sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A indelicadeza das palavras


Dizer ou não para a mãe que se é gay? Para a menina que se gosta dela? Palavras podem ser indelicadas, até as palavras boas. Quando uma pessoa fala alguma coisa, mesmo “sem querer”, ela se compromete com aquilo que disse. Uma grosseria dita para alguém: a próxima palavra terá que ser uma grosseria também, ou se parecerá incoerente. Você escuta uma palavra de amor: as próximas terão que sustentar o clima, pois a expectativa foi criada. Palavras criam expectativas de si para consigo mesmo, ou para com outra pessoa, e isso tem o seu desconforto.

Acreditamos que as coisas darão certo. Ou não nos levantamos. Desde o início das nossas vidas nos é feita essa promessa impossível. E a prometemos a nós mesmos. É uma promessa feita intimamente, não apenas com palavras e que, por isso, elas não podem traduzir totalmente. As mais doces palavras vindas de alguém, muitíssimas vezes, não casam com as da promessa que me sustenta, ou nas quais eu sustento a mim mesmo. As palavras ruins, então, só se casam com aqueles que vivem intimamente sob o signo do pessimismo.

Tudo o que fazemos é para nos mantermos no clima de aconchego e dentro da promessa. Perseguimos miragens sonoras. Ulisses permaneceu sete anos nos domínios da ninfa Calipso. Ela prometera vida eterna ao herói da Guerra de Tróia, enquanto ele permanecesse com ela. Contudo, Ulisses sentia enorme saudade de casa, lugar em que ouviu seu nome, nas primeiras vezes. Seu heroísmo deveria incluir o retorno a Ítaca. O descanso junto a Calipso era o fim da história dele. Diferente de se concluir uma história, e viver a glória, o fim prematuro é um descanso covarde e inquieto. Calipso falava a Ulisses do extremo valor dele. Mas, para ele, era da esposa Penélope, do filho Telemaco e dos habitantes de Ítaca que ele queria ouvir sobre ele mesmo. A jornada de Ulisses é sobretudo sonora, passa por muitos lugares e deles recebe palavras hospitaleiras (de casas temporárias) ou hostis. É o retorno para um lar acústico.

Somos gerados em ambientes sonoros e vibracionais. Palavras participam dele. Mas, só palavras, a ele não fazem jus. Uma palavra ouvida na rua tem um peso. Na intimidade, tem outro. Palavras podem ameaçar com o rompimento de algum clima de conforto. Este clima é anterior a nós. Então, temos a sensação de que ele nos sucederá. Desse ambiente emergimos como indivíduos, e estes se vêem como unos, livres de qualquer parceria fundamental. Indivíduos podem entender que não vieram de um clima, mas que o geraram, e que este se encerrará com a morte deles. A perspectiva do uno inclui tudo o que diz respeito a ele. E exclui o que ele entende como não dizendo dele. Há palavras “dele”, e palavras “não-dele”.

Uma menina não quer seu garoto querido deixando de estar ao lado dela para olhá-la de frente ou dizer-lhe palavra. Isso ameaça o clima, que ou é eterno ou será protegido pelo indivíduo “dono do clima”, ou melhor, dono dos suportes daquele clima, como são as palavras adequadas. A menina se incomoda com as entrada de palavras na delicadeza da presença. Uma mãe quer a parceria do seu filho, o cuidado do filho, e quer que ele se sinta bem protegido. Da boca dele só pode sair a confirmação do planos da mãe. A mãe de Bentinho já havia arranjado tudo para ele ser seminarista, cumprindo uma promessa dela com Deus. Bentinho só o era por ser filho desta promessa. Ele jamais contou a ela sobre Capitu, de tanto que ele estava atado ao clima íntimo com a mãe. Capitu irava-se com a passividade, o não-erguer-se, de Bentinho. A mãe escolhe o nome do filho (ou zela, ou luta contra, a promessa no nome escolhido pelo pai).

A mulher conhece a casa, a organiza para que os participantes alcem algum vôo. O garoto não pode entrar com pés de lama, na sala. Não pode dizer que deseja ter um caminho diferente, na vida. A mulher dá os nomes, os horários e os lugares. É ela que dirá ao garoto se eles namoram ou não. Mas, lógico, do garoto se espera que um dia bata na porta, toque a canpainha para dizer algo. E quando o garoto já está ao lado, na tão gostosa presença, e quer namorar? Como ele pode dizer isso, sem forçar a barra? Não seria mais natural que da gostosa presença de amigos, um namoro surgisse?

Heidegger mostrou um homem que não é o centro, mas o guardião e o pastor do ser. Ele escuta as delicadezas do que é. Essa é sua essência. A mulher também não está no centro, e organiza a casa, a linguagem, para o ser. O que ocorre entre um homem e uma mulher é cuidado por ela e defendido por ele. É algo que exige a delicadeza dos dois. Delicadeza para o homem é mais difícil, pois ele está nas coisas, nos objetos, mas lidando com nomes dados, usando os nomes que a mulher deu. Usando errado, forçando a barra sobre o ser.

O homem é como uma coisa em meio às coisas. A mulher, visto que está na habitação, percebe o que está surgindo, e o nomeia. O homem, não raro, age indelicadamente no que diz sobre si mesmo, ou sobre o que há entre ele e a mulher. A mulher prefere que ele esteja em casa, ou seja, no ambiente dela. Sem falar muito.

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