sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Psicologia pobre


Há manuais de psicologia que utilizam Foucault para criticarem a própria psicologia, dizendo que ela nasceu com base no “racionalismo cartesiano”. Em uma faculdade onde não se ensina Descartes, mas só os textos desses manuais, os alunos, a partir deles, já se sentem conhecedores de Descartes. A partir de um conhecimento de “ouvir falar”, os alunos já se sentem à vontade de comentar sobre Descartes, ou até criticá-lo.

Em uma matéria eletiva, também na graduação em psicologia, o professor apresenta um texto do Nietzsche. Nietzsche não quer ensinar a história da filosofia. São textos críticos, que pressupõem que o leitor saiba sobre o que ele está falando. É uma leitura que precisa ser feita só após outras terem sido feitas. Assim também são os do Foucault.

Naquela aula sobre Nietzsche, o professor conta que o filósofo está atacando a ideia de que existe um mundo além do sensível, onde possa haver um fundamento para a verdade. O aluno engole rapidamente todas as ideias que os professores lhe jogam, para depois vomitá-las na prova. Uma ou duas dessas ideias esse aluno escolhe para usar de camiseta.

Particularmente, lembro de quando eu estudava um autor de psicologia social chamado Serge Moscovici, que construiu sua teoria mais conhecida, as Representações Sociais, dizendo que elas eram formas de conhecimento dinâmicas, em comparação à “falta de dinamismo” das representações coletivas de Durkheim. O jovem bobo já criou uma antipatia pelo clássico da sociologia e da modernidade.

Deixar de lado o “sujeito racional”, para abraçar um “sujeito corporal”, está mais para a crítica do que o senso comum diz respeito de Descartes. Sendo assim, é uma crítica que é ela mesma senso comum. Esses alunos, e também seus professores, cometem o pecado de não lerem Descartes e Platão, e de falaram deles. Mais do que isso: deixam de ter o prazer e a formação que vêm destas leituras.

Qualquer diálogo do Platão é melhor escrito do que qualquer coisa que se encontre por aí. E também mais gerador de ideias, para o leitor que não faz como aquele aluno. Ler Platão, Descartes e Durkheim não são apenas preparatórios para Nietzsche e Foucault: é dotar-se de óculos para se enxergar a própria época, não importa a época em que se esteja.

Os que perdem os clássicos não têm condições de lerem os autores contemporâneos. Um leitor de Foucault, que também seja leitor de Platão e Nietzsche, pode fazer mais do que simplesmente entendê-lo: ele conversa com o Foucault, refaz o seu pensamento.

O fim do herói


O super-homem ajuda as pessoas. Ele é bom, no sentido que damos a esta palavra. Aquiles derramava os intestinos de parte daqueles com quem lutava. Da outra parte, ele trespassou a cabeça com sua lança. Ele é bom num sentido antigo, o de excelente. Nietzsche foi quem apontou essa mudança no sentido do bom, o que levou o homem a deixar de ser uma ave de rapina e a passar a ser um animal de rebanho.

Aquiles era o melhor guerreiro que já existiu, fazia o que nenhum outro homem podia fazer. Os gregos estavam encurralados e morreriam todos, não fosse a entrada dele no combate. Após matar Heitor, decidindo a guerra, Aquiles pôde morrer.

Cumprir um destino era ao mesmo tempo realizar um grande feito e chegar ao fim da vida do corpo. O momento final desta vida vem pelas mãos de um inimigo que ataca sorrateiramente. O suicídio de um herói trágico parece ser apenas formal, pois a vida dele terminou no momento da revelação do trágico. O destino nunca está nas mãos humanas. E nenhum homem é páreo para o herói. Por isso que o Coringa nunca chega a matar o Batman, mesmo quando tem oportunidade.

Na série The Walking Dead, survivors são como volta e meia um personagem antigo se refere a outro personagem antigo: hordas cerradas de zumbis, inclusive em lugares fechados, e grandes vilões foram contornados por eles, durante anos. A história parece basear-se no ciclo de uma natureza hostil, com dez meses de desastres, perigos e fome e dois meses de paz. Esse ciclo sempre vai ocorrer, e os heróis, survivors, são aqueles que vão superando os anos. Para ser survivor não tem que ser bom. Tem que ser excelente.

Após um hiato de alguns meses, um novo episódio da série foi lançado. Todos os survivors estão ajoelhados e cercados pelos capangas armados de Negan. Negan carrega um taco de baseball envolto por arame farpado. Ele chama o taco de Lucille, e por ele mostra admiração. Negan chega a dizer que Lucille é um taco-vampiro, como se escutasse a necessidade dele.

Com um movimento de cima para baixo, Negan amassa a cabeça de Glenn, um survivor. Após este primeiro golpe, Negan deixa Glenn dizer algo. Com uma voz de morto, Glenn diz à sua mulher que a encontrará. Maggie está apavorada. Glenn está deformado, como os milhares de zumbis que ele mesmo venceu.

Negan sorri e dança com Lucille. Ele quer que Rick, o líder dos survivors, considere a ele o seu dono. Rick deve olhá-lo com medo, não com ódio. Com ódio, Rick enfrentou e resolveu situações dificílimas. Seu olhar para Negan o apontava como mais um da sua lista de desafios. Negan sabia disso, por isso insistia em desfazer aquele olhar. O ódio de Rick era gana voltada a livrar-se de alguém ameaçador para ele e seu grupo.

Negan disse que mataria todos os outros, caso Rick não decepasse o braço de seu filho, que fora posto deitado diante dele. Os olhos de Rick passaram a ser de susto. Ele fora reduzido à situação de não ser mais ele mesmo, a não ser mais aquele que lutou para proteger seu filho. Ele foi lançado para ser um monstro. Rick agora olhava assustado para Negan. Estava passivo, não era mais um herói.

Só os deuses deveriam poder selar o destino dos heróis. A morte de Glenn e a submissão de Rick, que fizeram deles coisas entregues, assustou os que acompanham a história. Negan não os enfrentou e quis ser um deus, aproximando-se do destino deles. O que Negan conseguiu foi fazer os heróis tornarem-se o que não são, passivos. Glenn e Rick viraram nada, diante dos nossos olhos. Aí está a monstruosidade de Negan.

A urgência não pensa


Pensar é construir conceitos. É conter-se na ação e criar um não lugar, algo fora de qualquer particularidade. Essa é uma herança platônica, nossa.

“As mulheres precisam ser empoderadas”. Que mulheres? Todas? E que poder? Poder-fazer o que? Essas perguntas delimitariam a mulher empírica x, y ou z, e o poder x, y ou z.

A definição dos particulares permite ir além deles. Permite finalmente encaminhar a construção do conceito de mulher e de poder.

A frase “As mulheres precisam ser empoderadas.” supõe a existência de uma opressão generalizada sobre a mulher. Por isso, ela pede um poder também generalizado.

A frase também sugere uma mulher universal, escondendo uma experiência particular que quer se absolutizar. Contra o poder que supõe absoluto, a frase propõe outro absoluto. Ela patina no platonismo.

Existem diferentes mulheres, que possuem diferentes experiências e, no interior dessas experiências, há diferentes experiências de poder e de falta de poder.

Esse esmiuçamento é um caminho para se elaborar um discurso social não absolutista, mas perspectivista e pragmatista. E também é um caminho para se pensar os conceitos.

As mulheres querem a mesma coisa? Elas querem a mesma coisa que você, militante?

E o que é a mulher? O que é o querer? Há de se ter um lugar a salvo da urgência do mundo, para se pensar.

P.s.: Baseei-me, aqui, neste texto do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr: http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/pragmatista-e-o-platonista.html

Lulismo narcisista


A criança pequena ama a si mesma. Desse amor, ou ela destinará uma parcela ou destinará o amor inteiro para investir num objeto externo a ser amado. Havendo uma frustração desse investimento, a libido volta para o eu. Contudo, mesmo quando está investida no objeto externo, a libido ainda tem sua raiz no amor ao eu.

Amar alguém nunca deixa de significar amor próprio: todas as qualidades da pessoa com quem você se relaciona são elogios a você mesmo; todos os defeitos dele depõem contra você. E, onipotentemente, você entende que foram as suas qualidades ou os seus defeitos que fizeram o outro querer, respectivamente, estar com você ou se separar de você.

Essa construção do eu narcisista, o eu ideal, é de Freud, e está nos Três Ensaios para uma Teoria da Sexualidade. A partir dela, é possível enxergar o narcisismo do amor do militante por Lula.

Uma pessoa que se coloca como defensora de um partido ou de um político não é um participante dos processos que possam estar sendo movidos contra essas figuras. Ele é movido por paixões. E, na sua defesa ou nos seus ataques, usa informações que colheu seletivamente da mídia.

Não sei se os crimes do Cunha estão mais comprovados do que os do Lula. Portanto, não coaduno com o que os defensores de Lula dizem, de que há sustentação para se manter o primeiro preso, e que não há sustentação para se prender o segundo. Repito: militante não é advogado ou juiz nesses processos.

No caso do militante pró-Lula é possível perceber que há, ao mesmo tempo, a ciência e a tentativa de ocultar os ilícitos dele. Todos dizem que algo é errado, inclusive o seu pai, mas o jovem insiste em virar o rosto e fazê-lo. Ama sobretudo a si mesmo.

O PT era o partido da honestidade. Lula foi eleito com a missão de acabar com a pobreza e a desigualdade social, no Brasil. Isso tudo veio abaixo, com os escândalos de corrupção (repito mais uma vez: como não somos figuras jurídicas no processo, as notícias, comuns ou escandalosas, são o que temos para pensar) e o enfraquecimento das políticas sociais.

Diante de tudo isso, Lula se comportou como se a justiça estivesse errada em investigá-lo, como se ele fosse maior do que ela, como se ele fosse um cidadão especial, inimputável, devido às suas “nobres” intenções.

Os não militantes pró-Lula, vendo isso tudo, agora têm uma paixão anti-Lula. E essa paixão não tem nada a ver com ser de direita ou anti-esquerda. É uma paixão pela honestidade e boa capacidade de governo, que são avaliadas por nós, nas figuras públicas, através das notícias.

Todos sabemos que Lula cometeu crimes. Aqueles que lhe são favoráveis, contudo, tentam esconder isso. Defendem o Lula até o fim, pois também estão pondo em jogo a própria honestidade, ao fazê-lo. E qual seria esse fim, ou até onde vai essa defesa? Justamente até a prisão do Cunha, talvez a do Aécio e do Temer.

Esses adversários políticos do PT, também envolvidos em crimes, se punidos antes do Lula, darão ao lulista a sensação de que ele tem alguma razão, defendeu um “bandido menos pior”. A ideia do “rouba mas faz (pelo social)” é a sustentação inconsciente da defesa do Lula.

Mas, e se o Lula cometeu crimes piores do que os outros? Também consideramos essa possibilidade. Assim, o Lula torna-se uma espécie de Pablo Escobar, para os seus defensores. Um santo, meio incompreendido meio ladrão daqueles que não são do povo.

A um grande preço o lulista aceitaria a prisão dele. O mundo todo precisa estar errado, antes que ele possa dizer uma palavra contra aquele que sobretudo ama a si mesmo. Egoistamente, o lulista quer que todos paguem por seus crimes, para então aceitar o Lula sendo preso.

O ego ideal é a manutenção de um estado psíquico infantil, em que a criança se vê como o centro do mundo, e tendo que ser agradada. Não sendo agradada, ela deseja mal aos outros, que só puderam ter desejado o mal dela. Erros são encobertos, com o uso dessas justificativas, para não trazer desprazer à própria consciência.

Todo mundo sabe ter sido uma criança que fez muitas coisas erradas, mas ao mesmo tempo colou justificativas a esses erros, absolveu a si mesma. Lula chora, fica emocionado, chama a atenção como uma criança. O militante sai em sua defesa, entendendo que Lula precisa desviar das acusações (sobretudo das auto-acusações, que o militante sabe serem as piores que existem).

O militante quer mostrar ao Lula como manter-se com o ego íntegro, acreditando no próprio ego ideal, ou seja, acreditando que todos são contra ele, que é o mais honesto e certo de todos.

Mas, veja, Lula é alguém que sabe muito bem fazer isso: se parece frágil é porque entende que isso faz com que as coisas andem como ele quer. Ele sabe que comove as pessoas. O militante antes aprende o que é narcisismo onipotente com Lula do que o ensina.

Wagner Moro


Pablo Escobar morreu há mais de vinte anos. As coisas que ele fez, na Colômbia, são conhecidas. Nas fotos de divulgação da série Narcos, Wagner Moura tem no rosto uma expressão que não pode ser interpretada de uma só maneira. Os feitos de Escobar produziram tanto admiração e seguidores quanto repulsa. Que ele deu algum dinheiro aos pobres, é verdade. Que ele foi um terrorista, é verdade também. O rosto do Pablo, de Moura, tem essa dubiedade, e reaquece um pouco o amor e a repulsa por ele.

Por que reaquece um pouco? Porque Wagner e a série Narcos não formam defensores ou condenadores firmes, para Pablo. Parece que um dos sinais de que um acontecimento ou episódio ficou no passado é a dubiedade com que olhamos as suas figuras notórias. A mesma pessoa que hoje vê em Pablo um bandido, também pode ver nele um benfeitor aos pobres. Quem tinha que morrer já morreu. Quem tinha que ganhar dinheiro por causa dele, já ganhou. Ninguém se comove mais por Pablo.

Ontem foi noticiado que Wagner Moura havia recusado um convite para fazer o papel do Juiz Sérgio Moro, em uma série sobre a Operação Lava-Jato (http://www.uai.com.br/app/noticia/series-e-tv/2016/10/17/noticias-series-e-tv,195605/wagner-moura-recusa-papel-de-sergio-moro-em-serie-da-netflix.shtml). Uma notícia falsa. Disseram, inclusive, que o ator havia declarado não interpretar “mau-caráter”, brincando com a contradição por Moura ter feito Pablo Escobar.

Apesar de falsa, a notícia me fez pensar sobre como seria para um ator brasileiro interpretar, hoje, Sergio Moro. O rosto de Moro é sempre conforme a atuação dele como juiz: ele recebe dados de investigações criminais, indicia e emite mandados de prisão. O rosto de Lula é conforme a imagem que seus defensores possuem dele: um homem com ideais e inimigos, e que peleja para realizar o que quer e para defender-se de acusações. O rosto de Moro é sério, sugerindo que o importante, nele, são suas decisões. O rosto de Lula é risonho, bravo ou choroso, sugerindo que o importante nele são suas emoções.

O rosto de Lula e de Moro são o rosto que seus apoiadores, em certa medida, vêem como o seu próprio: um guerreiro injustiçado, de um lado, e um empedernido realizador da justiça. Um rosto não quer ser confundido com o outro, e não se percebe um traço de segunda intenção em cada um deles.

Para um ator que, em sua vida pessoal, defenda uma dessas figuras públicas, é difícil interpretar a outra. Quanto mais calorosa é a defesa, maior é a dificuldade em interpretar o outro. E maior seria o prazer em interpretar a figura que ele apóia. Mas menor seria a riqueza desta interpretação, como menos nuances ela seria apresentada, com zero chances de dubiedade.

As paixões políticas nos limitam. Criam compromissos entre a pessoa e quem a conhece, e também com a própria consciência. Mais do que uma opinião, a paixão política é um impulso por se colocar a favor ou contra uma figura política. A pessoa não quer se contradizer ou ser pega se contradizendo, neste ponto, sendo pega tendo ímpetos em defender aquele a quem anteriormente atacou.

Mas, depois de alguns anos, você pode ficar sabendo de alguns arrependidos que, contudo, não sentem vergonha. O tempo muda as opiniões e desculpa os ímpetos. E cria personagens não mais comprometedores. Pessoas que se dizem ateias podem interpretar Jesus. Bem, defensores de direitos humanos não interpretam Hitler, a não ser acentuando-o como o sumo mal (Deus está morto, mas o Diabo não?).

Talvez para figuras em quem depositemos o absoluto o tempo não faça efeito, não amaina nossas paixões. Este não é o caso do Lula ou do Moro.


p.s.: Este texto é uma versão modificada de um outro texto, que tomava por verdadeira a notícia de que Wagner Moura havia sido convidado, e recusado, a interpretar o juiz Sérgio Moro. Fiz esta modificação quando do desmentido da notícia.

domingo, 16 de outubro de 2016

Literatura de alto impacto


Parei num orelhão. Havia livros em cima e embaixo. Havia “Urupês”, do Lobato. Puxei o corpo mergulhado no orelhão. O pasteleiro nem olhava para o meu lado. Aquilo era gente querendo deixar livros para alguém. “Desapego” misturado com disseminação da leitura.

Pegava os livros brasileiros mais velhos da biblioteca. E desconhecidos. Só eu sabia daquelas histórias e nomes. Capa e páginas quebrando. Comprando ou ganhando, esses velhos iam comigo morrer lentamente os cinquenta anos que tinham pela frente. Eu não apressava sua deterioração, segurava-os com cuidado. O papel amarelece e endurece, como folha de árvore.

Sempre alguém acaba desgraçado nos contos do Lobato. Para essa estréia, ele dizia “ou entro ou racho”. Personagens morriam ou faliam. Também rachou a cara do intelectual que idealizava o caipira.

Contos são para rachar. O prefácio aqui diz: o efeito pretendido era o leitor levantar o pescoço para olhar mosca invisível. Parada para respirar. Algo aconteceu no texto escrito e não escrito. A história inclui o leitor na queda do personagem.

O escritor ansiava para desferir aquele golpe. Sentia um prazer armando a arapuca. Preparando um veneno que não age rápido. É o mesmo prazer que sente o leitor que indica esta leitura para um amigo: enquanto o amigo lê, o leitor fica olhando de rabo de olho, só para pegar o exato momento da queda.

Nossa capacidade de matar



Um homem espera a abertura do portão da garagem do seu prédio. Sua esposa o acompanha dentro do carro. Aproximam-se dois homens, um deles armado. O homem que está dentro do carro é um policial. Ele puxa a arma e dá um tiro na cabeça de cada um dos outros dois homens.

Foi dessa forma que me chegou essa história, ocorrida com amigos de amigos de amigos de amigos meus. Só uma perícia poderia dizer os pormenores, e desses pormenores inferir as intenções e então apontar as responsabilidades. Mas posso dizer que um agente de segurança deve sempre agir de forma a preservar o máximo possível a segurança dele próprio e das outras pessoas. Qualquer pessoa.

Na República, Platão diz que um guardião deve ser como um cão: dócil com quem ele conhece, e desconfiado com quem ele não conhece. Por conhecido e desconhecido, Platão referia-se ao concidadão e ao estrangeiro, respectivamente. O guardião deve tratar bem as pessoas que vivem na mesma cidade que ele, mas sempre estar atento e pronto para agir caso alguém de fora se aproxime.

Alguém que se aproxima de você, na rua, pode ser tomado como um estranho com más intenções. Mas acho que o tomamos como alguém familiar, “o bandido”, para quem já temos uma pronta disposição para atacar. A imagem do bandido é muito utilizada por nós quando querermos nos permitir atirar. É como o caçador que diz precisar, de vez em quando, dar uns tiros em ursos.

Não estou falando aqui de um descontrole da ação, por um desejo de matar que tenha invadido a razão. Apesar do título dos filmes, Charles Bronson não era alguém possuído por um desejo de matar. O que ocorre é uma ação belicista, que une uma razão e uma emoção particularmente belicistas e assassinas. A razão e a emoção participam de um impulso que não quer parar.

Matar um ladrão parece que trará menos aporrinhação do que rendê-lo ou render-se a ele. A frase “foi legítima defesa” é sacada mais rápido do que a frase “tem que fazer queixa, e depois tirar novos documentos.” “Tem que levar o cara pra delegacia, tirar depoimento, dar depoimento, preencher uma papelada e abrir um processo.”, então, parece demorar um milênio. A pressa, aqui, ocorre no não se querer ter o trabalho de preservar aquela vida. O policial matou o bandido não só porque ele e sua mulher estavam sob a mira dele: o policial quis resolver logo, aquilo.

Hitler é uma figura que concentra o mal, parece que o monopoliza. Livramo-nos de nossa própria maldade. Quando os nazistas começaram a matar seus prisioneiros, foi sob o nome de “Solução Final” que o documentaram. Eles não diziam a verdade, queriam livrar seus eus de terem que ver o que estavam fazendo, e então ficarem condenados a conviverem com um assassino.

O sujeito invadido por uma vontade estranha a ele é coisa de uma psicologia moderna. Essa psicologia é herdeira de uma psicologia platônica, em que, além dos apetites e da razão, havia o lugar do thymos, a sede do orgulho, da ira e do senso de justiça. Hoje, vemos o homem como um ser que, quando invadido pelas próprias paixões, deixa de bem deliberar.

Mas a psicologia do defensor que mata não apresenta este ou qualquer outro conflito. Ela está mais para uma psicologia estoica (veja a diferença entre a psicologia platônica e a estoicista: http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/alma-assassino.html), de apresentação por inteiro de um homem em seu impulso e em sua razão, vindo juntos. É um impulso e uma razão belicistas, num homem então belicista.

Noticiado mais amplamente do que o ocorrido na garagem foi um caso ocorrido ontem, em que um militar matou um homem com quem ele discutia por uma cadeira na praça de alimentação de um shopping, no Rio (http://extra.globo.com/casos-de-policia/homem-baleado-dentro-de-shopping-em-campo-grande-20280360.html). Houve posts no face dizendo que é por esse motivo que deve haver um maior controle sobre quem tem acesso à compra e à posse de arma de fogo, no Brasil. Sabemos que somos destemperados, não confiamos plenamente em nossa capacidade de nos controlar em situações que nos pareçam perigosas.

Bem, há mais um ponto que sabemos a nosso respeito, que nos aconselha a ficarmos longe de armas: não somos apenas homens do conflito psicológico entre uma razão que pesa princípios e consequencias e impulsos destrutivos, mas também somos homens de pensamentos e disposições de descarte do que nos incomoda e do não compromisso com nada. Isso faz com que, no limite, sejamos capazes de matar animais e outros homens. Sermos assassinos é algo que está em nosso horizonte.

O homem, um ser de família



Neste ano, 2016, foi lançada “Amoris Laetitia: Exortação Apostólica Pós-Sinodal”, escrita pelo Papa Francisco. Este é o resultado dos sínodos, reuniões de bispos, ocorridas nos dois últimos anos. O tema destes sínodos foi a família. No texto o Papa apresenta, como não poderia deixar de fazer, uma visão de homem, atrelada a uma visão de família.

A Igreja é como uma avó, que tem um olhar antigo, tradicionalista, mas ao mesmo tempo disposto a compreender as mudanças do seu tempo. Reposto por essa exortação está que o casamento trata-se da união de um homem e uma mulher, pois apenas eles dois, juntos, são capazes de fecundidade. Assim, estão excluídas uniões entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, mesmo rígida, a avó continua sendo avó. Papa Francisco entende que a família que é possível de se encontrar no mundo não corresponde ao modelo da Igreja e do evangelho: casais divorciados, em que, frequentemente, uma criança passa a ser criada por apenas um dos pais; casais que coabitam sem terem contraído matrimônio; pais que fazem usos de substâncias tóxicas; casais que deixaram de frequentar a Igreja; etc. A Igreja deve acolhê-los todos, pois sua missão é não apenas doutrinar, mas também acolher e aliviar as dores. Sem falar que ela deseja o desenvolvimento de todos os homens, e não fará a exclusão de ninguém.

A que visão de homem se deve essa posição? O homem é uma criatura, que trabalha e coordena as coisas do mundo. Para que ele não sentisse sozinho, Deus lhe deu uma mulher, com quem ele se uniu. O matrimônio é assunção pública da união entre o homem e a mulher. Essa união é o compromisso de enfrentar o desafio de amar e ser amado pelo outro, cuidar e ser cuidado por ele, envelhecer junto dele (“gastar-se”, como está na exortação). Esse compromisso de fidelidade é a imagem da fidelidade de Deus para com o homem. Por isso, dificuldades de diálogo, dificuldades financeiras ou problemas advindos de hábitos pessoais recebem orientação.

O homem é um herói, ao manter seu compromisso, mas para isso, não conta com suas próprias forças. O Espírito Santo lhe dá uma força. Em suas Confissões, Santo Agostinho falou da dificuldade por que passou quando jovem: estando noivo, não conseguia deixar de desejar outras mulheres. Ele esforçava-se, sofria, mas não conseguia se conter. Depois veio a perceber que o homem que pretende lutar contra um vício do espírito e um mau-habito do corpo, contando apenas com as próprias forças, é incapaz de vencer. É preciso pedir a ajuda de Deus. Deus é, então, a fonte da força que permite ao homem manter-se no compromisso com Ele, consigo próprio, com seu cônjuge e a sociedade, a qual ele está construindo apresentando sua própria família.

O homem exerce sua vontade sobre si mesmo e o mundo. Contudo, não pode considerar-se autônomo e soberano sobre a criação. Regras de vida colocam-se para ele. Conforme o espírito do Antigo Testamento, regras de vida servem para evitar que se viva uma vida que leve à morte, como a escravização dos outros seres e o deixar-se escravizar pelos próprios impulsos. Ao homem é esperado o auto-governo, e também lhe é oferecida uma estrutura além dele. Um cônjuge não toca o âmago, a alma do outro. A relação de ambos é de ternura, olhar atento para as necessidades e anseios do outro. Mas cada um tem um espaço intocado, que é para o encontro com Deus.

Um pai, um filho, um marido, um irmão têm necessidades de coisas, e impacientam-se com os comportamentos e os “tempos” diferentes daqueles com quem eles convivem. Deus acolhe incondicional, irrestrita e gratuitamente. Filosoficamente, o que esta teologia está dizendo é que a cada homem é oferecida a ideia de que há algo maior do que ele próprio e do que qualquer outra coisa que este homem conheça, e que este algo é uma espécie de Outro que o observa, com ele se importa e dele cuida.

O homem foi gerado e, no casamento, gera uma nova vida. A família é aberta ao mundo, não fechada. Diferentemente do narcisista, que acredita bastar-se a si mesmo, o casamento e a fecundidade são a doação do dom da vida, que cada homem um dia recebeu. Não é estar guardando um sentimento, estar ressentido. O ressentimento isola o homem e o faz condenar aqueles com quem ele ele diverge, ao invés de permitir que ele aceite o direito deles de também viverem neste mundo. Pode-se estar ressentido com um cônjuge, e com ele não conseguir conversar. Pode-se ser o ressentido que na cabeça possui uma ideologia, por exemplo o cristianismo enquanto ideologia, e condenar quem é apontado como desviante do ideal. Como diz o Amoris Laetitia, o homem deve aceitar o homem, e querer o melhor para ele, assim como a Igreja deve fazer.

Esta ideia de melhor baseia-se na busca do homem em ser menos mortal e mais imortal. Por isso ele deve constituir família e gerar frutos. Que ele faça opções pelo permanente, e rejeite o transitório, deriva que ele deva unir-se a outra pessoa, com pretensões de que isso seja pela eternidade, e que o homem não se dê a práticas que tornem a sua vida algo corriqueiro e banal.

A relação entre o homem e o mundo deve espelhar à da Igreja com ele: deve-se exercitar a aceitação da vida, em suas diferenças e limitações. Esta exortação toma o homem como algo inspirado no divino. Considerar esta ideia está para além de preocupar-se com a existência deste divino. Em um contexto pós-nietzscheano, a vida é entendida não como busca por autoconservação, mas como vontade de potência e amor fati. No entanto, falar contra o desperdício da vida é falar contra a falsa liberdade do homem atado a um de seus impulsos: o impulso do descarte. O uso descompromissado e o descarte compulsivo de relações e pessoas não têm nada a ver com a vida pujante e afirmativa que Nietzsche defendia.

O Papa e Nietzsche querem tirar o homem da escravidão e do solipsismo desumanizadores.

sábado, 8 de outubro de 2016

Encontro de amigos


Haverá em um teatro de Niterói um círculo de monólogos interpretados por grandes atores: Lázaro Ramos, Matheus Nachtergaele e Fernanda Montenegro. Para os dois primeiros, o ingresso é de R$ 40,00. Para a Fernanda, é de R$ 60,00. Neste momento não sei o que pensar a respeito dessa diferença no valor do ingresso.

Minha mulher falou que é porque a Fernanda é mais conhecida. Falei que os outros também são. Então minha mulher soltou o argumento imbatível de que ela tem mais experiência. O ingresso para assistir a Fernanda Montenegro é mais caro do que para assistir outros atores. A frase ficou acabada, como num livro.

Um livro não conversa. Nem mulheres. Sócrates bem o sabia, por isso ia filosofar na rua. Outro filósofo, Sloterdijk, disse que livros são cartas dirigidas a um amigo distante. Esse amigo pode ser alguém ainda não nascido. Certamente é um amigo até então desconhecido do autor.

O autor não conhece seus leitores, mas seus leitores conhecem-no. No sentido de que um livro é uma carta, ele é uma mensagem. Inserido numa cultura, num cultivo de homens, essa mensagem é formadora. Não enviamos cartas a quem nos formou. Mas enviamos a amigos, e com eles conversamos sobre o que está nos formando.

Mas será que essa conversa pode ser constante? Será que, caso o leitor enviasse uma carta-resposta a um autor, a conversa entre eles iria render, se alongar? Penso que logo cada um iria mostrando empecilhos, para continuar.

Conversa me parece algo que surge de um encontro. Você encontra uma pessoa, tanto faz se é alguém a quem você já conheça ou não, e passa horas com ela. “É como se eu te conhecesse há anos.” Isso não é fácil de acontecer.

Em um encontro de pessoas que amam o saber, um prepara o que dirá ao outro, escuta-o com atenção e prepara uma resposta. Tudo feito com carinho e cuidado. Há o prazer de ouvir as boas formulações do outro. Há o grande prazer de ver a sinceridade do outro. Há o enorme prazer em dizer um pensamento bem pensado. Há o raro prazer de poder ser sincero, pois se está num lugar em que isso não é problemático.

A sinceridade é um esforço para dizer algo. Uma frase cliché é pobre e repetitiva por ser o recurso de alguém que não está sendo sincero.

Você dá a sorte de encontrar um bom livro. Acontece de estar numa época de sorte, e encontra alguém para falar, sobre ele. Guardará esses momentos para sempre. Em contextos apropriados, você falará desses momentos para outras pessoas, querendo que elas também vivam isso.

Dez horas, no máximo, foi a soma da leitura e da conversa que um dia você teve. Mas esse tempo é daqueles que fazem uma pessoa dizer que dá valor ao tempo que tem. E que dá valor às coisas que diz. Porque esse tempo passou com o homem se intensificando. E também porque ele permanece algo válido a se dizer, para os outros. É bem diferente das coisas que dizemos em nosso dia-a-dia, para cumprir um papel.