" não há preconceito. Se algo maior do que eu e você disse que combinamos ou descombinamos, não tenho problema em acatar. Agora, decidir buscar ou evitar relacionar-se com alguém, usando critérios "antropológicos" ou "sociológicos", não escaparia de ser visto como preconceito. Em conversas com amigos, no entanto, diz-se que foram estes os motivos porque você dispensou uma pessoa, e ficou com outra.

Os amigos te fazem se sentir seguro de que você não será acusado de preconceituoso. Eles entenderão como de valor secundário o embasamento antropológico-sociológico dos seus motivos emocionais, pois conhecem sua boa alma.

Olhando para as relações na cidade, Calligaris (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2015/08/1670800-sentir-ou-ficar-frio.shtml#_=_) conta que a queda do Muro de Berlin marcou um momento em que não havia mais barreira para a empatia entre as pessoas: não há mais motivo para a incomunicabilidade dos sentimentos e das ideias, entre as pessoas. A mulher do poema poderia finalmente sentir a dor do pobre. Nos anos 90, lembra o psicanalista, a preocupação recaía sobre o Asperger, incapaz de empatia.

Hoje nos expressamos publicamente, nas redes sociais. Queremos nos identificar com uma ampla gama de diferenças, e que elas se identifiquem conosco. Que todos saibam o que penso e o que sinto! Mas se teme quando há um psicopata ou um google que anota o que vê das suas escolhas, aprende, e lhe oferece exatamente o que você queria. Tem gente que você não conhece conhecendo você, tendo empatia pelo que você sente, pensa e gosta.

Também ocorre o seguinte: grupos se formam por pessoas que se consideram identificadas, umas com as outras, e não identificadas com as pessoas de fora do grupo. Tal coisa vem ocorrendo muito com aqueles que se identificam com determinada minoria. A ideia é de que quem se identifica com uma minoria, por se ver semelhante a uma característica da imagem social dela, terá uma comunicação mais fácil com outro também identificado por ela.

"Só uma mulher vai entender o que é sofrer um aborto". Parece haver aí um apoio na identificação em torno de determinada característica biológica, antropológica ou sociológica, para se experienciar uma identificação por almas, essências. Frases como esta, sobre a mulher, são essencialistas, recomendam que se busque e se feche num grupo, ou manda outros fecharem-se.

O mundo aberto é vivido, aqui, como dificultador do dar e receber identificações, e do dar e receber empatia, que nelas se apoiam. Faz-se, então, o exclusivismo ciumento do grupo de identificação. Ele parece assegurar um mundo particular, e uma experiência da harmonia entre quem se é e um ideal que se tem: me vejo como mulher, só mulheres sabem o que passam as mulheres, e me acho semelhante a Pagu; me vejo como negro, só o negro entende o negro, e sou como Zumbi, pelo que ele fez e passou; etc.

A identificação quer saborear um mundo particular caloroso. Os ciúmes são uma tentativa quase desesperada de fazê-lo durar.

A tragédia e a beleza de Helena



Alguns anos de separação de uma pessoa, de familiares ou de uma cidade, podem ainda dar saudades e vontade de reencontrá-los. Ou pode ser vivido como perda irreparável. Na Ilíada, Helena está há nove anos casada com Páris. Ela era casada com Menelau, irmão do general grego Agamênon.

Páris, um belo troiano, bateu os olhos naquela mulher de divina beleza, e a quis para ele. Apesar de viverem em uma época de saques e tomadas de mulheres de cidades conquistadas, não se sabe se Helena acompanhou Páris a contragosto. Deixou, além do marido e parentes, uma filha. Devido a este fato, gregos e troianos passariam os nove anos subsequentes em guerra.

Em um episódio, os gregos avançavam sorrateiramente. Os troianos os avistam, e Páris se adianta ao seu exército, apresentando-se para enfrentar os inimigos. Ao vê-lo, Menelau, grego, também se adianta ao seu exército. Ele esperava pela chance de enfrentar o capturador da sua mulher.

Os líderes dos povos vêem a necessidade de aqueles homens lutarem entre si. Combinam os termos da batalha, que pode resolver a longa e detestável guerra. Helena fora chamada a presenciar a disputa por ela. A bela mulher vivia triste. Bordava as batalhas em uma grande tapeçaria.

Quando Helena soube do que estava prestes a acontecer, a deusa insuflou, em seu coração, saudades do antigo marido. Príamo, pai de Páris, chamou-a para que ficasse a seu lado. Em reconhecimento nas notáveis qualidades presentes do lado grego, ele lhe pede que diga quem são determinado homem de porte e jeito de grande líder, determinado homem altíssimo e forte, etc. Perguntava por cada um, sempre se referindo a eles como povo, a família e o antigo marido de Helena. Não teve pudor em afirmar este fato.

Helena considerava a si mesma desgraçada por ter separado deles. Deseja a morte, para a "cadela" que era. As perguntas de Príamo faziam-na dizer, com detalhes, quem eram os personagens apontados. Este dizer a fazia reavivar a memória sobre todos eles. A respeito de Agamênon, disse ser o seu cunhado, "se é que chegou a sê-lo". A tristeza por uma longa perda tira o lugar, no coração, para a saudades e a vontade de reencontrar; martiriza a pessoa, a faz achar-se má e insegura quanto ao lugar que ocupava naquelas relações. Havia, Helena, alguma vez ter integrado a família perdida? Havia ela tido importância, para aquelas pessoas?

Helena esmerava-se no bordado das contendas. O grande tapete faria com que os acontecimentos daqueles nove anos fossem relembrados por gerações futuras. Haviam sido nove anos de rompimento dos seus laços, de perda de si mesma. O seu sofrimento não era mais só dela: era o da própria guerra. E à medida em que o tapete ia ficando lindo, Helena ia se acabando.