sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Diga na minha cara


Entrei no trem com uma bíblia embaixo do braço. Abri e comecei a ler. Para mim mesmo. Apesar de alguns olhares, não li para mais ninguém. Eu tenho onde guardar aquelas falas. Não estou farto de mim mesmo, que fica me dizendo coisas.

Farto de si mesmo é o fanático do Cioran. Ele é o infernizado que se dedica a infernizar os outros, dizendo o que promete ser o bem. Não quero aconselhar os outros na rua. Não quero ser o início e o centro dos acontecimentos.

Na bíblia está que a voz do povo é a voz de Deus. Mas é a voz das falas dos que mantém as leis de Deus em seu dia a dia. Não é a voz dos que exortam. Os que muito falam até beiram a insensatez, e atrapalham o homem justo.

Agostinho confessou-se, quis dirigir sua fala diretamente a Deus como quem envia um hálito a quem um dia lhe deu o hálito, e que lhe deu seu “eu interior”, eu verdadeiro porque divino. Agostinho se sentia intimamente desconectado de Deus.

Talvez a reconexão com Deus, ou com qualquer outro parceiro fundamental, com o qual perdeu-se intimidade, seja algo a ser feito na intimidade da fala consigo mesmo e na fala com aquele que está a curta distância, na fronteira dentro e fora, sentindo o seu hálito e dando o hálito dele para você sentir.

As pessoas buscam parcerias de vida, mas não cuidam do próprio hálito. Como doar e receber o ar da vida, tendo o hálito podre? Ou tendo hálito nenhum? Por isso há os que falam aos muitos, que permanecem à distância. Não querem ninguém aqui, com elas mesmas. Sua fala próxima não é boa, sabem. Ou não têm fala nenhuma.

Quem não gostaria de fazer uma acareação (ficar cara a cara) com famosos mentirosos? Só os descarados.

Fique longe!


Disseram-me que Machado de Assis é chato. Concordei enfaticamente. Machado, Freud, Homero, Platão e a Bíblia, tudo isso é muito chato. Livros que sempre ficaram lá na estante de casa, com poeira velha. Da mãe, da vó, da vó da mãe, que ela guarda. Livros que não estão nem aí se você gosta deles. Não se importam com seu gosto, sua teoria, nem sua experiência de vida.

Você já os abriu por curiosidade mórbida, sabendo que não daria certo. Você abriu o volume novo do Machado, que a professora mandou comprar, porque livro novo a gente abre, pra desvirginar, e depois mete no arquivo. Fechou sem guardar o que leu. Só ficou a impressão de que aquilo não é para você, mas no sentido depreciativo da coisa que não é para você.

Eu te digo que realmente não é para você, mas depreciando você. Depois da nota obtida na escola, fique longe desses livros. Fique longe, se você não gosta. Poucos são os que realmente gostam, leem de novo, fazem de novo a escola. Sentam para saber o que não sabiam. São os que têm grandes mestres, colocam sua expectativas intelectuais lá no alto.

Heidegger não aceitou que o homem fosse comparado aos animais. A essência dele é habitar a linguagem, e escutar o ser. “Ethos anthropos daimon”, de Heráclito, cuja interpretação dada por Heidegger pode ser lida em “Para ler Peter Sloterdijk”, do também filósofo Paulo Ghiraldelli Jr: o mais próximo e despercebido, para o homem, é uma clareira onde a divindade se mostra. Então não devemos aspirar a sermos “animais racionais”. Nossa dignidade está em sermos divinos.

A escola se democratizou. Então é até um crime dizer para você não pegar em livros. Tudo parece ser para todos, e para qualquer um. Causa espanto o “não”, “acesso negado”.

Aqueles livros viraram mercadoria, sob o nome de “cultura”. O eu, que também é mercadoria, só tem valor de troca e está aí para ser consumido, consome a si mesmo consumindo as outras mercadorias (o eu é uma mercadoria essencialmente consumidora de mercadorias). Ele vai querer consumir o livro. Não há qualquer consideração sobre formação de capacidade de leitura.

Não há qualquer profundidade ou rugosidade na relação do homem com as coisas como com espelhos. Estes lhe devolvem uma imagem de performer dos gestos necessários e suficientes para produzir e consumir. Lasch (https://z-p3-scontent.fsdu4-1.fna.fbcdn.net/v/t42.9040-29/10000000_1325653257514479_4501655497539059712_n.mp4?efg=eyJybHIiOjEwMzMsInJsYSI6NDA5NiwidmVuY29kZV90YWciOiJzZCJ9&oh=1f3a9ecf2ff55287a9ad664804857f78&oe=592ECF44) propôs essa analise, e entendeu que o eu formado nesse jogo de espelhos é um “mínimo eu”.

Um material que exija paciência, dicionário, reconhecimento de que não se sabe, que se dê passos atrás, e que se volte, só pode causar incomodo. Você simplesmente descarta. Mas, em nome do consumo dos outros, a coisa descartada pelo eu não pode ser descartada do mundo. É por isso que as opiniões dos eus, de que aqueles livros são chatos, não se tornam opinião geral.

Estes livros, os livros difíceis, tornam-se campeões de orelhas e contracapas lidas, talvez também as três páginas iniciais. Tudo comentado com um “Interessante. Quero ler depois”, que vira um rótulo para a mercadoria.

O eu gosta de descartar o que existe por aí como coisa para consumo, como se ele fosse mais real ao ser “diferente da massa”. Ele procura refletir-se em espelhos mais próximos, como os familiares e amigos, como se estes o conhecessem “verdadeiramente”. Conhecem a verdade da sua performance.

Aqueles autores existem para serem chatos, mesmo. Para atritar quando se tenta deslizar por eles. São anti-deslizantes!

Fiquem longe.

A boa aparência


A bela mulher volta para a cidadezinha onde passou a sua infância. Os meninos a perseguiam, um deles em particular batia nela. Um dia este menino morreu, diante dela, menina, e de mais ninguém. Ela então cresceu distante da cidade.

Ao retornar, sofreu acusações de assassina. Ela e sua mãe eram consideradas perigosas. A cidade era pequena e rural, com vizinhos que sabiam das vidas uns dos outros, e um prefeito que se achava o dono do lugar. A forasteira mostrou-se com vestidos que chamavam muita atenção. Finalmente chegou, por ali, algo que valia a pena ser olhado.

Ela começou a fazer vestidos para as mulheres tristes do lugar. Vestidos que mostravam o colo, as pernas, eram de cores vibrantes e com tecidos reluzentes. Faziam com elas descobrissem belezas que não achavam que tinham. Não, que não tinham mesmo, pois, o que somos além do que mostramos para nós mesmos e para os outros? Ou o que se mostra em nós, sem que queiramos?

As mulheres surpreendiam-se consigo mesmas. O xerife da cidade também surpreendia-se consigo próprio: às escondidas ele gostava de se olhar nos espelhos, usando vestidos. Ele não resistiu e também pediu para se vestir daquela forma nova. Os espelhos onde olhou para si mesmo estavam localizados na rua. A quase forasteira ofereceu a eles espelhos, e também personas admiráveis para lançarem sobre os espelhos. Assim, eles se enxergavam bonitos. Bem mais bonitos do que na verdade eram.

Entre as coisas nossas, há as ruins, que escondemos, envergonhados. Há pessoas que apenas esperam um pequeno espelho para projerarem essa maldade. Pensam que assim só elas verão a imagem refletida. Querem um pequeno espelho, ou talvez um grande, mas trancado em casa, que seja um escravo das projeções de sua dona, e não as revele a mais ninguém. Um espelho, lógico, que escravize aquele que só é o que a superfície lisa do que o espelho reflete, e que é tão profundo quanto ele.

Os moradores do local logo retomaram às acusações às escondidas, contra a mulher. Voltaram para aquilo que, se precisava ser feito escondido, era algo indigno de ser olhado, e que de forma alguma causava admiração.

Os moradores iam bem vestidos em ocasiões especiais. Nelas, eles eram bonitos. Essencialmente eles eram feios, não havia nada bonito para ser visto naquela cidade. Chamaram a forasteira de amaldiçoada. Amaldiçoada, porém, era a cidade mesma, que fazia com que todos que nela permanecessem fossem feios.

O rapaz que parecia naturalmente belo, encantou-se com a forasteira, e propôs saírem dali. Ele morreu, em uma brincadeira que fizera para a amada
Segundo a mãe dela, ele queria provar a ela que o amor dele era maior do que o ódio daquelas pessoas todas. Morreu fazendo algo infantil, e querendo mostrar o amor. Uma morte que não teve nada a ver com medo ou dor. Morreu como uma boa criança, excessiva e atuante às claras.

*Leitura do filme “A Vingança está na Moda”, de Jocelyn Moorhouse (2015).

Injustiça bem distribuída


Para o homem antigo, grego ou hebreu, a obediência às leis e aos costumes era um privilégio. Significava estar no ethos, em casa, portanto, não ser escravo. Hoje as pessoas gostam de dizer o quanto escapam da lei. A frase “você sabe com quem está falando?”, que Roberto da Matta disse que é um símbolo do nosso autoritarismo cotidiano, é contra atacada por um comportamento que também é um autoritarismo cotidiano: o indivíduo comum foge às obrigações e autoridades, mesmo quando se considera inocente.

No Salmo 141, Davi diz que não andará com malfeitores, com injustos. Sabemos que no contexto da Bíblia os não seguidores da lei de Javé, o ponto de demarcação da justiça, poderiam ser tanto o indivíduo comum como os reis. As leis de Javé valiam para todos, segui-la era uma obrigação geral. Neste aspecto, não havia a polarização indivíduo comum X Rei. De forma magoada, hoje, separamos um pobre-sofredor de injustiça, então compulsoriamente injusto, de um rico-injusto por natureza.

Davi pede ajuda a Javé para seguir a própria lei Dele. Pede uma sentinela à porta dos próprios lábios; pede que Ele lhe bata, corrija, antes que ele mesmo deixe o óleo do justo perfumar-lhe a cabeça. Ser amado, aqui, ou seja, habitar uma casa, é temer Javé, no sentido de estar sob a sua lei. Fora dessa casa havia a injustiça, a morte do homem pelo homem, decidida por uma lei arbitrária e não clara. A morte do homem por Javé era a fidelidade Dele em ensinar, ou seja, em aplicar uma lei fixa e conhecida. Como a maior parte dos homens morre de causas naturais, a lei de Javé entra como um princípio do ciclo da vida, não como uma punição. Até mesmo porque, nos bons casos, a vida prosseguiria por outros meios.

Bolsonaro, em recente entrevista (http://odia.ig.com.br/brasil/2017-05-23/bolsonaro-admite-propina-a-seu-partido.html) indagou sobre que partido não recebe propina. Os injustos se banqueteiam, então quem não participaria do banquete, também? Davi pediu ajuda a Javé, para não se render ao óleo do poderoso. O homem de hoje confia apenas na própria força, e já se põe de antemão como fraco demais para resistir às contingências.

A quantidade de auto-ajuda existente, hoje, só é possível num mundo em que o homem pensa que deve fazer muito, por conta própria, e então se percebe impotente. Pede ajuda de outro homem, tão impotente quanto ele próprio. Um outro homem igual a si mesmo, não um parceiro provocador-ampliador, alguém pra fazer uma dupla como homem-Javé.

Se os outros-iguais não dão força para seguir uma lei, dão o ambiente do seu rompimento. Estimulam-se mutuamente, para isso. Criam o ambiente da fraqueza da vontade, do não-resistir aos banquetes.

Movimento social e movimento do eu


Na escola vinha-se falando sobre racismo, “apropriação cultural”, etc. Hoje a turma assistiu um episódio do “Dear White People”. A protagonista, uma universitária negra, é locutora em um programa de rádio que leva o mesmo nome da série. Ela frequenta reuniões em que grupos negros, formados por pessoas de diferentes estilos, apresentam suas demandas particulares. Entre nós, na sala, a professora comentou a heterogeneidade do movimento negro.

Problemas concretos como, por exemplo, a exclusão de negros em diversos espaços, podem ser apresentados junto a reinvindicações por melhorias nas leis, na cultura ou nas instituições. Qualquer um que seja sensível o bastante para com aquela questão do outro, e que até perceba o quanto a resolução dela melhoraria sua própria vida, faria aquelas reinvindicações. Freqüentemente, contudo, esses problemas são acoplados a identidades (“eu sou assim, e preciso disso”). Faz-se uma associação, aparentemente necessária, entre identidade e necessidade, de modo que, para se ser algo, é preciso necessitar de alguma coisa correspondente. No horizonte, então, o que se vê não é mais a falta de necessidade, através da sua resolução. Além disso, a imbrincação entre identidade e necessidade, cristalizadora de ambas, exclui outros indivíduos da participação nas reinvindicações.

A minoria torna-se uma minoria-demanda. A demanda marca a identidade e, junto com outras características, forma uma imagem que se torna autonoma e também permanente. Não é raro encontrar identidades-minoria-demanda que queiram ser completamente autonomas e permanentes.

Entender que possa haver uma permanência como que substancial para o que se é, é um pensamento fundacionista*. Filosoficamente, o fundacionismo é a busca por um fundamento para se falar em realidade ou em sujeito. O platonismo é o principal fundacionismo que conhecemos. Nele, a essência de tudo o que existe está situada em um lugar à parte deste mundo.

Nietzsche foi um anti-fundacionista, ao colocar que não há um absoluto, uma referência situada fora deste mundo para se olhar este mundo daqui. Tudo o que temos são as coisas daqui e suas diferenças. A expectativa de que “meu eu verdadeiro” possa ser retratado em uma identidade, e representado por um movimento social, é um fundacionismo, leva-me à impressão de que a identidade e os discursos são autônomos e permanentementes. E desvia a atenção das demandas sentidas concretamente.

Naquele episódio da série, a protagonista arrumou um homem branco. Ela gostava dele. Ao levá-lo para uma reunião do seu grupo, todos sentiram-se desconfortáveis. Questionaram como uma líder de movimento negro poderia namorar um branco! No final do episódio, ela estava na locução do seu programa. Durante o dia ela esteve com pessoas, passou por situações, ouviu opiniões, mas agora ela falava objetivamente sobre suas queixas. Uma delas era de que os brancos da universidade não deveriam maquiarem-se de negros em suas festas. Isso a ofendia e, então, deveria mesmo ser posto na mesa.

O pragmatismo, uma filosofia antifundacionista propõe que as pessoas que divergem a respeito de alguma coisa não disputem sentidos sobre o que as coisas são (“quem é negro?”, “Quem não é negro?”, “Quem pode falar sobre as questões do negro?”), mas apresentem seus interesses. Um indivíduo, então, apresenta a si mesmo. Ele não espera ser representado por alguém. A ideia de representação requisita a de fundamento pois, se há uma definição absoluta de alguém, essa definição pode ser representada por outra pessoa. A protagonista da série, vendo a confusão de discursos dentre os seus colegas, apresentou-se a si mesma. Ela quer envolver-se amorosamente com quem ela escolher, e não com quem o movimento negro escolhe para ela.

O jovem apresenta-se, mas também busca representantes. Ele transborda, dá de si. Também se sente carente, precisando que alguém o represente. Apresentar-se, colocar as cartas na mesa, requer que a pessoa se veja como transbordante, tendo muitos recursos, muito de alguma coisa para dar. Na psicologia do grego antigo, o thymos é o órgão ligado ao reconhecimento e identidade. Aquiles era o melhor guerreiro dentre os gregos, decisor de batalhas. Agamenon tomou uma das mulheres do herói. Então Aquiles se viu ferido em seu orgulho, diminuído em seu valor, contrariado na sua identidade. Recolheu-se em sua tenda, não mais seria aquilo que sempre havia sido para os gregos.

Para nós que vivemos o império da miserabilidade, identidade é “eu sou assim e tenho que ser aprovado pelo outro. Ou, se o outro é meu inimigo, tenho que ser odiado por ele”. Na vida eu sou livre para fazer muitas coisas, mas não sou livre para umas tantas, as quais considero que tenho direito. Tenho questões pontuais, e que não necessariamente precisam me marcar com uma identidade-necessidade. Se isto ocorre, ao invés de um indivíduo ser livre, e ao mesmo tempo lutador orgulhoso de suas vitórias, ele, preso a uma identidade-necessidade, toma o direito ou como um agraciamento do outro, ou algo que não vale, diante da enorme injustiça do mundo.

O outro pode ser o homem que passa ao meu lado na rua, minha colega de sala, o outro profissional no meu local de trabalho, etc. Não é o outro no sentido do negativo do eu, do desafio, do ponto a partir do qual eu reflito sobre mim e me modifico. O outro, como negativo, está distante. O movimento-necessidade é uma reunião de outros iguais ao eu.

Voltando à sala, a professora explicou que as relações raciais no Brasil baseiam-se na cor da pele e na subalternização daquele com quem sempre se conviveu. Um indivíduo se vê próximo da sua empregada doméstica a partir de uma perspectiva qualitativa (ambos são humanos). E se vê como diferente dela na perspectiva da quantidade de melanina da pele. A pertença de ambos a uma espécie, e também a uma mesma casa, faz com que a relação que exista entre eles se dê em torno de um mesmo eu. Mas, como o eu é o dono da casa, a empregada é um sub eu ou um eu dominado.

As relações raciais nos Estados Unidos, também explicadas pela professora, baseiam-se na origem. O negro é afro-americano, descendente de povos africanos. Então ele é de uma ontologia diferente, um outro em relação ao branco. O outro, em relação ao meu eu, é tomado como o infernal. Mas, justamente por ser verdadeiramente o outro, ele me dá a chance para eu me reformular. Apesar da segregação racial ocorrida nos EUA, e não no Brasil, o negro é um desafio para o branco americano, enquanto que, no Brasil, o “tudo se resolve em casa” escamoteia os conflitos.

Se sou um eu livre do outro, e se esse eu é destituído de recursos, ou é ameaçado dessa destituição, o eu irá se agarrar ao que tem e proibir ao outro (próximo) chegar perto. Ele não pode militar junto comigo, ou me passará a perna! A conquista dele é necessariamente a minha perda. Agora, se o outro é aquilo que confronta o eu, que o move, a ausencia de direitos do negro pode ser uma afronta à liberdade também do branco, pois ele não pode viver sem o negativo que o faz mover-se. Sou confrontado pelo outro, não controlo a vontade dele, e tenho que, com ele, dividir os recursos e a vez de me apresentar. Eu me aprsento, e também ele. Como não considerar rico este mundo?



* A idéia de fundacionismo e antifundacionismo, em filosofia, e também a ideia que virá adiante, no texto, sobre o outro como igual ou como o negativo do eu, vieram dos cursos do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr.

A indelicadeza das palavras


Dizer ou não para a mãe que se é gay? Para a menina que se gosta dela? Palavras podem ser indelicadas, até as palavras boas. Quando uma pessoa fala alguma coisa, mesmo “sem querer”, ela se compromete com aquilo que disse. Uma grosseria dita para alguém: a próxima palavra terá que ser uma grosseria também, ou se parecerá incoerente. Você escuta uma palavra de amor: as próximas terão que sustentar o clima, pois a expectativa foi criada. Palavras criam expectativas de si para consigo mesmo, ou para com outra pessoa, e isso tem o seu desconforto.

Acreditamos que as coisas darão certo. Ou não nos levantamos. Desde o início das nossas vidas nos é feita essa promessa impossível. E a prometemos a nós mesmos. É uma promessa feita intimamente, não apenas com palavras e que, por isso, elas não podem traduzir totalmente. As mais doces palavras vindas de alguém, muitíssimas vezes, não casam com as da promessa que me sustenta, ou nas quais eu sustento a mim mesmo. As palavras ruins, então, só se casam com aqueles que vivem intimamente sob o signo do pessimismo.

Tudo o que fazemos é para nos mantermos no clima de aconchego e dentro da promessa. Perseguimos miragens sonoras. Ulisses permaneceu sete anos nos domínios da ninfa Calipso. Ela prometera vida eterna ao herói da Guerra de Tróia, enquanto ele permanecesse com ela. Contudo, Ulisses sentia enorme saudade de casa, lugar em que ouviu seu nome, nas primeiras vezes. Seu heroísmo deveria incluir o retorno a Ítaca. O descanso junto a Calipso era o fim da história dele. Diferente de se concluir uma história, e viver a glória, o fim prematuro é um descanso covarde e inquieto. Calipso falava a Ulisses do extremo valor dele. Mas, para ele, era da esposa Penélope, do filho Telemaco e dos habitantes de Ítaca que ele queria ouvir sobre ele mesmo. A jornada de Ulisses é sobretudo sonora, passa por muitos lugares e deles recebe palavras hospitaleiras (de casas temporárias) ou hostis. É o retorno para um lar acústico.

Somos gerados em ambientes sonoros e vibracionais. Palavras participam dele. Mas, só palavras, a ele não fazem jus. Uma palavra ouvida na rua tem um peso. Na intimidade, tem outro. Palavras podem ameaçar com o rompimento de algum clima de conforto. Este clima é anterior a nós. Então, temos a sensação de que ele nos sucederá. Desse ambiente emergimos como indivíduos, e estes se vêem como unos, livres de qualquer parceria fundamental. Indivíduos podem entender que não vieram de um clima, mas que o geraram, e que este se encerrará com a morte deles. A perspectiva do uno inclui tudo o que diz respeito a ele. E exclui o que ele entende como não dizendo dele. Há palavras “dele”, e palavras “não-dele”.

Uma menina não quer seu garoto querido deixando de estar ao lado dela para olhá-la de frente ou dizer-lhe palavra. Isso ameaça o clima, que ou é eterno ou será protegido pelo indivíduo “dono do clima”, ou melhor, dono dos suportes daquele clima, como são as palavras adequadas. A menina se incomoda com as entrada de palavras na delicadeza da presença. Uma mãe quer a parceria do seu filho, o cuidado do filho, e quer que ele se sinta bem protegido. Da boca dele só pode sair a confirmação do planos da mãe. A mãe de Bentinho já havia arranjado tudo para ele ser seminarista, cumprindo uma promessa dela com Deus. Bentinho só o era por ser filho desta promessa. Ele jamais contou a ela sobre Capitu, de tanto que ele estava atado ao clima íntimo com a mãe. Capitu irava-se com a passividade, o não-erguer-se, de Bentinho. A mãe escolhe o nome do filho (ou zela, ou luta contra, a promessa no nome escolhido pelo pai).

A mulher conhece a casa, a organiza para que os participantes alcem algum vôo. O garoto não pode entrar com pés de lama, na sala. Não pode dizer que deseja ter um caminho diferente, na vida. A mulher dá os nomes, os horários e os lugares. É ela que dirá ao garoto se eles namoram ou não. Mas, lógico, do garoto se espera que um dia bata na porta, toque a canpainha para dizer algo. E quando o garoto já está ao lado, na tão gostosa presença, e quer namorar? Como ele pode dizer isso, sem forçar a barra? Não seria mais natural que da gostosa presença de amigos, um namoro surgisse?

Heidegger mostrou um homem que não é o centro, mas o guardião e o pastor do ser. Ele escuta as delicadezas do que é. Essa é sua essência. A mulher também não está no centro, e organiza a casa, a linguagem, para o ser. O que ocorre entre um homem e uma mulher é cuidado por ela e defendido por ele. É algo que exige a delicadeza dos dois. Delicadeza para o homem é mais difícil, pois ele está nas coisas, nos objetos, mas lidando com nomes dados, usando os nomes que a mulher deu. Usando errado, forçando a barra sobre o ser.

O homem é como uma coisa em meio às coisas. A mulher, visto que está na habitação, percebe o que está surgindo, e o nomeia. O homem, não raro, age indelicadamente no que diz sobre si mesmo, ou sobre o que há entre ele e a mulher. A mulher prefere que ele esteja em casa, ou seja, no ambiente dela. Sem falar muito.

A cidade sem separações


Paterson (dir. Jim Jarmusch, 2016) é um homem jovem, motorista do ônibus 23 da cidade de Paterson (!). Casado (porque para casar basta morar junto, ser “casado” no sentido de “combinado” com alguém) com uma mulher indiana. Eles têm um bulldog inglês que vive na poltrona e participa de tudo com olhares e vocalizações. O cachorro tem um rosto. Paterson tem um rosto, nariz grande. O filme começa em uma segunda-feira e termina na segunda-feira seguinte, e corre dia a dia.

Paterson sempre acorda com o dia claro, e ele mesmo voltado para a mulher. Abre os olhos de repente e a vê. Então vira o rosto e o braço, alcança o relógio para conferir a hora, e é sempre hora de levantar. Volta-se à mulher e a beija no braço, a cobre. Logo mais você pensará no porquê de ele ainda estar com ela: ele trabalha, tem dias repetitivos, volta para casa e a mulher sempre vem com novas ideias de trabalho para ela mesma, mostra pinturas de gosto duvidoso, parece uma jovem com excesso de tempo livre. Ela manda-o passear com o cachorro. Paterson conversa mais com o balconista do bar. Ele ri.

Acordar com a mulher é o lar que ele tem. Seus braços são longos porque precisam alcançá-la, cabelos espalhados, pernas compridas. Seu nariz é comprido também por isso. Os tamanhos se produzem mutuamente. No ônibus, antes de partir, ele escreve poesias no caderno sem pautas. Ele ouve a própria voz. A escrita ocorre no caderno e na tela, com letras diferentes. Ele escreve para que ele mesmo saiba.

Os caminhos da rua são de tijolos expostos, letras nas paredes. São labirintos embaixo de um grande prédio. As palavras do poema fazem as imagens andarem por outros lugares. O indiano bate à porta do ônibus, cara de irritado com Paterson: “Posso falar?” “Pode.” É a sogra, o gato diabético, os problemas. Desiste de reclamar. Antes de escutar, Paterson fecha o caderno de escutar-se. Dá a partida, as horas passam rápido mas o dia é longo.

Alguns gêmeos ou pessoas parecidíssimas entre si conversam no ônibus. Floyd, gêmeo siamês de Lloyd, do conto de Nabokov, é completo: ele capturou o próprio anjo e o amarrou em sua lateral. Ele se entende com o seu duplo sem com ele precisar se comunicar. Mas, se formos sutis, perceberemos que nosso anjo já está conosco, não há de ser buscado, sequer amarrado. O triunfo do gêmeos completos em seu mundo de conversa circular é apenas aparente. É uma brutalidade com o anjo (este conto é apresentado e analisado por Paulo Ghiraldelli Jr, no livro “Para ler Peter Sloterdijk”).

Aquelas vozes, que não são para Paterson, entram no ouvido dele. Acabando o expediente, ele se senta diante de uma cachoeira. O som de água, cheiro de água também faz seu nariz crescer. Esses são outros polos do mundo dele, que se apresentam para que o corpo de Paterson também se apresente.

Ele chega em casa e a mulher pintou as cortinas, pintou a própria roupa e cupcakes. De preto e branco, ela e ele. Ele elogia as novidades ruins. Ela insiste na ideia de ele xerocar os poemas. O caderno é o duplo dele. Ele não quer ser trigêmeo. O outro irmão pode se perder. E quem há de se interessar?

Sai com o cachorro, que move-se rápido mas espera parado do lado de fora. No bar o balconista joga consigo mesmo. Aconselha aqueles que estão em dificuldades com seus duplos. Sempre se abanca a mesma mulher, queixosa de um cara que não aceita o pé na bunda. O barman atou-os para sempre, no “Romeu e Julieta”, um casal que não pode viver junto. Então o Romeu pegou uma arma para matar Julieta. Apontou para ela, apontou para ele mesmo. Era de brinquedo. Duplos não são necessariamente físicos. Muitas vezes são espectros que giram em volta de nós. Fisicamente, de fato, o filme não tornou a mostrar Romeu junto de Julieta.

Um dia o cachorro estraçalhou o caderno de Paterson, aquelas palavras nunca lidas, apesar de a mulher ter pedido muito por isto. O eu é pré-formado por borbulhas sonoras que o antecipam, contam o que será a vida dele. Sereias atraem o homem por uma música que já há dentro dele. Essa atração é para conferir identidade e também morte. Leitores, seguidores, prisão. Separaçào daquela vida. O cão livrou Paterson desse risco. Palavras valem ditas ou escritas (no ato de escrever). Ele as escreveu pensando na hora. O duplo não pode ter um corpo. Não precisa ter.

Diante da cachoeira um japonês foi uma sereia não mortífera, para Paterson: lembrou-o dos poetas daquela cidade, e deu-lhe um caderno, dizendo que a folha branca é cheia de possibilidades.

Na lateral do ônibus 23 há o anúncio, “Divorce? Call xxxxxxxx”. Paterson não se separa. Ninguém se separa, na cidade de Paterson. O ser é “ser-em, então, deveria ser concebido como uma companhia de alguma coisa com alguma coisa em alguma coisa.” (Ghiraldelli Jr, “Para ler Peter Sloterdijk”, p. 110)

A ótima escola, o ótimo aluno


O professor mostra para a turma uma matéria de jornal que diz que os alunos brasileiros não encaram os desafios da escola. Os alunos querem sempre uma ajuda do professor. Segundo Sloterdijk, o homem se desenvolveu como espécie a partir da criação de invernadas, espaços de proteção da imaturidade dos seus filhos. A administração da própria vida ou da vida de coletividades se dá a partir da organização de um parque climatizado, onde os homens podem crescer com proteção.

Sem dúvida isso é potencializado nos tempos atuais, em que há produção de riquezas e, por isso mesmo, tem como importante questão a distribuição dessas riquezas. Não há carência de recursos, então não há justificativa para haver desigualdade no acesso a eles. Todos pleiteiam, com justiça, um mimo.

A escola é um desafio para a criança e o jovem. Nem todos conseguem dar conta dele. Sem dúvida há o professor e o aluno que operam na perspectiva da necessidade, “falta-me algo que eu sempre busco preencher, e ao imaturo que está diante de mim também sempre falta algo que precisa ser preenchido”. O mimo, o autocuidado da espécie, não necessariamente gera o necessitado: em bons casos, a partir do espaço protegido emerge o sujeito, aquele que se fez por si mesmo. No caso da escola, ele a encarou orgulhosamente.

O orgulhoso é aquele que se vê como tendo alguma coisa para oferecer. Ele não é o desprovido de recursos. Ele é aquele que tem abundância de recursos, e se apresenta. Já o autodidata exemplifica aquele que não se apresenta, pois refuga diante da escola. O professor é importante, ao ser agente de incitação do orgulho das crianças, ao apresentar-se para elas e cobrar-lhes auto-apresentação.

Um país em que os indivíduos se vêem dotados de algo, portanto tendo alguma coisa para oferecer, é aquele que gera riquezas. Os necessitados, por sua vez, vivem em busca da oportunidade de se darem bem. E querem a destruição do lugar que os conclamou a serem sujeitos, nos primeiros anos: justamente a escola. A escola guarda nossos primeiros medos, ousadias, desistências e glórias.
É preciso cuidarmos para que haja boas escolas, ou seja, escolas desafiadoras, a serem enfrentadas e que dêem vitórias de alto valor. E escolas acolhedoras da coragem do fazer-se sujeito, dos alunos.



*Quer conhecer o filósofo alemão Peter Sloterdijk? Pegue “Para ler Peter Sloterdijk”, do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr, editora Via Veritá, e “Esferas I”, de Peter Slotetdijk, editora Estação Liberdade.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Confusão e cansaço do eu


Na sala, os jovens conversavam sobre “Thirteen Reasons Why”. Uma moça cometeu suicídio, na série, e enviou fitas para treze pessoas que, segundo a história, significavam as razões do que ela fez. O filósofo Byung-Chul Han tem a tese de que vivemos um excesso de eu: o tempo de poder disciplinar, vinculado a instituições, arquiteturas e saberes, tão bem descrito por Foucault, e a sociedade de controle “a céu aberto”, dita por Deleuze, que são formas que acessam os indivíduos a partir de fora, são secundarizadas pelo controle do indivíduo sobre si mesmo. Ele é chamado para ter uma opinião, uma posição, uma opção. É chamado a desempenhar estas coisas, incluindo seu trabalho. O indivíduo é seu maior chefe, seu maior avaliador. Ele é seu próprio analista, porque não?

Mas, o que tanto ocupa esse eu? A tese de Han não deve ser entendida como um contraponto à tese da “pressão externa”, dita pelos jovens. Se ela for lida em conjunto com a ampla tese da esferologia, de Peter Sloterdijk, saímos da falsa separação estanque entre "eu" e "outro".

A esferologia de Sloterdijk diz o seguinte: na situação intra-uterina, placenta e feto formam uma esfera. Entre eles há tecidos, líquidos e vibrações. E eles ainda não são sujeito e objeto, feto e placenta, mas um aqui e um com. Cada um de nós é, desde o início, participante de uma dupla, um aqui, "onde estou?", junto de um com, "acompanhante de quem?". Sons externos são recebidos e causam vibração, no líquido amniótico. São filtrados, e vão formando um pré-psiquismo acústico naquele que poderá vir a ser a criança.

Então ocorre o que chamamos de nascimento, que é a separação da dupla. O recém nascido receberá ar, receberá a respiração da mãe, e então a voz dela. Mas essa voz vem depois da voz do anjo, um anjo sonoro, que acompa a criança. A mãe será o terceiro pólo da esfera. Em sua maioria, as vozes que habitam o indivíduo não são dele mesmo. São dele, pois nele penetraram. Mas, quando ele procura dizer algo "dele mesmo", mesmo que seja um pensamento, uma fala de si para si mesmo, isto ocorre por um certo compromisso naquilo que fala nele.

As esferas simbióticas feto e placenta, depois criança, anjo e mãe, sofrerão rupturas e reconstruções, para que novas intimidades possam ser formadas.

Para Sloterdijk, sujeito é aquele que se autoconsulta, escuta a voz interna que ele entende como sendo a dele próprio, e então se põe pra agir, se autodesinibe. No entanto, observa Sloterdijk, não temos conseguido nos descongelar. E não temos conseguido parar de agir meio que compulsivamente, o que é repetitivo, inercial. Temos precisado de consultores para nos dizer o óbvio, e nos alavancar para agir. E não paramos de agir da mesma forma, pois as vozes que circulam em nós são todas iguais a mim.

Han coloca que não temos experimentado alteridade, outridade, mas o outro como um diferente próximo, um diferente igual a mim. A personagem da série tem algo em comum com quem a assiste: um episódio tem uma emoção muito semelhante à outra, ocorre uma igualdade entre o 1, o 2, o 3... o 13. Treze vozes, treze episódios (não sei se a série tem essa quantidade de episódios, mas não importa para o que quero dizer), todas iguais a mim. Não busco a minha voz, dentre estas.

A menina se matou por treze razões, e deu a entender que as treze razões dela são as razões do outro. Ela morreu por razões que são dela e também do outro. "Jesus morreu pelos nossos pecados", mas veja o quanto ele foi sujeito, tendo feito o que fez por uma razão outra do que as dos pecados! A confusão de razões, da menina, acompanha a confusão da punição com aquele ato (quem ela quis punir, com a própria morte?). Adultos que também não conseguem se colocar para agir, ou que não conseguem discernir o porquê de fazerem o que fazem, e por isso não param, vêem a mesma coisa no jovem: ele tem tempo livre, não faz nada mas, se fizer, irá pela cabeça perigosa dos outros. Sua melhor companhia é uma série e, a partir dela, não sairá ponderando sobre as coisas, mas a tomará como um outro maciçamente colado ao eu, e que o levará para onde os personagens quiserem.

A personagem confunde as razões alheias como devendo ser a dela própria. Ela está distante de elaborar uma posição. Isso ocorre num momento em que o jovem é cobrado por ser um eu, uma identidade, um elemento seguro de pensamento e ação. Cansada desse eu que, ao ter que desempenhar, toma as razões dos outros como sendo as próprias, ela se matou.

Os adultos, a partir do justo temor pelos atos dos filhos, apostam que eles realmente farão essa confusão entre outros e si mesmo. Jovens e pais unem-se para falar que os primeiros sofrem pressão externa influenciadora. O que os pais não percebem é que estão lançando para os filhos a enorme demanda por serem eus, e também o cansaço disso.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Festa pré-pronta


Nos anos 70 os homens viam John Travolta na TV. Sábado à noite eles se produziam demoradamente, para se apresentarem na pista de dança. Havia festa, um tempo diferenciado. Hoje, produção continua sendo utilizado para o embelezamento, mas de mulheres, transformistas e gays. A festa está com eles. Às vezes, nem mais com eles ela está. Produção, no sentido de fazer algo para ser trocado por dinheiro, e tornar-se equivalente a tudo, roubou o momento da festa, do apresentar-se.

Agora cada um se preocupa em produzir algo que valha. Isso inclui vídeos e fotos para o Facebook. Importa produzir material que tenha um valor, não mais um produzir-se. Ou um produzir-se atrelado a produtos. Veja bloggers e vloggers, com seus livros e peças. O belo, que já teve seu sentido próximo ao justo, hoje ou é monetarizado ou não é importante. O justo tem sido um trabalho nada atraente. O charme está nos heróis e nos vilões, que tomam as coisas em suas próprias mãos, indivíduos que impressionam.

Na vida bela não existe mais o político e o politizado, tão preocupados com todos, com o mesmo empenho com que recusam-se à estética. A fala é desajeitada, tem uma afetação que vira marca (já reparou como cada palestrante midiático têm um problema na expressão, que se torna a sua marca identifidora? E a péssima dicção do Lula, que charme?), o cabelo é desarrumado, não raro apela-se para um comportamento imoral e inoportuno em sala de aula, nas ruas, nas instituições.

A polidez e a reserva, o produzir-se de forma bela não se encontra mais na política ou na sala de aula. O professor se esgoela, os alunos também falam desorganizadamente. Não há a beleza da precisão do conceito, de um texto bem escrito, de um tema bem debatido. As coisas são tocadas a toque de caixa para dar conta da próxima prova do Enem, de mudar rapidamente o comportamento de alguém. É o anti produzir-se belo.

Neoliberalismo e machismo não são a força de uma pessoa sobre a outra, mas de uma pessoa sobre ela mesma, obrigando a produzir-se. Produzir ideias, coisas, tudo com a marca "self made". A orbigatoriedade do assumir-se a si mesmo. Na dúvida, há um monte de identidades pré-prontas, aí, pra você vestir e sair rapidinho de casa.

P.s.:Inspirado na conferência "Tempo de celebração: a festa numa época sem celebração", de Byung-Chul Han. Este texto consta no livro "A sociedade do cansaço", do mesmo autor.

sábado, 15 de abril de 2017

Vida e pensamento


O compromisso da filosofia é com a verdade. Para se chegar à verdade, é preciso pensar. Pensar não é solitário: é uma conversa, às vezes da pessoa consigo própria, às vezes na presença de mais gente. A conversa filosófica, de amor ao conhecimento, precisa, é claro, da presença da filosofia, na figura de um filósofo.

Numa época pós-nietzscheana, não há fundamento absoluto para a verdade. No entanto, não dá para falar que ela não exista: entende-se que a verdade é contingente a contextos de conversação. Para o filósofo americano Richard Rorty, e necessário cuidar da liberdade pois, com a existência dela, a verdade surge. Em contrapartida, sair em defesa de uma verdade é temeroso. Quem está com ela? Quem a garante?

Defende-se, em filosofia, tudo aquilo que promove a liberdade e ataca-se tudo o que a prejudica. A liberdade que traz a verdade é a de expressão. E o que é expressão senão o que se apresenta no comportamento em geral, como a sexualidade, as crenças, a sensibilidade, as posições políticas, etc? A filosofia os defende, pois deles vêm novas perspectivas. E a produção destas perspectivas mantém nossas chances de obter verdades.

Esta defesa não é, contudo, das práticas em si: nenhuma prática ou posição é a priori boa ou má ou, quanto à possibilidade de gerar um saber, certa ou errada. Até mesmo a vida não é defendida a priori. Nietzsche desnudou nossa cultura darwinista que absolutiza a sobrevivência, tornando o homem um ser antes calculador do que potente.

As profissões que cuidam da manutenção da vida, vida no sentido biopolítico, de funções vitais descritas pela biomedicina e, interligadas a elas, as profissões que cuidam do dinheiro associado à manutenção e ao desenvolvimento de seres vivos, casam-se com um senso comum geral de que vida é um bem necessário, e que requer cálculo. Viver torna-se uma necessidade. O homem e a sociedade são carentes de vida, e orçam o valor disso.

Neste entendimento, vida não é vista como dádiva, cujo receptor também faz sua doação. Vida não é imprecisão. Não pode ser contemplação, por exemplo. Agora, pensando além disso, tudo bem que haja profissões de defesa da vida como uma commodity, mas também há de se almejar algo mais.

Sloterdijk* relembra a ideia do filósofo Arnold Gehlen, de que o desenvolvimento da espécie humana ocorreu com a manutenção, nos indivíduos desenvolvidos, de fatores somáticos e psíquicos imaturos. Segundo Gehlen, a neotenia faria do homem um ser em risco, diante do mundo, e carente de suporte. Por aí é que não vai Sloterdijk, ao dizer que o homem desenvolve invernadas para viver, ambientes protegidos animados justamente pelas feições infantis dos seus membros mais jovens, e bem sucedidas devido à capacidade humana, também relativa à imaturidade, de aprender por toda a vida.

No realismo pessimista de Gehlen, as populações são necessitadas, e só uns poucos indivíduos podem desenvolver o intelecto, pois ele é um supérfluo, um luxo de artistas. Sloterdijk diz o contrário: vivemos na sociedade da abundância e de proteções e cuidados e, mesmo para os mais pobres, há a referência de que o mundo gera riquezas das quais eles também devem participar.

A filosofia nunca se pôs como realista: se o mundo apresenta guerras, se há populações pobres, se a ignorância grassa, ela mantém um ideal de paz e desimpedimento no mundo, nos organismos e nas almas, para que possa haver a conversa que conduz à verdade. A filosofia pode existir no mesmo mundo dos psicólogos, os professores, os médicos, os políticos, os sociólogos, ocupados em sanar as dores, mas ela mantém um pé fora desse mundo (como o que próprio do contemporâneo, para o Agamben): pergunta o que é a vida, a riqueza, a juventude, a inteligência, a alma e, ao buscar condições de investigar, pergunta porque estas condições, em cada uma daquelas categorias, não são melhores do que se apresenta hoje, para que amanhã a investigação também seja melhor.

Então, por exemplo, se os joves podem se suicidar por causa da série de uma garota suicida, e psicólogos e professores correm para salvá-los, o filósofo vai pegar a vontade de se matar, e também a vontade de impedir isso, como um assunto de investigação ampla. E essa investigação, enquanto experiência de pensamento, pode ser a própria geração de vida, para jovens já vivos, curiosos. E talvez para adultos mortos-vivos.

Chamamos alguma coisa de "vida real" por termos necessidade de que tenham necessidade de nós: o mundo precisa ser salvo, as pessoas precisam sobreviver, a partir de mim. A realidade, aqui, é antes a da necessidade do que a de uma vida ou um mundo num sentido mais bruto, o de sentidos e experiências. Se fosse possível colocar em questão a necessidade, o sujeito necessário sentiria vertigem de falta de mundo. A "vida real" é irreal. Seus salvadores, ao oferecerem seus préstimos, estão a pedir salvação para eles mesmos.

Será que há o que ser salvo? Minha geração ficou marcada com a extinção do Mico-Leão dourado. Não ouço mais a palavra extinção. No Brasil há índios. Os jovens mostram o que é viver, hoje. Ouço por aí a expressão "não estou sabendo lidar", utilizada para quando algo foge do esperado pelo falante. O falante lida com uma porção de coisas. Tudo é livre. Então tudo acessa o jovem, e ele vai reagindo. Ele tem seus desempenhos. Mas há algo com o qual ele não "está sabendo lidar". Não é algo ruim para mim, ou para todos. É demais para ele. Ao falar isso, já se está lidando com a coisa. Ela foi posta de lado, e pronto. Nada se perde, ou se necessita. Mas uma coisa ou outra vai sendo posta pra escanteio. O mundo, em nenhum sentido, acabará. A vida, em nenhum nível, está em risco.


*Paulo Ghiraldelli Jr. conta isso em "Para ler Peter Sloterdijk", editora Via Veritá, Rio de Janeiro, 2017.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

A preocupação com as treze razões


Não assisti ao "Thirteen reasons". Assisti às opiniões de algumas pessoas sobre esta série. No texto "Luto e melancolia", Freud conta que o estado melancólico é o sofrimento decorrente da perda não de um ente amado, mas de uma abstração amada. Não se sabe exatamente o que foi perdido, mas o ego do melancólico não cessa de se recriminar pela perda. Ao contrário da pessoa em luto, que culpa o mundo por ter lhe retirado o objeto amado, o melancólico tem uma doença narcísica: ele identifica-se com o objeto amado perdido. Desde modo, é o próprio eu que está perdido.

O eu vazio de sentido não é o modo atual de sofrimento, segundo o filósofo coreano Byung-Chul Han. Em "Sociedade do cansaço", ele apresenta a ideia de que estamos não em uma época de perda ou de negatividade, mas de sempre mais, de positividade. O sofrimento atual se dá por um excesso de eu. Minhas ideias, meus sentimentos, meus projetos, minhas regras, minha militâncias, meu desempenho: sou obrigado a ser eu mesmo. E não há outros, não há alteridade, mas diferenças tomadas sem estranheza, sempre familiares.

Uma menina comete suicídio. Ela apresenta treze razões diferentes para ter feito isso. Cada razão refere-se a uma pessoa que ela conhecia. Estas pessoas e razões são apresentadas pela menina como razões para ela ter feito o que fez. Adultos disseram-se preocupados com os jovens que assistem à série. Haveria o risco de que o comportamento da personagem fosse imitado: um risco de que o jovem também fique cheio de si. Opiniões ou motivos oriundos de 13 outros, por serem 13 outros familiares, encheram o si mesmo da menina. Ela não tomou nenhum deles como estranho a ela, como um "ei, isso não me cabe!". Estar cheio de si pode ser "estar repleto de si mesmo". Seguindo com Han, estar cheio de si leva a que se fique "cansado de si mesmo".

De acordo com o filósofo alemão Peter Sloterdijk, nossa sociedade não conhece a necessidade e a gravidade, na medida em que há superprodução de tudo (embora, em muitos lugares, a sua distribuição seja profundamente desigual), associada a sistemas de bem-estar e à possibilidade de se requerer mais e mais liberdades. Temos tudo para voarmos como balões, subindo indefinidamente. Não há pesos necessários mas, por isso mesmo, há pesos escolhidos. A leveza é insustentável.

Paulo Ghiraldelli Jr., em "Para ler Peter Sloterdijk", conta de uma vez em que o Rei Luís XVI concedeu aposentadoria para o cabrito Montauciel e seus parceiros, um pato e um galo. No dia 19 de setembro de 1783, os três animais subiram em um balão a partir do pátio do Palácio de Versailles. Subiram e voltaram em segurança, e repetiram a façanha em outros lugares.

Aqueles que se preocupam com a falta de peso dos jovens que assistem à série temem que eles voem tão alto quanto a personagem suicidada. Sim, porque as treze razões enchem o eu de si mesmo, mas não o pesam. Pelo contrário! São treze insufladas de gás, que deixam o eu mais cheio, porém com mais capacidade anti-gravitacional.

A depressão da personagem não é a freudiana, paralisante, mas uma depressão que leva até o fim as razões que há em si mesmo. A personagem não tomou para si qualquer peso, pois nada a segurou. Há, nos que se preocupam, a lembrança de Laika. Durante a "corrida espacial", na competição contra os EUA, a URSS enviou para o espaço a cachorrinha Laika, numa viagem que se sabia sem volta. As razões dos responsáveis fizeram-na voar indefinidamente. A antecipação da morte de Laika não foi um peso, não interrompeu as intenções que levaram ao vôo.

Treze razões fizeram com que o poder de ação da menina da série fosse maior do que o de qualquer sujeito. Continuando com Sloterdijk, sujeito é aquele que tem duplos pensamentos. Da mesma forma como ele diz querer alguma coisa, e procura fazê-lo, em outro momento ele pode afirmar outra coisa, e realizar uma ação diferente. Portanto, não se pode confiar na sua capacidade de realização: ele não é um autômato, e pode não agir. Assim, curiosamente, é que é um sujeito!

A menina das treze razões não possui espaço para dar um passo atrás. Ela encheu-se de 13 pessoas diferentes, portanto iguais a ela. Ela é um eu, sem dúvida, mas não é um sujeito. As 13 razões a coagem. As razões e as pessoas que a insuflaram, a positivaram. Não a fizeram estranhar-se, não a negativaram. Falo isso sem ter assistido à série, pois é sobre essas coisas que os semi-leves têm comentado.

sábado, 8 de abril de 2017

Maneiras de lidar com o tesão do mundo


Um homem com idade próxima a 65 anos pode se relacionar com uma mulher de sua mesma idade. Com seus próprios amigos ele conversa sobre as mulheres em geral, fala do peitinho de uma, da bundinha de outra, que quer comer alguém, etc. Ele pode usar essas mesmas palavras com uma mulher com quem ele convive no ambiente de trabalho. Essa mulher pode rir dele, dizendo que ele não dá mais no couro, embora já tenha notícia de que existe o Viagra, e que, por isso, os homens mais velhos ainda estão trepando. Os que têm sorte, diga-se.

Aquele brincalhão é um desses que mandam bem? Ou é só um falastrão? Cada idade tem seu ideal, seus desafios e suas brincadeiras. O homem de 65 fala aquelas coisas como provocações. Caso das brincadeiras surja algum caso, tudo bem. Mas a intenção daquelas palavras é a de ser uma brincadeira picante.

Na minha idade, 35, a palavra picante já não existe. É a geração do pornô e das ficadas que, com sorte, dão em transa. Repare na mudança de palavras com relação aos de 65. Homens da minha idade não brincam daquela forma com mulheres de sua mesma idade. Com mulheres mais novas, menos ainda. Já com mais velhas, talvez ele brinque, quando elas lhe cobram ser homem.

Aos 35 se sabe que os mais novos do que 20 conversam de outra forma entre si, e também com eles, de 35. Entre essas idades, jamais se fala em sexo, exceto quando se é um professor ou um midiático que “representa um jovem”. Em outras situações, a conversa sobre sexo, entre essas idades, gera um clima de inadequação: um adulto se aproveitando de alguém inocente, influenciando.

Dos 20 para baixo a preocupação é grande em não ser influenciado por outros (os com mais de 30). Os garotos são os que mais fazem sexo, mas tambem são aqueles que menos querem isso exposto para os de fora. Por isso é que eles vestem moletons uniformizadores, que não dão a ver suas particularidades e, assim, não os expõem ao anzol do influenciador. Mas o influenciador sobre eles não tem poder. É só um chato.

Esses jovens estão alertas para se o tesão dos 30 anos não estupra alguém. São vigias de situações de violações, de influência. Essa adolescência vigilante perdura até além dos… 40! Nesses casos, a pessoa usa mais seu tempo vigiando e se queixando do tesão do mundo do que fazendo sexo, transando ou trepando.

Aos 20, um rapaz pega um outro rapaz, tão naturalmente quanto pega uma menina. Para ele, isso não é ser gay. Ele não sabe se é o caso de atribuir uma marca ao que rolou, pois um rótulo pesa. Às vezes ele está namorando uma menina, quando pegou o outro. Ninguém fica constrangido. É como um parque de diversões em que muito é permitido, mas no qual só se pode entrar quando se está abaixo de uma certa idade.

Um homem de 65 anos não é autorizado pelos menores de 20 a fazer parte do parque de diversões de tesão, destes. A não ser que seja como um professor, que reserva seu próprio tesão para os seus iguais. Um homem de 35 anos deve tratar aqueles mais novos como café com leite, em relação ao sexo, jamais investindo em relação a eles. Um homem de 65 anos, quando o faz, é visto como um vovô monstruoso. O de 35, como criminoso.

Os de 35 têm conhecimento do tesão dos de 65, mas querem o seu pudor, com relação a eles. “Um absurdo uma velha com roupa de novinha.” “Ridículo o vovô-garoto.” Quando estes de 35 ainda estão na adolescência, volto a dizer, tendem a ver não como inadequado, mas como monstruoso ou nojento o tesão aos 65.

Eu vejo homens de 65 falando da bundinha e do peitinho das mulheres, usando esse vocabulário que eu não uso. Usando-o em brincadeiras ousadas, feitas mesmo entre estranhos. Estas brincadeiras não deveriam ser perdidas, sob a pena de, ao adolescelentizarmos as conversas entre todos, criarmos medo em quem não é adolescente. E uma herança de infantilidade, para estes.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

A inospitalidade: uma leitura de "Dom Casmurro", a partir de Peter Sloterdijk


Certo dia, os olhos de ressaca de Capitu mostraram-se para Bentinho: a onda que se lançou para a areia retornou arrastando tudo para dentro. Bentinho tentou segurar-se. Arrastado, entrou em Capitu. Percebeu a existência de um fluido misterioso e enérgico a atuar ali.

No livro “Esferas”, Peter Sloterdijk apresenta a teoria de Marsílio Ficino, filósofo florentino do século XV, sobre o enamoramento: dos olhos saem raios que, ao atingirem o alvo, permitem perceber os objetos. Quando dois seres humanos trocam olhares, o espaço entre os olhos torna-se um campo de irradiação de energias. O olhar mais forte injeta nos olhos do outro os próprios conteúdos. Um espírito vital, uma névoa muito fina de sangue vaporizado, invisível, assim é transferido. O sangue sai do coração do dono dos olhos fortes, na forma de vapor e, como uma flecha, atinge e penetra nos olhos daquele que se enamorará. Dentro deste corpo o sangue voltará a ser líquido, e então se alojará no coração como um enfeitiçamento ou uma infecção. O coração e todo o organismo do atingido passarão a querer ardentemente o dono daquele sangue.

A dona dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada apaixona Bentinho. Em outro momento, Bentinho, sem qualquer experiência anterior, penteia os belos cabelos de Capitu. Faz-lhe um penteado. Por fim, dá-lhe um beijo nos lábios. Ambos afastam-se, de espanto. Bentinho quis acalmar Capitu, porém a mãe dela se aproximava. Então ele foi para o próprio quarto, e vibrou, comemorou. "Eu sou homem", ficou repetindo para si. Isso parecia indicar que ele não se submeteria mais às vontades da própria mãe. Dona Glória havia perdido o primeiro filho. Então prometeu a Deus que, caso lhe viesse um segundo, este seguiria carreira eclesiástica. Era chegada a hora de Bentinho ser enviado à revelia para o seminário. Ele não podia, enfim, evitar isso.

Aquele beijo é a mais doce das memórias do narrador Bentinho. "Os lábios aguçados envolvem o confeito, abandonam-no cerimoniosamente no espaço bucal onde a língua, com meneios impacientes, finalmente o recebe. A doçura se expande, se abre em um pequeno 'o' lisonjeador, para logo transformar toda a boca em uma bola doce que pulsa melosa e avidamente, e que se amplia para absorver cada vez mais. O próprio degustador se arredonda e continua existindo apenas como a periferia fina e cada vez mais tensa dessa esfera de doçura". (Citação de Friedrich Heubach, em Esferas, do Peter Sloterdijk, página 85).

O herói pos na boca o caramelo. Bentinho entrou na boca de Capitu, e passou a existir como um círculo dentro dela. O doce beijo fez um mundo oval, em que ambos passaram a co-habitar. Sloterdijk explica que o herói tem aversão ao adocicado. O gozo oral é inimigo do Grande Homem, daquele que sai de casa. O beijo de Capitu e Bentinho fez um mundo fora do tempo, para a habitação de ambos. Bentinho teve que ir ao seminário, onde passou alguns anos. Passou outros tantos anos na escola de direito, mas mas sua vida com Capitu não passava.

A mãe de Bentinho considerava que entregá-lo a Deus era uma forma de tê-lo. Com Capitu, Bentinho fazia promessas também para Deus, mas como para um terceiro, que compunha aquela união. Meter-se no tempo para envolver-se com Deus, e então ser de sua mãe, não lhe fazia sentido. A partir do interior da união fora do tempo, com Capitu, ele compôs-se com Deus.

Capitu não se dobrava à vontade de ninguém. A irritava o fato de Bentinho dobrar-se à vontade de sua mãe. José Dias uma vez acusou a dissimulação da moça. Capitu é um sujeito, sempre mantem suas intenções, mesmo que não as mostre. José Dias tenta ser sujeito, movendo-se para conseguir o que quer. No entanto, ele exibe as próprias intenções, só que com uma subserviência matreira. Bentinho não formula sua intenções por conta própria e, quando finalmente as têm formuladas, continua precisando do direcionamento de Capitu.

O narrador Bentinho fala das características de todos os personagens, mas deixa de dar as suas próprias. Voltou dos estudos, casou-se com Capitu. Sloterdijk fala do retorno do herói explorador ao lugar de onde ele veio: o interior de sua mãe. Dona Graça queria que Bentinho fosse padre ou advogado. Mas ela não o queria distante. A mãe acolhe de volta o filho que um dia saiu. O útero confere identidade, dá nascimento ao Grande Homem, um segundo nascimento. Mas o útero para o qual Bentinho voltou foi o de Capitu. Esse útero, porém, produz um outro filho, outro devido aos modos diferentes que apresenta. Fossem os mesmos modos de Bentinho, seria uma continuidade dele mesmo dentro da mãe. Com aquele filho, Bentinho não se identificava. Talvez nem pudesse, pois ele mesmo não completara sua gestação.

Diante da porta da caverna, a vagina de Capitu, Bentinho estacou. De onde veio aquele outro, que lhe atrapalhava o nascimento? Bentinho já havia percebido os olhares de Capitu aos jovens, na rua. Na Odisseia, Ulisses, em seu retorno a Ítaca, deu uma pausa de sete anos, tempo em que viveu com a ninfa Calipso. Ele havia enfrentado a longa e dolorosa guerra de Tróia. No retorno, escapou de gigantes comedores de carne humana e de mares perigosos. Agora a bela ninfa lhe oferecia descanso eterno, vivendo de sua glória na guerra. Ulisses, porém, sofria com saudades de casa. Ele precisava voltar, como que para realmente existir, ser o homem que fizera aquilo tudo que os aedos já cantavam. Ele sabia que se prosseguisse viagem enfrentaria outros perigos. Se ele ficasse, poderia viver para sempre, mas não teria nascido.

Ulisses, então, empreende o caminho de volta, enfrentando perigos maiores do que poderia imaginar. A deusa Atena sempre o acompanha. Quando ele chega em Ítaca, Atena o disfarça de mendigo, deixando-o irreconhecível para todos que conheceram há 20 anos, o tempo total em que ele passou fora. Aos olhos de todos ele não era ninguém, por isso um observador privilegiado para saber quem respeitava sua honra, ou seja, quem profanava seu útero. Encontrou diversos homens maltratando seu filho, Telêmaco, também gastando à vontade os seus bens e insistindo afrontosamente para que Penélope, a mulher dele, os desposasse. Cuidadosamente, Ulisses prepara sua vingança, e a executa sangrentamente. Assim, Ulisses presentifica sua lenda. Não é o "felizes para sempre", de uma história, a realização do segundo nascimento de um herói? Nascimento enquanto afirmação de identidade?

Bentinho viu à distância pretendentes de Capitu, mas nenhum se aproximava. Quando nasceu o Filho do Homem, nome que José Dias atribuíra Ezequiel, Bentinho não soube contra quem lutar. O resultado das outras trocas de olhares de Capitu, as quais ele não sabe direito o que houve, estava ali, diante dele. "Uma ponta de história, o início, não se atava à outra, o final".

Importa a este texto a dificuldade de Bentinho em nascer novamente, em ser Um Homem. Não importa, aqui, se Capitu o traiu ou não o traiu. Bentinho enviou-a, com o filho, para a Suíça, onde ela passou o resto dos seus dias. Bentinho lembra com muito carinho da menina que o capturou. A Capitu adulta está embaixo da terra. Este útero que não pode lhe dar nascimento.

Mesmo depois de adulto, Bento Santiago ainda era Bentinho.


Imagem:"Os Amantes de Veneza", de Paris Bordonne, século XVI.

domingo, 26 de março de 2017

Ponha-se em um lugar melhor


Acompanho como psicólogo um jovem de 16 anos. Todos os dias de manhã ele está na escola, cursando o segundo ano do segundo grau. Às tardes ele revisa as matérias, faz exercícios, estuda para as provas. Em tudo isso eu o ajudo. Cada atividade dessas ocorre entremeada a uma gesticulação e comportamentos pertencentes a um mundo particular dele. Mundo particular todos temos, e sempre a partir deles é que agimos. Mas V., assim como outros autistas, interrompe qualquer atividade que lhe solicitem, ou nem a começa, para fazer o que ele sugere a si mesmo. Mas, só fazemos o que sugerimos a nós mesmos. Para o filósofo alemão Peter Sloterdijk, sujeito é aquele que se autoconsulta e então se autodesinibe. Qual a particularidade do autista? Talvez seja que a voz interna dele fique distante das outras vozes, que não são dele. E que ela seja autoritária.

Na matéria Literatura, o professor dita a teoria, recita a poesia, empolga-se ao falar sobre romantismo, realismo e naturalismo. Ele diz que aquela turma é animada, amiga e mal comportada. Ele chama o V. para falar o que pensa da turma.V. o realiza. O professor pergunta se os alunos o ouviram bem. "Isso foi dedicado a vocês", e uma lágrima lhe corre as entradas do rosto.

A coordenadora da Educação Especial, na escola, determinou que o V., por seu aprendizado mais lento do que o dos outros, e o tempo maior que leva para fazer uma prova, fizesse metade das provas neste momento e a outra metade faltante quando viesse o segundo período de provas. Vinícius tem estudado comigo na véspera para responder à prova do dia seguinte. Algumas noites ele está agitado, incomodado, bufa. Outras nem tanto, e me expulsa de sua casa sorrindo. Sorrindo, no dia seguinte ele chega, e anda pela escola e logo senta. Noutros dias entra correndo, com todo o seu mal estar, dando pequenos gritos.

A mãe diz do ano passado, em que eu não estive com ele (as pessoas sempre falam de um passado mítico, a um interlocutor que não o viveu), que V. cumpriu todas as provas e terminou o ano em completo surto. O psiquiatra até proibiu novas exigências. A mãe não quer de jeito nenhum isso acontecendo de novo, e diz que neste ano já tem havido um crescente mal-estar por parte dele. Eu retruco, com a observação de que ocorre uma renovação de um dia para o outro, e de um final de semana para a segunda-feira.

O professor de Literatura, ao saber que não estava programado que V. fizesse a prova dele, pediu para que eu arrumasse de ele fazer a prova. Levando o assunto à mãe, prontamente foi recusado pois, ela disse, as provas são todas estressantes para ele. Além disso, as matérias se encontram acumuladas, e fazer mais uma prova significa perder mais um dia de aula e de estudo à tarde. Uma palavra que define o professor de literatura, coloquei à mãe, é "amoroso". O amor pode ter uma definição bem simples: é alguma coisa que leva alguém a querer algo, assim como o ódio é alguém não querer algo. O professor quer os alunos, e sua prova é um presente, um mimo. Não é uma prova para que se prove, mas para que se prove, experimente-se, tenha-se prazer.

A mãe falou que, para V., a escola, os exercícios e as provas são coisas mecânicas. Uma ideia do Sloterdijk eu falei (e é a segunda que aparece aqui), adaptada à situação de fala: todo homem é dado a fazer algo como um exercício, de modo que amanhã o faça melhor. Ressaltei o "todo", incluindo, então, os autistas. No começo de sua carreira de psicóloga, ela disse, passava 10 horas por dia trabalhando em escritório. Saía correndo de lá, para atender. Aquele trabalho ela não queria fazer melhor, ela disse. Se ela fizesse pior, demoraria mais tempo, eu disse. Também seria penoso para ela o dia em que demorasse mais no percurso entre o trabalho e o consultório. Ou então, tal trabalho era mesmo miserável, não oferecia nenhum ganho humano para ela.

Nenhum exercício é pouca coisa, é um mero exercício. O homem é um ser de exercício. A miséria da mãe não tem que ser a do filho. A mãe diz que um problema que eu tenho é não me colocar no lugar de V.. Em que lugar me coloco? Não trabalho para que V. não surte. Trabalho para que ele, após fazer um exercício, sorria. Isto já aconteceu. Trabalho para que ele tenha experiências, momentos prazerosos e interesse pela escola. Muito se diz, com o nome de psicologia, em colocar-se no lugar do outro. É um senso comum. Prefiro me por num lugar melhor.

"V., você quer fazer prova de literatura?", pergunta a mãe ao filho. "Eu quero." "Você quer fazer a prova de literatura depois das outras?", nova pergunta. "Aí não. Não quero fazer no mesmo dia." Esta pergunta o confundiu. "Não, fazer em um outro dia?" "Ah, quero.". Sugeri que ela perguntasse ao filho porque ele quer. "Quero ficar mais esperto".

sexta-feira, 17 de março de 2017

O terror de ser um igual


Os homens se relacionam com objetos, assim como se relacionam com outros homens e consigo mesmos. Digo isto sem apontar como algo ruim. Os homens querem ter coisas, querem dar coisas. Crianças querem ganhar presentes: isto mostra para elas que são amadas, que estão no escopo de dar, de um adulto.

No mundo sempre se está dando algo. Se você tem algum dinheiro a mais, ou tempo a mais, e usá-los só para si mesmo, poderá se sentir sozinho. Nem sempre o si mesmo é uma companhia clara. Então dar presentes, assim como passar um tempo com o outro, é um carinho. Carinho em si mesmo. Este dar de si no mundo da generosidade é o que falta àquele que não tem. O indivíduo que não tem o que dar vale menos. “Não se espera nada dele”: isso o destrói. “Dele eu espero algo grande, que não sei bem o que é.”: esse vai longe.

A questão não é ter ou não ter, mas ter para aparecer ou não ter para aparecer. Aqueles que não têm, que nunca foram vistos como alguém à altura de dar, têm tudo para roubar. "Já que não dou, eu tiro. Assim você me reconhece." E é uma miséria querer ser reconhecido. Então não se trata de esperar para receber de quem tem, mas de ser aquele que determina quando quem tem dará ou não. Ghiraldelli conta, a partir do filósofo coreano-germânico, Buyng Han (http://ghiraldelli.pro.br/filosofia-social/somos-todos-terroristas-sociedade-contemporanea-e-individualismo-partir-de-buyng-chul-han-e-peter-sloterdijk.html) que a ação que visa causar impacto é uma tentativa de singularidade no mundo da igualdade de todos. Não ser só mais um consumidor, ou só mais um bandido. Ser O Consumidor, O Bandido, é o que importa.

Na sala a menina fala ao professor que uma vez foi à delegacia reclamar de ter sido roubada, e o policial não fez nada. Ele não diria para ela as histórias de grandes crimes, grandes bandidos, que conta aos colegas. Dessas histórias, ela não tem qualquer participação. Se ele lembrar, contará aos colegas sobre o quanto, frente ao que é grande, deixa de atender ao pequeno. O crime que ameaça o indivíduo é um drama pessoal, o outro que o subtrai. Este crime, um atentado bastante subjetivo, é tomado pelo policial como meramente subjetivo, querer chamar mais atenção do que os grandes crimes. Assistimos aos crimes como novela. Já que são abstratos, dão um crime-novela.

O crime pessoal é o que me faz sofrer, é meu drama. Para mim, é a pior coisa, e contra quem o cometeu eu quero a pior punição. Isto é pleiteado com força, justamente porque ninguém reconhece meu sofrimento em não poder mais dar. Ou melhor, riem dele.

O crime que me singulariza, como vítima ou bandido, é tomado como coisa nenhuma. A minha perda, ou o meu ganho, são triviais. Os objetos de que eles tratam são ridículos. Agora, falar de grandes crimes, grandes bandidos e grandes policiais é falar de objetos que importam. Esses personagens giram em torno desses objetos. O bandido tocou o terror. A vítima sofreu o terror. O policial também tocou o terror. Ninguém quer ser um qualquer. Na sala de aula, grandes são as ideias. A elas, o professor subordina os casos em que a polícia diminuiu a menina, ou aquele em que ele mesmo esteve sob a mira de uma arma. Mas a menina parece querer se singularizar mais pelo que passou com o policial do que com o fato de ser aluna. Lógico, o que é um aluno? Ou um professor?

terça-feira, 14 de março de 2017

Juventude contemporânea


Na sala de aula, a jovem observa ao professor: "Contemporâneo é uma palavra que me parece vazia. Todos dizem isso. Eu acho que é balela." O professor, após anos, talvez décadas de estudo, fala que o contemporâneo é uma ideia do presente. A jovem, por sua vez, está fora do presente, e também está dentro do presente, como Agambem, em "O que é o contemporâneo", leva a dizer.

Contemporâneo é aquele que odeia o seu tempo mas não arreda o pé dele. A academia usa a palavra "contemporâneo" em todos os seus textos, sem conceituá-la, ou seja, sem dar a ela um caráter universal, e por isso mesmo discutível (a má formulação é indiscutível). Esta palavra, então, acaba não saindo do senso comum, e não servido em nada para observá-lo. A pergunta da jovem mostra esse furo dos teóricos, esse desconhecimento que eles não percebem que têm.

A jovem mostra que formulações imprecisas não a satisfazem, não respondem às suas urgências. Estas urgências são sempre presentes, e delas a jovem lembra enquanto escuta do professor teorias contemporâneas. Ela percebe, ainda seguindo com Agamben, a escuridão que acompanha as luzes do presente. A jovem é de fato contemporânea porque está no presente e o mesmo tempo consegue olhar para ele. A vida do dia a dia é a motivação original de todas as teorias: a pergunta feita em sala traz essas questões não resolvidas, e que a todo momento se insinuam, inconvenientes.

Enquanto alguns se regozijam por suas teorias, que apontam para diferentes direções, aquele que está insatisfeito, que procura uma formulação que o ajude a convencer o seu pai obtuso (e se não o faz, ele próprio não se convence verdadeiramente, pois os problemas da vida não se separam dos resmungos do pai), quer um fio para atar as antigas urgências e aquilo que se põe como o presente. A jovem marca uma ruptura com o professor, ao mostrar que a prática da teoria não a atende, e que talvez não atenda mais ninguém verdadeiramente. Mas ela permanece escutando as aulas, quer se formar, só não esquece o que a levou ali. Da mesma forma como ela separou um passado insistente de um presente que não se enxerga, ela pode dizer algo diferente do que andamos pensando.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Jovem adulto




Entre crianças de 5 anos, um adulto brinca. Corre, é o Lobo Mau, o monstro. Foge do Lobo Mau, do monstro. Senta e é pintado. Pinta de volta. Algumas crianças vêm e dão-lhe tapas.

Entre jovens de 15,16, um adulto conta piadas no intervalo do estudo. Suas tiradas engraçadas fazem a maioria rir. Alguns jovens o excluem do grupo de bate-papo, da turma.

Nas duas situações o adulto está fazendo algo que foi recentemente superado pelos indivíduos do grupo. Ou melhor, o que eles querem deixar para trás. Incomoda quando há alguma perturbação desse amadurecimento, dessa mudança de comportamento, desse aprendizado de certo autocontrole.

Crianças não riem de piadas: são coisa se "adulto maluco". Elas gostam do adulto que corre e cai no chão, pois isto elas já deixaram bem para trás, e virou brincadeira.

Que o colega excepcional se apresente mais infantil, vá lá. Mas o adulto deveria ser o exemplo de obediência ao Totem, e por isso mesmo mostrar as recompensas das renúncias que todos têm que fazer. Isso falando com Freud.

Falando com Sloterdijk, o sorriso de cada um, assim como todo rosto, é desenvolvido com uma mãe. Ali na escola, o que cada um tem para dar é o desempenho após bastante exercício. O clima é de certa apreensão. Nos intervalos eles se divertem, dão e recebem sorrisos, e excedem-se em movimentos corporais e palavras. O adulto entra como parceiro, mas enquanto contraponto, pólo avançado que deve puxá-los para o exercício.

Todo adulto, só por sua presença, já intimida o jovem. É implacável o destino daquele que só oferece graça, e não o desafio que o jovem quer.

quarta-feira, 8 de março de 2017

O trabalho dos sonhos


Saiu em uma reportagem que o ator Mario Gomes vende sanduíche na praia (http://m.extra.globo.com/famosos/aos-64-anos-mario-gomes-vende-hamburguer-na-praia-fazendo-uma-experiencia-21022042.html). Segundo alguns comentários no face, não há problema nenhum nisso, pois é uma "ocupação honesta". Na reportagem, o ator afirma estar dando os primeiros passos para um food truck. Olhando diretamente para o caso, temos um ator vendendo sanduíche na praia. Um ator deveria atuar, não fazer outra coisa.

Existe o trabalho de ator, com remuneração. A partir disso, o ator paga seu sustento e o de sua família. Um ator vendendo sanduíche na praia é algo errado, no sentido de "fora do lugar". Mas no imaginário comum, o trabalho do ator é um dos menos associados a remuneração e sustento: é visto como algo meio mágico, cuja capacidade de se realizar vem por mágica ("ele tem um dom") e o seu resultado produz efetiva mágica na terra ("ele nos encanta, sua atuação é sublime"). Alimentar-se e pagar a conta de luz, entre outras coisas, não é visto como estando associado ao trabalho do ator. Por isso, o que nos causa embaraço não é Mario Gomes vendendo sanduíches na praia, ou fazendo qualquer outra coisa para se sustentar, mas a mancha na aura de ator.

Talvez Mario Gomes esteja vendendo sanduíche na praia porque neste momento o que ele recebe como ator (atualmente ele participa de uma série) não faz frente aos seus gastos. Vender sanduíche na praia, então, viria a cumprir essa função. Lógico que "é honesto", não apenas no sentido de que não é o roubo de ninguém, mas no de que satisfaz necessidades objetivas. Na expressão "trabalho honesto" também há esse sentido de "trabalho que satisfaz demandas objetivas". Mas como podemos encarar um ator com necessidades objetivas? Nunca cobramos do Tony Ramos que ele coma um bife da Friboi.

A existência de reportagem e dos comentários a ela mostram uma razão não enunciada: o ator é para estar num palco e ser admirado, e o homem que é o ator não deveria fazer um trabalho para se sustentar. De que forma olhamos para um gari ou para um frentista? Como pessoas que ganham seu pão. Excetuando os momentos em que negamos a valorização do espetáculo, e reagimos a ela, querendo valorizar o "ganha pão" (quando dizemos "o gari tem uma profissão tão nobre quanto à do médico"), valorizamos trabalhos ao quais atribuímos certa aura.

A desvalorização do professor correu no passo das suas greves (pensamos que o professor é um "morto de fome"). Não damos aos médicos, aos atores, aos engenheiros ou aos juízes o mesmo direito a fazer greves, a ter necessidades objetivas. Essas profissões possuem uma essência transcedente, são o que a sociedade quer comentar, são ideais de profissões.

O outodoor de uma universidade pergunta: "Sucesso financeiro ou sucesso profissional?". Uma falsa pergunta, não porque a profissão deva acompanhar o dinheiro, ou vice-versa, mas porque a palavra "sucesso" refere-se, de uma tacada só, a ser incrível, um especialista, um mago, e também a nunca perguntar o preço de nada, nem olhar para o interior da própria carteira.

A profisão que almejamos não pode parecer em nada com algo que dê trabalho, também não deve referir-se a nenhum custo ou necessidade concreta de quem trabalha. Mostrou-se do Mario Gomes um lance de bastidor que ninguém queria ver.

sábado, 4 de março de 2017

A hospitalidade



*Dedicado ao meu tio, Mauro Ricardo de Mattos.

Após lutar com o furioso mar, Ulisses chega à terra dos Feácios. Está exausto, dorme atirado na vegetação. Escuta vozes de donzelas. Levanta-se. Aparece para as donzelas com o corpo carregado de sal, suor e cabelos. Tal visão aterroriza as mulheres. Elas correm em debandada. Apenas Nausica permanece, pois no espírito Atena lhe incutira coragem. O estrangeiro, mestre das palavras, fala que se há uma deusa, ela está diante dos olhos dele. A jovem repreende as criadas, e as faz voltarem e mostrarem ao estrangeiro a hospitalidade daqueles que temem a Zeus.

As criadas banham o desconhecido, esfregam azeite em seu corpo. Atena lançou um encanto, fazendo Ulisses parecer mais alto e mais musculoso. Aos cabelos deitaram-se cachos aloirados. Nausica comenta com uma das criadas como seria bom se um deus a concedesse desposar aquele homem. A princesa orienta o estrangeiro a chegar na casa de seu pai, e destaca um grupo de criadas para acompanhá-lo.

Ulisses parte e logo chega ao destino. Ao contrário do que fizera em outras terras, quando anunciou a si mesmo “Ulisses, de fama conhecida pelos deuses, e agora cantado pelos aedos”, desta vez não dissera o próprio nome. Ajoelhado, pediu à rainha ajuda para voltar para casa. O rei disse que lhe ajudariam, e ordenou que lhe alimentassem e acolhessem.

Naquela tarde, os jovens começaram uma competição atlética: lançamento de discos, de dardos, corrida a pé, a cavalo e pugilato. Um deles convida o estrangeiro, pois havia reparado em seu porte atlético. Ulisses afirma estar muito cansado da dura briga com o mar para chegar até a terra deles. O jovem, então, diz que logo se via que ali não estava um atleta, mas um comerciante cioso apenas dos seus ganhos, e que por acidente viera ter ali. Ulisses sente-se atingido, e afirma que em Tróia ninguém rivalizava com o seu arco e sua coragem, os guerreiros amigos contavam com ele e os inimigos o temiam. Ele participaria, então, do pugilato, do lançamento de discos e de dardos. Não participaria, contudo, da corrida a pé e de cavalos, pois para o primeiro ele realmente estava desabilitado, e no segundo, ele reconhecia a superioridade dos feácios. Caso fosse novamente envolver-se em combates, Ulisses faria jus àquele povo, chamando seus cavaleiros.

Ulisses atira o disco muito além das marcas dos competidores locais. Também atinge grandes resultados no lançamento de dardos e no pugilato. Mesmo estando ali como um estrangeiro desconhecido, Ulisses diz ao rei que se sentira ofendido com os comentários daquele jovem. Sabendo reconhecer as virtudes de quem as possui, assim como Ulisses reconhecera as virtudes dos feácios na montaria, Alcino ordena que o jovem faça uma ação de desagravo. O jovem, reconhecendo os valores de Ulisses, dirige-lhe um discurso de desculpas, também entregando um presente valioso.

Posteriormente, enquanto confraternizavam, um aedo cantava sobre a Guerra de Tróia. O Grande Ulisses era louvado como um bravo combatente, excelente para os amigos, sofredor de grandes dores. O estrangeiro esconde o rosto em lágrimas. Percebendo isso, Alcino pede àquele homem que fale sobre si mesmo, sobre as coisas pelas quais passou. Ulisses toma o lugar do aedo, e conta o caminho que o levou ali, passando pelo cíclope, pela feiticeira Circe e até pelo Hades. Finalmente, ele apresenta a si mesmo, dizendo o próprio nome.

Um homem pode não precisar falar de sua virtude para pessoas que sabem ser hospitaleiras com estrangeiros. Receber bem significa não só dar de comer e beber: inclui considerar a possibilidade de o desconhecido ser digno de louvor. Tratar bem um estrangeiro é abrir-se ao que ele tem de bom e que pode, é claro, beneficiar o grupo. O menosprezo é um sinal de descortesia, é uma quebra da aliança entre povos, aliança esta que existe entre pessoas que não se conhecem, por pertencerem a povos diferentes. A hospitalidade é um “receber em casa”, em uma casa que antes não era a dele, e um “fazer com que o outro se sinta em casa”, na própria casa dele. Mostra a virtude de quem é hospitaleiro.

Em um outra terra, poder adentrar a casa de alguém, e fazer desta casa a sua própria, mantendo, logicamente, a primazia do primeiro aspecto, o do “adentrar a casa do outro, respeitar o seu ethos”, ou proporcionar isto a um estrangeiro, é permitir que haja trocas ao mesmo tempo conservadoras e renovadoras das características do local, além de oferecer ao estrangeiro um solo para ele dar o melhor de si.

Quando um homem, porém, está entre conhecidos e não é considerado em sua dignidade e em seu valor próprio, o ataque que ele sofre é o de estar sendo retirado da comunhão, da comunidade, e o de ser lançado a ter que provar a própria importância. Isto faz com que o trabalho de sua vida seja dobrado, pois ao que ele já realizou deve somar a prova do que realizou. Se entre desconhecidos a consideração com o outro é devida, entre familiares ela é fator de sobrevivência do grupo. Uma família ou comunidade funda-se em histórias de pessoas que fizeram o que foi essencial para eles estarem ali, e indicam o caminho do que ainda há por ser feito, e do que é preciso que alguém tenha, para fazê-lo.

Ter o próprio valor questionado por sua família é ser posto no caminho inverso ao da hospitalidade: no primeiro momento, desaloja-se o indivíduo da casa dele mesmo, dos muros que ele construiu e que guardam as suas caracteristicas; no segundo momento, coloca-se o indivíduo na soleira da porta, próximo à expulsão da “casa dos outros”. Primeiro, “você não tem um lugar”; segundo, “você não tem lugar aqui.”

A hospitalidade, acolhida de vidas, traz bençãos dignas de Zeus. O contrário disso não pode levar a boa coisa.

Imagem: Jean Veber – Ulysses and Nausicaa, 1888.

Um jovem como Telêmaco


Telêmaco partiu em busca do pai. Ulisses, o grande rei de Ítaca, saíra de casa há 20 anos para combater em Tróia. Ninguém em sua terra natal sabia de seu paradeiro ou morte. Penélope esperava angustiada o marido. Telêmaco via a mãe sendo assediada por muitos homens, e os bens de sua família sendo dilapidados por eles. Guiado por Atena, na figura de Mentor, Ulisses foi a alto mar.

Ao chegar em Pilos, Telêmaco hesita sobre o que deveria fazer. Atena diz para ele não ter vergonha, pois é justo o propósito dele, e foi com o nobre objetivo de saber o destino do próprio pai que ele atravessou o mar. Ele falará com Nestor, ancião que vira muitas gerações de guerreiros, e ao lado de Ulisses combatera em Tróia. Telêmaco pergunta a Mentor sobre como deverá cumprimentar Nestor. O rapaz afirma não possuir experiência com palavras sutis, “e que é natural que um jovem se iniba de interrogar um homem idoso”.

O filho do grande e famoso Ulisses era ainda sem importantes feitos e sem fama. Ele teria suas próprias aventuras, onde mostrará as qualidades herdadas do pai. Telêmaco sabe bem da sua estatura atual, e não supõe saber sobre o que lhe é novo. Como portar-se diante do experimentado guerreiro e conselheiro Nestor? Na conversa com o ancião, Telêmaco se apresentará cuidadoso, educado e atento. Telêmaco tem berço. É impossível não ver nele reflexos de um jovem Ulisses.

Em nossos dias, vemos jovens que parecem acreditar já saberem de tudo, pois apresentam-se sem cuidado e apressadamente. A forma como se comportam na rua é a mesma com que se comportam em casa, que é a mesma com que se comportam na escola e em todos os lugares. “Tá tranquilo”, dizem, sem considerar os saberes e os comportamentos necessários para lidar com cada pessoa e lugar. Acham que com o seu “jeitinho”, conseguirão tudo: empregos, mulheres, posições sociais, etc.

Atena diz a Telêmaco: “algumas coisas serás tu a pensar na tua mente; outras coisas um deus lá porá: na verdade não julgo que foi à revelia dos deuses que nasceste e foste criado.” (Odisseia. Canto III, verso 25). Telêmaco possui atributos vindos dos deuses. Ou vindos de um grande pai, o que dá no mesmo. Simultaneamente, esses atributos são dele mesmo. Aqui não há a necessidade de distinguir os atributos próprios daqueles que “vieram de outras pessoas”. Telêmaco não é como eu e você, que anseia por ser individual.

Entretanto, quando, por exemplo, no esporte, assistimos a um desempenho excelente, sentimo-nos presenciando algo além de uma capacidade humana. Vemos um talento inexplicável. Por isso dizemos que quem tem talento, ou quem trabalha muito, é ajudado pelos deuses, ou tem sorte. Diferentemente da pessoa que já acredita saber de tudo: ela não é ajudada pelos deuses. Ela move-se depressa demais, e os seres divinos não conseguem alcançá-la. Você já deve ter visto um anjo da guarda chegando atrasado para evitar uma catástrofe, com o seu protegido. É isso.

A comitiva de Telêmaco é bem recebida por Nestor e seus homens. Telêmaco diz a Nestor que apresenta-se como suplicante, por qualquer notícia sobre o paradeiro de seu pai. No início de sua fala, disse de quem era filho. Mas logo mostrou não querer chegar rápido demais à posição deste. Por isso, ajoelhou-se. Nestor conta ao jovem sobre os mortos em Tróia, os melhores guerreiros: Ájax Telamônio, Aquiles, Pátroclo, e também o seu próprio filho. Acompanhado de Ulisses, ele próprio saiu de Troóia, após vencerem a guerra. Mas eles se dividiram em naus distintas, e estas tomaram rumos diferentes. Nestor chegou em sua casa. E de Ulisses, infelizmente, ele não possuía mais notícias.

O normal e o ideal


O normal pode ser o comum. Diz-se do comum que ele é o facilmente encontrável em certo tipo de lugar. Em uma escola, encontra-se pessoas que sabem matemática. Matemática é comum na escola mas é incomum fora dela. Falar português e possuir um conhecimento mínimo acerca desta língua é comum no país em que vivemos. É mais comum do que possuir um saber técnico de matemática.

Ainda como comum, o normal pode ser entendido como o encontrável em um grupo social. “O normal da minha família é todos dormirem após as duas da manhã. Nem todas as famílias ou grupos agem assim. Anormal, na minha família, é alguém dormir cedo. Isso é raridade.” Então o normal é o que mais frequentemente ocorre, tendo em vista um lugar ou um grupo. Contraposto a ele está aquilo que é o raro.

Diz-se também do normal que é o que diz respeito à natureza de algo. É normal para o torcedor gritar. É normal para os seres humanos sentirem tristeza com a morte de um outro ser. Esta normalidade ocorre dentro de um leque de comportamentos mais ou menos intensos, e fora do qual se é anormal. Um torcedor pode até não gritar, mas se ele não faz questão de ver os jogos, não é torcedor. Uma pessoa que não demonstra emoção com a morte de um parente pode estar dentro da normalidade. Agora, ficar alegre com a morte de uma mãe, é anormal.

Dentro da política, considera-se normal que haja certo nível de corrupção e ineficiência governamentais. No Rio de Janeiro, acostumou-se a isso. Alguns dizem que seria impossível um governo isento de corrupção. Um elevado nível de corrupção e ineficiência no governo do Estado do Rio seria anormal. Infelizmente, o grau zero nesse índices também seria anormal.

Um outro sentido de normal, aquilo que é o ideal, o melhor que pode ser atingido por algo ou alguém, e que se torna uma norma sobre eles é, no caso do estado do Rio, completamente esquecido em nome da normalidade do “rouba, mas faz” ou “maqueia, mas também faz”. Como cidadãos, comparamo-nos com a falha da cidadania. Esta falha tornou-se uma referência de normal.

O mais frequente em nosso estado, o que nos é particular ou o que é da nossa natureza, vista por nós mesmos como corrupta e ineficiente, tornou o nosso normal. Jogamos fora o ideal e a busca por tornarmo-nos “versões melhores de nós mesmos,” frase de Richard Rorty.

Não se trata de dizer, aqui, que o governo é corrupto porque o povo também o é. Ou ineficiente porque assim somos nós. Isso mantém a nivelação por baixo, mata a dignidade e a importância daquela função nobre. É do ser humano evitar o que está por baixo, ao nível do solo, do pior da própria natureza, e buscar o que está acima, o que de melhor tem o homem. Isto poderia ser uma norma para ele, não?

O governo tem a obrigação de ser melhor, e de ser exemplo para os seus governados. E não por sermos maus, mas por não aceitarmos o mal no mundo.

Tomar como inescapável, um destino, aquilo que ocorre com mais frequência, ou o que se entende como a natureza de algo ou alguém, é abandonar a busca por um mundo melhor.