sábado, 31 de maio de 2014

Ronaldo e Romário (ou A Covardia e a Petulância)

Andando pelo Rio escuta-se muito que vândalos devem levar cacete. Cobradores de ônibus, seguranças, porteiros e senhoras em filas, já ouvi dizerem isso. Também escuto que todo político é ladrão, e que roubou-se muito, nessa Copa. Os cobradores, os seguranças e os porteiros dizem-no. A velhinha fica mais dentro de casa, e tem medo. Ela não é de ficar falando contra o governo ou as empresas. Quem também o diz são estudantes universitários. À parte os casos de corrupção, em uma sociedade em que não se é protegido por direitos (pode faltar, e falta, transporte, saúde e educação, morre-se de fome, frio, droga e tiro), o indivíduo começa a dizer que há alguém se dando muito bem, alguém que goza da liberdade de fazer o que quer, inclusive de não fazer o que um trabalhador faz. Esse dizer popular, muitas vezes, encontra o discurso universitário a respeito de direitos e seu impulso por manifestar-se, por agir logo (o universitário considera o discurso da universidade como interessante, mas distante da prática, ou desinteressante, e que intervir na política só dá-se por manifestações). Também ocorre de trabalhadores começarem a fazer greve, conseguindo manifestarem-se por si sós. Romário tem histórias de mulheres, travesti, abrir e falir negócios, ser adorado, ao lado do Bebeto, etc. E de agora ser deputado. Ele circulou por aí, tem vivência. Ele sempre falou muito, e agora deu pra falar que na Copa haverá muito superfaturamento e político levando dinheiro por fora. Ronaldo é de origem social parecida com a de Romário. As histórias que se tem dele são de casamento desfeito, casamento em Chantilly, travestis, gordura corporal e falso emagrecimento, e amarelada em uma final de Copa. Ele nunca falou abertamente sobre essas coisas. Deixa-as veladas, trancadas no mesmo apartamento em que mora a velhinha que tem medo de tudo o que há na rua, e que adora a ordem e a segurança. "Manifestação tem que ser desse jeito, sem vandalismo. Ou cacete neles. Manifestação em Copa já começa como insubordinação e vandalismo. Tem de levar cacete já ao sair de casa." Não me espantaria muito se houvesse repressão policial a quem pisasse fora de casa usando outras cores que não as da bandeira... A ideia de que só poucos se dão realmente bem, e que o pobre precisa se virar, ser esperto e ficar calado, é a do Ronaldo. Romário sempre foi altivo, petulante. Chegou no poder. Mas, ao invés de não querer chamar atenção, roubando ou não, ele grita "pega ladrão!", no seio do Congresso. Qualquer um de nós diria isso, até na cara da Dilma. Diríamos, do lugar do manifestante. No lugar do Romário, ou de qualquer outro no poder, é claro que não. Já Ronaldo é aquele que se deu muito bem, mas tem a cabeça do cara que manda o outro ficar calado, pois há armas por perto, e não se deve mexer com quem é mais esperto e leva mais vantagem que você. O negócio é fazer sua correria, às vezes fazendo um churrasco, saindo escondido com travestis, e dizendo que tudo tem que parecer como sempre, em ordem, com raladores de um lado, e gozadores, de outro.

Você é um rato ou um homem?

O homem era um ser que agia no mundo. Vivia medindo sua força com os outros. Subjugava ou era subjugado, agia sobre alguém ou sofria a ação dele. Então vem o fraco, aquele que quer ser poupado dessa vida de jogo, forças e ações, e diz ao forte, aquele que a vive de peito aberto: "isso que você faz prejudica os outros. Eu sei que você sabe disso, mas, veja, isso é errado, você é prisioneiro de uma natureza, que o brutaliza. Você pode começar a pensar em quem você prejudica não mais como um adversário, mas como alguém que tem sido a sua presa, e sofrido com isso. Você precisa aproximar-se do que ele sente, pois ele poderia ser você. Você poderia estar sofrendo, aqui. Troque essa selvageria pela paz de uma comunidade. Nela, você estará protegido. Basta começar a ter consciência de si, e responsabilidade pelo que faz. Você é livre para mudar, ou seja, é um sujeito". O forte, então, começa a querer ser sujeito, aquele que é livre para agir (agir sobre si mesmo), impedido por nada, por ser dotado de consciência. Ele começa a frear sua ação, pois procura um sentido para aquilo tudo. Afasta-se progressivamente da vida, pois vai acreditando em outro modo de ser, que não está imediatamente ali, pois está num outro lugar, onde reside a verdade das coisas. Esse ser vai tornando-se igual a todos os fracos que compõem uma massa. Essa minha leitura de Nietzsche pega, em alguns momentos, o vocabulário que Sloterdijk usa para falar de subjetividade. Só que, para este, sujeito é justamente aquele que faz a passagem da teoria para a ação. É quem se desinibe para agir. Nossa ideia corriqueira de sujeito é não é bem essa: é a de que ele é algo que age, sim, mas "sabendo o que faz". E que, para "saber o que faz", em cada situação, usa esquemas de raciocínio e de moral, adquiridos em experiências anteriores, armazenados num "espaço interior". Há um si mesmo que pesaria sobre a ação, e do qual cobra-se que seja uma consciência aguda e um implacável responsabilizador de si mesmo. O sujeito transcendental kantiano é uma das suas figuras de referência. Mas, e se o sujeito não fosse substancial, não se fundamentasse em algo destacado dos acontecimentos, e que não tivesse uma permanência, em meio à mudança das coisas? O homem sempre quis sobreviver à vida, ir além dela. Criou a ideia da permanência de si mesmo. Acabou perdendo de vista uma noção da literatura que diz que ele é quem age. Tudo bem, o romance deu tudo para que ele achasse que seus profundos motivos fossem literalmente profundos, ou guardados. Leu literalmente a literatura... "O sujeito é o responsável pela ação". Aí é que esquecemos o agir e ficamos só com a responsabilidade e o sujeito por detrás dela. E se voltássemos à ação? Teríamos não mais o "dizer não à vida", mas o "dizer sim a ela". Como respondo a cada situação, usando o que tenho disponível, para agir. Quer dizer, memórias, razões, morais e gostos existem, mas existem como fenômenos, na hora de se fazer algo. Dizer sim, na hora certa. E dizer não, também na hora certa: "qual a razão de existirem pobres e ricos?", pergunta o pobre, querendo aumentar o esclarecimento. Ele dirá um "não", ao estado de coisas, entrará em greve (não cruzará os braços: sua ação virou outra). Sloterdijk fala desse cinismo, que descongela a razão de uma hegemonia, e faz as coisas voltarem a acontecer. Hoje vi o desenho Ratatouille. O ratinho seleciona o que come, escolhe alimentos pela qualidade, pois quer sobteviver, e pelo sabor, pois quer viver, feito os humanos. Os humanos aproveitam os sabores, têm gastronomia. Criam pratos. Os ratos roubam. Segundo seu pai, os ratos fazem isso porque, no mundo, ninguém é por eles. Então têm que se defender, só pensarem em comer qualquer coisa e aumentar o ninho. Os humanos são maus. O ratinho considera essa ideia. Mas sabe que o homem é aquele que age, e como tem coisas gostosas pra comer, pode agir bem, ou seja, cozinhar bem e bem administrar um restaurante, o que implica cooperação e amizade entre cozinheiros, entre cozinheiros e consumidores, entre sabores, entre receita e gastos, e entre um rato que age e um homem. Bem, o homem escolhido pelo ratinho, para introduzi-lo na cozinha e permitir que ele cozinhasse era tímido e desengonçado. O ratinho teve que controlá-lo. Mas do cérebro? De uma comunicação telepática para a mente do homem? Nada disso. O ratinho pôs-se a puxar os cabelos do aprendiz de cozinheiro, gastando muita energia nessa ação para fazer o homem agir (inicialmente, como marionete, heterônomo, mas logo ficando autônomo). E o ratinho logo se mostrará aos outros humanos, no restaurante, pois, tendo feito todos provarem as qualidades dos pratos que realizou, será reconhecido como sujeito, com direito a atuar como cozinheiro. Gostamos do samba, do funk, e atribuímos subjetividade ao negro e ao pobre. Mas quem é esse nós, que fez essa atribuição? Nós que ouvimos e dançamos, tornamo-nos, então, sujeitos, e que dançamos, às vezes juntos, com as pessoas que fazem a cultura popular. Assim, vemos-los como seres que fizeram essas músicas e danças. E a própria apresentação deles os faz existirem. E podemos todos fazer, às vezes juntos, em uma rivalidade que atiça a vontade, ou em outros tipos de parceria, não apenas música, ou modos de produzir e consumir, mas também novos direitos, formas de sentir prazer...

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Olha quem está ba-ban-do!

Aí, bicho! Carlos Evanney é Roberto Carlos (http://m.extra.globo.com/noticias/cover-de-roberto-carlos-tambem-faz-seu-cruzeiro-com-cerveja-churrasco-na-baia-de-guanabara-6981865.html). Canta para seus súditos, a bordo do cruzeiro Mozart, que singra pela Baía da Guanabara. Com eles come churrasco, aceita propostas de casamento. O Rei, mesmo, ficava naquela lenga lenga com sua Maria Rita. Aos nossos pobres foi prometido reconhecimento e conforto. Eles nunca acreditaram. Em suas mãos, músicas estrangeiras viraram versões de forró. Batidas dance, tamborizadas, no funk. O samba ficou muito espetáculo, criou-se o pagode. Eles são seus próprios artistas. Não importa que a tv demore a mostrá-los. À classe média, sim, prometeu-se ser imagem. Só que as coisas do pobre sempre vêm e seduzem, pegam todos pelo corpo. Caetano não é um grande pensador contemporãneo, ensinado na faculdade. Todo mundo curte o popular, mas sente um pontada de inveja. Rodrigo Constantino (http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/cultura/um-post-scriptum-na-carta-para-leticia-spiller/) diz que uma artista loira é que tem o sucesso invejado por quem nunca apareceu às massas. Esse é um aproveitamento que ele faz de uma outra ideia, também dele, de que o pobre inveja e joga culpa no rico. Mas não é isso o que acontece: o pobre sempre arrumou um jeito de fazer seu churrasco e pagode. De ter produtos da moda, vindos da China. Um produto original seria visto como falsificado, em seus ombros. Então, como não faz diferença, nas suas mãos o falsificado vira o original. Já vi usarem tênis Naipe! Falsificadamente original. O rico perdeu o charme. É o novo exagerado, brega, nas novelas. E compra na mesma loja do que o ex-pobre. Foge, mas onde há perfume e vinho francês, Disneylândia e Buenos Aires, lá chegarão todos, qualquer um. Pondé (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2014/04/1446184-beleza-roubada.shtml) falou sobre um livro que conta o quão mais bem pagos são os profissionais bonitos, nos EUA. Segundo ele, o mercado é uma ferida narcísica para o feio, que se soma à infelicidade da sua pobreza. Hoje estive num supermercado. A caixa que me atendeu a toda hora parava para mexer no seu whatsapp. No plano de fundo, uma foto dela de cabelos soltos e batom rosa fazendo biquinho. Ali, os cabelos estavam presos, mas os brincões de novela estavam presentes. A promoção de queijo brie e de vinho, o cheiro de salário chegando e a ostentação da caixa deixaram muito neguinho na fila babando.

Festa punk

Voltava eu de um festivalzinho de hardcore, na Lapa, quando vi uma banda tocando em uma tendinha em frente aos arcos. Reconheci o Sex Noise. Esse clip rolava direto na MTV: http://m.youtube.com/?gl=BR&hl=pt#/watch?v=UlMzVHjMuzw . É punk. Eu tinha dezesseis. Uns doze caras dançavam, sob a chuva. Também cantavam. Mesmo que nunca tenham ouvido a Sex, dava pra pegar os refrões na hora. O punk e o funk são músicas bem fáceis de pegar na hora e cantar. E o pessoal que está passando se junta e se diverte. O punk passa umas mensagens políticas. O hardcore, também, mas, por ser mais agressivo (mais rápido e pesado), fica difícil entender na hora, além de não reunir tanto. O punk sempre foi debochado, ainda que falasse de coisas vividas por todos: ônibus lotado, corrupção na política, etc. Transmitia uma experiência comum, não uma visão particular de um partido, posicionamento político ou com uso exagerado e burro de um filósofo ou sociólogo. O punk começou como crítica, e não tinha bandeira, e seu anarquismo era oposicionista, negativo, não propositivo. Eu prefiro o riso à seriedade mal elaborada ou repetitiva, pois esta fica insensível e pouco imaginativa, não inteligente. A política na arte está nas metáforas, nas emoções e no corpo. O funk e o punk (também o cinema de terror e sci fi) fazem mais pelo erotismo, pelos nossos problemas existenciais e da pólis do que muito papo sério, aí. Evitam discursos prontos, emocionam e põem-nos para mexer o corpo e cantar. Fazem-nos olhar, como da primeira vez, para problemas e questões. A partir daí é que começa-se a conversar, a ler e a pensar sobre eles, e se sai da repetição de falas.

O bom é dividir irmãmente?

Sempre escutei que o certo, entre amigos e colegas, é dividir as coisas "irmãmente". Participei da seguinte situação, numa turma de crianças de cinco anos: quatro delas brincavam com um jogo de marceneiro, com ferramentinhas, madeirinhas, etc. Cada uma fazia sua construção. Um menino disse aos outros que precisava de mais um parafuso. Uns não responderam, outros disseram não poderem dar qualquer peça com que brincavam. Contei os parafusos das quatro crianças: o solicitante tinha dois, uma menina tinha quatro, e os outros dois tinham três, cada um. Eu lhes disse que se a menina com quatro desse um para o solicitante, todos teriam a mesma quantidade, três. Ela, a princípio, relutou, mas acabou cedendo a peça. Chegamos a uma divisão justa. Mas alguma coisa me parecia errada: a menina havia pego a peça primeiro. Aplicar uma divisão em parcelas iguais não parecia tão justo, assim. E fazer isso foi uma fuga minha da situação. As crianças, numa escola, agarram o brinquedo que está na frente. Às vezes esse brinquedo está na mão de outra criança. Um brinquedo visto é algo que certamente está ali para as mãos delas. Se alguém larga um carrinho para amarrar o tênis, não pode imaginar que outra criança olhará o carrinho como estando lá para ela pegar. A outra criança pega o carrinho, e ocorre uma briga entre os que só vêem carrinho diante de si. A professora dá o direito para quem pegou primeiro. Começa a surgir aí a ideia de que a sorte distribui o poder de ter os bens numa escola, no mundo. A sorte é vivida como injusta por quem é desfavorecido por ela. Um toque humano equalizador é pedido. Mas é justo dar a mesma coisa, ou a mesma quantidade, para cada um? Aqui falarei de Rawls e Nozick, tendo por base o "Filosofia Política para Educadores", do meu amigo Paulo Ghiraldelli Jr.. Para Rawls, justiça era equidade (não igualdade!): todos os indivíduos deveriam ser dotados de liberdades básicas, ou seja, direito a bens econômicos e materiais, culturais e a auto-estima. Contudo, cada um possui seus interesses próprios, de modo que se todos devem ter oportunidades, seria forçar uma barra esperar que todos façam as mesmas coisas com elas. Ou que se desse oportunidades iguais para quem gosta de computador e para quem gosta de dança. Uma desigualdade, se produzida tendo esse chão comum de direitos, seria aceitável. Ou quase: para que seja aceita, no esquema rawlsiano, a desigualdade deve resultar no favorecimento aos desfavorecidos. Indivíduos ou grupos com menos fruição daqueles bens, devido a um ponto de partida desigual, devem receber mais oportunidades. Rawls queria mitigar a inveja social, que levaria a uma má vida em sociedade e ao sofrimento individual. Para Nozick, ao contrário, a comparação é inevitável, para o homem. Imagine que o igualitarismo comunista-trotskysta se realizasse: "O homem tornar-se-à incomensuravelmente mais forte, mais sábio e refinado; seu corpo tornar-se-à mais harmonizado, seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais musical. As formas de vida serão dinamicamente dramáticas. O tipo humano médio emergente terá o peso de um Aristóteles, um Goethe ou um Marx. E acima dessas montanhas novos picos surgirão." (citação de Trotsky, em Ghiraldelli Jr.. Filosofia Política para Educadores. Ed. Manole. pag 23). Nesse belo mundo, com belos homens, haveria tanta comparação e inveja quanto ocorre no nosso mundo, em que uns vivem com mais, outros com menos. O homem sempre quer alargar os próprios domínios, crescendo para cima do terreno do vizinho. Ele não mira longe, pois quer ampliar o perímetro do próprio território. Ele esquece do que tem, para cobiçar o do outro, e o destruirá, caso não possa ter o que é dele. A inveja corrói o coração, e parece mesmo natural. Rawls quer que a controlemos. Mas faríamos isso promovendo liberdades básicas e o que Rawls entende por boas desigualdades, aquelas que, no caminhar das coisas, deixa os indivíduos com fruições equivalentes, embora com seus talentos diferenciais desenvolvidos cada um a seu modo. Eu não devo dar três parafusos para cada criança, pois uma delas, com dois, pode fazer algo melhor do que quem usou quatro ou três. Ou, então, o negócio dela pode não ser construção, mas contar histórias, e eu lhe passaria as que eu sei. Mas, olhando um pouco as crianças, a formação de seus territórios pode também ter inveja, quando uma delas sente-se injustiçada. Ela vai pisar nas peças do amigo. Queremos corrigir injustiças. Rawls quer controlar a inveja social. Mas a individual não precisa assustar tanto, e fazer-nos tomar uma falta de sorte num determinado aspecto como um infortúnio total. Se a criança chegou depois, no brinquedo de construção, ela pode olhar para os livros da estante, e contar e ouvir histórias. Ela pode preferir fazer isso, ou não, e insistir que quer a construção. Não poderá ter, e chorará. Nem sempre uma falta de sorte é contornável, a criança chegou depois e pode ficar sem ter o que quer. E seu sofrimento não precisa ser bíblico.