sábado, 18 de outubro de 2014

Você está confundindo as coisas


"Relações de trabalho não deveriam se tornar íntimas", assim pensamos. Durante a escola, ainda é permitido ser amigo de um colega de sala. Isso é estimulado, mas, à medida que se vai chegando à adolescência, os pais começam a achar ruim que o filho leve um amigo para com ele se trancar no quarto. Que eles fiquem na rua, ou seja, que as regras da cidade balizem o comportamento de um em relação ao outro! No quarto se levará apenas o namorado, ou o ficante. E, se a cidade mostrar aos pais que namorar alguém do mesmo sexo está dentro das regras, a tendência será a de se assustar menos com o namorado do filho entrando no quarto dele.

A partir dos últimos anos de escola espera-se que esteja clara a diferença entre colegas e amigos: colegas são aqueles com quem se convive em algum lugar que não a casa, mas com quem não se conversa coisas íntimas. À medida que a conversa sobre banalidades vai se tornando íntima, o colega vai se tornando amigo. Da escola, faculdade ou trabalho vai-se ao shopping ou ao bar. O assunto fica mais e mais rico, e aumenta o prazer que um sente com o outro.

Nestas conversas há atração corporal. Achamos que a conversa é entre duas bocas que só falam, e falam o que está nas "mentes" de quem conversa. No entanto, ter intimidade com alguém significa compartilhar com ele uma situação de troca de sons e sinais visuais, que comunicam mais do que ideias: trocam-se sugestões, insinuações, também recusas, receios, etc.

A gramática das relações, que estabelece graus de troca e proximidade entre as pessoas, orienta nossas reações às tentativas de aproximação, de alguém, e nossas próprias tentativas de aproximação. Mas, a lotação do quarto da criança era restrita. O número de amigos, de um adolescente, é menor que o de colegas. Também aprendemos que namorar é com um de cada vez (lembrando que o ficar permite variação de parceiro, mas, a princípio, não há muita intimidade com cada um deles. Essa intimidade tende a aumentar, caso os encontros continuem.).

A existência de um namorado não impede que um colega passe a amigo, mas o impede de chegar a namorado. Contudo, pode haver mais intimidade, trocas mais amplas e mais harmoniosas, de uma pessoa com seu amigo do que com seu namorado. Pode-se evitar que a relação com um colega chegue a esse ponto, mesmo que ela seja agradável. Mesmo que não haja um namorado, pode-se não querer ser amigo, muito menos namorado, de determinado colega. Este pode não perceber essa rejeição, e não apenas sorrir para o outro, como chamá-lo para sair. "Ele está confundindo as coisas."

Essa divisão nas relações também distingue se a relação é hetero ou homossexual. Conversa entre homens vemos como isenta de homossexualidade. Entretanto, os gregos e os romanos antigos entendiam que com um bom amigo a intimidade era, de fato, intimidade: ouvia-se alguém com prazer, punha-se a mão em seu ombro, bebia-se com ele, se lhe beijava e com ele se trocava carícias. Era intimidade corporal, sem distinção entre "mente" e físico, portanto, um ambiente em que a fala não se separava do gesto, e a conversa prazerosa de carícias sexuais.

Entre bons amigos há atração. Ou a atração é que leva dois homens a serem bons amigos. Eles podem, contudo, jamais realizar as trocas que gostariam de fazer. Eles faziam essas trocas, quando eram crianças e se lhes permitia ficar no quarto. A partir da pré-adolescência, contudo, o quarto passou a ser lugar de ficar sozinho. Isso até que chega "alguém especial". Mas ele já não existia? A esta altura já aprendemos que esse alguém especial não pode ser o amigo. Só que um monte de filmes, e nossa própria atração, nos diz que não há alguém mais especial do que o amigo.

Aquela gramática é uma regra cultural e histórica. Vivemos a contrariando: sentimos atração por quem acabamos de conhecer ou por colegas. Queremos beijar alguém antes de dizermos qualquer coisa.

Uma pessoa olha desejosa para a outra. Alguém que se vê como heterossexual pode supor um olhar de desejo homossexual, de outra pessoa sobre ele, e se incomodar com isso. Um homem não percebe quando uma mulher lança um olhar de desejo, para ele. As mulheres querem abordar homens. No entanto, o homem ainda se sente governante das investidas amorosas, em público. Por isso ele bobamente se assusta com as mudanças comportamentais que fazem a mulher tomar a iniciativa. E, diante de outro homem, ele procura pistas de que ele seja gay. Caso encontre, fará uma suposição de que será alvo do interesse dele. Isso ele vivia arcaicamente, e era bom. Ele gostaria de receber a cantada do outro. Ele recusa isso, para si mesmo. E agride o outro.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

O que fazer quando se encontra um fantasma?


Primeira coisa: se você sair correndo, perderá a chance de saber como é um fantasma. E ele corre ainda mais rápido, atrás de você. Então você se sente corajoso, e se aproximará dele? Não adianta: ele recua na exata medida em que você avança. E sem despregar os olhos de você. Correr para cima dele o espantaria de vez. Minto: ele vai para um lugar que você custará a encontrar, apesar de estar próximo de você e permitir que ele continue te observando tranquilamente. Sim, ele sempre esteve rondando, por aí. Você que nunca reparou.

Não adiantaria conseguir chegar bem perto dele, pois é como um vidro e você só veria o outro lado. E não é possível agarrá-lo para lançá-lo ao chão. Ele é uma espécie de ar. Todas as pessoas têm algo a dizer sobre os fantasmas, mas, de fato, poucas os viram. Ele apareceu para você, que, inteligente e curioso que é, não vai querer fingir que não o viu. E agora já sabe que não é para chegar perto. Mantenha essa mesma distância.

Vai tentar falar com ele? Lembre-se que ele está há muito tempo daquela mesma distância, de você. Ele já sabe tudo o que você tem para falar. Além disso, ele não ouve. Ele apenas age.

Olhe para ele. Você não pode dizer o que ele é. Muita gente que nunca o viu acha que sabe algo sobre ele. Balela! Agora, você pode dizer como ele está apresentado, e o que ele está fazendo.

"Dá para se relacionar com quem é muito diferente de você?"; "Dinheiro não traz felicidade? Ou melhor: o que há de errado com o dinheiro?"; "Porque as pessoas matam? Ou melhor: como que não matam mais?"; "Há vida após a morte? Ou melhor: porque tem que haver vida após a morte?"; "Deus existe? Ou melhor: o que é Deus?"; etc. Tais são os nossos fantasmas. De repente você surpreende um deles te olhando. Assim que começa a observá-lo, percebe que as coisas que sabia não servem para entendê-lo. Elas não te levavam a boas perguntas.

Você conseguiu se espantar e não correr. Está aproveitando essa energia para raciocinar, e conseguir entender o bicho. Se precisar, pegue caderno/caneta, do bolso, para a escrita ajudá-lo a pensar. Chegará a uma resposta. Ofereça-a às pessoas do seu face. Os que estão cheios de opiniões, acharão estranho. Dirão que fantasma não existe, como se fosse essa a questão. Ou que não se deve dar atenção a eles.

Um ou outro virá falar com você. Pode te elogiar, mas empurrará uma opinião. Pode acabar de ler, levantar a cabeça e se espantar com o que está a se mover, à frente.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Dá para se relacionar com quem é muito diferente de você?


Minhas experiências com música ou filmes, sei que são íntimas, difíceis de explicar mesmo para alguém que tenha um gosto parecido com o meu. Entretanto, caso possamos ouvir música juntos, isso já é uma troca. Relação é, além de união, a troca em torno de algo, compartilhá-lo. Mas uma experiência íntima continua sendo difícil de comunicar. Quando conto minha história de vida para alguém, e ela entende os personagens da mesma forma que eu e, ainda por cima, faz-me pensar coisas novas, com suas colocações, estarei diante da minha "alma gêmea". Mas também podemos ter ótima relação com uma alma não-gêmea.

Gasta-se dinheiro com um filme ou um show que não são exatamente os preferidos, "por amor". Por amor, mesmo, ou seja, pela união, aceita-se compartilhar aquilo com o outro. Há quem não aceite fazer algo que envolva um outro gosto, mesmo que seja para ficar junto de alguém que se goste. Aí não se continua a relação, ou se deixa o outro sair com os amigos. Para um filósofo, o que é importante em alguém para se relacionar? Sócrates vivia a filosofia dele: ele passava o tempo inquirindo seus concidadãos sobre o que eles diziam de virtudes ou características de pessoas ou ações, como a justiça, a coragem, etc. O "conhece-te a ti mesmo" perguntava se alguém realmente conhecia o que dizia conhecer, e se estava preparado para ocupar uma função, ou ser o que queria ser. Isso fez com que muitos se incomodassem com Sócrates. Ele próprio não aguentava passar muito tempo perto da sua esposa, não dada a esse tipo de conversa.

As mulheres da grécia antiga eram do âmbito doméstico, ou seja, do cuidado com a casa e os filhos. Passar muito tempo junto delas, na cama, era um dispêndio indesculpável de energia, para o homem. Não se compartilhava assuntos da pólis com elas. Sócrates não tinha em Xantipa uma parceira de filosofia. Tampouco a maioria dos seus concidadãos o eram, para ele. Sócrates não era um seguidor de auto-ajuda, não buscava evitar ou sanar conflitos. Antes a vida tinha que valer a pena. Dado que a filosofia é inseparável do modo de viver, de um filósofo, é difícil travar relações amorosas com quem não seja também um parceiro de conversa e investigação.

Um não-filósofo tem uma opinião sobre a política. Opinião não é experiência íntima, portanto, pode ser comunicada e, por isso mesmo, atribui-se muita importância ao fato de outro escutá-la e pensar sobre ela. Ainda melhor se concordar. Um filósofo gostaria de conversar com uma namorada, também sobre política. Mas ela não gosta desse assunto. Ela pode tomar como opinião o que ele diz, e fazer de conta que a aceita, ou dar de ombros, como se aquilo não tivesse que ser importante. Fazer alguém pensar igual, para um, ou fazer alguém pensar, para outro, são importantes para que eles mantenham-se unidos a alguém. Viver bem, para um filósofo, não é viver em paz, mas também não é criar guerra à toa: é estranhar as coisas, inclusive a si próprio, e é o defender um modo de vida coletivo que assegure a liberdade e que rechace os sofrimentos e crueldades. Por isso ele, muitas vezes, é um chato, observa religiosos, cientistas, juízes, pessoas na fila do super-mercado, etc, e, se precisar, "cria caso".

Montaigne, contudo, diz que o filósofo deve moderar-se: filosofia, com moderação, é bom e traz bons frutos; em excesso, faz com que o homem seja adversário da sociedade, das leis, e até dos próprios prazeres. Há uma razão natural que nos faz viver comodamente. A filosofia, enquanto um pensar sobre a razão, a natureza e a própria "comodidade", em excesso, nos impediria de viver. Diferentemente de Sócrates, para quem a própria vida era o seu filosofar, portanto, dotava-o de características particulares, para Montaigne a filosofia é uma atividade dentre outras, e que não pode ocupar tudo o que ele faz. Para este filósofo, seria possível ter um amigo com quem discordasse em algumas coisas. Para Sócrates, amigo era amigo do conhecimento, por isso, amigo pessoal.

Será que Montaigne não estimaria tanto mais uma pessoa quanto ela também fosse uma filósofa? Ele dedica um ensaio sobre a amizade a La Boetie, de quem foi amigo. O amor e admiração demonstrados no ensaio mostram a importância, para Montaigne, da parceria intelectual. Seu conselho é para o filósofo não ficar intratável, apenas abordável por quem também seja filósofo, e é útil quando travamos relações com quem "pensa diferente". Não é preciso concordar com quem se vai fazer sexo ou bater-papo. Pode-se trocar outras coisas, além de ideias. Mas, sem dúvida, o desejo de unir-se será mais forte se for com alguém a quem você admire.

No Fedro, de Platão, está que nos atraímos por alguém que, além de nos dar a impressão do Belo, lembra-nos do deus a que somos devotos, ou seja, que pareça ter as características que mais valorizamos. E faremos o possível para deixar o amado mais e mais semelhante a esse deus. O amado precisa parecer, e se deixar parecer mais, com o jeito que mais gostamos, em uma pessoa. Nessas condições, o desejo de união perdurará. Sem essa identificação, pode-se até compartilhar momentos, e ter prazer, mas a relação logo termina. Bem, uma relação com identificação e paixão também tem seu fim. O amor faz da razão um instrumento, para iniciar ou manter uma união. Mas pode-se amar alguém por se amar ser racional. Esse alguém o incentiva nisso, e por isso você o ama. E, sem esse incentivo, você jamais conseguirá amá-lo.

sábado, 11 de outubro de 2014

Sou, no mínimo, um par


A laranja tem um monte de gomos, mas dizemos que tem metades. De uma porção de candidatos, tiramos um primeiro e um segundo colocados. O eleito terá o outro como oposição. Governar seria solitário demais se ninguém raspasse seu poder. As ações desse respondem às daquele, que responde de volta. Cascão vive tendo problemas com o Capitão-Feio. O Cebolinha não pode ajudar, pois está ocupadíssimo pegando o coelho da Mônica. Sansão é um coelho de pelúcia, e não pode ajudar Mônica. Mas quando eles estão a sós, certamente conversam. Batman tem uma porção de inimigos, embora em cada história o drama se passe entre ele e mais um. Em suas casas, o presidente e o Batman não estão sozinhos: a Primeira-dama e o Alfred estão lá. Nem sempre Alfred corresponde ao que quer Batman. Enfim, ele está lá não para satisfazer Batman e, sim, para ser o Alfred, aquele que sempre esteve do lado de Bruce. Sua função é cuidar dele. E Bruce cuida de Alfred.

"Nas relações que nos procuram algum auxílio ou serviço não há que preocupar-se com as imperfeições que particularmente não se relacionam com o motivo das mesmas. Nada me importa a religião que professam meu médico ou o meu advogado; tal consideração nada tem a ver com os ofícios da amizade que me devem; nas relações domésticas que mantenho com os criados que me servem, sigo a mesma conduta. Informo-me pouco se meu lacaio é casto; interessa-me mais saber se é diligente: não temo tanto um cocheiro jogador, como outro que seja imbecil, nem um cozinheiro blasfemo, como outro ignorante dos temperos." (Montaigne, Ensaios. p.60).

Bruce não fica olhando dentro do quarto de Alfred. Alfred não perturba os pensamentos de Batman. Se querem tête-à-tête, vão ao corredor. Sem ninguém por perto, vozes internas alertam os heróis dos perigos. Homem-aranha fica com a cabeça piscando de tanto que seu daimon grita, quando ele se pendura no alto dos prédios. Nunca se interrompe essa conversa (não só verbal) com alguém. Em par, as coisas soam melhor.

Canta Luan Santana: "Te dei o sol, te dei o mar (1), pra ganhar seu coração (2). Você é raio de saudade (1), meteoro da paixão (2). Explosão de sentimentos que eu não pude acreditar (1). Ah! Como é bom poder te amar! (2)".

Cantam os Beatles: "Help! (1) I need somebody! (2) Help! (1) Not just anybody. (2) Help! (1) You know a need someone. (2) Help! (Os amigos vêm fazer coro com Paul)."

Dizem que uma pessoa sempre precisa de outra. Não é que o outro dará algo que me falte, ou que eu tenha que me "abrir" para ele. Eu não sou uma pessoa que encontra outra pessoa. Eu sou "eu E outro". E esse outro é "eu E outro", em relação a mim. Só há eu se houver outro. A relação não é complemento, mas jogo, troca. Não combinei com o time adversário os lances do jogo. O jogo começa, alguém faz algo e o outro responde. Eles não têm uma consciência de observadores, mas de corpos presentes ali. Nietzsche mostrou que o uso que fazemos da gramática, em que há um sujeito e um predicado, ou um sujeito e um verbo+situação, faz com que atribuamos autonomia ao sujeito, em relação ao predicado, como se ele tivesse uma substância e preexistisse a situação de "sujeito E predicado", alguém que só pode fazer algo porque está em um lugar, diante de outras pessoas e coisas, respondendo a elas. A filosofia não vê mais o sujeito, ou qualquer outro ponto fixo, como fundamento da Verdade (e fica sem sentido as ideias de fundamento e de Verdade).

Pascal, no aforismo 322, sobre o eu, lido por Ghiraldelli (http://ghiraldelli.pro.br/pascal/), fala do homem que, tendo perdido a ligação com Deus, e o amor infinito por ele, ficou sozinho e apenas com o amor finito por si mesmo. Esse amor finito pelo eu ficou inflado, como se ele fosse o infinito perdido. O eu tomava o grande si mesmo como objeto de amor. Mas, para sua infelicidade, descobre não conseguir encontrar esse eu para ser amado. Ele ama as lembranças que tem, o corpo bonito e bem vestido, mas não um eu, para além do psiquismo e do corpo fugazes. O que é uma narrativa antissubstancialista sobre a subjetividade leva-nos de volta ao par: o eu só encontra a si mesmo nas roupas, ideias, títulos, profissões e bens que pendura em si ou dos quais se cerca. O eu é "eu E alguma coisa".

Eu sou Thiago, psicólogo. O que é o Thiago? Homem? Filho da minha mãe? Nunca vou encontrar só o Thiago. Ele não tem substância. Da mesma forma que não existe um psicólogo que não esteja afixado em alguém. Para eu ser eu mesmo, tenho que poder reacessar meus pensamentos e cargo "de psicólogo". Sou Thiago E psicólogo. Sou Thiago E uma escola com um monte de crianças, diariamente. Como ensina Sloterdijk, sou no mínimo um par. Então vem cá, dançar.

Quanto dura uma criança?

1. Uma criança não é um boneco.


Na escola, os garotos ensaiavam uma peça. Segundo ensaio, de vários. A história ainda ganhará corpo. Era uma floresta, com animais, uma fada e um boneco. A fada chegou voando até o boneco. Pôs as mãos em suas orelhas. Ele as agarrou. "Não segure, você é um boneco". Para se despregar das orelhas do boneco, a fada encostou seus pés nos dele. Os pés também ficaram presos. Numa impulsão, a fada conseguiu se soltar. Saiu voando. O boneco lá ficou. Era para estar parado, mas se mexia.

Houve um tempo em que esse menino não tinha interesse em participar das atividades. Ficava destacado da turma, brincando sozinho. Ajudamo-lo a vir para perto das outras crianças. A ideia era que ele experimentasse as mesmas situações e coisas que os demais. Aos poucos o seu tempo de permanência nas atividades aumentou. Vivendo o social, de jogos e perguntas, e com as necessidades dele, a linguagem, a comunicação começou a ser treinada. O mundo que incluía os outros era interessante. Ele não precisava viver se protegendo. Alguns amigos percebiam a falta de costume dele com as brincadeiras de luta, e batiam. Ele ria.

Um boneco é algo que pode ser manipulado, posto do jeito que quisermos, carregado para qualquer lado. Crianças surgem como coisas que se movem. A escola quer que elas adquiram uma regulação interna da própria desinibição (numa terminologia de Peter Sloterdijk), ou seja, que elas tenham o controle do "pôr-se para agir". À escola não chega a ir um boneco-de-pau. Após a fada, o garoto deixa o lugar do boneco e vai para junto dos personagens "crianças". Encontra seu melhor amigo, e põe-se a brincar com ele, rolando-o pelo chão. "Eu quero ser criança!", ele disse. Quer se mover sozinho, ou seja, em direção a alguém, melhor ainda se for um amigo. E que este participe, também agindo.

Seria estranho vermos um boneco de carne e osso parado, por aí. Até as estátuas-humanas, que vemos no Centro, são sujeitos: quando você acha que não, ela move-se rápido e nos assusta.



2. Clube do Bolinha


Dias antes eles haviam pintado uma parede de azulejos brancos, usando tintas de várias cores. Hoje, alguns deles fizeram desenhos e escritos na tinta, raspando-a com a unha. Segundo o garoto que não era boneco, o dedo era um "giz branco". Outro garoto, ao ver os rasgos na tinta, mostrando o branco que existe por trás, veio às lágrimas. Ele participara da pintura que "ficou tão bonita". A professora tentou acalmá-lo, dizendo que a obra passou por uma interferência. Perguntei como a pintura poderia permanecer do mesmo jeito, estando no lugar de passagem de todos da escola. A professora disse que, depois, eles poderiam repintar a parede. O menino que chorou costuma fazer desenhos assinados, e em folhas de papel. Ninguém mexe nesses desenhos, estão guardados.

Aquela turma é a dos mais velhos. Em breve eles terão que mudar de escola, e outros garotos serão os mais velhos. O tempo está passando. A pintura na parede estava caprichada, mas não podia durar muito. A criança que cresce participa de algumas obras, que congregam outros. Uma obra é a parede da escola. Outra é um desenho individual, feito com a criança rodeada de coisas e crianças. A parede mostra bem a passagem do tempo, pois ela muda a olhos vistos. Dá pra ver que o que existe está inseguro, ameaçado de não existir. Os desenhos individuais, por sua vez, são ruins para mostrar o tempo, pois mostram a permanência. E é neles que a criança será ensinada a ver o si mesmo, dela. Na primeira série, em uma outra escola, cada um terá a própria carteira. Os murais coletivos serão enquadrados. Para chamar um amigo, terão que falar. Jogar-se no pescoço dele será difícil. Precisarão chamar a si mesmos, para fazer o que a professora pediu. A mão dela não estará mais em seu ombro, orientando a deles mesmos. Cada um precisará contar consigo próprio.

No filme Os Goonies (dir. Richard Donner, 1985), muito amado pelos da minha geração, há um grupo de crianças, cada uma com características, jeitos e habilidades particulares. Eles reunem-se na casa do seu líder. Contudo, a família teve de penhorar a casa, e está sem dinheiro para pagar. Terá que se mudar. Será o fim dos Goonies. Fuçando no sótão, encontraram um mapa. Dizia ser do tesouro do Willy Caolho. Os garotos não deram fé, menos o líder. O caminho começava próximo dali. Mudar de casa e de vida, romper os laços, perder os parceiros de aventura: essas coisas poderiam acontecer. Por enquanto ainda eram um grupo, com um mapa misterioso na mão. Foram em frente. Não sabiam o que viria depois daquele dia. Os bandidos que lhes perseguiam tinham armas. O caminho para o tesouro era escuro e totalmente novo, apesar de ser o subsolo da cidade conhecida por todos. As crianças andaram pelo desconhecido, mas tinham uns aos outros, aquele círculo. Havia a esperança de encontrar qualquer coisa, não precisando ser um tesouro: podia ser um pouco mais de tempo juntos, passando apuros e diversão. O fim está próximo, não por ser amanhã. Ele sempre está próximo.

Um garoto faz bolhas de sabão, nas primeiras páginas de Esferas I, de Peter Sloterdijk. Ele observa suas obras de sopro, deslizando no ar. São de curta vida. É o halito dele que forma a interioridade de um ser, que possui uma pele que o protege do exterior. Os olhos do garoto estão fascinados: ele é criador e, por isso mesmo, está totalmente vinculado à bolha. O próprio garoto inspirou de alguém, o ar que está dentro de si mesmo. Inspirou de alguém que o criou e virou seu criador-vinculado. Assim como a bolha, ele também é acompanhado por olhos. Ambos saem da não-existência, caem na existência e retornam à não existência. Em escalas diferentes, essa é a duração da bolha e do garoto. A bolha tem suas amigas. O garoto também.

Esses círculos também têm um interior de trocas entre pares, e proteção contra inimigos externos. Nada podia vencer os Goonies, e o tesouro estava no papo. Só o tempo e suas efemérides mudaria as coisas de lugar, causando o estouro da bolha. Diz-se que criança tem sorte, ou é abençoada. O filme chega ao fim antes dos Goonies chegarem ao fim. Eles conseguem o tesouro, e salvam a casa-QG. Não importa o que houve depois do filme: ele foi muito reprisado, para que os Goonies continuassem vencendo e mantendo-se vivos. A parede de azulejos, na escola, dá sinais de que a pintura tem rasgos. Mas foram os amigos que fizeram esses ferimentos na cor. Eles serão os primeiros a ouvir o choro do garoto e porem-se a pintar o muro de volta. No primeiro ano, os olhares farão as novas cumplicidades. Haverá aquele a falar besteira, para o riso geral. E o grupinho a não se desgrudar, no recreio. Os círculos que fazem o ser criança continuarão.

A ideologia perde para o ethos

O PSOL teve a maior votação da sua história. Ele sente que pode crescer mais e, um dia, ter um presidente eleito. O partido está entendendo, a meu ver, que seus votos vieram não só de gente que rejeita o Aécio, como de quem rejeita a Dilma. Por isso, Luciana Genro declarou a neutralidade do partido em relação a Dilma X Aécio. O PSOL está se vendo como uma força crescente (e é mesmo) e independente (o que é ingênuo). A notícia de neutralidade de Luciana incomodou muito os eleitores de Dilma, que esperavam, numa disputa como a que temos agora, o voto dela em Dilma, para evitar o retrocesso que é o Aécio.

Temos uma mentalidade de que, diante de uma ameaça, devemos nos unir até mesmo a quem pensa diferente, embora tenha o mesmo inimigo que nós. O dito "o inimigo do meu inimigo é meu amigo" expressa isso. Luciana pensou estrategicamente, quendo conquistar o eleitor insatisfeito com "tudo o que está aí", mas decepcionou muitos ao não reforçar a defesa do governo contra a oposição. A opção dela e do PSOL pela neutralidade decorre do modo de pensar que eles representam, o de que há um "sistema corrupto e viciado que engloba governo e oposição, os iguala, e que deve ser eliminado". Muitos eleitores dela pensam da mesma forma. Mas não vão tão longe quanto ela na manutenção desta ideia. Ela fincou pé nessa posição, a posição do "PSOL, que é diferente de TUDO", e mostra a visão estreita da ideologia (de toda ideologia) pela qual foi aplaudida e recebeu votos, no primeiro turno. A ideologia afastou Luciana do nosso ethos, expresso naquela frase. Ela virou um e.t., alguém do fanatismo de um... gaúcho!

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

A escola dá vida

Revi o filme American Pie (dir. Paul Weltz), de 99. Aquele tempo passou, para mim. Aquelas coisas foram sérias. Ri de como éramos jovens e não tínhamos descanso. Caras terminam a escola preocupados com o que virá depois. Não querem chegar na faculdade ou encarar trabalhos sem possuírem alguma experiência, como "novatos". Estarão longe da família e amigos. Querem ter algo que os permita dizer "teve uma vez, em que eu...". Eles têm um prazo para aprender tudo o que precisarão no resto da vida. O resto da vida será apenas repetição, coisas já vividas e sabidas. A escola é onde as coisas acontecem. E o sexo é a experiência decisiva, para começar a virar adulto. É o que dá a certeza de si mesmo. Os pais consideram importante o concluir da escola, a faculdade. E o filho nem precisa sair de casa, quando terminar.

Em Fast Times at the Ridgemont High (traduzido por Picardias Estudantis, no Brasil. dir. Amy Heckerling. 1982) a escola é um tempo pesado, em que é preciso trabalhar, estudar, sofrer por amor ou ser um negro alto e esportista, para escapar de ser um loser. O trabalho de chapeiro, garçonete ou entregador nunca trarão felicidade. E se se passar a vida toda, ali? Para nós, a escola termina muito rápido. Agarramo-nos a artistas, celulares e estilos. Ainda estamos ensaiando. Estamos na pré-vida, pois, apesar de termos uma profissão, a vida ainda não nos trouxe o que queremos, para começar: carro, bairro bom, viagens, etc. O que nossos pais tiveram no final, para nós é o necessário para a largada. No filme Fast Times, convida-se garotas para sair, para a primeira transa. Ou se é experiente e a garota é que vem. O esperto pega a garota do tímido antes de ele conseguir pegar na mão dela.

Spicoli (Sean Penn) está com nota insuficiente para passar: chegou tarde, faltou, surfou e fumou muito. O professor dá por certo revê-lo ano que vem. A escola continuará. O tímido que levou um fora, depois transou com a garota. Ele continuou tímido, só que agora era namorado. O esperto faturou logo, e já busca outra garota. As experiências não os modificam. Elas simplesmente passam. Não foi possível rir dos apuros deles. Há tensão, mas a preocupação não dura: na outra cena a garota já trocou de braços, e o cara que trabalha estreia o uniforme novo.

American Pie é a ansiedade de saber se a noite da formatura valerá aquelas vidas. Antes dela, nenhum dos caras tem motivos para estar confiante, pois uma garota pensa que seu cara é "como todos os outros", outros dois passam embaraços públicos, etc. Eu ri da ansiedade e das descobertas. Vejo-me distante dos momentos dos personagens. O dia da formatura chegou rápido. A formatura passou. Relacionamentos virão, faculdade, uma vez que a escola foi cumprida. E ela foi cumprida no fazer sexo na noite do baile.

Sigo com inspiração em Montaigne, em "Que filosofar é aprender a morrer" (dos Ensaios): a morte da juventude, passando para a vida adulta, é pior do que a morte do adulto ou do velho. Nossa história de vida se desenrola até a formatura. Aprender a estudar, a superar notas ruins, a levar um fora da amada, pegar uma garota e não gostar dela, pegar outra e achar o sexo ótimo. Nesse tempo, se nasce, se cresce e se conclui. Tudo ocorre nesses anos. Depois da escola, a vida repetirá o já vivido. Agora é tratar de se manter com as roupas e os sapatos com que você gostaria de ser encontrado, quando morto. A morte vem vindo. Seu tempo está terminando.

Da mesma forma que você surgiu, aqui, você irá embora. Faça logo o que quer que seja o "para que a vida serve". Não lamente a morte, pois, se a vida foi ruim, morrer é uma benção, e se a vida foi boa, é para sair satisfeito, dela, como se sai de um banquete.

Psicologia de casais 2: depois do sexo

Na peça "Duas vezes 1/4" (texto e direção de Marcelo Pedreira), um dos personagens masculinos encontra-se em um estado que me lembrou o de pós-orgasmo: há uma mulher linda insinuando-se para ele, e o pensamento que lhe vem é o de suicidar-se. Ele oferece R$500,00 para que a prostituta apenas o ouça. Ela pega o dinheiro, apostando que ele vai querer trepar com ela. O orgasmo faz-nos sentir plenitude. Mas ele passa rápido, e deixa a sensação de que o esforço de trepar e o êxtase sexual são vãos. Outra coisa que não fosse tão boa não deixaria essa sensação, quando terminasse. Você fica pensando que aquilo não é tão necessário quanto parecia quando começou. Ele e a prostituta trepam. Na conversa seguinte, ela diz nunca ter sentido prazer com um cliente, e com ele não foi diferente. Ela foi um presente de despedida da vida, para ele. Não cobrou. O cara que não quer trepar e a prostituta que sempre o convence passam a se encontrar quase todos os dias. Ele ainda não se matou.

O justiceiro que você não quer ser

Em O Protetor (dir. Antoine Fuqua, 2014), Denzel Washington é Robert Mccall. Todos os dias ele vai a uma cafeteria, para ler. Senta-se à mesma mesa, sobre a qual dispõe seus objetos com muita meticulosidade. Não inicia conversas com ninguém. Uma jovem prostituta, que também sempre aparece por lá, pergunta-lhe sobre o livro. Ele responde, com delicadeza. Ele a vê aborrecida com o trabalho. Em outro dia, a vê apanhando de um homem que chegou de carro. Mccall trabalha em uma grande loja de departamentos. Ajuda um colega a perder peso, pois ele fará teste para ser segurança da loja. Em seu trabalho, mostra-se habilidoso com os objetos e atencioso com os demais. Provavelmente ele teve uma outra vida antes dessa, e por algum motivo precisou deixá-la. Agora era um bom empregado e um ótimo colega, daqueles que "se importam". Ninguém o pergunta sobre sua origem, mas não por receio de alguma coisa. A América dá oportunidades. A jovem prostituta é espancada. Mccall a visita no hospital. Seguindo a pista de um cartão de visitas, ele vai ao escritório de gerenciamento das prostitutas. Oferece dinheiro ao chefe, em troca da liberdade da garota. Era uma linguagem que os cafetões deveriam entender. Cafetões russos. Não foi aceito, o dinheiro. Como perderiam uma de suas escravas? Não era tanto pelo lucro... Mccall então mata um por um dos cafetões da sala, com muita rapidez. O escritório era um tentáculo de uma rede mundial de exploração de prostitutas. O comando central era um membro da máfia russa. Um investigador e assassino é enviado. Logo descobre que a chacina fora coisa de profissional. Onde encontrá-lo? Nunca em uma loja de departamentos. Após ter deixado uma vida para trás, Mccall via aqueles com quem agora convivia sofrerem com gente cruel e poderosa. Aquiles perdeu Briseida, uma mulher que ele havia tomado para si, numa guerra. Agamenon, o general dos gregos, retirou-a dele. Por isso, o excelente guerreiro recusou-se a ajudar seus conterrâneos contra os troianos. A morte dos gregos não o comovia. Pátroclo, seu amor, vai ao campo de batalha, fingindo ser Aquiles. Seu intuito era intimidar os inimigos. No entanto, é vencido e morto por Heitor, o maior dos troianos. De assassino Aquiles era chamado. Significava perigosíssimo guerreiro, daqueles que decidia uma batalha. Com o insulto de Agamenon, recolheu-se. Apesar dessa auto-contenção irada, doída, seu amor fora morto. Levantou-se, encolerizado. Em "I always will love you", da banda Bodycount (cd "Manslaughter", 2014), o rapper Ice T fala sobre o jovem americano sem trabalho, desistente da escola, que deixa sua família e alista-se no exército. O duro treinamento conclui o trabalho de fazer dele alguém que só apanhou na vida e anseia pela hora certa de retribuir. Na guerra, matou muitos. Defendeu o seu país. Contudo, não recebe o respeito e o reconhecimento merecidos. Na musica, o seu sacrifício é reconhecido, ele sempre será amado, pelos cidadãos orgulhosos do seu país. Será bem recebido na casa destes poucos, como a um irmão. Mccall, sem lar, havia sido perturbado no seu descanso. Fez justiça, pela garota. Assim que ficou sabendo que estava sendo procurado pelo assassino russo, não ficou na defensiva: passou a também investigá-lo. Desbaratou os esquemas lucrativos dos russos, que envolviam exploração do trabalho de idosas. Em reação, estes sequestraram os colegas de loja, dele. Ele então levantou-se para matar. Havia prometido, à mulher que perdeu, algo sobre não voltar a ser como foi, um dia. Mas, diante as atuais circunstâncias, teria que responder de forma cruel às crueldades que sofriam os seus. No confronto entre Aquiles e Heitor, o grego desarmou o inimigo e matou-o. Matou um homem sem chance de se defender? Não, matou um grande guerreiro, que havia perdido a luta. Não matá-lo seria desonrá-lo. Matar alguém sem chance de defesa, em nossos tempos, é condenável. Não está a nosso alcance tirar a vida de alguém, o cristianismo ensina nossa cultura e constituições. Mccall mata seus caçadores. Encontra o grande investigador e assassino. Atira algumas vezes nele, deixando-o ajoelhado, indefeso. Matou-o. Não pagaria de novo o preço de viver fugindo e de ver os parceiros da nova vida sofrerem ameaça. Agiu ferozmente contra aquela força exterior à sua comunidade, a fim de preservá-la. Em uma guerra, há regras para a agressividade do soldado. Afinal, não é porque o inimigo não é da comunidade do soldado, que poderá sofrer de tudo. Mas o soldado cruel ainda tem uma comunidade, ou será bem recebido, em uma? Em "Rambo, programado para matar" (dir. Ted Kotcheff, 1982), Rambo é um ex-combatente americano, no Vietnã, condecorado, agora vagando pelas ruas de uma cidade que não o conhece. A polícia percebe o tipo dele, e fica vigiando. Rambo diz que lutou por seu país, mas agora é um pária. O xerife puxou a ficha da "máquina de matar". Seu país agora o quer ou como errante quieto, ou como enjaulado. Mccall foi assistido, matando o assassino russo, pelo seu colega chefe de segurança, aquele que recebeu sua ajuda. O olhar da testemunha era de entendimento, porém terror. Era uma ação intolerável numa comunidade. Uma bestialidade, mas que a manteria segura. Houve apenas uma testemunha, que não falaria. Naquela noite, Mccall foi novamente quem nunca deveria ter existido. No dia seguinte, retornou ao seu lugar na cafeteria. Continuou o livro de onde havia parado.

Morre o lobo, nasce a criança

Teve um teatro de fantoches, na escola. Lobo Mau e Chapeuzinho vermelho. Assim que apareceu a Chapeuzinho, as crianças gostaram. Cantaram junto a "pela estrada afora...". Já a aparição do Lobo fez com que muitos se levantassem para bater nele. Na plateia havia um menino chorando desde a Chapeuzinho. Com o Lobo, passou a chorar muito mais.

Quem havia se levantado, sentou, e foi ouvir as falas do vilão. Na devida hora, as criancinhas acompanharam o "eu sou o lobo mau, lobo mau, lobo mau. Eu pego as criancinhas para fazer mingau". Uma menina cantava de pé. Sua mímica dizia que "a vida é assim mesmo, o que o Lobo pode fazer?" "Hoje estou contente, vai haver festança. Tenho um bom petisco para encher a minha pança". A natureza não é a harmonia do instinto com a necessidade, ou seja, a caça para saciar a fome. A natureza tem crueldade, tratar o outro como petisco e encher a pança. É o que o próprio homem faz. Só que o homem pode ser cruel, mas não mais do que o Lobo Mau. O homem é demasiado humano. Ele come tudo, mas diz fazer consumo consciente. Tem um quê de estoico, preocupa-se com o fim dos recursos do mundo, não pelos recursos em si, mas por não querer passar privações. O Lobo é o cara que vai no rodízio de petiscos para devorar camarão e ovo de codorna, como quem come arroz, e não vidas mortas. O Lobo não se prende à cadeia alimentar. Fica petiscando até estufar. Ele não se satisfaz, nem se põe limite. Só pára quando o corpo deforma e ameaça estourar.

A chapeuzinho levará docinhos para vovó. Esta ficará bem satisfeita. Como a netinha é boa! Os docinhos serão um afeto transmitido de neta para avó. Geralmente é a avó que dá doces para os netos. A chapeuzinho se contém, não come os doces, para oferecê-los à vovó. É uma juventude que se dá à tradição. A tradição continuará. E os laços afetivos entre vovó e netinha são criados, quando esta nem pensa em agir como criança e devorar os doces.

As crianças cantaram com prazer a música do Lobo. O prazer está do lado dele. Ele engana e luta com o objetivo de comer. Não há nada melhor do que comer o máximo possível. Engoliu a vovó de uma vez, sem mastigar. Ela ficou inteirinha lá dentro. Ele disfarçou-se com as roupas da vovó para também engolir a chapeuzinho. Ele nem se preocupava se esta também caberia na pança. Pança aguenta bem mais coisa do que estômago. A menina veio carinhosa, e a conversa do Lobo a atraía. Como era ele no lugar da vovó, a bondade de chapeuzinho não formaria qualquer laço afetivo. A vovó estava dentro dele, presa.

Como um macho pode ter pessoas dentro de si? Só se for porque assaltou uma dispensa e uma geladeira, e correu para um lugar seguro para digerir por um tempão. O Lobo se diverte, não trabalha. Ele pilha, é um pirata, toma pela força enquanto sorri. A vida é assim, mas não a nossa vida. A animalidade foi deixada de lado. Crianças aprendem a trocar o prazer imediato pelo agradar, em busca de uma afeição que poderá garantir pequenas porções diárias de comida e brinquedo, durante muito tempo. Aceitam isso, uma vez que lhes é vetado o prazer do ser bicho. O Lobo é mau, mas elas o entendem bem. E entendem que ele precise morrer. Ou melhor: ficar meio morto.