sexta-feira, 8 de julho de 2016

"Foi tudo mentira."


Há uns dias ouvi de algumas pessoas a informação de que uma pastora evangélica teve o filho de cinco anos abusado sexualmente pelo marido dela, também pastor. Essa notícia a ouvi acompanhada dos seguintes comentários: "ela é uma sofredora", referindo-se a outras situações ruins por que já havia passado aquela mulher, e também "é por isso que não deixo meu namorado ficar com o meu filho. Vai que...", ou ainda "ele era viado!", entre outros.

Ontem eu vi este caso da pastora sob a forma de notícia, em jornais (http://extra.globo.com/casos-de-policia/bianca-toledo-fala-sobre-caso-de-suposto-abuso-contra-filho-estou-doendo-mas-aprendendo-muito-19661806.html). Aqueles que o haviam me contado explicaram-me que ela é conhecida entre os evangélicos. Eu não a conhecia.

Nos jornais impressos, uma foto de pequena a media fazia a chamada para o ocorrido. Os teatros de revista, depois as novelas e agora os vídeos e postagens de internet são palcos de exibição de personagens. Assiste-se a eles para experimentar algo próximo de ver o próprio mundo familiar sendo abalado por um acontecimento e trazido de volta para o lugar, no fim da trama.

É como a história da Chapeuzinho Vermelho, que começa em casa e com planos de apenas levar doces à vovó, e algo ocorre na trajetória da menina. E no final Chapeuzinho, vovó e, lógico, mamãe, ficam salvas.

Hesíodo¹, antigo mitólogo grego, contou que no início do universo havia o Caos, a separação confusa das coisas. Eros, um dos deuses primordiais, tem uma força de fazer as coisas unirem-se, arranjarem-se. Ele proporcionou a organização do universo, transformou o Caos em Cosmos.

As histórias que contamos têm essa lógica: uma ordem inicial é quebrada por um acontecimento, e sobre ele se impõe uma força organizadora, e a ordem é restabelecida; ou uma desordem inicial, uma primeira situação de sofrimento, como a que há na história da Cinderela, por exemplo, é enfim solucionada.

Busca-se o cosmos, o universo ordenado. Busca-se o lar, o mundo próprio, a intimidade composta pelos elementos que são fundamentais para o sujeito².

Estamos na época da internet, que é a do indivíduo, com o seu eu, sua opinião e seu próprio canal de comunicação. Não é tanto a época da massificação, dos mesmos famosos para todos, num único palco. Os palcos e os famosos hoje são inúmeros, de modo a que fica-se sem conhecer alguém que, para determinada pessoa ou grupo, é muito conhecido, é alguém que se apresenta num palco muito visto e comentado.

O caso da pastora causou perturbação em quem a conhecia. De quem escutei sobre ele, percebi esse sentimento. Ouvi que há algum tempo ela tinha uma grave doença. Ela foi curada, tornou-se pastora e casou-se com um homem que também era pastor. Este homem jurava-lhe amor. E era um bom pai para o filho que ela já possuía antes de relacionar-se com ele.

Esta história parecia bem arrumada, pronta para que sobre ela se escrevesse a linha "happy ending". A pastora possuía o que todos imaginam como um paradeiro seguro e confortável, o fim de qualquer história que comece triste. O melhor lugar para se morrer, inclusive.

Mas aconteceu de o pai abusar do filho. Os comentadores rapidamente passaram a chamar estes dois de "padrasto" e "enteado". Aconteceu de a pastora dizer que o marido, também prontamente vertido em "ex-marido", era "homossexual" sem que ela tivesse descobrido antes.

O caos se instaurou. A ideia de lar, que é a de aconchego e proteção, não comporta esses acontecimentos. E eles são identificados como "pedofilia", "crime", "separação", "mentira", etc. Sem olhar para a própria família, mas para a sociedade, associa-se "pedofilia" e "homossexualidade", pois a "homossexualidade" passa a receber o sentido de "disposição para enganar".

Ao se identificar os acontecimentos, procura-se salvar a ideia de lar, colocá-lo de um lado e isso tudo o que ocorreu, de outro. É por isso que o homem, de "marido" e "pai" passou a "ex-marido" e "padrasto": na fala dos comentadores, ele enganou aquela mulher, e por eles terem um público grande, falarem para plateias virtuais e presenciais, em igrejas, ele enganou a todos.

A pastora apresentou-se enganada, ao próprio público. Alguém ria por detrás dela. Alguém ria por detrás de cada fã. Todos os bons sentimentos do público basearam-se em falsidades. É como se só viéssemos a saber que a vovó na verdade era o lobo mau disfarçado quando fosse tarde demais para a Chapeuzinho.

Daí depreende-se outra característica dos contos de fada: o mal sempre é conhecido do público, que o acompanha de forma transparente e aguarda ansioso a hora de as forças dele extinguirem-se. Insuportável é o mal oculto, pois ele só se revela quando o estrago já está feito. Ele ocorre no final da história, não deixando tempo de se salvar.

O temor pelo engano, que resulta no "sad ending", nos faz dizer "não confio no meu namorado com o meu filho", ou que "tem que ficar bem de olho para ver se o homem é gay!". Mulheres com filhos e sem maridos continuarão a procurar novos maridos e pais para os seus filhos. Mas elas dirão aquelas frases como medidas para se precaverem de começar uma história achando que ela terminará bem, quando tem chances de terminar mal.

Não é possível assegurar-se de que qualquer história terminará bem. Nem de que terminará mal, também.


1 - Hesiodo. Teogonia.
2 - Peter Sloterdijk. Esferas I.

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