quarta-feira, 27 de julho de 2016

Mais do que os olhos podem ver


"Precisamos de um líder que seja digno das promessas que faz às crianças, dos seus sonhos mais altos."

Há oito anos, Michelle falou em público, pedindo votos para um homem que ela conhecia bem: doce, capaz e persistente. Barack demonstrou ser tudo isso. Agora, Michelle, uma teacher, veio assegurar-se de que estávamos vendo o mesmo que ela. E de que víamos o que acontecera conosco.

O homem que Michelle conhecia tornou-se de todos. O olhar generoso e alegre, de Barack, pôde cobrir a América. Alguns comentaristas de televisão um dia questionaram a nacionalidade e a fé de Barack. Mas isto não chegou a abalar a fé das filhas dele e Michelle, pois a mãe estava lá para mostrar o que elas já sabiam.

O novo discurso de Michelle é o de uma mãe da nação: a mãe explica o sentido do que o pai faz; esmiuça, esclarece os mal-entendidos e apazigua os mal-estares. A mãe restabelece a fé das crianças no pai. E a fé, sabemos, é o único modo de vermos mais do que os olhos podem ver.

Os anos de presidência de Barack foram os anos centrais no desenvolvimento das suas filhas. Ele tinha o dever de ser um grande presidente, se quisesse ser um grande pai. E ele seria um grande presidente se pudesse ser um grande pai.

O exemplo de Barack, para suas filhas, o que ele mostrava para elas, foi o mesmo que ele mostrou para a América (para todas as Américas). E Michelle agora nos fez ver os últimos anos da casa dela e do nosso país.

Em situações de crise, o líder reúne-se com as diferentes pessoas e conversa. Em condições de desigualdades as mais diversas, o líder entra para reequilibrar, não para deixar alguém para trás, pois sabe que as diferenças é que fazem o todo ser forte. Em situações de conflitos, o líder se informa, reflete e toma decisões firmes, e baseadas em princípios.

Um líder, enfim, preocupa-se se o país que está deixando para as crianças é mais próximo dos sonhos delas do que dos objetivos colocados por especialistas do déficit, da miséria, da falta. As crianças olham para si mesmas e o mundo. O tanto de desconhecimento, de curiosidade, que elas têm, é o tanto que elas são capazes de esperar coisas maiores e melhores. A criança olha um docinho e imagina um doce grande. Ouve uma promessa de passeio e imagina uma grande viagem. Ela olha para algo e lhe vem uma coisa muito melhor do que aquilo.

Esse olhar generoso a criança também oferece a quem está mal. A criança não vê as coisas como estando determinadas, mas sempre como podendo ser mais do que são. Essa generosidade permanece sob a forma de os princípios que uma pessoa tem: o ser honesto, o respeitar alguém, o não jogar lixo no chão da rua são regras que a pessoa coloca para si justamente porque um dia ela esperou coisas maiores e melhores do que o que via à sua frente.

Um papel de bala no chão é um mal maior do que um pedaço de plástico que precisará ser varrido por um gari, pois entupirá os esgotos e causará uma enchente catastrófica. Essa ideia infantil permanecerá como uma impressão ou uma fé, no adulto. Um adulto assim é atento ao que acontece, e ao mesmo tempo tem um olhar mais amplo sobre isso.

Michelle chama nossa atenção para as crianças que estão sendo educadas. Ao fazer isso, insere-nos na sala de educação infantil: por que não querer o que ela está dizendo? Por que não posso querer esse mundo melhor?

Trump e Bolsonaro são revólveres: você só via sua própria insatisfação, alguém apontou o motivo dela e te ofereceu a solução. Basta apertar o gatilho. Afastam-se os diferentes, limpa-se a vida social dos objetos nefastos, e sobra o homem seguro num cenário onde nada acontece. Então este homem arrumará outra coisa para odiar e querer deletar do mundo, pois ele não consegue imaginar nada, precisa de objetos à frente para serem apontados como maus.Sua visão é estreita. Ou é cansada, vê tudo igual e, geralmente, tudo ruim.

Eis uma nação de gente com medo do vizinho. De crianças ensinadas que em todas a esquina há bandidos. Crianças que tiveram os olhos generosos roubados por homens que lhes impuseram seus olhos paranoicos. De adultos acostumados a falarem em necessidades e dívidas, e a pleitearem uns dos outros, e do Estado, atendimento ou vingança por atendimentos não prestados.

A lição da teacher une a casa e o país: o bom exemplo de um é o bom exemplo do outro. Não é possível haver um presidente que roube, e que seja um homem que durma em paz. Menos possível, ainda, se ele está publicamente desacreditado, e apenas grupelhos o defendem.

O líder firme e doce tem a nação ao seu lado, e justifica a admiração dos próprios filhos. É visto por todos como bom. E como tendo tudo para ser melhor. Tal é a fé que se tem nele.

O homem que abandona seus princípios, aquilo que aprendeu quando criança, será ou o homem da "rápida resolução dos problemas" ou o homem das "ilegalidades justificadas". Ambos se alimentam das mágoas do mundo, e apresentam-se como magoados-mor e, por isso, vingadores.

Homens assim fazem a própria família ser envergonhada e perseguida junto deles. E em lugar nenhum eles são vistos como estando além da mediocridade e da baixeza. Bolsonaro e Trump têm cara de baixos, indignos, e de que vivem esbravejando por causa disso (no caso de Bolsonaro, com uma má dicção).

Os Eua, com Barack, viram-se de forma mais leve do que se viam no governo Bush. Não houve animosidades internas, e o presidente jamais chegou a ter um índice expressivo de rejeição. Mas essa paz não se deu com Barack evitando mexer em grandes empresas e intervir em líderes de outros países. Barack fez o necessário para melhorar o equilíbrio social e econômico do país.

Há oito anos o clima é de paz, e isso permitiu aos americanos serem um pouco mais como crianças, ou seja, a quererem mais do que os olhos podem ver: a quererem o melhor.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Sobre a vontade de ter poder


Você simplesmente gosta de ir na casa daquele amigo. Senta no sofá e olha para as pessoas de lá, sabendo o que elas vão falar. Comenta o que eles já sabem que você vai dizer.

Mas é gostoso, são aqueles personagens novamente. Você tem o seu jeito, seu amigo tem o dele, a mãe dele tem o dela, a cachorra tem o dela. Ela gosta de se enfiar entre vocês, no sofá, de início arranhando o tecido, depois se aquietando. Ela chega, é um show, depois fica ali, como bichinho.

"Não repara a bagunça" é o que te dizem para fazer você se sentir em casa. Mas um dia você não o escuta. Você não está no clima, e repara em tudo. Olha para as coisas, estranha a opinião da mãe do amigo, a cachorra estragando o sofá, a mesmice e o jeito meio bobo do amigo.

Seu olhar é como o de alguém de fora, alguém que não tem mais familiaridade com eles. Caso você diga "o que está pensando", mesmo que você receba uma resposta que não te peça para se explicar, você continuará falando "o que está pensando". Não poderá fechar a boca, pois quem começa a falar tem que continuar.

Assim, você continuará distante daquela casa. Se tiver sorte, a mãe do amigo pensará consigo mesma:"hoje ele está precisando botar algo pra fora. Deixa ele."

Caso você não diga "o que está pensando", e permaneça escutando, terá chances de ver algo bom naquilo, e se desarmar. Verá que mais valia a pena ter deixado a arma na soleira da porta, pois com ela não se pode ouvir nada e fica-se propenso a falar logo.

Quem carrega uma arma fica surdo. Quem carrega uma certeza fica surdo.

Quem "fala o que pensa" diz algo que está martelando na cabeça, uma ideia fixa. O que ele fala não provém de um pensamento. Já quem pensa fica lacônico, pois está escutando o ambiente e a si mesmo. Fica caladão, mas sem que ninguém repare, pois está com brilho nos olhos. Os olhos brilham, quando estamos interessados, receptivos.

A "vontade de potência" de Nietzsche é vontade de expandir-se, ir além. Não é vontade de ter poder, vontade de influenciar as coisas e a vontade dos outros. Nietzsche não falou de um princípio de socialização.

A pessoa interessada em ter poder mostra-se contida, um "exemplo de seriedade e educação". Pense no Hitler. A pessoa com vontade de potência ri. Vai direto para o sofá do amigo e recebe quem vem até ele.

Um cara esticado no sofá da sala enquanto as visitas chegam. Ele sem camisa. Roncando ou comendo amendoim. Os mais chegados sentam no braço do sofá, na ponta da almofada, no chão em frente ao cara. Usam o corpo dele como apoio para um prato. Próximo do short, até.

Muitas vezes eu sentei na cadeira da sala, guardando raiva do folgado. Neste texto estou admitindo que um folgado é coisa de um lar.

O controlador se contém, esconde seus interesses. Faz sugestões para que os outros também se contenham. Quando todos estiverem contidos, educados até à cachorra, o controlador se sentirá com poder.

A maioria, porém, apenas tem momentos assim.

Brigamos com meio mundo, dando a entender que fazemos melhor, que em nossa casa não tem daquilo (nessa hora fala-se em "minha casa" e em "sua casa", não em "mi casa, su casa"). Voltamos para a nossa própria casa e continuamos brigando com os objetos, arrumando tudo de uma vez só.

Mas isso passa assim que você senta na sala. E levanta-se, vai até a cozinha, pega um copo, enche, e volta para o sofá da sala. E deixa o copo em qualquer canto.

domingo, 24 de julho de 2016

O amor por Davi


O corte ainda estava quente. A cabeça de Golias ainda estava na mão de Davi quando Jonatas o conheceu. Desde o primeiro momento, Jonatas amou Davi. Amou-o como a si mesmo.

Saul, o pai de Jonatas e ainda rei de Israel, vendo que Davi se saía bem em todas as expedições militares para onde era enviado, estabeleceu o jovem como chefe dos homens de guerra.

Toda a tropa e os ministros de Saul estimavam Davi. Saul vinha, contra ele, alimentando um crescente ódio. Isto começou quando Saul e sua comitiva haviam retornado da vitória sobre os filisteus, aquela em que Davi havia derrotado Golias. As mulheres de Israel receberam-os alegremente, cantando "Saul matou mil, mas Davi matou dez mil."

No dia seguinte, Saul fora apossado por um espírito mau. Justamente Davi era o encarregado de acalmá-lo, tocando harpa. "Vou cravar Davi na parede", pensou Saul, e contra o jovem atirou a lança. Não o acertou.

Estes acessos ocorriam a Saul desde que Javé afastara-se dele, ao tê-lo desobedecido: no ataque aos amalecitas, ao invés de exterminar todos os homens, mulheres e animais, Saul poupara o rei Agag e os melhores animais. Almejara, com isso, satisfazer suas próprias ambições.

As vitórias de Davi, agora como comandante, demonstravam que era sobre ele que agora estava Javé. E Saul o invejava e odiava por isso.

Um dia, Saul disse a Davi que que lhe daria sua filha Merob como esposa. "É melhor que ele seja morto pelos filisteus, e não por mim.", era a sua intenção. Davi estranhou a oferta do rei, visto que ele não era ninguém, seu pai não tinha importância em Israel.

Merob, porém, acabou sendo entregue a outro homem. Micol, a segunda filha de Saul apaixonara-se por Davi. Isto convinha ao plano de Saul.

Saul mandou os ministros dizerem a Davi que o rei lhe estimava. Davi respondeu-lhes que era um homem pobre, sem recursos. Os ministros levaram a resposta de Davi a Saul, que mandou-lhes dizer a Davi que o rei não se importava com dinheiro. A fim de expor Davi ao perigo, ele deveria pegar cem prepúcios de filisteus.

Davi considerou justa esta condição, para ser genro do rei. Davi matou não cem, mas duzentos filisteus. De cada um segurou o pênis, esticou-o e cortou a pele que recobria a glande.

Davi sempre vencia as batalhas. O povo lhe amava, assim como a filha de Saul. Saul queria matá-lo, e Davi finalmente percebeu isso quando, por uma segunda vez, tocava harpa para o rei e viu voar perto de si a lança sedenta de sangue. Micol, sua mulher, disse-lhe para fugir.

Micol pegou uma estátua, deitou-a na cama, sobre sua cabeça pôs uma pele de cabra e sobre o corpo um manto. Aos emissários de Saul, que vieram buscar Davi, Micol disse que Davi estava doente.

Saul ordenara que Davi fosse trazido até ele com cama e tudo. Ao constatar que na cama não havia Davi, Saul questionou a lealdade de sua filha. "Ele me ameaçou, e disse que me mataria se não o deixasse partir."

Davi foi encontrar-se com o profeta Samuel, aquele que um dia apontara Saul como rei, mas que, ao ver sua desobediência para com Javé, dele retirou o dom de ter a companhia de Deus e o transferiu a Davi. Davi e Samuel esconderam-se num convento.

Saul ficou sabendo disso, e enviou emissários para prenderem Davi. Os emissários encontraram os profetas em meio a um transe. O espírito de Javé também caiu sobre os emissários, inserindo-os no transe. Outros dois grupos de emissários Saul enviou, e estes também foram tragados.

Saul foi pessoalmente ao convento. Também ele foi tomado pelo espírito de Javé: tirou a roupa, deitou-se nu no chão, e assim ficou o dia e a noite inteiros, entregue à vontade de Javé.

Davi novamente fugiu. Encontrou-se com Jonatas. A ele perguntou que mal havia feito ao rei, para que este quisesse matá-lo. Jonatas assegurou-lhe que seu pai não movia nenhum plano contra Davi, pois de outro modo ele saberia. Davi disse que Saul sabia bem da afeição existente entre eles.

Jonatas disse a Davi que sondaria seu pai, a respeito de Davi. No momento da refeição familiar, Saul estava à mesa com seu tio Abner e seu filho Jonatas. O lugar de Davi estava vazio. Isso repetiu-se por dois dias seguidos.

"Por que o filho de Jessé não veio nem ontem nem hoje para a refeição?", enfim perguntou o rei. Jonatas disse ao pai que Davi fora a Belém, para um festividade em que sua família participaria. Saul gritou contra o filho: "Filho de transviada! Pensa que eu não sei que você está do lado do filho de Jessé, para sua vergonha e para vergonha da nudez de sua mãe?" E contra ele atirou a lança. Jonatas escapou ileso.

O terror de Saul completava-se com seu filho estando ao lado do seu inimigo. Seu desespero total vinha com a grande afeição de Jonatas por Davi.

No dia seguinte, Jonatas foi encontrar-se com Davi. Ao se verem, os dois se abraçaram e choraram bastante. "Nós juramos um ao outro em nome de Javé. Que Javé seja sempre juiz entre mim e você, e entre os meus e seus filhos.". Hoje, pessoas que se sentem mal-vistas pelos outros dizem "só Deus pode me julgar".

A história da perseguição de Saul a Davi continuaria.

Davi era jovem, vitorioso como guerreiro e amado por todos. Era admirado e amado por outro jovem, Jonatas que, por algum motivo, não saía para viver com ele.

Pátroclo e Aquiles, na Ilíada, também eram os melhores amigos um do outro. Aquiles era o ideal de homem e de lutador para Pátroclo. Aquiles era seu protetor, professor e maior amante.

Na Grécia antiga, um homem mais velho cuidava e ensinava seu trabalho a um jovem. Esta era uma relação de ensino e também homoerótica. A antiguidade judaica não tinha motivos para não conhecer isso.

No Levítico, Javé, por meio de Moisés, advertiu: "Não se deite com um homem, como se fosse com mulher: é uma abominação". No Antigo Testamento, o homem devia depositar suas sementes em sua mulher, ou em suas mulheres, para constituir sua linhagem, fazer seu nome prosseguir depois que ele morresse.

A Bíblia não explorará a especificidade da relação entre os guerreiros, como fez a Ilíada. Entre um grande guerreiro e seu aprendiz, a relação não era como a de um homem e uma mulher. Pelo contrário, não poderia haver afeminação, submetimento de um pelo outro. Entre os homens havia sobretudo o cultivo da masculinidade e da expertise. No caso de Davi e de seu exército, da expertise guerreira.

Jonatas amou Davi "como a si mesmo". Freud falará que o homossexual é alguém com investimento grande de amor por si mesmo, e a partir daí amará homens, que são como ele próprio. À parte da ênfase sexual que damos para o amor, reconhecemos que um amado nos inspira naquilo em que queremos nos tornar.

O amor de Jonatas por Davi era um anseio para entregar-se a este jovem semelhante a ele, mas que levava uma vida excitante. E que a vivia com talento e beleza. Davi era tudo o que Jonatas poderia almejar para si mesmo.


P.s.: Esta leitura de Davi e Jonatas não é uma "distorção da história". A Bíblia tem histórias que inspiraram os Judeus e os cristãos, e o fazem segundo cânones de leitura. Mas muitas interpretações são possíveis, visto que são textos de caráter literário. Davi é tradicionalmente conhecido como um grande rei e grande guerreiro. Contudo, entre nós é possível uma leitura no sentido da ampliação das características e das possibilidades deste personagem. É a época da diversidade, do indivíduo que pode narrar a si mesmo de diversas formas (saiba mais sobre isso: http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/homossexualidade-heroica.html). Isto poderia ser problemático se pensarmos que um guerreiro ou um rei só podem ser donos de uma história unívoca, como se devessem guardar uma "Verdade". Mas um rei ou um guerreiro não podem ser assim, se forem ricos personagens. Não se forem personagens de magníficos livros, como o foram Davi e Aquiles. Portanto, ao invés de repor uma antiga visão sobre Davi e a bíblia, procure ler de outro modo.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Médico não chora


Alguém que estuda cozinha saboreia melhor pratos, do que outra pessoa. Alguém que estuda pintura tem a melhor apreciação para quadros. Um dentista repara mais na perfeição de um sorriso. E em dentes amarelados e tortos. Um médico curte ver alguém saudável. E lamenta ver alguém muito doente.

As opiniões sobre o que seja uma comida boa variam pouco. Qualquer pessoa poderia concordar com a opinião de um gourmet, ou dizer que o prato dele é o melhor. As opiniões sobre o que seja um belo quadro talvez variem mais do que as opiniões sobre uma comida boa.

Muitos diriam que um outro quadro, uma hq ou até uma capa de disco são mais bonitos do que o apontado pelo especialista em pintura. O que faz um belo sorriso é o rosto que o contém, se está com ou sem batom, as expressões que a boca faz e as palavras que ela fala.

Muitas coisas levam nossa percepção de sorrisos para um lado ou para outro. Neste assunto, a opinião estética do dentista acaba sendo pouco levada em consideração. Ah, mas o dentista avalia um sorriso não só pela estética, mas pelo que ele demonstra de correção e também de saúde dos dentes. Quando a isso, ninguém compete com o que o dentista diz.

Mas, quando falamos de um elemento do corpo do homem, o que é falado se diversifica: o brilho intelectual, atlético, moral e físico. E a maneira como um órgão ou o organismo funcionam, realizando bem suas funções ou sendo capaz de manter a vida do corpo. O que é dito por pessoas que estudam o funcionamento e a saúde do organismo é considerado não como opinião, o que eu ou você podemos dizer, mas saber técnico.

Um cardiologista pode me dizer, enquanto andamos no shopping, que uma blusa na vitrine está cheia de corações, sem que eu ache que ele está falando do órgão com o mesmo nome. Ali ele não é cardiologista. Mas em seu consultório o que é nomeado de coração, ou de bom coração, tem um sentido específico.

Um coração que a mulher desse cardiologista desenhe para ele, no meio de uma mensagem, deixa-o comovido. Ele sorri, ele chora, ele retribui. A imagem do coração de um paciente o deixa atento. Ele não se comove, e sua ação é uma só, técnica.

Os saberes técnicos, especificamente biomédicos, sobre o organismo humano, levam a discursos e a ações específicos e sem a variabilidade que outras pessoas podem demonstrar quando tratam do "humano".

Uma pessoa que esteja morrendo será vista, chorada e falada de uma forma pelo evangélico, outra pelo católico, outra pelo indígena, outra pela criança da cidade, etc. E cada um tomará uma atitude diante dele. Já o evangélico, o católico, o indígena ou a criança que sejam médicos, se forem realmente médicos, farão uma mesmíssima intervenção.

Um médico que trabalhe em CTI diz não se sensibilizar mais com a morte de alguém. Ele passa os dias vendo organismos entrando e saindo, muitos saindo sem vida. Preocupa-se ele em estar perdendo a capacidade de "ser humano". Cachorros permanecem, tristes, nos locais onde viviam seus donos, depois que estes morrem.

Um filho despede-se de sua mãe, mas despede-se apenas da materialidade dela, mantendo-a consigo, na forte experiência que ele ainda tem dela.

O médico de CTI não quer perder essa vinculação emocional e espiritual com os seus queridos, ou com pessoas estranhas que bem poderiam ter se tornado seus queridos. Seria como se ele também perdesse a ligação emocional e espiritual com todos os outros homens.

Os pacientes continuam saindo da CTI, alguns mortos, outros vivos. E o médico sem chorar pelos primeiros ou comemorar pelos segundos. Ele olha para aparelhos, exames e papéis. Estaria ele se tornando um aparelho a mais, apenas um órgão naquele organismo que é a CTI?

Lá não é local de realizar ações diversas, as intervenções devem ser precisas e suficientes com os seus objetivos. Os corpos que lá adentram ou são de cuidadores ou de doentes de "funções vitais".

O CTI, junto de todos os que passam por ele, são a plena realização de um saber especializado. Lá não há pessoas.

Se um médico de CTI diz estar preocupado em "não ser mais humano", responda que ele assim diz por estar dentro de um CTI, ou ainda vestido de médico. Ele não está em casa, de shorts e sem camisa.

Ele não está com sua mulher e sogra num restaurante. Ele não está olhando para alguém a quem acabou de conhecer, encantado com a conversa dele.

A morte súbita de alguém, nessas situações, traria o desespero dele. O momento de indecisão. Faria o homem chorar. Assim espero.

Só depois é que ele colocaria a roupa de médico.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

A cintura de Davi


Davi entrega a cabeça de Golias, na obra de Caravaggio. Davi sente a mão pesada, por ter matado. Mas expressa ter feito o que era necessário. Está contido, mas orgulhoso.

Golias tem os olhos totalmente perdidos: não sabe o que ocorreu, nem o que está ocorrendo. Sua expressão congelou-se no instante em que a morte lhe acertou.

O rosto de Golias é o de Caravaggio, especialistas em pintura dizem. O pintor é o personagem morto, e faz Davi entregar a cabeça dele.

Saul era rei de Israel. Ele deveria conduzir o exército de dez mil homens de infantaria e duzentos mil de Judá até Telém. Samuel, que havia ungido Saul como rei, lhe diz "Ataque e condene ao extermínio tudo o que pertence a Amalec. Não tenha piedade: mate homens e mulheres, crianças e recém-nascidos, bois e ovelhas, camelos e jumentos." (Samuel, 15:3).

Saul foi e matou os habitantes de Telém, os amalecitas. Mas não matou Agag, rei deste povo. Também deixou de matar as melhores ovelhas, cordeiros e vacas.

Javé, então, falou a Samuel que estava arrependido de ter escolhido Saul como o rei. Saul justificou-se a Samuel, dizendo ter poupado aqueles animais para fazer um sacrifício a Javé.

"Por que você não obedeceu a Javé? Por que se apoderou dos despojos, fazendo o que Javé reprova?", "O que é que Javé prefere? Que lhe ofereçam holocaustos e sacrifícios, ou que obedeçam à sua palavra?", Samuel pergunta a Saul.

Samuel fez vir Agag, e o degolou. Javé entregaria o reinado a outra pessoa. Ordenou a Samuel que enchesse a vasilha de óleo e procurasse a família de um homem chamado Jessé. Javé apontará o novo rei a Samuel.

Jessé apresentou a Samuel os seus filhos. Ao ver Eliab, Samuel pensou que aquele seria o escolhido de Javé. "Não se impressione com a aparência ou a estatura dele. Não é esse que eu quero, porque Deus não vê como o homem, porque o homem olha as aparências e Javé olha o coração", disse-lhe Javé.

Entra Abinadab, e Samuel também diz não ser ele o eleito. Jessé fez entrar sete filhos seus, mas não era nenhum deles. Samuel pergunta a Jessé se ali estão todos os filhos dele. Não. O menor estava pastoreando ovelhas. Fizeram-no vir e entrar.

Era ruivo e belo. Javé mandou Samuel levantar-se e ungir Davi. Sobre o rapaz o espírito de Javé agora estava. Enquanto isso, Saul começa a ser perturbado por um espírito mau enviado por Javé. Os servos dele saíram a procurar um harpista para, ao tocar, acalmar Saul.

Um dos servos diz conhecer um filho de Jessé que é belo, bem articulado e bom músico. Chega Davi, e é apreciado por Saul, que o toma como seu escudeiro. A cada crise de Saul o jovem responde com bela e apaziguadora música.

Filisteus e israelitas iriam se enfrentar. Um vale separava ambos os exércitos. Do exército dos filisteus adiantou-se um guerreiro de três metros de altura. Seu colete pesava mais de cinquenta quilos. Pesava seis quilos a ponta da lança de Golias.

Golias se disse filisteu, e chamou os inimigos de escravos de Saul. Mandou que escolhessem um adversário para ele. O derrotado faria com que seu povo fosse escravo do outro povo. Os israelitas tremeram.

Davi era um pastor de ovelhas. Seu pai lhe pediu para levar alimentos aos irmãos mais velhos, que estavam acampados diante dos filisteus. Ao chegar na linha de batalha, perguntou aos irmãos se eles estavam bem.

Davi estava presente no momento em que Golias fizera aquele desafio. Eliab, irmão de Davi, indagou a Davi sobre o que ele fazia ali, tendo deixado o trabalho de lado para assistir a luta.

Apresentando-se a Saul, comandante dos israelitas, Davi disse-se protetor de seu rebanho de ovelhas. Leões que pegassem uma delas eram por ele agarrados pela juba e mortos a pauladas. "Esse filisteu incircuciso, que desafiou o exército do Deus vivo, será como um deles."

Davi disse que Javé estaria com ele, para livrá-lo das mãos do gigante. Tentando mover-se com a armadura, Davi despiu-se. Pegou o cajado, cinco pedras lisas e a funda.

Golias riu de Davi. E sentiu-se ultrajado, como se sentiria um leão: "Será que sou um cão, para você vir ao meu encontro com um pedaço de pau?". Davi disse que Javé não luta com espadas, e que entregará os filisteus a ele.

Golias se aproximou devagar. Davi correu, ajeitou a pedra na funda, atirou-a na testa do gigante. A pedra afundou-se e derrubou seu alvo. Davi pegou a espada do gigante e decepou-lhe a cabeça.

Os filisteus tentaram fugir, mas foram perseguidos e dizimados pelos israelitas. Davi levou a cabeça de Golias até Saul.


Caravaggio viveu na miséria, como outros artistas de sua época (de qualquer época). Chegou a ser chamado para fazer obras com temas bíblicos. Com essas obras, ganhou algum dinheiro e prestígio.

Comentadores da vida de Caravaggio dizem-no violento. Uma vez, numa disputa amorosa, ele desafiou o rival para um duelo de espadas. A luta terminou com a espada de Caravaggio enterrada na virilha do outro.

A cabeça de Golias seria a sua própria, sendo entregue. Caravaggio matou, era um bruto, e a delicadeza fraca da lei o apanhara. O bruto estava perdido, com a cabeça pega pela pequena mão do rapaz seguro de si e amparado por Javé.

Caravaggio foi um pintor sofisticado e um vagabundo. Atualmente fazemos inúmeros vídeos, cada um na intenção de expressar algo. Caras, bocas e músicas são preferidos mais do que textos ou pinturas. A imagem em movimento promete ter um sentido movente, significar mais coisas do que a imagem parada.

Uma imagem de Caravaggio dá um longo texto. Nos temas bíblicos o pintor encontrou o muito sendo dito em poucas palavras. Davi e Golias é uma história da Bíblia e uma história de Caravaggio.

Nenhum leão pegava a ovelha de Davi. Javé sempre esteve com ele. O pastor Davi protegeu suas ovelhas da escravidão. Cortou aquele que quis apossar-se delas.

Ele, um jovem magro, mas bonito como um deus. Em nada altivo, preso ao chão feito uma ovelha. Um homem ou um exército, por maior que fossem, não tinham o direito de pegá-lo. Também estavam no chão, embora não vissem isso.

Só Javé estava acima de Davi, e o protegia porque Davi via isso. Para Davi só existiam as ovelhas e Javé, as primeiras para serem cuidadas por ele com a ajuda do segundo. Ele mesmo era protegido.

Davi não era um homem que buscasse se destacar do seu exército, para lançar desafios. Golias, não fosse tão grande, teria passado uma vida de brigas, para se destacar dos outros. Seu tamanho facilitou que ele fosse um bruto sem disputas. Ele vencia só ao ser visto. Apanhava seus inimigos pelo tremor que causava.

Golias teve a cabeça cortada e trazida pela mão de Davi, à altura da cintura do jovem. Ao rés do chão, os olhos do gigante se perdiam.

Ao se colocar na mão de Davi, Caravaggio posicionou-se abaixo de uma lei. O que demonstra isso não é apenas a sua cabeça sendo entregue, mas a sua cabeça estando na altura da cintura de Davi. Acima dele agora estava a expressão serena e severa de Davi. E acima de todos estava Javé.

Reis, brutos, todos os que se considerassem grandes seriam carregados pela mão de Davi, trazidos à real estatura deles. E ao fazer isso, Davi se punha como mediador entre eles e quem está acima de todos.

O Antigo Testamento fala que não pode haver homem maior do que homem, e que para que isso ocorra deve-se obedecer a Javé. Não estranhe, pois não é necessário tomar Javé como um homem, e como ou opressivo ou um privilégio pessoal obedecer a ele.

Você pode tomar Javé como um princípio de vida, uma ética. Esta é uma visão desumanizada de Deus, e que coloca ao homem a questão da sua estatura e limites.

domingo, 17 de julho de 2016

Homem: criatura e criador, criador e criatura.


Ouvi de minha mulher uma história engraçada: um garoto perguntou à mãe de onde vem o homem. De Adão e Eva, respondeu ela. O garoto diz ter ouvido do pai que o homem veio do macaco. A mãe responde que a família do pai dele é que veio do macaco. A dela veio de Adão e Eva.

Peter Sloterdijk, em seu livro "Regras para o Parque Humano", comenta o que Heidegger diz na "Carta sobre o Humanismo" sobre a essência do homem. Para Heidegger, o pensamento europeu não se colocou apropriadamente a questão dessa essência. Uma definição lançada para o que é o ser do homem, a de que ele é um animal racional, apresenta-o como aparentado aos animais, porém com um adendo metafísico ou espiritual.

O homem aparece aí como ao mesmo tempo pertencente ao reino dos seres vivos e o ser vivo superior. A Heidegger importa denunciar o quanto de mal foi causado por esta ideia a respeito do homem, acabada sob a forma de humanismo: ela levou o homem a buscar o controle de tudo, inclusive de si mesmo, certo dos poderes da razão.

Afastando-se do vitalismo e da metafísica, Heidegger diz, a respeito do homem, que "é como se a essência do divino estivesse mais próxima de nós que a desconcertante essência dos seres vivos" (Carta sobre o Humanismo). Os animais chegam a seus ambientes e neles devem sobreviver. Eles apresentam engenhosidades na criação dos seus meios de vida. O homem também faz isso. O homem, contudo, tem uma essência completamente distinta da do animal: ele tem um mundo, e está no mundo. Ele não é um animal num ambiente.

O essencial do homem é que ele, por possuir linguagem, é convocado a ser guardião do ser. Há um ser do homem que corresponde a uma fraternidade humana antiga, uma comunhão de fala. Cada homem é existente ao ser posicionado como amigo dessa humanidade antiga, ou seja, aquele escuta e fala pelo ser do homem.

A definição do homem se libera, então, do aparato metafísico e vitalístico. E, se se aproxima do divino, é pela ideia de que o homem é criador do mundo, do mundo em que vive.

As teorias do Big Bang e a do Evolucionismo são as principais das ciências naturais. O Papa Francisco levou adiante a consideração da Igreja de que elas são verdadeiras, afirmando que a forma primeira tanto do universo, quanto das espécies animais, originou-se de um criador (http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/10/1539614-teorias-do-big-bang-e-evolucao-estao-corretas-diz-papa-francisco.shtml). A partir do trabalho deste criador, o desenvolvimento de ambas ocorreu como o descrito pelas teorias.

Em sua encíclica Laudato Si, o Papa relembra que o homem é uma criatura responsável pelo que há no mundo. Ele tem capacidade de empregar e de às vezes modificar os processos naturais. Mas não pode agir como um explorador. Deve ser um guardião, criar condições para que a vida do ambiente, como um todo, seja bem cuidada e frutifique. Deve zelar por toda espécie viva, e isso inclui a espécie humana. É só assim que ele conseguirá viver dignamente.

Voltando à anedota do início deste texto, podemos dizer que o evolucionismo (que não afirma que viemos dos macacos, mas de formas longamente desenvolvidas e transformadas, que antecederam os macacos, passaram por eles e ganharam outros desenvolvimentos) nos sugere uma ética de respeito à vida na Terra, vida na qual nos inserimos.

Mas este respeito não é o de um ser dotado de um acréscimo espiritual especial, que porventura o fizesse superior a todos os outros seres, inclusive aos homens apontados como "insuficientemente razoáveis". Pelo Papa e a Igreja, o homem é uma criatura com a missão de ser guardiã da vida.

Por Heidegger, o homem é o guardião do ser, que fala longínqua e baixinho pra ele a essência, o ser de cada coisa. Com voz sutil, o ser chama o homem para fazer parte da antiga comunidade humana de criadores de mundos. E é num mundo criado por um homem, que este mesmo homem é criado.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

O homem cansado e o sol


Aquele que tem algo para dar o faz sem requisitar nada em troca. O sol. O rei. O joalheiro. O escritor. Eles lançam seus produtos e sorriem. Não param para ver as reações das pessoas.

Quando lhes chega algum elogio, eles agradecem, enquanto dizem para si mesmos: "sim, eu já sei disso". O que alguém tem a lhes dizer sobre as coisas que eles lançam é menos importante do que essa certeza interna deles.

Uma moça de 19 anos está em seu primeiro emprego. Ela fez o treinamento, passa pelo segundo mês. O trabalho a deixa desconfortável, ela é obrigada a fazer o que não gosta.

Desde antes começar ela dizia para si mesma que faria tudo direitinho. Agora passa por sua cabeça conseguir um outro lugar para fazer isso mesmo, tudo direitinho. Um lugar em que ela não se sinta desconfortável.

O jovem é como o sol, que manda seus raios com esbanjamento, e permanece intocável. Qualquer sinal contrário ao que ele faz, qualquer sinal de censura, é um incômodo.

Nietzsche apresenta o tipo forte como aquele que se lança energicamente sem interrogar-se quanto ao que faz, sem ter a reflexão auto-censuradora do fraco.

Um cara já passado dos trinta diz para aquela moça que ela não deve desistir facilmente. Ele já trabalhou muito sem se importar com o pagamento que recebia. Mas sempre lhe importou o que lhe diziam, ou melhor, o que ele mesmo se dizia: era preciso fazer o bem às pessoas, para ter o sorriso delas.

Ele não foi um jovem como aquela moça. Faltou a ele ter dado de si, por si mesmo. Feito o que queria, e ter na própria sensação de fazer algo bem feito o seu pagamento. Aonde isso teria dado? Eu não sei.

Não sei se com quinze anos disso hoje ele estaria sendo bem pago por "trabalhar com o que sonhou". Talvez ele estivesse no mesmo trabalho em que está hoje. Mas ele não estaria dizendo à moça para ela não desistir facilmente daquele trabalho, nem de nenhum outro. Não há trabalho que possa recompensar suficientemente uma pessoa que é como dizem, "de brilho próprio". Uma pessoa assim nem pensa nisso.

O cara estaria dizendo à moça para ela não deixar-se interromper por ninguém. Nem por si mesma, se ela estiver buscando a aprovação dos outros. Ela deve ser como ela é, e expandir-se cada vez mais.

Um dia ela chegará aos trinta, aí sim com um pé atado numa família, pela corda do amor. Estará preocupada com o trabalho. Mas se lembrará dos tempos em que cruzou o céu rápido feito raio.


Ps.s: Neste texto inspiro-me nas ideias de Peter Sloterdijk, apresentadas pelo filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. Leia "A sociedade da generosidade de Peter Sloterdijk: http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/sociedade-generosa-de-peter-sloterdijk.html

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Pelo fim da expressão "Pelo fim da cultura do estupro"



Cultura pode ser entendida como o conjunto de hábitos, costumes, ideias, valores, normas e leis de uma sociedade. Um elemento da cultura brasileira que eu poderia destacar, aquilo que é comum aos brasileiros e que perpassa os diferentes grupos em que eles porventura venham se dividir, é um certo modo personalista para lidar com fatos e situações.

Quando o morador da casa ao lado estaciona o carro na frente da sua garagem, você toca a campainha dele para pedir que retire o veículo. Você faz isso ao invés de chamar a polícia. A conversa com o vizinho facilmente descamba para outros assuntos, e acaba ocorrendo um convite para um churrasco.

Este jeito "amistoso" de lidar com situações que poderiam ter um tratamento institucional leva o brasileiro a muitas vezes burlar a lei, esperando justamente que o outro venha resolver com ele de forma amistosa. Há uma expectativa de que o outro tratará inclusive de prejuízos sofridos de forma personalista.

Essa característica da nossa cultura leva ao enfraquecimento da nossa adesão à lei. Seja eu o reclamante ou o reclamado, penso na possibilidade de, não havendo um entendimento entre as partes, trocar agressões com o outro.

Tal costume cultural leva também a abusadores contumazes do direito do outro, e que se cercam de uma aura de "bravos" para que ninguém venha se queixar com eles. Baseando-se nisso também se formam quadrilhas que agem pela "camaradagem" e pela intimidação muda. É o caso do policial que é simpático com o dono da lanchonete, mas espera um perfeito silêncio acerca da propina que o obriga a pagar.

A todo momento ocorrem casos de abusos contra a mulher. Esses abusos, para ocorrer, precisam deste aspecto da cultura que é o silêncio diante do poder. O homem que canta a mulher na rua não é um abusador, pois age às claras. A propaganda com a mulher de biquini não incentiva o abuso ou o estupro. Pelo contrário, a mulher que se exibe e é valorizada passa a se ver e a ser vista como possuindo alguma força.

A mulher do outdoor sabe que, quanto mais é vista e apreciada, mais confiante se sentirá. E mais os homens farão coisas para se submeterem a ela.

A mulher submetida é aquela que se esconde, não se exibe e silencia quanto ao que deseja. Ela encontra um homem que se dá a liberdade de dominá-la, impor sobre ela as vontades dele.

Uma reação ao silenciamento pelo poder, e também uma característica cultural nossa, é a grita contra aquilo que parece ser o agente do poder. Há gritos denunciadores os mais diversos: contra o racismo, contra a pedofilia, contra a cultura do estupro.

Pegando o caso deste último, aponta-se as propagandas, as cantadas, as violências, as piadas que tenham como objeto a mulher como partes da "cultura do estupro".

O estupro não faz parte da nossa cultura. Ninguém se colocaria num espaço de conversa dizendo que estuprou ou que estuprará alguém. Mesmo em grupos de homens que pratiquem abusos de poder contra outras pessoas a conversa sobre um estupro, ou mesmo um assassinato que cometeram, ocorre à boca pequena. Eles não dizem isso abertamente, sabem que é uma prática que não é aceita, nem por eles.

Por isso, o estupro não chega a fazer parte da cultura. Mas o silenciamento para o exercício do poder, sim, faz parte. E esse silenciamento de quem exerce o poder é que deve ser combatido.

A campanha "pelo fim da cultura do estupro", ao bater em práticas que se mostram, inclusive as da mulher que se sente bonita e gostosa na propaganda, desvia a atenção do problema e ainda persegue quem não tem culpa.

A grita, ao não discernir aquilo que provoca os abusos daquilo que não tem nada a ver com eles e, no caso da mulher na propaganda, antes contribuem para acabar com eles, leva à outra forma de violência, oposta à da ação escondida, que é a reunião de um sem número de pessoas para linchamentos presenciais e coletivos.

Pessoas que gostariam de formar quadrilhas para agir na surdina para exercer suas vontades, ao perceberem que há uma fala mais ou menos geral defendendo aquele mesmo ponto de vista, saem da toca e atacam em bando. Aparecem não como os agressores que são, mas como "vítimas de agressão".

Pessoas descontentes com a lei, inclusive com a lei que pune seus políticos favoritos, unem-se para atacar juízes, quando percebem que há muitas pessoas discordando das decisões destes juízes. Não se importam de serem filmados. Antes querem isso.

Policiais militares que em situações normais escondem as torturas e execuções que cometem em favelas, no anos 90, quando os jornais diziam que a criminalidade estava elevada e que a população carioca estava com medo, saíam diariamente em notícias de jornais dizendo de execuções.

A maior parte das pessoas, porém, não está à espera de uma oportunidade para exercerem livremente suas maldades. Elas querem dar suas opiniões. A grita "pelo fim da cultura do estupro" é fácil, arrebanha muitas pessoas pois não exige discernimento a respeito de se existe mesmo uma "cultura do estupro", ou de quem seria o seu perpetrador ou elemento facilitador.

Carrega pessoas até bem intencionadas, querendo a redução da violência contra a mulher. Mas obtém o efeito contrário, fazendo os verdadeiros abusadores se esconderem ainda mais, junto de suas vítimas.

Esta campanha também desestimula que as mulheres prossigam na exibição da sua beleza, o que as tem levado a sentirem-se à vontade na sociedade, e a estudarem e a trabalharem mais, com mais reconhecimento.

A saída da situação de silêncio para a de fala e militância precisa vir acompanhada com estudo e reflexão. Ou apenas se estará trocando a barbárie oculta pela barbárie aberta, tão ignorante quanto e com maior poder destrutivo pois, sendo comunicável, traz mais gente para cometê-la.

Mas dizer isso que estou dizendo pode levar-me a ser acusado de opressor, por aquele que não gosta de estudar e pensar.

terça-feira, 12 de julho de 2016

A verdade está no fim da história


Ao final de uma história espera-se ouvir uma verdade. Uma frase, um fato, dão um sentido que valerá para a história inteira. Faz algum tempo que ninguém leva a sério grandes narrativas. Ninguém se conduz mais, individual ou coletivamente, por grandes ideias. E se o faz, o restante dos indivíduos o considerará descabido.

Nossas vidas não têm um sentido dado de antemão. É preciso percorrê-la. Não! É preciso chegar ao final dela, para saber do que se trata. Procuro o sentido da minha vida no meu último suspiro. O que causou a minha morte, o que eu estava fazendo ou como eu estava, na vida, quando a morte chegou, são os elementos que meus observadores tomarão para dizer como eu vivi, ou quem era eu, quando vivo.

É pelo desejo de ser um observador da própria vida, inclusive, que se se adere ao espiritismo. "Os espíritos observam os vivos" ou "os espíritos carregam os estigmas do males que cometeram, e do modo como morreram". Quem crê em espíritos crê em algo com o poder de observar a si mesmo após a própria existência ter se encerrado.

O final de uma história é sempre tomado como a verdade dela, a sua revelação. Tudo o que havia de ser dito já o foi, tudo o que precisava ser feito, já o foi. O que ficou sem ser dito ou feito não era importante, no sentido de uma "verdade do ser". Nossa ideia de verdade tem, portanto, como um de seus sentidos, o de finalização.

No caso da pastora cujo filho foi abusado pelo ex-marido, comentou-se que antes disso ela parecia feliz ao lado dele: diz-se que ambos pregavam para milhares sobre como Deus havia sido generoso com ela, curando-a de uma grave doença e fazendo-a encontrar o amor e um pai para seu filho. Deus a ajudou, levou-a a uma situação que ela tomava como a final, de sua vida.

"Deus me deu essas coisas, então estou realizada. Só não morro agora que é para aproveitar toda essa graça. Mas minha vida permanecerá igualzinha até o fim dos meus dias." Entende-se Deus como um agente finalizador da vida do homem, aquele que dará o último retoque, nele. É como se Deus, tendo criado o homem, fê-lo perfeito, mas a vida que este levou provocou máculas, ou fê-lo desenvolver-se de modo meio torto. E que apenas Deus pode rearrumá-lo.

A ação de Deus entra, aí, como algo que fará o que é definitivo na vida do homem. O homem é acidental por natureza. Ele muda de ideia, de vontades. O homem não é uma boa referência para o próprio homem encontrar a Verdade.

Quem toma a ideia de Deus para entender o que houve com a pastora utiliza a ideia de um agente finalizador, alguém a quem se imagina com poderes de encerrar uma vida, de destruí-la ou de salvá-la de uma vez por todas.

O homem se engana e leva as demais coisas ao engano. Ele não sabe quando morrerá, quando o que fará terá um peso tal sobre a sua vida que acabará resultando em sua morte ou em seu eterno reconhecimento pelos outros.

O homem também não consegue limitar-se, por um fim às coisas: crianças brincam o dia e a noite inteira, se deixarmos. Mas de vez em quando há cortes, momentos em que elas dizem "nunca mais vou brincar com você". O ser da continuidade tenta colocar um limite absoluto para si mesmo. "Estou falando sério." "Segunda-feira sem falta começo na dieta". Mas dali a pouco voltam a brincar, e do mesmo jeito que deu a confusão de antes. Estão rindo, não existem limites em ninguém ali. Até que novamente inventam de querer colocar um novo limite.

Crianças se desentendem para criar um tempo para respirarem da brincadeira, que tira o fôlego delas. Entre adultos, um faz e recebe brincadeiras do outro. Se eles não estivessem ali, um com o outro, achariam estranhas essas mesmas brincadeiras. Elas fazem sentido quando o corpo é tomado pela vontade de continuar sendo o par de outro corpo, no frescobol.

Enquanto estão brincando, ninguém diz quem está certo ou errado. É um bobão o garoto que diz ser o dono da bola e sai com ela embaixo do braço. Está fora da brincadeira. Sim, ele está certo em dizer que é o dono da bola. Ele diz essa verdade como uma Verdade. E a joga na cara dos outros que, enquanto jogavam com a bola, estavam sendo os donos dela.

O garoto bobo, que cansou de perder, coloca uma Verdade que não tem nada com aquela situação.

O homem cria sua vida para continuar vivendo dentro da vida que criou. Ele diz que essa criação é conclusiva: "Estou realizado". Ou atribui esse estado dele ao divino: "Deus me abençoou.". Mas, enquanto ele vive, as coisas vão ameaçando de mudarem.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

"Foi tudo mentira."


Há uns dias ouvi de algumas pessoas a informação de que uma pastora evangélica teve o filho de cinco anos abusado sexualmente pelo marido dela, também pastor. Essa notícia a ouvi acompanhada dos seguintes comentários: "ela é uma sofredora", referindo-se a outras situações ruins por que já havia passado aquela mulher, e também "é por isso que não deixo meu namorado ficar com o meu filho. Vai que...", ou ainda "ele era viado!", entre outros.

Ontem eu vi este caso da pastora sob a forma de notícia, em jornais (http://extra.globo.com/casos-de-policia/bianca-toledo-fala-sobre-caso-de-suposto-abuso-contra-filho-estou-doendo-mas-aprendendo-muito-19661806.html). Aqueles que o haviam me contado explicaram-me que ela é conhecida entre os evangélicos. Eu não a conhecia.

Nos jornais impressos, uma foto de pequena a media fazia a chamada para o ocorrido. Os teatros de revista, depois as novelas e agora os vídeos e postagens de internet são palcos de exibição de personagens. Assiste-se a eles para experimentar algo próximo de ver o próprio mundo familiar sendo abalado por um acontecimento e trazido de volta para o lugar, no fim da trama.

É como a história da Chapeuzinho Vermelho, que começa em casa e com planos de apenas levar doces à vovó, e algo ocorre na trajetória da menina. E no final Chapeuzinho, vovó e, lógico, mamãe, ficam salvas.

Hesíodo¹, antigo mitólogo grego, contou que no início do universo havia o Caos, a separação confusa das coisas. Eros, um dos deuses primordiais, tem uma força de fazer as coisas unirem-se, arranjarem-se. Ele proporcionou a organização do universo, transformou o Caos em Cosmos.

As histórias que contamos têm essa lógica: uma ordem inicial é quebrada por um acontecimento, e sobre ele se impõe uma força organizadora, e a ordem é restabelecida; ou uma desordem inicial, uma primeira situação de sofrimento, como a que há na história da Cinderela, por exemplo, é enfim solucionada.

Busca-se o cosmos, o universo ordenado. Busca-se o lar, o mundo próprio, a intimidade composta pelos elementos que são fundamentais para o sujeito².

Estamos na época da internet, que é a do indivíduo, com o seu eu, sua opinião e seu próprio canal de comunicação. Não é tanto a época da massificação, dos mesmos famosos para todos, num único palco. Os palcos e os famosos hoje são inúmeros, de modo a que fica-se sem conhecer alguém que, para determinada pessoa ou grupo, é muito conhecido, é alguém que se apresenta num palco muito visto e comentado.

O caso da pastora causou perturbação em quem a conhecia. De quem escutei sobre ele, percebi esse sentimento. Ouvi que há algum tempo ela tinha uma grave doença. Ela foi curada, tornou-se pastora e casou-se com um homem que também era pastor. Este homem jurava-lhe amor. E era um bom pai para o filho que ela já possuía antes de relacionar-se com ele.

Esta história parecia bem arrumada, pronta para que sobre ela se escrevesse a linha "happy ending". A pastora possuía o que todos imaginam como um paradeiro seguro e confortável, o fim de qualquer história que comece triste. O melhor lugar para se morrer, inclusive.

Mas aconteceu de o pai abusar do filho. Os comentadores rapidamente passaram a chamar estes dois de "padrasto" e "enteado". Aconteceu de a pastora dizer que o marido, também prontamente vertido em "ex-marido", era "homossexual" sem que ela tivesse descobrido antes.

O caos se instaurou. A ideia de lar, que é a de aconchego e proteção, não comporta esses acontecimentos. E eles são identificados como "pedofilia", "crime", "separação", "mentira", etc. Sem olhar para a própria família, mas para a sociedade, associa-se "pedofilia" e "homossexualidade", pois a "homossexualidade" passa a receber o sentido de "disposição para enganar".

Ao se identificar os acontecimentos, procura-se salvar a ideia de lar, colocá-lo de um lado e isso tudo o que ocorreu, de outro. É por isso que o homem, de "marido" e "pai" passou a "ex-marido" e "padrasto": na fala dos comentadores, ele enganou aquela mulher, e por eles terem um público grande, falarem para plateias virtuais e presenciais, em igrejas, ele enganou a todos.

A pastora apresentou-se enganada, ao próprio público. Alguém ria por detrás dela. Alguém ria por detrás de cada fã. Todos os bons sentimentos do público basearam-se em falsidades. É como se só viéssemos a saber que a vovó na verdade era o lobo mau disfarçado quando fosse tarde demais para a Chapeuzinho.

Daí depreende-se outra característica dos contos de fada: o mal sempre é conhecido do público, que o acompanha de forma transparente e aguarda ansioso a hora de as forças dele extinguirem-se. Insuportável é o mal oculto, pois ele só se revela quando o estrago já está feito. Ele ocorre no final da história, não deixando tempo de se salvar.

O temor pelo engano, que resulta no "sad ending", nos faz dizer "não confio no meu namorado com o meu filho", ou que "tem que ficar bem de olho para ver se o homem é gay!". Mulheres com filhos e sem maridos continuarão a procurar novos maridos e pais para os seus filhos. Mas elas dirão aquelas frases como medidas para se precaverem de começar uma história achando que ela terminará bem, quando tem chances de terminar mal.

Não é possível assegurar-se de que qualquer história terminará bem. Nem de que terminará mal, também.


1 - Hesiodo. Teogonia.
2 - Peter Sloterdijk. Esferas I.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

A vontade de fazer o bem


Uma família de mendigos morando na frente do seu prédio. A cidade tem um nome "cidadão" para falar sobre eles: moradores de rua. Um tratamento social, ou seja, destinado a quem não se conhece e não se deve tratar mal.

Mas é possível morar na rua? Aquela família fez uma casa de papelões. A casa é montada à noite, e desmontada de manhã, pois ninguém pode ficar morando em local de passagem. À noite eles realmente moram lá. De dia, recebem olhares tortos de quem vê "mendigos".

Usei esta palavra para trazer os sentidos que vêm com ela: vagabundo, sujo, coitado, vítima, malvado, solitário, bêbado, doente, herói, etc. Esses sentidos a expressão "morador de rua" não traz.

Sentidos são formadores de climas entre pessoas. Levam a emoções, ideias e ações. Os sentidos do mendigo, contudo, dificilmente resultam em comportamentos diferentes do "social": os passantes olham com pena, com nojo, com medo, ou por esses motivos desviam o olhar, e seguem o passo. Essa frieza faz com que se fique, mesmo, com a expressão "morador de rua".

Ninguém para e se aproxima deles. Quando o faz, é de forma atabalhoada, com a mão tremendo de insegurança pelo bem ou pelo mal que está prestes a cometer. A mão querendo logo ser recolhida e as pernas querendo logo andar.

Em Santo Agostinho poderíamos dizer que a boa vontade, que é uma vontade da alma, que pode ser, por exemplo, a de fazer uma doação a um pobre, consegue por um momento fazer com que os membros se movam no seu intento. E que a má vontade, a resultante do eu que quer satisfazer a uma necessidade própria, que é a de se "salvar do mendigo", "agredir o mendigo" ou "jogar um pão no mendigo", não é da alma, mas dos próprios membros.

A alma tenta fazer sua vontade sobrepujar a dos membros, ou seja, a reflexão e os objetivos nobres tentam ser mais fortes do que a ação afoita e empregada para vontades que não podem se satisfazer. E as vontades do corpo são conflitantes entre si: da mesma forma que o braço se estica para o mendigo, ele treme e se recolhe rápido, enquanto a perna se aquece para correr.

Se você me perguntar o que fazer em relação aos mendigos que moram na sua porta, direi que faça o que tiver vontade. Com isso não estou sugerindo que você faça o que quiser com eles, deixar o corpo agir de forma invasiva ou bruta. Estou dizendo que sua ação depende da vontade que você sentir em relação aos mendigos e, ao dizer isso, ponho em relevo para você mesmo a sua vontade.

Faça o que tiver vontade. Qual a sua vontade?

Rute é uma personagem do Antigo Testamento. Havia um homem de Belém de Judá que, pela extrema carestia de sua terra, foi com a mulher e os dois filhos para os Campos de Moab, em busca de qualquer melhoria de vida. Em Moab, esse homem morre. Os filhos casam-se com mulheres Moabitas.

A situação daquela família, contudo, se agrava. Os filhos também morrem, deixando a mãe Noemi e as duas noras. Tendo perdido tudo, Noemi decide retornar a Judá. As noras falam da intenção de acompanhá-la, mas Noemi diz que aquele fardo é apenas dela. As noras, sendo jovens, poderiam conseguir outros maridos.

Uma das noras então se despede. Noemi, então, dirige-se à nora que permaneceu:

"'Veja: sua cunhada voltou para o seu povo e o seu deus. Volte você também com ela.'
Rute respondeu: - 'Não insista comigo. Não vou voltar, nem vou deixar você. Aonde você for, eu também irei. Aonde você viver, eu também viverei. Seu povo será o meu povo, e seu Deus será o meu Deus. Onde você morrer, eu também morrerei e serei sepultada. Somente a morte nos poderá separar. Se eu fizer o contrário, que Javé me castigue!'"

De volta a Judá, Noemi diz a Rute que um parente próximo dela é um grande comerciante na cidade. Havia, naquele tempo, um direito chamado "direito de resgate": ele dizia que pessoas pobres que precisassem vender os bens que possuíssem, de modo a obter algum dinheiro, tinham o direito a que os parentes mais afortunados tivessem a primazia para comprar esses bens. Deste modo, os bens não se perdiam completamente dos vendedores.

Esta lei existia para evitar abusos econômicos. Naquele momento, Israel buscava se organizar econômica, política e socialmente, de modo a que o povo não se esfacelasse, ou vivesse em relações conflituosas ou situações de opressão.

Noemi disse a Rute que Booz poderia comprar as propriedades dela. Rute pede para ir ao encontro de Booz. Rute encontrou o homem em uma plantação de milho, propriedade dele, coordenando o trabalho de muitos homens. Ela se pôs atrás de todos eles, e começou a catar as sobras.

O grande trabalho dela, mesmo com restolhos, produziu uma colheita considerável, que ela levou para a casa de Noemi. No dia seguinte, Booz novamente presenciou o grande esforço daquela mulher estrangeira. Ele disse que ela poderia servir-se da água dos outros, e ordenou a eles que deixassem mais espigas sobrarem para ela.

Naquela noite, Noemi diz a Rute que Booz, ainda pelo direito do resgate, também poderia adquirir ela mesma, Rute. Noemi a aconselha a esperar Booz comer, embriagar-se e deitar-se, para então ela ir deitar-se ao lado dele.

Na noite seguinte, Rute cumpre o plano. De madrugada, porém, Booz acorda assustado com aquela mulher. Ele diz que não tocará nela. Ele não se aproveitará de Rute, sabendo que Noemi possui um outro parente mais próximo do que ele próprio, com primazia no direito do resgate.

Ele enche uma saca de cevada para Rute e a faz sair antes de clarear, para que ninguém a veja. No dia seguinte, Booz conversa com aquele outro homem. Dizendo que, além do terreno de Noemi, ele deverá ficar com a nora dela, o homem declina no direito do resgate, afirmando que a união com Rute atrapalharia a herança dos filhos que ele já possui.

Booz então aceita comprar o terreno de Noemi. E para aceitar ter Rute como esposa, Booz diz ao povo que fará valer um outro direito de Israel: o do levirato, que diz para um parente próximo de um homem morto, sem filhos, casar-se com a viúva dele, de modo a que o nome dele não seja apagado.

Booz teve um filho com Rute, e a linhagem de Elimelec-Quelion pôde continuar. Aquela criança é herdeira das propriedades de Booz. E também pertence à linhagem de Elimelec-Quelion.

O bebê é enviado a Noemi, que o considera um filho. O nome dele é Obed, e ele será pai de Jessé, que será pai de Davi, que será rei de Israel.

Uma estrangeira foi abraçada por Israel. Javé fez com que a saída dela da casa dos seus pais, e o casamento que ela fez entre o seu destino e o da desafortunada Noemi, fosse recompensado. Pelo levirato aplicado junto do direito ao resgate, os bens que Noemi venderia a um familiar continuariam a ser diretamente dela. Isso porque Rute, mesmo sendo esposa de Booz, representava Quelion.

Ao decidir acompanhar sua sogra a Moab, Rute mostrou uma vontade maior do que interesses pessoais. Nada, exceto a vontade de fazer algo por Noemi, poderia explicar o desprendimento dela do seu povo, a ida para uma terra estranha e já sabida como sem recursos.

Rute agiu pelos planos de Noemi, planos estes que intencionavam não apenas salvar a própria pobreza, mas também daquela que insistia em ser sua nora.

Noemi levou adiante a ideia de que Booz comprasse os terrenos do seu filho. Mas viu que ele demonstrava apreço por Rute. Booz, contudo, não se deixou levar pela vontade de possuir aquela mulher. Antes procurou ser correto no encaminhamento do direito do resgate de Noemi, chamando o parente mais próximo dela. Se esse homem aceitasse adquirir tudo o que era do filho de Noemi, ela perderia, além da posse direta dos terrenos, também a linhagem do marido e do filho.

Para uma reorganização do mundo de Noemi, aquele homem abre mão do direito de resgate, e Booz o assume. A vontade de Rute e de Booz, a primeira em juntar-se a Noemi, o segundo em procurar a quem de direito cabia o resgate, não usufruindo da chance que lhe caíra no colo, de ter o terreno e Rute, são incompreensíveis se considerarmos o eu, seus planos e vontades.

Na primeira oportunidade que tem, o eu não titubeia em agarrar o que quer, seja uma espiga de milho, um saco de ouro ou uma bela mulher que venha se deitar com ele. E também, na primeira oportunidade que tem, o eu quer escapar de tudo o que lhe cheire a miséria, decadência, gente lhe pedindo coisas.

O eu não quer compromisso com nada que saia dos planos dele. E vê no estrangeiro, ou no desconhecido, uma ameaça de ruína. Na cidade somos desconhecidos uns dos outros. E tememos perder coisas, pela simples conversa com alguém. É um medo do compromisso que isso gera, da possibilidade de comprometer-se a ajudá-lo, caso perceba uma necessidade dele.

Rute se comprometeu com Noemi, mãe do seu marido morto. Booz se comprometeu com ambas, mulheres que ele conhecia de pouco a nada. Os habitantes de Judá reconheceram que Rute entregara-se ao que acontecesse com Noemi.

Cada um deles agiu não por vontades particulares, mas para fazerem o que lhes parecia o certo a se fazer. E o certo, aqui, é algo que definiria os rumos de cada um deles. Ele é assumido pela vontade da alma em fazer da vida uma situação de duradoura paz, ou melhor, e por exemplo, de equilíbrio entre ricos e pobres.

É isso que Javé quer. É isso que a alma tem vontade de fazer. Mesmo a uma alma que se veja como laica, a força da vontade de paz, de equilíbrio, de justiça e bem para todos é algo muito forte.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Os prazeres do morto


Está além dos nossos poderes impedir a morte de alguém querido. Internamos um doente, ou ministramos a medicação com todo o cuidado. Mas se a doença quiser, ela ganha. Ganha rápido. A velhice é outra que sempre vence, embora mais lentamente.

Isto são fatalidades. Acidentes também ocorrem quando querem, embora a ocorrência deles dependa de uma ação humana sem a intenção de causar aquele mal. O homem agiu mal, cometeu alguma imprudência.

Mas na doença o homem não fez nada. A doença ou a velhice vieram comendo o corpo até que ele desligasse. Desligou antes de ser completamente comido. E se deixarem o corpo lá, ele vai terminar de ser devorado, transformado em corpo novo, tomado pela doença.

Doença é o mau funcionamento do que consideramos corpo. Mas o corpo totalmente tomado pela doença torna-se um outro corpo. A vida do primeiro corpo cessou, e começou a vida do segundo. O corpo de um defunto é totalmente duro. A pele fica acinzentada. Ele vai se decompor, vai acabar mais rápido do que acabou o primeiro corpo.

Esta é a vida após a morte. Não se fala dela. Fala-se de viagens, carros, trabalho, comida, sexo, mas só se fala em vida quando se lembra da morte desta vida. Nesta hora, a respiração falha, o coração pára, e o outro faz uma violenta massagem para religar. E religa. O vivo continua, sai do hospital.

Ele não consegue andar, não consegue falar rápido, não pode comer doce ou fumar. Ele está vivo. Não é mais o homem. Não é mais aquele que saía, dançava, ganhava dinheiro, sentia sabores. É um vivo. E com uma bela história atrás de si.

"Cada destino é apenas um estribilho que se agita em torno de algumas manchas de sangue." (Cioran, p.33) Ainda está vivo aquele grande homem. A todo custo os filhos o mantém vivo. É para eles provarem seu poder. E provar que não consideram o dinheiro mais importante do que ele, deixando tudo no hospital e em remédio.

O vivo tem medo de morrer, mas acharia muito melhor pegar uma parte daquele dinheiro e daquela energia que gastam com ele e irem farrear. Terem uma tarde com mulheres, salaminho e cigarrinho. No filme Ghost (Jerry Zucker, 1990), o fantasma com cara de quem morreu de câncer diz que daria tudo por um cigarrinho.

O homem tranquilamente entrega a si mesmo pelo prazer. O prazer que passa pelos sentidos, vira memória com poder de "reexcitar" um pouco o corpo, e então vira memória sem sensações. "Tendo câncer avançado, fumei gostosamente um cigarrinho". Até que aquele ser que fala acaba.

Condenados à morte nos EUA têm direito a uma última refeição. Freud, em Totem e Tabu, conta que o guerreiro que mata um outro guerreiro chora por esta morte. Ele não quer que aquele espírito lhe retorne o mal que lhe foi causado. O seu assassino mostra-se sentido com o que fez, e lhe faz oferendas. Nas sociedades tribais antigas se mantinha a crença de que os espíritos invejavam os vivos, justamente por eles terem o que lhes falta: a fruição das coisas.

Quando pensamos na morte, imaginamos uma vida sem a possibilidade de ter nada do que se gosta. Não nos vemos como os mais afortunados dos seres, mas sem dúvida nos consideramos mais afortunados do que os mortos. E essa diferença está na fruição de um e na carência de outro.

O que chamamos de morto pode ser, na verdade, um tipo de vivo. Sabemos, contudo, que ele não fala. E suponho que não se lembre da vida anterior. Há quem suponha que ele ainda se lembra, está em algum lugar para ficar lembrando e até sentindo coisas. E que os vivos que falam sentem esses vivos que não falam.

O vivo que não fala não pertence mais ao vivo que fala. Se ele por um momento falasse, o que seria? "Deixa eu dar um ponto final naquele trabalho, fazendo-o ganhar sentido para todo o mundo."; "Deixa eu pedir um remédio, sei lá, pra viver mais ou pra diminuir o açúcar do meu sangue, deixando-me comer doce." Bem, deve haver mortos neuróticos.

Mas também deve haver os que, ao terem visto que com toda a construção de uma biografia, de toda briga com a mulher amada, de toda renúncia ao prazer ou de todo cuidado com a manutenção da vida, inexoravelmente deixaram de viver, apenas pediriam o prazer transgressor de uma lei, de uma moral ou da saúde: tentariam roubar um banco, simplesmente beijariam a esposa, sem falar nada, fariam uma suruba ou encheriam a boca de brigadeiros.

O poder sobre o próprio prazer é algo a que abrimos mão, justamente por ser o único que verdadeiramente consegue o que quer.