sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Diga na minha cara


Entrei no trem com uma bíblia embaixo do braço. Abri e comecei a ler. Para mim mesmo. Apesar de alguns olhares, não li para mais ninguém. Eu tenho onde guardar aquelas falas. Não estou farto de mim mesmo, que fica me dizendo coisas.

Farto de si mesmo é o fanático do Cioran. Ele é o infernizado que se dedica a infernizar os outros, dizendo o que promete ser o bem. Não quero aconselhar os outros na rua. Não quero ser o início e o centro dos acontecimentos.

Na bíblia está que a voz do povo é a voz de Deus. Mas é a voz das falas dos que mantém as leis de Deus em seu dia a dia. Não é a voz dos que exortam. Os que muito falam até beiram a insensatez, e atrapalham o homem justo.

Agostinho confessou-se, quis dirigir sua fala diretamente a Deus como quem envia um hálito a quem um dia lhe deu o hálito, e que lhe deu seu “eu interior”, eu verdadeiro porque divino. Agostinho se sentia intimamente desconectado de Deus.

Talvez a reconexão com Deus, ou com qualquer outro parceiro fundamental, com o qual perdeu-se intimidade, seja algo a ser feito na intimidade da fala consigo mesmo e na fala com aquele que está a curta distância, na fronteira dentro e fora, sentindo o seu hálito e dando o hálito dele para você sentir.

As pessoas buscam parcerias de vida, mas não cuidam do próprio hálito. Como doar e receber o ar da vida, tendo o hálito podre? Ou tendo hálito nenhum? Por isso há os que falam aos muitos, que permanecem à distância. Não querem ninguém aqui, com elas mesmas. Sua fala próxima não é boa, sabem. Ou não têm fala nenhuma.

Quem não gostaria de fazer uma acareação (ficar cara a cara) com famosos mentirosos? Só os descarados.

Fique longe!


Disseram-me que Machado de Assis é chato. Concordei enfaticamente. Machado, Freud, Homero, Platão e a Bíblia, tudo isso é muito chato. Livros que sempre ficaram lá na estante de casa, com poeira velha. Da mãe, da vó, da vó da mãe, que ela guarda. Livros que não estão nem aí se você gosta deles. Não se importam com seu gosto, sua teoria, nem sua experiência de vida.

Você já os abriu por curiosidade mórbida, sabendo que não daria certo. Você abriu o volume novo do Machado, que a professora mandou comprar, porque livro novo a gente abre, pra desvirginar, e depois mete no arquivo. Fechou sem guardar o que leu. Só ficou a impressão de que aquilo não é para você, mas no sentido depreciativo da coisa que não é para você.

Eu te digo que realmente não é para você, mas depreciando você. Depois da nota obtida na escola, fique longe desses livros. Fique longe, se você não gosta. Poucos são os que realmente gostam, leem de novo, fazem de novo a escola. Sentam para saber o que não sabiam. São os que têm grandes mestres, colocam sua expectativas intelectuais lá no alto.

Heidegger não aceitou que o homem fosse comparado aos animais. A essência dele é habitar a linguagem, e escutar o ser. “Ethos anthropos daimon”, de Heráclito, cuja interpretação dada por Heidegger pode ser lida em “Para ler Peter Sloterdijk”, do também filósofo Paulo Ghiraldelli Jr: o mais próximo e despercebido, para o homem, é uma clareira onde a divindade se mostra. Então não devemos aspirar a sermos “animais racionais”. Nossa dignidade está em sermos divinos.

A escola se democratizou. Então é até um crime dizer para você não pegar em livros. Tudo parece ser para todos, e para qualquer um. Causa espanto o “não”, “acesso negado”.

Aqueles livros viraram mercadoria, sob o nome de “cultura”. O eu, que também é mercadoria, só tem valor de troca e está aí para ser consumido, consome a si mesmo consumindo as outras mercadorias (o eu é uma mercadoria essencialmente consumidora de mercadorias). Ele vai querer consumir o livro. Não há qualquer consideração sobre formação de capacidade de leitura.

Não há qualquer profundidade ou rugosidade na relação do homem com as coisas como com espelhos. Estes lhe devolvem uma imagem de performer dos gestos necessários e suficientes para produzir e consumir. Lasch (https://z-p3-scontent.fsdu4-1.fna.fbcdn.net/v/t42.9040-29/10000000_1325653257514479_4501655497539059712_n.mp4?efg=eyJybHIiOjEwMzMsInJsYSI6NDA5NiwidmVuY29kZV90YWciOiJzZCJ9&oh=1f3a9ecf2ff55287a9ad664804857f78&oe=592ECF44) propôs essa analise, e entendeu que o eu formado nesse jogo de espelhos é um “mínimo eu”.

Um material que exija paciência, dicionário, reconhecimento de que não se sabe, que se dê passos atrás, e que se volte, só pode causar incomodo. Você simplesmente descarta. Mas, em nome do consumo dos outros, a coisa descartada pelo eu não pode ser descartada do mundo. É por isso que as opiniões dos eus, de que aqueles livros são chatos, não se tornam opinião geral.

Estes livros, os livros difíceis, tornam-se campeões de orelhas e contracapas lidas, talvez também as três páginas iniciais. Tudo comentado com um “Interessante. Quero ler depois”, que vira um rótulo para a mercadoria.

O eu gosta de descartar o que existe por aí como coisa para consumo, como se ele fosse mais real ao ser “diferente da massa”. Ele procura refletir-se em espelhos mais próximos, como os familiares e amigos, como se estes o conhecessem “verdadeiramente”. Conhecem a verdade da sua performance.

Aqueles autores existem para serem chatos, mesmo. Para atritar quando se tenta deslizar por eles. São anti-deslizantes!

Fiquem longe.

A boa aparência


A bela mulher volta para a cidadezinha onde passou a sua infância. Os meninos a perseguiam, um deles em particular batia nela. Um dia este menino morreu, diante dela, menina, e de mais ninguém. Ela então cresceu distante da cidade.

Ao retornar, sofreu acusações de assassina. Ela e sua mãe eram consideradas perigosas. A cidade era pequena e rural, com vizinhos que sabiam das vidas uns dos outros, e um prefeito que se achava o dono do lugar. A forasteira mostrou-se com vestidos que chamavam muita atenção. Finalmente chegou, por ali, algo que valia a pena ser olhado.

Ela começou a fazer vestidos para as mulheres tristes do lugar. Vestidos que mostravam o colo, as pernas, eram de cores vibrantes e com tecidos reluzentes. Faziam com elas descobrissem belezas que não achavam que tinham. Não, que não tinham mesmo, pois, o que somos além do que mostramos para nós mesmos e para os outros? Ou o que se mostra em nós, sem que queiramos?

As mulheres surpreendiam-se consigo mesmas. O xerife da cidade também surpreendia-se consigo próprio: às escondidas ele gostava de se olhar nos espelhos, usando vestidos. Ele não resistiu e também pediu para se vestir daquela forma nova. Os espelhos onde olhou para si mesmo estavam localizados na rua. A quase forasteira ofereceu a eles espelhos, e também personas admiráveis para lançarem sobre os espelhos. Assim, eles se enxergavam bonitos. Bem mais bonitos do que na verdade eram.

Entre as coisas nossas, há as ruins, que escondemos, envergonhados. Há pessoas que apenas esperam um pequeno espelho para projerarem essa maldade. Pensam que assim só elas verão a imagem refletida. Querem um pequeno espelho, ou talvez um grande, mas trancado em casa, que seja um escravo das projeções de sua dona, e não as revele a mais ninguém. Um espelho, lógico, que escravize aquele que só é o que a superfície lisa do que o espelho reflete, e que é tão profundo quanto ele.

Os moradores do local logo retomaram às acusações às escondidas, contra a mulher. Voltaram para aquilo que, se precisava ser feito escondido, era algo indigno de ser olhado, e que de forma alguma causava admiração.

Os moradores iam bem vestidos em ocasiões especiais. Nelas, eles eram bonitos. Essencialmente eles eram feios, não havia nada bonito para ser visto naquela cidade. Chamaram a forasteira de amaldiçoada. Amaldiçoada, porém, era a cidade mesma, que fazia com que todos que nela permanecessem fossem feios.

O rapaz que parecia naturalmente belo, encantou-se com a forasteira, e propôs saírem dali. Ele morreu, em uma brincadeira que fizera para a amada
Segundo a mãe dela, ele queria provar a ela que o amor dele era maior do que o ódio daquelas pessoas todas. Morreu fazendo algo infantil, e querendo mostrar o amor. Uma morte que não teve nada a ver com medo ou dor. Morreu como uma boa criança, excessiva e atuante às claras.

*Leitura do filme “A Vingança está na Moda”, de Jocelyn Moorhouse (2015).

Injustiça bem distribuída


Para o homem antigo, grego ou hebreu, a obediência às leis e aos costumes era um privilégio. Significava estar no ethos, em casa, portanto, não ser escravo. Hoje as pessoas gostam de dizer o quanto escapam da lei. A frase “você sabe com quem está falando?”, que Roberto da Matta disse que é um símbolo do nosso autoritarismo cotidiano, é contra atacada por um comportamento que também é um autoritarismo cotidiano: o indivíduo comum foge às obrigações e autoridades, mesmo quando se considera inocente.

No Salmo 141, Davi diz que não andará com malfeitores, com injustos. Sabemos que no contexto da Bíblia os não seguidores da lei de Javé, o ponto de demarcação da justiça, poderiam ser tanto o indivíduo comum como os reis. As leis de Javé valiam para todos, segui-la era uma obrigação geral. Neste aspecto, não havia a polarização indivíduo comum X Rei. De forma magoada, hoje, separamos um pobre-sofredor de injustiça, então compulsoriamente injusto, de um rico-injusto por natureza.

Davi pede ajuda a Javé para seguir a própria lei Dele. Pede uma sentinela à porta dos próprios lábios; pede que Ele lhe bata, corrija, antes que ele mesmo deixe o óleo do justo perfumar-lhe a cabeça. Ser amado, aqui, ou seja, habitar uma casa, é temer Javé, no sentido de estar sob a sua lei. Fora dessa casa havia a injustiça, a morte do homem pelo homem, decidida por uma lei arbitrária e não clara. A morte do homem por Javé era a fidelidade Dele em ensinar, ou seja, em aplicar uma lei fixa e conhecida. Como a maior parte dos homens morre de causas naturais, a lei de Javé entra como um princípio do ciclo da vida, não como uma punição. Até mesmo porque, nos bons casos, a vida prosseguiria por outros meios.

Bolsonaro, em recente entrevista (http://odia.ig.com.br/brasil/2017-05-23/bolsonaro-admite-propina-a-seu-partido.html) indagou sobre que partido não recebe propina. Os injustos se banqueteiam, então quem não participaria do banquete, também? Davi pediu ajuda a Javé, para não se render ao óleo do poderoso. O homem de hoje confia apenas na própria força, e já se põe de antemão como fraco demais para resistir às contingências.

A quantidade de auto-ajuda existente, hoje, só é possível num mundo em que o homem pensa que deve fazer muito, por conta própria, e então se percebe impotente. Pede ajuda de outro homem, tão impotente quanto ele próprio. Um outro homem igual a si mesmo, não um parceiro provocador-ampliador, alguém pra fazer uma dupla como homem-Javé.

Se os outros-iguais não dão força para seguir uma lei, dão o ambiente do seu rompimento. Estimulam-se mutuamente, para isso. Criam o ambiente da fraqueza da vontade, do não-resistir aos banquetes.

Movimento social e movimento do eu


Na escola vinha-se falando sobre racismo, “apropriação cultural”, etc. Hoje a turma assistiu um episódio do “Dear White People”. A protagonista, uma universitária negra, é locutora em um programa de rádio que leva o mesmo nome da série. Ela frequenta reuniões em que grupos negros, formados por pessoas de diferentes estilos, apresentam suas demandas particulares. Entre nós, na sala, a professora comentou a heterogeneidade do movimento negro.

Problemas concretos como, por exemplo, a exclusão de negros em diversos espaços, podem ser apresentados junto a reinvindicações por melhorias nas leis, na cultura ou nas instituições. Qualquer um que seja sensível o bastante para com aquela questão do outro, e que até perceba o quanto a resolução dela melhoraria sua própria vida, faria aquelas reinvindicações. Freqüentemente, contudo, esses problemas são acoplados a identidades (“eu sou assim, e preciso disso”). Faz-se uma associação, aparentemente necessária, entre identidade e necessidade, de modo que, para se ser algo, é preciso necessitar de alguma coisa correspondente. No horizonte, então, o que se vê não é mais a falta de necessidade, através da sua resolução. Além disso, a imbrincação entre identidade e necessidade, cristalizadora de ambas, exclui outros indivíduos da participação nas reinvindicações.

A minoria torna-se uma minoria-demanda. A demanda marca a identidade e, junto com outras características, forma uma imagem que se torna autonoma e também permanente. Não é raro encontrar identidades-minoria-demanda que queiram ser completamente autonomas e permanentes.

Entender que possa haver uma permanência como que substancial para o que se é, é um pensamento fundacionista*. Filosoficamente, o fundacionismo é a busca por um fundamento para se falar em realidade ou em sujeito. O platonismo é o principal fundacionismo que conhecemos. Nele, a essência de tudo o que existe está situada em um lugar à parte deste mundo.

Nietzsche foi um anti-fundacionista, ao colocar que não há um absoluto, uma referência situada fora deste mundo para se olhar este mundo daqui. Tudo o que temos são as coisas daqui e suas diferenças. A expectativa de que “meu eu verdadeiro” possa ser retratado em uma identidade, e representado por um movimento social, é um fundacionismo, leva-me à impressão de que a identidade e os discursos são autônomos e permanentementes. E desvia a atenção das demandas sentidas concretamente.

Naquele episódio da série, a protagonista arrumou um homem branco. Ela gostava dele. Ao levá-lo para uma reunião do seu grupo, todos sentiram-se desconfortáveis. Questionaram como uma líder de movimento negro poderia namorar um branco! No final do episódio, ela estava na locução do seu programa. Durante o dia ela esteve com pessoas, passou por situações, ouviu opiniões, mas agora ela falava objetivamente sobre suas queixas. Uma delas era de que os brancos da universidade não deveriam maquiarem-se de negros em suas festas. Isso a ofendia e, então, deveria mesmo ser posto na mesa.

O pragmatismo, uma filosofia antifundacionista propõe que as pessoas que divergem a respeito de alguma coisa não disputem sentidos sobre o que as coisas são (“quem é negro?”, “Quem não é negro?”, “Quem pode falar sobre as questões do negro?”), mas apresentem seus interesses. Um indivíduo, então, apresenta a si mesmo. Ele não espera ser representado por alguém. A ideia de representação requisita a de fundamento pois, se há uma definição absoluta de alguém, essa definição pode ser representada por outra pessoa. A protagonista da série, vendo a confusão de discursos dentre os seus colegas, apresentou-se a si mesma. Ela quer envolver-se amorosamente com quem ela escolher, e não com quem o movimento negro escolhe para ela.

O jovem apresenta-se, mas também busca representantes. Ele transborda, dá de si. Também se sente carente, precisando que alguém o represente. Apresentar-se, colocar as cartas na mesa, requer que a pessoa se veja como transbordante, tendo muitos recursos, muito de alguma coisa para dar. Na psicologia do grego antigo, o thymos é o órgão ligado ao reconhecimento e identidade. Aquiles era o melhor guerreiro dentre os gregos, decisor de batalhas. Agamenon tomou uma das mulheres do herói. Então Aquiles se viu ferido em seu orgulho, diminuído em seu valor, contrariado na sua identidade. Recolheu-se em sua tenda, não mais seria aquilo que sempre havia sido para os gregos.

Para nós que vivemos o império da miserabilidade, identidade é “eu sou assim e tenho que ser aprovado pelo outro. Ou, se o outro é meu inimigo, tenho que ser odiado por ele”. Na vida eu sou livre para fazer muitas coisas, mas não sou livre para umas tantas, as quais considero que tenho direito. Tenho questões pontuais, e que não necessariamente precisam me marcar com uma identidade-necessidade. Se isto ocorre, ao invés de um indivíduo ser livre, e ao mesmo tempo lutador orgulhoso de suas vitórias, ele, preso a uma identidade-necessidade, toma o direito ou como um agraciamento do outro, ou algo que não vale, diante da enorme injustiça do mundo.

O outro pode ser o homem que passa ao meu lado na rua, minha colega de sala, o outro profissional no meu local de trabalho, etc. Não é o outro no sentido do negativo do eu, do desafio, do ponto a partir do qual eu reflito sobre mim e me modifico. O outro, como negativo, está distante. O movimento-necessidade é uma reunião de outros iguais ao eu.

Voltando à sala, a professora explicou que as relações raciais no Brasil baseiam-se na cor da pele e na subalternização daquele com quem sempre se conviveu. Um indivíduo se vê próximo da sua empregada doméstica a partir de uma perspectiva qualitativa (ambos são humanos). E se vê como diferente dela na perspectiva da quantidade de melanina da pele. A pertença de ambos a uma espécie, e também a uma mesma casa, faz com que a relação que exista entre eles se dê em torno de um mesmo eu. Mas, como o eu é o dono da casa, a empregada é um sub eu ou um eu dominado.

As relações raciais nos Estados Unidos, também explicadas pela professora, baseiam-se na origem. O negro é afro-americano, descendente de povos africanos. Então ele é de uma ontologia diferente, um outro em relação ao branco. O outro, em relação ao meu eu, é tomado como o infernal. Mas, justamente por ser verdadeiramente o outro, ele me dá a chance para eu me reformular. Apesar da segregação racial ocorrida nos EUA, e não no Brasil, o negro é um desafio para o branco americano, enquanto que, no Brasil, o “tudo se resolve em casa” escamoteia os conflitos.

Se sou um eu livre do outro, e se esse eu é destituído de recursos, ou é ameaçado dessa destituição, o eu irá se agarrar ao que tem e proibir ao outro (próximo) chegar perto. Ele não pode militar junto comigo, ou me passará a perna! A conquista dele é necessariamente a minha perda. Agora, se o outro é aquilo que confronta o eu, que o move, a ausencia de direitos do negro pode ser uma afronta à liberdade também do branco, pois ele não pode viver sem o negativo que o faz mover-se. Sou confrontado pelo outro, não controlo a vontade dele, e tenho que, com ele, dividir os recursos e a vez de me apresentar. Eu me aprsento, e também ele. Como não considerar rico este mundo?



* A idéia de fundacionismo e antifundacionismo, em filosofia, e também a ideia que virá adiante, no texto, sobre o outro como igual ou como o negativo do eu, vieram dos cursos do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr.

A indelicadeza das palavras


Dizer ou não para a mãe que se é gay? Para a menina que se gosta dela? Palavras podem ser indelicadas, até as palavras boas. Quando uma pessoa fala alguma coisa, mesmo “sem querer”, ela se compromete com aquilo que disse. Uma grosseria dita para alguém: a próxima palavra terá que ser uma grosseria também, ou se parecerá incoerente. Você escuta uma palavra de amor: as próximas terão que sustentar o clima, pois a expectativa foi criada. Palavras criam expectativas de si para consigo mesmo, ou para com outra pessoa, e isso tem o seu desconforto.

Acreditamos que as coisas darão certo. Ou não nos levantamos. Desde o início das nossas vidas nos é feita essa promessa impossível. E a prometemos a nós mesmos. É uma promessa feita intimamente, não apenas com palavras e que, por isso, elas não podem traduzir totalmente. As mais doces palavras vindas de alguém, muitíssimas vezes, não casam com as da promessa que me sustenta, ou nas quais eu sustento a mim mesmo. As palavras ruins, então, só se casam com aqueles que vivem intimamente sob o signo do pessimismo.

Tudo o que fazemos é para nos mantermos no clima de aconchego e dentro da promessa. Perseguimos miragens sonoras. Ulisses permaneceu sete anos nos domínios da ninfa Calipso. Ela prometera vida eterna ao herói da Guerra de Tróia, enquanto ele permanecesse com ela. Contudo, Ulisses sentia enorme saudade de casa, lugar em que ouviu seu nome, nas primeiras vezes. Seu heroísmo deveria incluir o retorno a Ítaca. O descanso junto a Calipso era o fim da história dele. Diferente de se concluir uma história, e viver a glória, o fim prematuro é um descanso covarde e inquieto. Calipso falava a Ulisses do extremo valor dele. Mas, para ele, era da esposa Penélope, do filho Telemaco e dos habitantes de Ítaca que ele queria ouvir sobre ele mesmo. A jornada de Ulisses é sobretudo sonora, passa por muitos lugares e deles recebe palavras hospitaleiras (de casas temporárias) ou hostis. É o retorno para um lar acústico.

Somos gerados em ambientes sonoros e vibracionais. Palavras participam dele. Mas, só palavras, a ele não fazem jus. Uma palavra ouvida na rua tem um peso. Na intimidade, tem outro. Palavras podem ameaçar com o rompimento de algum clima de conforto. Este clima é anterior a nós. Então, temos a sensação de que ele nos sucederá. Desse ambiente emergimos como indivíduos, e estes se vêem como unos, livres de qualquer parceria fundamental. Indivíduos podem entender que não vieram de um clima, mas que o geraram, e que este se encerrará com a morte deles. A perspectiva do uno inclui tudo o que diz respeito a ele. E exclui o que ele entende como não dizendo dele. Há palavras “dele”, e palavras “não-dele”.

Uma menina não quer seu garoto querido deixando de estar ao lado dela para olhá-la de frente ou dizer-lhe palavra. Isso ameaça o clima, que ou é eterno ou será protegido pelo indivíduo “dono do clima”, ou melhor, dono dos suportes daquele clima, como são as palavras adequadas. A menina se incomoda com as entrada de palavras na delicadeza da presença. Uma mãe quer a parceria do seu filho, o cuidado do filho, e quer que ele se sinta bem protegido. Da boca dele só pode sair a confirmação do planos da mãe. A mãe de Bentinho já havia arranjado tudo para ele ser seminarista, cumprindo uma promessa dela com Deus. Bentinho só o era por ser filho desta promessa. Ele jamais contou a ela sobre Capitu, de tanto que ele estava atado ao clima íntimo com a mãe. Capitu irava-se com a passividade, o não-erguer-se, de Bentinho. A mãe escolhe o nome do filho (ou zela, ou luta contra, a promessa no nome escolhido pelo pai).

A mulher conhece a casa, a organiza para que os participantes alcem algum vôo. O garoto não pode entrar com pés de lama, na sala. Não pode dizer que deseja ter um caminho diferente, na vida. A mulher dá os nomes, os horários e os lugares. É ela que dirá ao garoto se eles namoram ou não. Mas, lógico, do garoto se espera que um dia bata na porta, toque a canpainha para dizer algo. E quando o garoto já está ao lado, na tão gostosa presença, e quer namorar? Como ele pode dizer isso, sem forçar a barra? Não seria mais natural que da gostosa presença de amigos, um namoro surgisse?

Heidegger mostrou um homem que não é o centro, mas o guardião e o pastor do ser. Ele escuta as delicadezas do que é. Essa é sua essência. A mulher também não está no centro, e organiza a casa, a linguagem, para o ser. O que ocorre entre um homem e uma mulher é cuidado por ela e defendido por ele. É algo que exige a delicadeza dos dois. Delicadeza para o homem é mais difícil, pois ele está nas coisas, nos objetos, mas lidando com nomes dados, usando os nomes que a mulher deu. Usando errado, forçando a barra sobre o ser.

O homem é como uma coisa em meio às coisas. A mulher, visto que está na habitação, percebe o que está surgindo, e o nomeia. O homem, não raro, age indelicadamente no que diz sobre si mesmo, ou sobre o que há entre ele e a mulher. A mulher prefere que ele esteja em casa, ou seja, no ambiente dela. Sem falar muito.

A cidade sem separações


Paterson (dir. Jim Jarmusch, 2016) é um homem jovem, motorista do ônibus 23 da cidade de Paterson (!). Casado (porque para casar basta morar junto, ser “casado” no sentido de “combinado” com alguém) com uma mulher indiana. Eles têm um bulldog inglês que vive na poltrona e participa de tudo com olhares e vocalizações. O cachorro tem um rosto. Paterson tem um rosto, nariz grande. O filme começa em uma segunda-feira e termina na segunda-feira seguinte, e corre dia a dia.

Paterson sempre acorda com o dia claro, e ele mesmo voltado para a mulher. Abre os olhos de repente e a vê. Então vira o rosto e o braço, alcança o relógio para conferir a hora, e é sempre hora de levantar. Volta-se à mulher e a beija no braço, a cobre. Logo mais você pensará no porquê de ele ainda estar com ela: ele trabalha, tem dias repetitivos, volta para casa e a mulher sempre vem com novas ideias de trabalho para ela mesma, mostra pinturas de gosto duvidoso, parece uma jovem com excesso de tempo livre. Ela manda-o passear com o cachorro. Paterson conversa mais com o balconista do bar. Ele ri.

Acordar com a mulher é o lar que ele tem. Seus braços são longos porque precisam alcançá-la, cabelos espalhados, pernas compridas. Seu nariz é comprido também por isso. Os tamanhos se produzem mutuamente. No ônibus, antes de partir, ele escreve poesias no caderno sem pautas. Ele ouve a própria voz. A escrita ocorre no caderno e na tela, com letras diferentes. Ele escreve para que ele mesmo saiba.

Os caminhos da rua são de tijolos expostos, letras nas paredes. São labirintos embaixo de um grande prédio. As palavras do poema fazem as imagens andarem por outros lugares. O indiano bate à porta do ônibus, cara de irritado com Paterson: “Posso falar?” “Pode.” É a sogra, o gato diabético, os problemas. Desiste de reclamar. Antes de escutar, Paterson fecha o caderno de escutar-se. Dá a partida, as horas passam rápido mas o dia é longo.

Alguns gêmeos ou pessoas parecidíssimas entre si conversam no ônibus. Floyd, gêmeo siamês de Lloyd, do conto de Nabokov, é completo: ele capturou o próprio anjo e o amarrou em sua lateral. Ele se entende com o seu duplo sem com ele precisar se comunicar. Mas, se formos sutis, perceberemos que nosso anjo já está conosco, não há de ser buscado, sequer amarrado. O triunfo do gêmeos completos em seu mundo de conversa circular é apenas aparente. É uma brutalidade com o anjo (este conto é apresentado e analisado por Paulo Ghiraldelli Jr, no livro “Para ler Peter Sloterdijk”).

Aquelas vozes, que não são para Paterson, entram no ouvido dele. Acabando o expediente, ele se senta diante de uma cachoeira. O som de água, cheiro de água também faz seu nariz crescer. Esses são outros polos do mundo dele, que se apresentam para que o corpo de Paterson também se apresente.

Ele chega em casa e a mulher pintou as cortinas, pintou a própria roupa e cupcakes. De preto e branco, ela e ele. Ele elogia as novidades ruins. Ela insiste na ideia de ele xerocar os poemas. O caderno é o duplo dele. Ele não quer ser trigêmeo. O outro irmão pode se perder. E quem há de se interessar?

Sai com o cachorro, que move-se rápido mas espera parado do lado de fora. No bar o balconista joga consigo mesmo. Aconselha aqueles que estão em dificuldades com seus duplos. Sempre se abanca a mesma mulher, queixosa de um cara que não aceita o pé na bunda. O barman atou-os para sempre, no “Romeu e Julieta”, um casal que não pode viver junto. Então o Romeu pegou uma arma para matar Julieta. Apontou para ela, apontou para ele mesmo. Era de brinquedo. Duplos não são necessariamente físicos. Muitas vezes são espectros que giram em volta de nós. Fisicamente, de fato, o filme não tornou a mostrar Romeu junto de Julieta.

Um dia o cachorro estraçalhou o caderno de Paterson, aquelas palavras nunca lidas, apesar de a mulher ter pedido muito por isto. O eu é pré-formado por borbulhas sonoras que o antecipam, contam o que será a vida dele. Sereias atraem o homem por uma música que já há dentro dele. Essa atração é para conferir identidade e também morte. Leitores, seguidores, prisão. Separaçào daquela vida. O cão livrou Paterson desse risco. Palavras valem ditas ou escritas (no ato de escrever). Ele as escreveu pensando na hora. O duplo não pode ter um corpo. Não precisa ter.

Diante da cachoeira um japonês foi uma sereia não mortífera, para Paterson: lembrou-o dos poetas daquela cidade, e deu-lhe um caderno, dizendo que a folha branca é cheia de possibilidades.

Na lateral do ônibus 23 há o anúncio, “Divorce? Call xxxxxxxx”. Paterson não se separa. Ninguém se separa, na cidade de Paterson. O ser é “ser-em, então, deveria ser concebido como uma companhia de alguma coisa com alguma coisa em alguma coisa.” (Ghiraldelli Jr, “Para ler Peter Sloterdijk”, p. 110)

A ótima escola, o ótimo aluno


O professor mostra para a turma uma matéria de jornal que diz que os alunos brasileiros não encaram os desafios da escola. Os alunos querem sempre uma ajuda do professor. Segundo Sloterdijk, o homem se desenvolveu como espécie a partir da criação de invernadas, espaços de proteção da imaturidade dos seus filhos. A administração da própria vida ou da vida de coletividades se dá a partir da organização de um parque climatizado, onde os homens podem crescer com proteção.

Sem dúvida isso é potencializado nos tempos atuais, em que há produção de riquezas e, por isso mesmo, tem como importante questão a distribuição dessas riquezas. Não há carência de recursos, então não há justificativa para haver desigualdade no acesso a eles. Todos pleiteiam, com justiça, um mimo.

A escola é um desafio para a criança e o jovem. Nem todos conseguem dar conta dele. Sem dúvida há o professor e o aluno que operam na perspectiva da necessidade, “falta-me algo que eu sempre busco preencher, e ao imaturo que está diante de mim também sempre falta algo que precisa ser preenchido”. O mimo, o autocuidado da espécie, não necessariamente gera o necessitado: em bons casos, a partir do espaço protegido emerge o sujeito, aquele que se fez por si mesmo. No caso da escola, ele a encarou orgulhosamente.

O orgulhoso é aquele que se vê como tendo alguma coisa para oferecer. Ele não é o desprovido de recursos. Ele é aquele que tem abundância de recursos, e se apresenta. Já o autodidata exemplifica aquele que não se apresenta, pois refuga diante da escola. O professor é importante, ao ser agente de incitação do orgulho das crianças, ao apresentar-se para elas e cobrar-lhes auto-apresentação.

Um país em que os indivíduos se vêem dotados de algo, portanto tendo alguma coisa para oferecer, é aquele que gera riquezas. Os necessitados, por sua vez, vivem em busca da oportunidade de se darem bem. E querem a destruição do lugar que os conclamou a serem sujeitos, nos primeiros anos: justamente a escola. A escola guarda nossos primeiros medos, ousadias, desistências e glórias.
É preciso cuidarmos para que haja boas escolas, ou seja, escolas desafiadoras, a serem enfrentadas e que dêem vitórias de alto valor. E escolas acolhedoras da coragem do fazer-se sujeito, dos alunos.



*Quer conhecer o filósofo alemão Peter Sloterdijk? Pegue “Para ler Peter Sloterdijk”, do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr, editora Via Veritá, e “Esferas I”, de Peter Slotetdijk, editora Estação Liberdade.