quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Por que você não pode dar conta de tudo.



Entrego flores à mulher que eu amo. Não, amo a mulher a quem entrego flores. O ato é preparado, executado e lembrado como um ato de amor. Não um ato que vem do amor, mas um ato que produz o amor. O que há são as coisas: palavras, ideias, atos, coisas de "pegar', etc. Não chamarei as coisas de "pegar" de objetos, pois objetos pressupõem sujeitos anteriores a eles, que os manipulam. Somos coisas que manuseiam outras coisas, e, assim, vamos fazendo e conduzindo pesamentos, sentimentos, falas e outros atos motores. As intenções, ideias e emoções, etc, são interdependentes das outras coisas. E tudo isto está em manuseio.

A menina bate duas panelas, uma contra a outra, para acordar o pai. Em seu rosto, uma expressão de leve vergonha. Ela não conseguiria bater palmas, ou gritar, para acordar o pai. As panelas permitem que ela diga "não fui eu".

Um jovem usa frases decoradas, ao abordar uma garota na balada. Se não as tivesse usado, não teria falado bem. Um homem diz que isso é imaturidade do jovem. Deve-se ser "espontâneo", ao falar com uma mulher a que se acabou de conhecer. O homem entende os "jeitos de se falar" como características dele próprio, não de um personagem. Esse "ele próprio/si mesmo" está em uso, sem que o utilizador se veja como utilizador "dele mesmo". Para esse algo que usa um "si mesmo", o "si mesmo" não desgruda, não se pode escolher ser outra coisa: é um eu.

A coisa, antes de ser um eu bem consolidado, ou seja, antes de fazer do "eu" tudo o que ela é, nele querendo esgotar a si mesma, é a coisa que bate panelas ou usa personagens, com vergonha. Há um interstício desconhecido entre uma coisa e outra. Bato panela - (sinto desconforto) - meu pai me olha - (meu rosto exibe vergonha) - falo que queria acordá-lo. Entre uma coisa e outra há algo que eu não sei. Algo que o eu não sabe. Isso fica mais perceptível na criança e no jovem, ou seja, em coisas ainda não tão atadas ao eu.

O eu entende que as coisas são propriedade dele mesmo. A criança e o jovem titubeiam, no que fazer. O manuseio de coisas, inclusive de si mesmo, tem mais coisas para lidar do que o eu consegue dar conta: querer acordar, saber que não pode acordar, vontade, contra-vontade; saber o que dizer à garota, não saber o que dizer à garota, querer usar o personagem, se sentir ridículo por usar o personagem. A criança e o jovem, se observados ou ouvidos, logo demonstrariam ou falariam sobre essas diversas coisas que lhes ocorreram. Ao menos sobre muitas delas. Já o manuseador do eu demarcou aquilo que fala e o que não fala, o que quer e o que não quer, e o que faz e o que não faz, colocando esses "não fala", "não quer" e "não faz" como "não-eu".

Essas segundas opções, contudo, ocorrem com o manuseador do eu: sem que você controle, você vai dizer, querer e fazer coisas que nunca achou que faria. O eu não pode conter tudo o que acontece a você.

Indivíduo digital


Cada pessoa possuía uma vitrola. Quem estivesse perto, compartilhava o som. De uso individualizado era o walkman, depois o discman, depois o aparelho de mp3. O personal computer, a despeito do nome, também era de uso da família. Os aparelhos sonoros estimulavam os ouvidos e os olhos do usuário. Com as máquinas fotográficas digitais ocorria o oposto: elementos nossos eram captados e convertidos em imagens. Mas ainda existiam na razão de uma por família, servindo à mulher e aos filhos, operada pelo pai. As fotos iam para fotologs e redes sociais. Assim, o indivíduo começou a estimular a máquina, ao invés de apenas ser estimulado por ela.

Cada um passou a ter o seu perfil, e também o seu computador. O celular, que há tempos já era receptor dos estímulos de apenas uma boca, ofereceu-se a ser câmera fotográfica individualizada, captadora das imagens apenas do seu dono. As selfies explodiram, como um ato de colocar a câmera para namorar o seu proprietário. Câmera fiel, faz a imagem que o indivíduo quer ver dele mesmo.

Ser famoso era vontade do jovem. A criança fantasiava o que assistia. O jovem queria estar na telinha. O adulto não tinha tempo para pensar em outra coisa que não o trabalho não espetacularizado. O velho, enfim, podia ser espectador (embora alguns fantasiassem, como a criança). Esta adultez demarcada pela separação entre show e trabalho não existe mais: todos queremos mostrar o que fazemos.

Qualquer emprego que se tenha rende selfies do percurso de ida, da mesa do escritório, do almoço, da conta do almoço, etc. Sou Fulano da Silva, tenho esta imagem para mostrar, e a partir dela eu e você vemos por onde e com quem tenho andado, o que tenho feito e o que desejo fazer

A imagem, contudo, não deve mais ser minha. Eu é que devo ser a imagem. O empregado com nome e sobrenome está morto. Eu sou uma marca, símbolo de uma empresa, ou seja, de uma infinidade de ações distantes do conhecimento de quem quer que seja: ninguém controla meu cartão de ponto, ninguém sabe quem são meus clientes, ou meus lucros e perdas. O que há para ser visto é o que preparo para mostrar, que são meus produtos, minhas ações de marketing.

Baseados naquilo, pessoas me elogiam. Rio por dentro, pelo elogio e pelo elogiador não saber tudo o que fiz. Eu também não sei tudo o que fiz, perdi a conta das noites sem dormir. Eu sei de mim mesmo tanto quanto o cliente sabe, que é a marca e todos os estímulos de marketing associados a ela. A marca é "no strings attached", com relação a mim e às outras pessoas. Não há mais eu e outras pessoas. Há a marca, construída por uma porção de feitos invisíveis, que são lixo, e por imagens combinadas aos elogios e demandas.

Nunca houve um sujeito como esse ser digital, pois, ao mesmo tempo em que oferta imagens e recebe elogios e demandas por mais imagens, oferece elogios às imagens que recebe, para receber, em troca, apreciação.

Quando é importante ser branco e negro. Quando não é importante.


Uma vez, eu era pequeno, minha mãe levou-me com ela numa visita ao amigo Milton. "É negro", disse-me, como quem conta nada de importante. Lembro-me que reparei que ele tinha a mesma cor dos garotos com quem eu brincava na rua. Mas, até então, não me passara pela cabeça que eles eram negros. Os negros só existiam nas aulas de história do Brasil.

Nos anos 80, a maior parte dos pobres já era de negros. Esta pobreza dá-se por subempregos e desempregos, e más condições de moradias. O negro tem menos escolaridade, porque começa a trabalhar em uma idade em que o branco ainda é criança. O ciclo baixa-escolaridade - baixos rendimentos - filhos com baixa-escolaridade mantém o negro como o mais pobre. Essa sociologia ainda é uma verdade, mas eu não a conhecia, quando criança.

Os garotos com quem eu jogava bola na praça não ganhavam tantos presentes quanto eu, no Natal. Eu sabia que eram pobres, mas não havia mais nada que nos diferenciasse. Sim, havia outra coisa: eles sabiam jogar bola. Não eram negros. O primeiro negro que vi na minha frente foi o amigo da minha mãe. Não foi a empregada, não foram os garotos na praça, não foram as mulatas da Globo. Como o Milton tinha uma boa casa e usava boas roupas, entendi que, se ele era negro, não tinha nada a ver com os negros escravos.

Como os negros eram só coisa de história do Brasil, ninguém sentia falta deles na minha sala de aula, no colégio particular. Como a empregada não era negra, lá em casa não tínhamos nada a ver com os senhores de escravos. Eles eram maus. A empregada tinha o quarto dela, mas ela era "praticamente" um membro da nossa família. Dizíamos sem corar. Não havendo negros, não havia exploração. Éramos cegos para as desigualdades.

Hoje se nota a falta do negro na boa escola. Se nota o negro miserável, ou no banditismo, na rua. Adotamos duas direções para a modificação desta percepção: expulsão, a partir de pedidos por prisão, mesmo sem julgamento, e aceitação de mortes, por exemplo, ou vontade de conviver, a partir de pedidos por cotas e de redução dos crimes cometidos, contra eles, pelo poder público, também por exemplo.

Adolescente, tive como melhores amigos, negros. Eu já sabia o que era "negro", e também o "pobre", porque aquela sociologia já começava a ser ensinada na escola. No entanto, eu e um deles, na rua, éramos apenas o "feijão com arroz", como um outro amigo dizia. Eram caras como eu, suas famílias eram como a minha. Bem, a família deles era maior. Na escola, para mim, não havia falta de negros, embora eu, hoje, diga que só havia um. A criança e o adolescente só enxerga quem é seu amigo, e quem não é.

Coincidentemente, tive esses amigões negros. Quero dizer, amigões. Não que a cor não importe. É importante falarmos nela, enquanto adultos, intelectuais, jornalistas, políticos, etc, para repararmos que ainda é necessário colorirmos mais as escolas, os shoppings, os bons hospitais, etc. Hoje tenho relação com mais brancos do que negros. Eu diria que seria bom que, ao menos, eles fossem na mesma quantidade. Mas, na minha experiencia cotidiana, de gostar de puxar assunto e contar e ouvir coisas interessantes, o fato de uns serem brancos, e outros serem negros, não faz muita diferença.

História de estranhos acontecimentos


Em uma discussão, um homem estapeia o outro. O estapeado abaixa ligeiramente a cabeça. As pessoas em volta interpelam o estapeador. O estapeado quer reagir, mas o corpo pesado não o permite. Imediatamente faz a si mesmo uma pergunta que ele passará a vida se perguntando: "por que eu não fiz nada?".

Freud diz que uma pessoa, ao reagir a um acontecimento que lhe cause uma intensidade afetiva, descarrega esta intensidade. Reações físicas e de pensamento, voluntárias ou involuntárias, a um acontecimento que provoque um afeto, fazem com que ela livre-se deste afeto e tenha o esmaecimento da lembrança do acontecimento.

A pessoa que não reage a um fato deste tipo, permanece com o afeto na mesma intensidade que havia no momento em que ele foi provocado. Este afeto ficará associado à representação que o sujeito tem da cena. Todas as vezes que ele contar a cena para alguém, ou se lembrar dela, ele sentirá esta intensidade afetiva. E à pergunta "por que eu não fiz nada?" ele não saberá responder.

Para a psicanálise, este motivo perdido pode ser explicado por uma outra cena, ou outras cenas, que o sujeito não lembra. Cenas em que ele, talvez, tenha sido impedido de reagir a uma agressão. Estas cenas, ou melhor, a representação delas, também têm um afeto ligado a elas. Elas não são lembradas, então o nexo entre a cena antiga e a mais recente não pode ser alcançado.

A origem do afeto que ocupou o sujeito na cena recente, e que não pôde ser descarregado, permanece desconhecida. Há muitas falhas, também, na lembrança da cena recente. Quando a pessoa conta do tapa que recebeu, sem ter reagido, ela novamente sente aquele afeto. O afeto pode esmaecer, caso a intensidade afetiva não tenha sido tão grande, e se essas cenas todas, enfim, não tenham lá tanta importância para a sua vida mental. Mas algo é sentido.

Estudávamos em grupo o texto de Freud em que estas ideias aparecem. Um dos participantes, Geraldo Pereira, distinguiu lembrança de reedição: lembrança é acessar o acontecimento, por sua representação, e reeditar é revivê-lo. Um fato será tanto melhor lembrado quanto menos intensidade de um afeto desagradável a ele estiver vinculada, ou seja, quando o sujeito reagiu à cena. E quanto maior for a intensidade afetiva retida, devido à não reação do sujeito, o mal-estar experimentado por ele por não ter feito o que queria fazer é reeditado, revivido.

O estapeado, de tanto falar daquela cena, com poucos detalhes, mas forte afetividade, revivendo-a mais do que lembrando-a, acabou formando uma lembrança da revivência: lembra-se de já ter contado a cena antes, e de que, nestas ocasiões, novamente sentiu-se mal. As lembranças da revivência vão ocupando o lugar da revivência. O estapeado, quando fala da cena do tapa, agora a revive menos, apesar de lembrar o que já sentiu.

Os detalhes do acontecimento que fez sofrer o sujeito nem chegaram a ser por ele percebidos, pois, após ter recebido o tapa, ele fora tomado por afetos relativos a outros acontecimentos, desconhecidos. Por isso, ele não podia lembrar-se desta cena. E ficou preso à revivência do afeto. A revivência da dor é a dificuldade de se falar sobre algo doloroso. Mas, após algumas tentativas, a dor torna-se familiar. E o sujeito passa a dizer: "teve uma vez em que estranhamente não reagi a um tapa, e senti um forte aperto no peito".

Moving selfie


No aplicativo Periscope (dê uma olhada em https://www.periscope.tv/, para entender melhor este texto), jovens falam para a câmera do seu celular, em transmissões em vídeo para o mundo todo. Até pouco tempo tirávamos selfies, que nos davam imagens de nós mesmos. Os vídeos feitos no Periscope são imagens em movimento. Imagens do rosto, pescoço e tórax.

Nas transmissões, sempre ao vivo, observadores comentam sobre o eu que se exibe. O sotaque e o assunto compõem o quadro. O assunto não é de especialista: é o que a pessoa está comendo, como está sua cama, como está seu rosto e seu corpo. Não se distancia muito do que mostrava a selfie. A imagem. O eu.

O eu é exibido e comentado sem que se extrapole o círculo dele mesmo. Funciona como O Espelho, do Machado de Assis, que, ao mostrar o Alferes, recompunha sua imagem, dava-lhe uma integridade que de outro modo estaria perdida. Os especialistas que falam no Periscope são, em sua maioria, especialistas de marketing. Ensinam a gravar vídeos, a falar, a se divulgar, a garantir a rodagem do círculo do eu.

Uma pessoa pode dizer que a própria voz é esquisita, o cabelo está ruim, e a roupa está engordando. Os observadores corrigem esta impressão, elogiando ou dando dicas. O eu respira aliviado. Mas precisa continuar mostrando novidades: a compra nova, a viagem para um lugar lindo, objetos e cenários para novamente emoldurar o eu.

O que se fala, no Periscope, não é escutado, mas visto. "Video killed the radio star". No vídeo, tudo é visual, show, e a fala é parte disso. Não há paciência para acompanhar raciocínios. O que importa é a boca mexendo, o tom de voz que combina com o rosto, e se o uso da língula não está muito incorreto, que deixam mais ou menos atraente aquele que se exibe.

Como sair do rosto? Mostrando mais o restante do corpo, e ele se movendo. Movendo-se pela casa, pelo prédio, pela rua, mostrando quem passa, oferecendo outras imagens a quem observa. Eu ando por aí, tenho algo a ver com outras coisas. Mas, para não ser simples sucessão de imagens, tenho que enlaçá-las em uma narrativa, contar algo sobre elas. Posso estar no meu quarto, fazendo isso, em dupla com um observador. Pensando junto. Pode ser junto da câmera-espelho. Desenvolvendo a imagem através da fala que traz memórias, vivências.

A melhor dança das nossas vidas


O professor de Whiplash (dir. Damien Chazelle, 2014) não queria mais ser o melhor professor, dos melhores alunos de música. "Balançar os braços e manter todo mundo no ritmo, qualquer idiota faz". Ele queria ser algo mais.

O homem não quer se conservar. Nietzsche nos deu isso. Ele sobe o Everest, pula de bungee jump, usa drogas loucas, para mostrar o quanto ele é demais. Pelo Everest, ele terá o próprio nome registrado. No bungee jump, os amigos o comentarão por uma semana ou duas. A droga é curtição solitária ou em pequenos grupos, que logo precisa se repetir. O beijo da morte satisfaz pela vida toda o primeiro, por menos tempo o segundo, e é compulsivamente ansiado pelo terceiro.

Era do feitio do professor estapear e xingar, como chicotadas (whiplash, em inglês) no aluno, para ele se superar. Um de seus alunos era muito bom baterista. O professor é grosseiro com ele. E o observa. O garoto fica puto, mas volta a atacar a bateria. Melhora. O professor o estapeia. Em uma edição do programa Hora da Coruja, especial sobre este filme (http://horadacoruja.com.br/filosofia/whiplash), a filósofa Francielle Chies nota que uma lágrima desce o rosto do garoto, e que o professor questiona se ele é um "one single tear guy". Um cara assim é aquele que se enfurece com uma chicotada, mas engole esse sentimento e passa a querer se vingar do professor, que se torna o culpado dos problemas dele. O aluno do filme não é desses: o professor o faz gritar que está puto. O aluno toca bateria até sangrar.

Um caminhão bate com tudo no seu carro, e ele sai debaixo do carro para correr para se apresentar. Toca feito trem, até se acabar. Desconhece limites. Nos preocupamos muito com nossos limites. O trabalho cansa. O trabalho não vale a pena. Sempre me faz pensar que não aguento mais, e a vontade de não fazer nada não me deixa. Desde cedo achamos que não vale a pena ser outra coisa que não um Superstar. Mas há aqueles que embarcam em determinadas vontades que possuem, e jamais param. Não se sabe se essa determinação é deles mesmos ou dos professores que os chicotearam. É da natureza do cavalo correr, ou é pela ponta do chicote? É ambos.

O aluno de bateria foi um pequeno ser cujo mundo sempre esteve na iminência de que algo muito quente ira acontecer, algo que surpreenderia a ele mesmo e a todos que o vissem de perto. Esse algo era um texto, um solo de bateria, uma construção, ou uma arte, fantásticos. O lar era acolhedor e estável. O aluno determinado viveu nele, mas algo aconteceu que lhe deu a sensação que ele mesmo seria muito maior do que ele mesmo. O professor o fez dar-se com tudo para este objetivo.

Na última apresentação do filme, o aluno não parou de tocar, quando deveria. Virou uma máquina que corria por conta conta própria. Mas não sozinha. O professor olha para ele, espantado, e pergunta "o que está havendo, MAN?". Aquele não é mais um aluno. E, desde o início, com ele, o professor alternou as lições brutas com um olhar de satisfação muda. Ele só esperava alguém que virasse um automotor (agora não me ocorre em nada que mostre melhor o que poderia ser um automotor do que um baterista excelente e enfurecido. E que precisa da plateia), para que ele mesmo curtisse um grande som, e regesse não a música que queria ensinar, mas a que gostava de escutar.

Os movimentos de regência foram como os do Mickey, no filme Fantasia, quando ele se torna senhor da magia e faz as ondas levantarem-se juntas dos seus braços. A mágica está nas ondas ou nos braços do mágico? Está nas baquetas ou nos gestos do regente? O aluno foi além de si mesmo. Era pura performance. Junto dele estava o professor, que também foi além de si mesmo. E foi pura performance emocionada. E ele esperou tempo demais por essa emoção.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

A propaganda pró-direitos dos deficientes


Recentemente, na cidade de Curitiba, instalou-se um outdoor com a frase "Pelo fim dos privilégios para deficientes" (http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2015/11/outdoor-em-rua-de-curitiba-pede-pelo-fim-de-privilegios-para-deficientes.html). Também foi divulgada uma página no Face, afirmando que os direitos concedidos aos deficientes limitavam os direitos dos não deficientes. A página também propunha uma redução nos direitos dos deficientes. A maior parte dos comentários a ela foi de desaprovação.

Um dia após esta divulgação, o outdoor ganhou uma faixa preta, com os dizeres "Se tantos se revoltaram, por que tantos ainda despeitam?" (http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2015/12/outdoor-contra-privilegios-de-deficientes-e-acao-da-prefeitura.html). O outdoor e a página de Face foram uma ação do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Na matéria constante no link acima, a Presidente do Conselho, Mirella Prosdócimo, lembra o que é sabido por todos: que as vagas para deficientes, as filas especiais, e outros direitos, são desrespeitados. A frase "Não é privilégio. É direito", também constante no outdoor, expõe e rebate uma fala comum, privadamente, de que os deficientes, e outras minorias, vêm sendo privilegiados.

As falas e intenções anti-direitos, quando publicadas, geraram muitas opiniões contrárias. As pessoas que reagiram deste modo, enaltecendo os direitos e atacando as posições anti-direito, provavelmente não são elas mesmas boas observadoras destes direitos, no seu dia-a-dia. Isto foi sugerido pela segunda parte da ação de marketing (e, com bom senso, podemos concordar com ela), ao chamar as pessoas para transformarem a revolta pela propaganda anti-direitos em observância deles. Inclusive observância de si mesmos.

A propaganda expôs nossas práticas cotidianas. E o fez, criando um alguém imaginário que possuísse aquela intenção e tivesse dito aquelas frase anti-direitos. Esse alguém foi atacado por muita gente. Com a segunda parte da propaganda, porém, ficou demonstrado que quem pensava e agia contrariamente aos direitos eram as próprias pessoas que anteriormente haviam se posicionado pró-direito. A publicidade de palavras e intenções que costumavam ser ditas entre-dentes gerou mal-estar. Como, na primeira parte da propaganda, o autor daquelas opiniões era alguém que criou o outdoor e o post de Face, e que não tinha nada a ver com quem os acessou, o mal-estar pela exposição deu num impulso de ataque contra ele. Com a segunda parte, as pessoas tiveram que olhar para si mesmas.

Os sentidos do olhar


A escrita preenche a página do topo ao final. O início do texto traz a tese e os argumentos principais. Olhando uma página frente a frente, vendo-a como também um corpo humano, a base está na altura dos olhos, da garganta e do peito. Correspondem ao que se vê, ao que se diz e ao que se enfrenta. A elaboração dos argumentos é a caminhada.

Em uma competição, o vencedor vem no topo da lista. Como ocorre na lista de compras, o importante vem primeiro. É o que interessa, capta-se numa batida de olhos. Os piores baixam os olhos, procurando, até chegar ao fim da lista e mirar os próprios pés.

Quanto a construções e desenvolvimentos, prédios, plantas e pessoas crescem de baixo para cima. Mas a fundação de um prédio, as raízes de uma planta e as ocorrências da infância de uma pessoa são desconhecidas. Crescem como que querendo se libertar do baixo. A fundação do prédio imagina tudo o que virá acima. As raízes distribuem-se pelos lados, atrás de água. Também vão para cima, atrás do sol. E querem atrair abelhas, borboletas e passarinhos, seres que vêm por cima. O "o que eu quero ser quando crescer", da criança, diz que o ser que importa é o ser que existirá quando ela crescer.

Algo de um milímetro de altura olha para os lados e para frente, não para baixo. Olha também para o que está acima da cabeça. Com mais um milímetro crescido, permanece olhando para os lados e para a frente, em busca do que pode ser utilizado, e para cima, aspirando a algo. Nunca para baixo, que é a base sobre a qual vai se erguendo. Mas a base é o histórico dos feitos, de cada milímetro, que garantiram a sobrevivência, o crescimento e produziram experiências.

A consciência que se tem de experiências é a de uma história com algum emprego, seja no manejo das coisas do ambiente, seja no manejo de coisas de quem está tendo a consciência de experiências. Escapam à consciência o que, da experiência, está além deste emprego. Isto pode ser as sensações e os gestos, sem sentido, que se relacionam à experiência. Como a consciência é apenas do que tem emprego, portanto sentido, somos cegos para muito do que faz nossa experiência. Esse muito vai formando a base. As técnicas, os saberes que atualmente estão empregados, também fazem parte dessa base cega, pois a consciência atinge, no máximo, seus últimos desenvolvimentos (o IPhone 6 lembra melhor do 5, o adulto lembra melhor da fase pré-adulta).

Cada nível é mais elevado que os anteriores. Quer encurtar a distância para com o que vê acima. O vencedor de uma prova de atletismo acaba de se sentir no auge. Esqueceu as dificuldades do começo. Por um breve momento lembra, a quem vê, a lenda do esporte. Olha para seus fãs, e é olhado por eles.

Olhos de boneca


Narizinho passava horas trepada na jabuticabeira. Perdia a conta dos frutos comidos. As vespas também se interessavam. Uma vespa passava horas mergulhada na doçura de uma jabuticaba.

Sem querer, Narizinho catou uma jabuticaba com vespa. Nhoc! Ai, ai, ai! Correu para Tia Nastácia, que arrancou da língua o ferrão. A menina deu por falta de sua boneca. A Tia buscou-a do pé da árvore.

Narizinho supôs que Emília estaria chatada, por ter sido esquecida. Qual! A boneca havia passado algum tempo parada, com os olhos vidrados, no nível das jabuticabas no chão. Ela queria contar à menina sobre um plano de vida que olhos humanos não alcançam.

A jabuticaba dolorosa, para Narizinho, estava caída. Em seu interior jazia uma vespa, retorcida. As formigas, seres com quem sempre se pode contar, organizaram a retirada dela do local, e combinaram o local do enterro.

Arrumada para ser enterrada, a vespa parecia melhor. Mas dormia o sono eterno. Um besouro sacou o papelzinho, de onde leu o discurso. A audiência assistiu. O discurso, porém, não terminava nunca, e as formigas foram embora.

Um sapo, que também se aproximara, estava adorando o falatório do besouro. No clímax, a língua encompridou, abraçou o discursador, e trouxe-o para dentro da boca. Nhoc! Mas, desta vez, sem gritos.

O besouro era exatamente o que deveria ser comido, pelo sapo. A vespa não era para ser comida pela menina. Ela é do plano daqueles que se embriagam com uma pequena fruta, são removidas por formigas trabalhadoras, recebem discursos de um nobre, de casaca. Um plano que é observado pelos olhos de botão da boneca.

A boneca a menina leva consigo, porque ela sempre lhe conta o que a menina mesma não consegue ver.

Baseado na edição chamada "As Jabuticabas", história de Monteiro Lobato extraída de "Reinações de Narizinho".

Mad Max: de volta ao Eden



Em "Mad Max: Estrada da Fúria", há uma tribo de mulheres velhas. Uma delas diz ter matado todos os homens que havia por ali. Houve uma época em que não se derramava sangue. Ela carregava uma bolsa com sementes, dentre as quais uma desenvolvera um broto verde. Surgindo a oportunidade, ela plantava. Aquele universo era terra pura, sem água, portanto sem verde, sem nada.

As tribos montam veículos, e vestem roupas super-montadas. Batalham entre si, e na tela voam pedaços de carne e metal. Caos. Finda a batalha, uma rajada recobre tudo de poeira. Vazio. A mulher é uma terra fértil, e o homem é o semeador. Os filhos são do homem, têm seu nome. Criados pela mulher. Apenas agora isso começa a mudar, mas é cultural. A Bíblia nos situa nisso.

No filme, a Cidadela é de um rei que produz seu exército engravidando mulheres de seu harém. Faz "garotos de guerra", que só conhecem o que é efetivo nas batalhas. Diante da morte, se atiram, levando muitos consigo. Serão lembrados, e ganharão uma espécie de vida melhor. Uma população miserável e deformada é mantida com migalhas.

A heroína foge com as mulheres, terra fértil que é o bem maior do rei. Lutam, sangram, ganham a perspectiva de 160 dias no deserto de sal. Max não as acompanha. Não espera nada da vida. Uma menina fantasma acusa-o de não tê-la salvo, como prometera. Ele vive em fuga, sozinho na areia sem fim. Naquela vez, a menina atira algo, e ele se defende. Pega na mão. Uma marca. Ele tem que ser salvador. Agora há as mulheres, há como salvar. Corre ao encontro delas, e as avisa de que à frente só há sal. Têm que voltar à Cidadela, derrubando o rei que as persegue. É o que fazem.

As mulheres tomam o poder e soltam a água para todos. Tornarão a terra verde, novamente. Assim, qualquer homem poderá semear.

As pedras de um analista


No consultório com gabinete contíguo, de Freud, havia livros. Também inúmeras placas, estátuas e outros objetos antigos. Ele dizia, brincando, ter lido mais sobre arqueologia do que psicologia. Acompanhava as últimas descobertas arqueológicas. No mediterrâneo estavam suas raízes mais profundas, dizia, e como não poderia viajar em busca delas, mantinha-as perto, o quanto fosse possível. Com seus pacientes também se comportava como um arqueólogo, desencavando pedras e descobrindo tesouros há muito escondidos. Seus amigos presenteavam-no com objetos deste tipo. Seus pacientes não se sentiam na sala de um médico.

As paredes do consultório de um analista têm prateleiras cheias de livros. Há os adquiridos durante a faculdade. Nem todos os livros desta época estão ali: foram suprimidos os de qualquer assunto que não fosse psicanálise. Os adquiridos posteriormente também só puderam estar ali se se mantivessem nessa área de interesse, a única que poderia aparecer, para contar a história de formação de uma analista.

Freud lia sobre figuras históricas. Comovia-se com os conflitos psicológicos apresentados em óperas, algumas das quais, após ter assistido por mais de trinta vezes, tornavam-se objetos revestidos por diversas mãos de verniz e poeira. Fazer a história deles, ou de um paciente, era descobrir tanto sua origem como seus acidentes.

O psicanalista encontra nos livros de psicanálise e, em bons casos, também de mitologia, filosofia e literaturas, as imagens e ideias, de biografias ou de teorias, que relê em grupos de estudo e em seus próprios pensamentos. Freud, ao escrever, acariciava suas estátuas, o suficiente para brevemente descortinar algo. Partes delas, dos pacientes e dele mesmo permaneciam inacessíveis.

Na minha estante há Iliada, que muitos me dizem ser difícil. Respondo que não, não é difícil, no sentido em que tomam algo por difícil: dependendo da edição, é possível de ler, sendo escolarizado e tendo alguma paciência.

Este livro permanece bastante inacessível, para mim. Eu a li, e entendi. Um analista entende tudo o que um paciente fala, por algumas seções. Essas duas coisas não querem dizer nada. Elas precisam novamente ser lidas, em parceria. As descobertas da leitura de livros como esse, e de falas de pacientes, não põem fim à sensação de que há algo a se entender.

Quando criança, tive alguns bonecos. De um deles eu venho me lembrando: era um rinoceronte com corpo de um homem. Os olhos eram raivosos. Eu passava um tempo olhando para aqueles olhos. Eu queria ver a raiva deles. Eu queria chegar no limite da sua raiva, quando eles ficavam com menos movimento, e pareciam bons. Para ver isso, eu precisava não ver as pálpebras, os músculos que mostravam a intenção. Devia ser apenas o redondo dos olhos vermelhos. Coelhos têm olhos vermelhos. Vampiros e alguns monstros, também. Os olhos, enfim, não param de mostrar coisas.

Freud olhava atentamente para seus pacientes. Que ele os escutava atentamente, já se comenta bastante. Nós, livrescos, dizemos que o analista baseia-se na escuta: de professores, supervisores, seu próprio analista e pacientes. Mas falta atenção aos objetos de um analista.

Uma análise, leitura, começa no olhar. É através dele que nos prendemos amorosamente. Aí, então, pode-se deixá-lo de lado, e escutar e falar.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A obrigatoriedade de se ler a Iliada


Diz-se que é obrigatório ler a Ilíada, como uma exigência para alguém se tornar culto. Ser alguém culto é apropriar-se da sua própria cultura. Não é, portanto, uma erudição vazia, sem sentido para fora dela mesma. É ter condições de entender seus próprios valores, seus hábitos, coisas que se tem sem que se perceba. Essa necessidade cultural, então, torna obrigatória a leitura deste livro.

Considero a Ilíada obrigatória para mim. Como isso começou? Minha primeira leitura dela não foi por curiosidade. Ao começar a ler, e avançando um bocado, a curiosidade tornou-se obrigatoriedade. Eu simplesmente tinha que continuar lendo, para saber não tanto o que aconteceria, mas como isso seria contado. Muitos livros despertam isso em nós. Mas a Ilíada tem algo de especial, que poucos livros têm: cada cena, ao ser lida, dava-me a sensação de que precisava ser entendida melhor. As intenções dos personagens, suas emoções, suas decisões, eram lidas com facilidade. A primeira leitura é fácil. A questão é que esse livro te obriga a continuar pensando em cada coisa que ele diz. Desde que você o lê, você começa a relê-lo. Desde o primeiro momento, a Ilíada me deu a sensação de que havia mais a ser entendido.

A exigência cultural de se ler os clássicos torna-se, para quem lê, uma exigência do leitor consigo mesmo. Pode-se induzir alguém a ler a Ilíada dizendo da obrigatoriedade disto. Pode-se, também, dizer que a sua leitura proporciona prazer. Os dois motivos estão corretos, quanto a este livro. Mas, para quem lê, a obrigação vira uma imposição da pessoa a si mesma, pois a pessoa não se furtará ao prazer da leitura, e estará tomada pela necessidade da releitura, do pensamento sobre o livro.

Eu digo a você para ler a Ilíada porque quero ter à minha volta mais gente que passe por essa experiência. É por isso que, geralmente, se recomenda livros. Uma professora me recomendava certo texto de Freud. Ela queria que, depois, eu mostrasse a ela o que entendi (e esse entendimento é do texto, como também de mim mesmo, da pessoa que entendeu o texto. Ao expressar o entendimento de algo, expresso meu próprio processo de pensamento. Expresso, por isso, a mim mesmo). Ela queria, também, e isso estava subentendido, que eu vivesse Freud junto com ela, que eu apreciasse o raciocínio dele, as novidades que ele trazia, e que os associasse a ela. Ao fazer isso, eu também os associava a mim. Quem fazia matérias específicas de terapia existencial-humanista, por exemplo, passava por outras experiencias, outra formação.

Formação requer convivência, viver junto os clássicos. É uma certa amizade, e é a construção de certas imagens para quem ensina e para quem aprende.

P.s.: Agradeço ao meu amigo Kelson JS, por ter me perguntado por que eu leio a Ilíada.

Para ler Platão



Peter Gay conta que Freud, anti-metafísico, ao ser acusado, pelos seus colegas médicos, de sempre apelar à “causa sexual”, dizia que seu Eros era como o de Platão. Platão é o criador do gênero literário chamado filosofia (lembra-nos Paulo Ghiraldelli Jr.): um relato das investigações em torno de um problema, buscando suas causas e razões. Os textos de Platão, contudo, apresentam imagens, cenas e personagens inspiradores dentro e fora da filosofia. Participantes de outros gêneros literários, como por exemplo a ciência, a ficção, os ensaios, etc, que sejam cultos, ou seja, que tenham lido Platão, assumem como eternas provocações imagens como a do Anel de Giges, cenas como a do encômio de Alcibíades a Sócrates, ao final do Banquete, e o comportamento e as falas de Sócrates. Em relação a estes elementos, permanece a sensação de que temos algo a descobrir e, por essa descoberta, se conversa, se escreve, intermitentemente, e por uma vida.

Um clássico dá a sensação que a própria vida que se tem seria bem usada nesse trabalho em torno dele. Sempre dá vontade de abrir um grupo para ler Platão. Quem é dado a isso não diz “reler”, mas ler, justamente porque a leitura trará coisas novas, e o pedido para que seja em grupo serve para garantir que a própria pessoa que pretende ler não faça uma leitura repetida, não pense as mesmas coisas... não por culpa do texto, mas de uma falha da própria pessoa, que pode não conseguir se inspirar por algo que é sumamente inspirador.

Freud se inspirou em Roma, com Michelangelo e os renascentistas. A Roma católica inspirou a sua aversão. Lou Andreas Salomé o fascinou, embora ele, pelo avançado da idade, não tivesse mais potência sexual. As boas sensações são curtidas, Freud se aproximava delas. O apaixonado de Platão é o arrebatado, que se torna ao mesmo tempo devoto enlouquecido, cuja sublime condição eleva sua alma a alturas impensáveis, faz o homem transcender a si mesmo. Todos os que sentem, os que ainda têm sensibilidade, e têm a imaginação se desenvolvendo a partir dela, são amigos de Platão. Mesmo que sejam neurologistas-psicólogos, ou filósofos pragmatistas: se são suficientemente cultos e apaixonados, volta e meia estão com o braço por sobre os ombros de Platão, para ouvir suas histórias sobre o amor.

sábado, 5 de dezembro de 2015

Jovens velhos antipáticos



Internação, no hospital, a comida é ruim, a cama é ruim, a tv é ruim, tudo é ruim. A enfermeira começa a ser xingada: se for japonesa, é japa, se for gorda, é rolha de poço, se for negra, crioula. Chega a visita da amiga, justamente japonesa, gorda e negra. As reclamações ao hospital continuam, e a amiga fica desconfortável. Sabe que a internada é boa pessoa, e passa por um momento difícil. Em situações normais, somos generosos. Entretanto, é a situação piorar um pouco, e a generosidade também. Internado, enjoado, com dores, diarreia, a pulsão volta-se inteiramente para o Eu, como diz Freud, e o mundo que se exploda.

Conheci um sinhozinho que era a alegria das crianças e dos cachorros que passavam pela sua porta. Era o "gente-boa". Nossa conversa se alongava. Surgiam as queixas sobre a família, especialmente o neto, e também contra a empregada, a quem chamava de "negra". A respiração ameaçava falhar, e ele me lembrava que seu transtorno de ansiedade era real.

Quantos "gente-boa" você não conhece que, se conhecer melhor, verá que têm atitudes e opiniões não generosas? Isto não diminui o ser "gente-boa", do vovô, pois ele realmente era um vovô fofo para os pequenos. Fazia-lhes bem. Mas, ao me permitir escutá-lo melhor, tomava-me de receptáculo para seus males. Era como se eu fosse seu exorcista.

O mundo ocidental não tem situações de guerra, não enfrenta terríveis crises econômicas, e não há escassez de alimentos. Tempos leves, em que a juventude se expande, como diz Paulo Ghiraldelli Jr (https://youtu.be/6CD9Zdc_mdI). Expande-se pelo tempo e pelo espaço: hoje se é jovem até aos 45 e, em reuniões de negócios, têm valido mais a energia e a inovação do que a seriedade e o conservadorismo.

Jovens fazem vídeos para a internet, comentando assuntos que, antes, apareciam apenas na boca de especialistas. Na mesa do jantar, discutia-se a política do país, para além do JN. Agora a opinião sai de casa. Pode-se ser jovem, fazer o que "dá na telha" em qualquer lugar, e a todo momento. O tempo de escolarização, para se ter uma disciplina de estudos, de aquisição de conhecimento, é muito lento. Entra-se na escola já se sabendo de tudo, e se sai dela se sabendo o mesmo. Isso porque hoje a educação inexiste, enquanto valor social, e o jovem é jovem integralmente, não há um corte.

O jovem, ou a velocidade cada vez mais sem barreiras, diz o que é a realidade, o que é bom e o que´é mau. Como diz Ghiraldelli, por serem balões com tendência a não pararem nunca mais de subir, buscam gravidade, algo que os puxe para baixo. Tatuar âncora está na moda. Da liberdade comportamental em geral não vão recuar. Atacarão tudo o que pareça restrição a essa liberdade: qualquer senão ao aborto, ao feminismo, à liberação das drogas, é entendido como insustentável conservadorismo, que não vale a pena sequer ser ouvido.

Uma pessoa com ótimo trâmite social, como um comerciante, num churrasco de domingo dizia coisas preconceituosas: "não gosto de viado. filho meu é homem". Quem o ouvia, mesmo que não concordasse, dava-lhe o direito à opinião, e tributava sua expressão a um momento de relaxamento em uma vida não tão fácil. Hoje, quem escuta o comerciante dizer aquilo, toma sua fala como pública e, portanto, séria.

Trabalho e lazer, privado e publico têm se separado menos. O jovem vai trabalhar de bermuda, e em casa se incomoda muito com as ideias menos socialmente generosas, dos pais. Uma moça chamada Jout Jout deu uma entrevista, em mídia escrita (http://m.folha.uol.com.br/voceviu/2015/11/1707052-jout-jout-diz-que-se-sentiu-desconfortavel-em-entrevista-com-jo-soares.shtml), em que disse ter se sentido desconfortável na entrevista que dera ao Jô. Ela havia lhe dito sobre uma amiga cujo namorado mandou-a tirar o batom vermelho, "que era de puta". Jout Jout fez um vídeo em que relatou a cena como sendo de uma relação abusiva. Jô pediu para a produção exibir o "vídeo da puta". Foi uma tirada, uma piada que poderia provocar riso até em pessoas que passaram por problemas semelhantes. Mas Jout Jout se incomodou.

O incômodo da mesa de jantar foi levado para a mesa do Jô, que é uma situação social, embora relaxada. A juventude incomodada ocupa todos os espaços, desconhecendo diferenças entre o que um pai fala no churrasco, o que ele fala no escritório e o que é para o Jô.

Todos queremos viver em um mundo melhor, o que quer dizer menos pobre, menos burro (o que inclui menos preconceituoso), menos feio, menos triste, menos desrespeitado, menos controlado. Falas privadas devem poder ser livres. Um preconceito dito em casa pode ser visto com um peso menor, caso o ponto central dos problemas dos grupos seja atacado. Quanto mais a vida for favorável a todos, sem esquecer ninguém, menos perseguiremos piadas, menos desconfiaremos do riso, mais liberdades diferentes nos daremos no privado e no público.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Literatura e mudança



"Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça. É ela menina, que vem e que passa. Num doce balanço, a caminho do mar." Os olhos de Vinicius seguiam os passos de Helô Pinheiro. Mas uma lírica não representa a realidade. Textos têm regras próprias. As intenções e as emoções de personagens existem no interior deles. Mas enquanto ouvimos esta música, paramos de ser quem somos, e olhamos Helô.

Quando Aquiles teve uma de suas mulheres tomada por Agamenon, encheu-se de cólera. Agamenon devolvera uma das próprias mulheres ao pai dela, sacerdote de Apolo, pois este havia pedido ao deus que se vingasse dos gregos. Agora ele queria que alguém do seu exército o recompensasse. Atena evitou que Aquiles usasse a espada para responder ao general. Aquiles retirou-se da guerra, desejando que o exército grego fosse massacrado pelos troianos, e amargasse a sua falta. O leitor se sente injustiçado, junto do grande guerreiro. Entrega a mulher a contragosto. Deseja que os outros sofram, por ter sofrido.

Fechado o livro, o cotidiano volta, a chamada realidade. Pega o carro, dirige bem, mas é fechado. O barbeiro xinga, e sai como se tivesse razão. O peito enche, dói, e exige uma reação urgente. Os membros ficam quentes e pesados, imediatamente prontos. O leitor sente-se Aquiles. Aprendeu com o herói, contudo, que a recompensa não precisa ser obtida agora, pois uma Ilíada inteira foi percorrida, à espera do momento de obtê-la. Enquanto lia sobre Aquiles, o leitor o vivia. Entendia o personagem. Depois voltou a si. Então, em uma situação de injustiça, pôde reconhecer o que sentia e se preparar para fazer.

Lemos um texto. Então sentimos seu espírito, o vivemos. Entendemos o lido, as nuances dos personagens, com profundidade. Voltamos ao cotidiano, em que cada um tem padrões de entendimento e de conduta para si mesmo e as coisas do mundo. Então ocorre uma situação cuja vivência se assemelha à do texto, a faz ser recordada. "Epa, estou começando a agir feito Aquiles." "Hum, olha como ela passa, a caminho do mar...".

Mas o texto, trazido para o cotidiano, também funciona como metáfora, no sentido que Richard Rorty dá a esta palavra. No cotidiano, a peça literária não tem uso prático além da ludicidade. Com o uso, porém, a frase estranha parece combinar bem com certa situação ou emoção. Quando, no Tom & Jerry, Tom recebe uma pancada, ouvimos "Pow!". Quando, na escola, um coleguinha cai da cadeira, a criança grita "pow!". De que outra forma ela se relacionaria com a cena? Logo ela se preocupará com a criança caída. Mas, no primeiro momento após a queda, "Pow!" é o que de melhor pode ser dito. E até ajuda a medir a gravidade do ocorrido, e chamar por cuidados.

Muito se diz que a leitura deve ser estimulada para todos, principalmente para as crianças. E que se deve ler muito. A criança que só quer saber de vídeo-game, o jovem que só quer zoar, são considerados impulsivos, e convidados a ler livros. De um pedreiro frequentemente se diz que é bruto na expressão das suas emoções. Não tem refinamento de linguagem verbal e não-verbal. Ele precisaria ser educado, aprender a curtir obras de arte. Então ele será mais sensível, o que inclui sentir e expressar que sentiu mas, ao mesmo tempo, sua sensibilidade estará sob controle. Estas posições são tributárias da noção de que a razão deve controlar a emoção, inseri-la numa gramática de sensibilidade.

Nossa expressividade, ideias e emoções foram adquiridas, modificadas e abandonadas, no manejo que temos de nós mesmos e das situações por que passamos. Alguém que pareça "chucro", ou seja, bruto nas emoções, e de vocabulário e gestos grosseiros, na verdade opera com razão e emoção bem coordenadas, e atendendo às suas necessidades e sentidos. E participaram da formação deste homem músicas, filmes, textos, falas, dos quais ele pinçou elementos e os trouxe para seu cotidiano, primeiro como ludicidade, depois, descobrindo uma adequação, como uso, engenho. Sugerir que ele leia um grande livro não é salvá-lo de algo tal como uma insuficiência da razão. Razão não é algo que alguém possa desenvolver depois de que tudo o mais foi desenvolvido. Ela vem junto do homem integral.

As frases, sons, ações, etc, de um bom livro, são trazidos para a vida como metáforas, frases desprovidas de sentido, que não visam representar nada. O uso, contudo, torna-as "candidatas ao valor de verdade", como diz Rorty, ou seja, elementos de dianteira na descrição de certos fatos, redescrevendo-os. Assim, os parâmetros objetivos para a formulação das nossas redes de crenças e desejos mudam, e fazem estes mudar.

Razão, aqui, é tomada como alguma coisa que produz entendimento para um texto lido e vivido, também para o si mesmo e o mundo, cotidianos, e para aonde, neste cotidiano, as metáforas oriundas de textos e artes, em geral, estão alterando as verdades e forçando mudanças nas crenças e desejos.

Espaços novos freudianos



Em 1896, Richard Von Krafft-Ebing, especialista em psicopatologia sexual, presidia uma mesa com este tema, em uma associação de psiquiatria e neurologia. A conferência "A etiologia da histeria" fora apresentada pelo Dr. Sigmund Freud. Tendo reunido a investigação de dezoito casos de histeria, Freud podia assegurar que a etiologia dela era um trauma sexual sofrido pelos pacientes quando em idade pré-pubere, sexualmente imaturos. Estes abusos sexuais haviam sido perpetrados por pessoas próximas das crianças, muitas vezes o pai.

A plateia mostra-se cética. A Krafft-Ebing, "parece um conto de fadas científico". De modo geral, os pacientes histéricos de Freud, durante a hipnose ou não, e após certo tempo de acompanhamento, relatavam-lhe cenas de abuso ocorridas em uma idade em que não possuíam condições de entender. Na explicação freudiana da histeria, um certo acontecimento mais recente se articulara ao antigo trauma, inconsciente, fazendo com que a intensidade psíquica deste fosse para o membro ou parte do corpo com participação importante na cena antiga, fazendo com que neste membro ou parte do corpo se formasse um sintoma histérico, físico.

Freud ouvia seus pacientes, e descrevia essa história psíquica da doença, referindo-se a um fato ocorrido com eles. No entanto, Freud começaria a perceber as contradições desta teoria. O casos de histeria eram numerosos. Se para cada um deles tivesse ocorrido um abuso sexual, e considerando que nem todo abuso resultava em histeria, então deveria haver uma infinidade de abusos ocorrendo nas casas e outros lugares fechados. E isso não era provável.

O próprio pai de Freud, Jacob Freud, foi repensado, em suas considerações: quando Freud era criança, o pai tivera o casaco jogado na lama por um antagonista dos judeus, na Viena, em que eles habitavam. Docilmente, Jacob abaixa-se e apanha o próprio casaco. Freud desenvolve um espírito de enfrentamento, em tenra idade, dos seus opositores anti-sionistas e, quando adulto, dos desaprovadores de suas ideias. Cada crítica era recebida com ódio. Freud agarrava-se aos relatos dos seus pacientes, para provar suas teorias. Acabou fazendo uma leitura por demais literal, deles. A recusa do próprio pai o fizera acusar os pais, em geral: ele perceberá isto na auto-análise que empreendeu nos anos 1890. Jacob estava longe de ser um abusador, Freud bem sabia.

A verdade da histeria em fatos ocorridos no passado, tal como Freud descreveu, também naquela conferência, como um desencavamento, limpeza e análise de pedras, começa a não ser satisfatória como explicação geral. Freud começa a aceitar que "não há marcas de realidade no inconsciente", nem há como distinguir entre a verdade de um lado e, de outro, a ficção emocionalmente carregada".

As falas dos pacientes podiam, sim, vez ou outra relatar abusos reais. Mas também podiam ser contos de fada, em relação aos quais deve-se procurar o sentido, não acreditar literalmente. Este passo de Freud foi um caminho para a consideração da imaginação, ou da autonomia da vida psíquica, entendendo que um relato pode corresponder a uma fabulação, e não a um fato. Não se tratava mais de focar a atenção no desvendamento de coisas realmente acontecidas, mas de decifrar enigmas psicológicos.

Trazendo o filósofo americano Richard Rorty, podemos dizer que Freud redescreve o sentido de psiquismo: ele não mais é entendido como um aparelho produtor e armazenador de representações da realidade, às quais deve-se olhar para se conhecer a verdade da realidade e do psiquismo, mas algo que pensa de uma outra forma, livre da lógica consciente. Freud neurologista quisera demonstrar verdades sobre a histeria e sobre abusos, a partir da fala dos pacientes. Freud psicólogo viu nos sonhos, chistes e atos falhos produções totalmente novas, inesperadas, que riam das tentativas de explicá-las por meios de outros fatos.

Era necessário cavar, usando os sinais e sintomas como pistas, mas para encontrar não-se-sabe-o-que, que é o universo inconsciente. O inconsciente se apresentará, anos depois, na psicanálise, como algo que desafia "verdades por demonstração". E que também não se oferece a que se diga uma verdade sobre a realidade dele. O inconsciente será uma coisa, um algo que imporá sua presença, cotidianamente, situado fora da dialética com a consciência e a realidade. Apresentará um outro funcionamento que, se o analista e o paciente conseguirem descrever, poderá ser apresentado para o eu como um texto novo, palavras novas, sobre ele mesmo.

A psicanálise foi a aventura de Freud, tanto em sua análise pessoal como na dos seus pacientes, por espaços novos. Ele foi para onde seus críticos, os médicos de sua época, não mais o alcançariam. Apenas ele e seus pacientes estariam lá, para fazer romances que os levariam a palavras e enredos novos para eles mesmos, e para a psicologia.



Thiago Ricardo, psicanalista


Referências

Peter Gay: Freud, uma vida para o nosso tempo. Companhia das Letras.
Paulo Ghiraldelli Jr.: Richard Rorty: a filosofia do mundo novo, em busca de mundos novos. Vozes.

P.s.: Reproduzo aqui uma parte do texto "Verdade e liberdade: uma réplica a Thomas McCarthy", de Richard Rorty, constante no livro do Paulo Ghiraldelli. Foi um trecho que me inspirou particularmente, para o que escrevi acima:

"(citando Milan Kundera)
"A erudição de Rabelais, grande como ele, tinha um sentido diferente da de Descartes. A sabedoria do romance é diferente da sabedoria da filosofia. O romance não nasceu do espírito teórico, mas do espírito do humor. Uma das maiores falhas da Europa é que ela nunca entendeu a mais européia das artes - o romance; nem seu espírito, nem seus grandes conhecimentos e descobertas, nem a autonomia de sua história. A arte inspirada pelo riso de Deus não serve, na natureza, às certezas ideológicas, ela as contradiz. Tal como Penélope, ela desfaz cada noite o tapete que os teólogos, filósofos e professores ensinaram os homens a tecer durante do dia."

Este desfazer é efetuado pela redescrição, oferecendo um vocabulário para falar de algumas pessoas, situações ou eventos específicos que atravessam o vocabulário que temos até então utilizado em nossas deliberações morais e políticas (e psicológicas, insiro eu, Thiago). O romance não oferece um argumento dentro do mesmo espaço dialético que previamente ocupamos, mas oferece antes um vislumbre de outros espaços. O desejo de redescrever, cultivado pela leitura dos romances, é diferente do desejo de demonstrar, cultivado pelas leituras metafísicas." (Ghiraldelli, pags. 107 e 108)

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Lógica da morte



Seres que antes não considerávamos "um de nós", hoje consideramos. Isso tem avançado com o boi e o porco. Pode acontecer com o embrião humano imaturo. No entanto, nossa sensibilidade geral é anti-aborto. Um feto já é considerado um de nós. O impulso pró-aborto busca, então, delimitar um momento entre a concepção e o que se considera o início da vida humana (a atividade cerebral), e o que se encontra em desenvolvimento, no interior deste momento, seria algo possível de ser eliminado.

Em outras palavras: entre uma ação, intencional ou não, que resultou na concepção, e o feto humano reconhecível por ultrassom, que impõe exigências a todos que têm a ver com ele, ou ainda, entre um momento de mais condições para a decisão, e outro com restrições nas possibilidades de decisão, criou-se um momento em que pode-se intervir. É como se as pessoas envolvidas com o feto tivessem uma última chance de intervir sobre seus destinos, e pudessem empregar todos os meios para isso. A atenção que faltou, momentos antes da concepção, torna-se super-aguçada na lida com o embrião humano imaturo.

A liberdade apresenta-se como um grande valor mas, uma pessoa que pede por ela, não raro desconsidera os seus parâmetros. É liberdade em relação a tudo? Em relação a coisas específicas? Liberdade, para ter sentido, precisa ser uma busca baseada nas condições atuais de um indivíduo: o saber que ele possui, as coordenadas geográfico-históricas onde ele habita, e o espaço de intimidade em que ele se fez em condições de ser sujeito, darão um leque de possibilidades de ação. E dificultarão outras. Liberdade é reconhecer esses fatores de onde se parte, e então decidir o que fazer. Não é o desligamento total de tudo: alguém assim ou é uma lufada de ar, ou é psicótico que, no corte com o mundo, aferrou-se a um delírio que ele mesmo produziu.

Ter um filho traz uma série de exigências, desde a gestação. Homens, mulheres, de todas as idades e funções familiares têm seus afazeres e preparo. E esse processo é curtido por todos. As posições pró-aborto consideram as exigências de uma gestação como se abatendo apenas sobre a gestante. Sim, há muitos e muitos casos de mulheres que se encontram só, durante a gravidez. Mas o certo não seria que elas tivessem um acompanhamento, um acolhimento, ao invés de uma autorização para interromperem uma gravidez, caso não a queiram, e continuem seguindo sozinhas, no "meu corpo, minhas regras"? Poderíamos pedir uma política de maior atenção às gestantes.

As exigências decorrentes de uma gravidez parecem ameaçar os que querem liberdade a todo custo, inclusive ao custo da eliminação das relações e dos compromissos que os constituiu, e eles estão indo ferozes em cima do embrião. Recusam-se a ver outro modo de lidar com uma gravidez indesejada. Estão agindo sob a lógica da morte, da eliminação da ameaça à "liberdade total", abstrata. Essas pessoas nunca serão livres, pois são justamente as que não sossegam, não param de criar grilhões contra os quais lutar. Nunca estão em paz.

Os motivos da militância



Em 2013, eu e uns amigos fomos a uma das grandes manifestações ocorridas naquele ano. Levamos um cartaz em que se lia "Pelo direito de fazer sexo com a Dilma". Nossa justificativa partia do entendimento que tivemos, de que, naquelas manifestações, não havia uma grande bandeira, seja estudantil, racial, sexual, partidária, etc. Na rua reuniram-se milhares de indivíduos com liberdade de falar o que queriam e, a partir disto, lançavam demandas políticas. O clima parecia favorável a que todos pedissem os direitos que queriam pedir.

Eu e meus amigos quisemos pedir um direito do qual não tínhamos necessidade - "fazer sexo com a Dilma" -, pois a necessidade era de pedir direitos. Era como se ali se iniciasse uma era em que todos poderiam inventar o que queriam, indo além do querer o que necessitavam. Sim, havia grupos com reivindicações ligadas a necessidades deles próprios, ou de outras pessoas. Um grupo grande era do Colégio Pedro II, com gritos que expressavam interesses particulares deles, mas também com gritos que expressavam a curtição do poder manifestar-se na rua.

Após o fim dessas grandes manifestações, houve quem dissesse que elas não mudaram nada, na relação da sociedade com a política. Mas os efeitos de um evento, envolva muita ou pouca gente, se desdobram de uma forma que ninguém pode observar ou prever. Em 2013, descobrimos que podíamos pedir direitos. Eu e meus amigos descobrimos que, na verdade, não precisávamos pedir algo que nos fosse necessário. Fizemos isto, repito, pela descoberta de que se podia pedir. Esse momento passou.

Atualmente há, na internet, uma forte militância a favor da descriminalização do aborto. Homens e mulheres, de várias idades, dizem que se deve salvar a vida das muitas mulheres que fazem abortos clandestinamente, e estão morrendo em clínicas assemelhadas a açougues. É um motivo que, obviamente, considero justo. Ao lado desse benefício, estes militantes dizem não existir o malefício de se estar matando uma outra vida humana, a que seria do feto. Argumentam que quando um feto humano encontra-se abaixo de certo nível de desenvolvimento, não possui atividade cerebral e que, portanto, ainda não é uma vida humana.

O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. vem apontando, em vários textos (leia, por exemplo, esse http://ghiraldelli.pro.br/maria-rita-kehl-e-o-aborto-nosso-de-cada-dia/), o problema de se defender a descriminalização do aborto com base no argumento da imaturidade do embrião: o critério com que opera a medicina, para estabelecer o início da vida, pode mudar, à medida em que avançarem as pesquisas em biomedicina e anatomia. A militância pela descriminalização do aborto baseia-se numa concepção científico-metafísica, para dizer o que é a vida humana. Desconsidera que não há mais fundamentos metafísicos para os saberes, e sim perspectivas, e que a própria ciência modifica seus parâmetros.

Considero o argumento da imaturidade e, portanto, da exclusão do feto da humanidade, uma racionalização nossa contra algo que nos sensibiliza demais, que é a morte de bebês.

Mas o maior problema da militância pró-descriminalização, também apontando pelo Paulo, é filosófico e político: mesmo que o embrião imaturo não seja considerado uma vida humana, ele ainda não é uma vida e, portanto, não é melhor que seja salva? Foi o principal objetivo, sonho, do filósofo americano Richard Rorty a diminuição da crueldade dos mais fortes contra os mais fracos. A mulher é fraca, em comparação com o homem. Ela precisa ser defendida por leis especiais e mudança de alguns comportamentos. Mas o feto, humano ou não, também precisa ser defendido.

Como alternativa à descriminalização do aborto, Paulo sugere uma política de doação de bebês ainda em gestação, como ocorre em outros países. Já eu, sugiro uma política que condicione o aborto a um intenso acompanhamento psicológico e de assistência social para a gestante, em que se observaria se a interrupção da gestação é o real interesse dela, ou se ela está de alguma forma sendo coagida por conflito psicológico, necessidade material ou algum outro fator. E a gestante receberia toda a ajuda de que necessitasse, para encaminhar a decisão que ela tomar a partir desse acompanhamento. Paulo e eu queremos lutar contra aquilo que o Papa Francisco vem chamando de "cultura do descarte".

Mas, esta foi uma longa digressão. Voltemos ao tema do pedido de direitos. Se em 2013 houve os que puderam pedir o que lhes era necessário, e alguns sacaram que o necessário era justamente pedir e, portanto, podia-se pedir quaisquer direitos, esta militância pró-descriminalização do aborto, a meu ver, pede por algo que não é necessário para as pessoas que pedem. Imagine uma pessoa que integre essa militância (pode ser você mesmo): você acha que ela gostaria de fazer um aborto? Você acha que ela alguma vez pensou que isto seria algo bom para ela fazer, na vida dela? Posso ser demasiado otimista, mas por eu considerar o aborto algo ruim, uma cessão triste de uma vida (humana, no sentido de que tem tudo a ver com o homem), imagino que a maioria das pessoas, mesmo os pró-aborto, também o consideram ruim e triste. Então porque eles militam?

Além do motivo justo, por salvar vida de mulheres, e do motivo injusto, matar fetos, a militância parece se motivar por uma necessidade de pedir direitos, mas uma necessidade de estranho tipo. Não é uma reivindicação que corresponda a uma necessidade do indivíduo que os reivindica (ou do grupo com quem o reivindicador se identifica). Tudo bem, fizemos isso em 2013, de inventar reivindicações. Mas eu e meus amigos percebemos que o fazíamos, assim como outros indivíduos, na manifestação, também brincaram (a brincadeira necessária) de pedir coisas. Era um exercício pela liberdade, amparado por uma certa ideia de liberdade e política.

Os que pedem pela descriminalização abraçam esta bandeira como uma identidade pronta para usar, e que os reúne numa coletividade. Buscam, portanto, um certo senso de realidade e de si mesmos. E neste senso é importante a ideia do "pedir pelo pedir", que não tem nada a ver com a necessidade de ter a liberdade de pedir: "pedir pelo pedir" é o que faz aquele que vive em busca por aderir a causas que mobilizem a sociedade, que sejam comentadas por muitas pessoas. Ele não tem exatamente necessidade da liberdade de pedir, mas quer um sentido já dado, para a sua vida.

Estamos em uma época de muitas reivindicações, e muitas conquistas de direitos. Isto sem dúvida expressa clamores legítimos, e tem melhorado a vida de muitos indivíduos. Mas tem existido entre nós a ideia de que ser um indivíduo é ter uma bandeira, é colocar politicamente todas as suas questões pessoais. Talvez por que estejamos sem boa educação, e nos falte riqueza na conversa subjetiva, os modelos sociais para nos olharmos a nós mesmos, os espelhos, têm ganho esta preeminência.

Este texto, enfim, foi para você olhar sinceramente para os motivos da sua militância. Ou a do outro.

Estereótipo é ruim?


Ontem reparei que minha filha assistia à novela Chiquititas. Hoje perguntei a ela se a história também se passava em uma escola, como a da novela Carrossel, que recentemente ela acabou de assistir. Era num orfanato, ela disse. Ao ouvir isto, me adiantei e contei que as crianças do orfanato não têm família, e complementei dizendo que isso era triste. Ela falou que não era triste pois, na novela, elas formam uma família, junto com as pessoas que cuidam delas.

Minha fala baseou-se no estereótipo de que crianças em orfanatos não têm família, e que por isso são tristes. Geralmente, quando, em uma conversa, estou explicando algo, e à cabeça me vem um estereótipo, um encadeamento de ideias que, socialmente, vêm atreladas a uma palavra ou imagem, procuro pensar no que é particular do caso sobre o qual se está falando, e que escapa às ideias do estereótipo.

Quando falei o estereótipo para a minha filha, sobre o orfanato e as suas crianças, rapidamente ela me apresentou ideias que não eram as do estereótipo. Quer dizer, quando não sou eu que faço o trabalho de ver o que o estereótipo não dá conta e, ao invés disso, solto-o numa conversa, a outra pessoa, que está atenta ao caso, portanto sabe as suas particularidades, é quem diz o que está além do estereótipo.

Jean Willys, uma vez, comentando o seriado Sexo e as Nega, da Globo, não falou o lugar comum de que o estereótipo é ruim pois, quando é utilizado para se referir a um caso, é desatento à sua particularidade. O deputado disse que estereótipo tem função comunicativa, é a transmissão de uma ideia que é facilmente entendida pelo destinatário. Após esse primeiro entendimento, ideias novas podem ser apresentadas na conversa. O estereótipo não precisa se perpetuar.

Sexo e as Nega apresentava mulheres negras moradoras da favela, que trabalhavam e gostavam de sair e se divertir. Às vezes faziam sexo casual. Houve reclamação de que isto era o estereótipo da mulher negra. Claro que é estereótipo! Mas, uma vez estabelecido que as histórias se passariam com personagens com aquelas características, o desenrolar das situações levavam-nas para outros caminhos, e a expor características diferentes.

Uma história pode partir do que nos é familiar (e o familiar são ideias assentadas que levamos conosco e aplicamos para entender as situações por que passamos. O familiar tem todo o funcionamento do estereotípico), mas, se for uma boa historia, nos levará a viver outras coisas.

Estamos sendo capazes de não pararmos no estereótipo, e de sermos bons leitores para boas histórias?

Aquele que mata e aquele que ama



Alimentar-se do fruto proibido foi, para Adão, não uma maldade. Ele não conhecia o bem e o mal. Na análise do Paulo Ghiraldelli Jr (http://ghiraldelli.pro.br/a-biblia/), o feito de Adão foi uma desobediência a Deus. No paraíso, o homem e os animais alimentavam-se do fruto das árvores. Não havia derramamento de sangue. Mais adiante, no Êxodo, veremos que Deus põe-se como o libertador do povo, que fora escolhido por ele, da escravidão no Egito. A Moisés, no deserto, ele transmite as leis que deverão reger a vida da nova sociedade, de modo a que novas situações de escravidão não fossem criadas. O homem pode ser conhecedor do bem e do mal, mas deve obedecer as leis de Deus, para que não volte a criar um novo faraó, um novo Egito.

Na industria de produção de carne (branca ou vermelha, não importa), os cruzamentos de indivíduos, as características de embriões, os processos de nascimento e criação, os sistemas de transporte e os métodos de abate são pensados de modo a que a carne seja produzida de foma mais rápida, barata e rentável. Cada indivíduo que está dentro desta cadeia já nasce sendo pensado como o recheio de uma embalagem, vendido esquartejado e aos bifes. Cada vida é pensada como algo a ser conduzido por esse processo de produção, até a embalagem para a venda. Então não é propriamente uma vida, mas um objeto no qual o destino se rebate em cada etapa do seu desenvolvimento, significando-o.

Um boi foge dessa cadeia. Um funcionário o mata com tiros na cabeça (http://g1.globo.com/sao-paulo/sao-jose-do-rio-preto-aracatuba/noticia/2015/11/boi-escapa-de-frigorifico-e-acaba-sacrificado-por-policiais-em-andradina.html), pois assim a sua retirada da rua será mais fácil. O funcionário obedece à cadeia de produção da carne. O mal não é fruto de uma entidade, mas é o que se vive num mundo infernal criado pelo homem. Infernal porque é o da escravização dos seres: escravizamos animais, escravizamos homens. Na encíclica Laudato Si, Papa Francisco conta que o uso predatório dos recursos naturais, pelo homem, degrada não só a natureza, como o próprio homem. A natureza é a mãe, a criadora dele, e ele precisa agir como está posto no Gênesis: ser não só um utilizador, mas um guardão do solo e da vida que está sobre ele. Deus funciona, aqui, como uma direção a ser olhada pelo homem para que ele tenha consciência, ou seja, para que ele lance uma ideia e tenha uma resposta, e continue conversando sobre o que fazer, aproximando, então, a obediência do fazer o bem.

Hannah Arendt mostrou que o mal é uma realização de funcionários eficientes, obedientes a seus superiores, cumpridores de suas tarefas. O general nazista Eichmann, em seu julgamento, mostrou-se não brilhante a ponto de que pudesse afastar-se das ordens de seus superiores, e de tudo o que ocorria a seu redor, e talvez fazer uma crítica, ver o erro do campos de concentração. O mal foi feito sem a consciência do mal, mas por simples, inconsciente, obediência.

Os funcionários da carne (incluindo os consumidores) desconhecem o boi, o que ele faz quando está num pasto. Nunca enfrentaram a agilidade de uma galinha, ao tentar apanhá-la. Talvez tenham visto o filme Babe e considerado criar um porquinho no lugar de um cachorrinho. O funcionário da carne é um personagem que desconhece isso tudo. Esse personagem pode existir no mesmo indivíduo em que habita o personagem que se intriga com os animais vivos. O primeiro personagem não entra em conflito cm o segundo, pois o segundo não impede a continuidade do primeiro. É que a carne nunca foi viva, para quem mata e come os animais. Este personagem retira da carne toda as qualidades do vivo que, nas considerações de quem gosta dos bichos, recaem sobre aqueles a quem achamos que podem lhe divertir, emocionar ou amar. O ser que está na cadeia da carne, por nunca ter estado vivo, é totalmente diferente do bicho que é considerado fofinho.

Há uma parte nossa que deixamos correr sem consciência, obediente e fazedora do mal. E há uma parte nossa que, no trabalho da consciência, olha para qualquer ser, inclusive os animais, e vê algo importante neles. Algo que fala à própria pessoa que vê.

O homem que atirou no boi, no momento em que fazia isto, não viu um boi. Não viu o boi que veria numa visita à fazenda. Viu uma embalagem de bife que fugiu. A nossa parte sem consciência assim o é por não ver o que está à sua frente - um boi andando -, e por não ver a si mesmo - alguém que gosta dos bois que vê pastando, quando visita uma fazenda. Ele está apartado tanto do empírico quanto a própria experiência. Naquele momento, ele obedece a um processo, e não tem qualquer consciência.

Larga deu!


Porque ser copiado é ruim? Imagine alguém fazendo tudo igualzinho a você. Igualzinho mesmo. Não te pareceria que você tem dois corpos, ao invés de um, mesmo que a pessoa assine o que fez usando outro nome? Um problema será se justamente essa pessoa não te copiar com exatidão. Ela te misturar com coisas ruins. Neste caso, então, o problema de ser copiado é o de ser copiado insuficientemente. Caso a cópia fosse idêntica, e você pudesse acompanhar de perto os passos do copiador, você se sentiria agindo em dois corpos (como eu já falei), como se fosse um deus. Você o controla!

Mas você se controla? Se você reparar, uma infinidade de coisas passam pela sua cabeça, sem controle. Consciência pode ser co-ciência, tomar ciência junto, a mesma ideia estar no eu e no mim mesmo, e eles até apertam a mão. Consciência também pode ser uma mediadora entre eu e a realidade, saber diferenciar o que está em mim do que não está. No festival de coisas da minha cabeça, vem a consciência, pegar um desses elementos para ver o que o si mesmo acha dela, e o que eu acho dela. Ou fazer isso com as ideias decantadas no meu eu. O pensamento é o desenvolvimento da ideia nesse trabalho de envia pra lá, envia pra cá, que é a consciência. Esse trabalho é feito entre eu e mim mesmo, entre eu e um amigo, entre eu e um papel, etc.

O que chamo de eu é o que vou retirando, desses momentos de pensamento, do que digo que são ideias, acontecimentos, emoções, etc, que dizem respeito a mim. O eu é um personagem, e o repito, copio a mim mesmo, quando quero agir de forma segura, pois vou no que já me sei agindo. "Como vou fazer esse texto para a faculdade? Estudei, então vou escrever o que aprendi. É só fazer isso." Sinto-me seguro. Mas, na escrita, como ela é relação eu-papel, algo diferente surge. Não consigo me imitar completamente. A conversa leva a algo novo.

Uso o eu como uma baliza, no meio das muitas coisas que passam por mim. Uso-o para me encorajar na situação em que terei que conversar com o papel, pois ela propicia ideias novas. O medo de quem faz um texto para a faculdade pode não ser o de lhe faltar as ideias certas, mas o de não saber se as ideias novas que surgirem podem ser consideradas adequadas. O eu é uma baliza, mas ocorre o que lhe escapa. Ocorre em conversas, e estou referindo-me à relação que antecede o eu, inspirando-me em Peter Sloterdijk. Posso, também, trazer Lacan para dizer que minha fala se insere na linguagem, que é muito maior do que eu, determinando-me e fazendo ideias me atravessarem. Então o eu não é o deus de si mesmo, embora eu conte com ele toda vez em que vou me concentrar minimamente para fazer algo, e eu recomende o eu de uma pessoa para ela mesma, quando ela fará algo.

Ao copiador dizemos para ele copiar a si mesmo. Não, dizemos para ele ser original. Cada um deve conduzir o seu eu à situação de conversa, em que elementos armazenados nele entrarão no bate-rebate da reflexão, seja como si mesmo, seja com o amigo ou o papel, e novas ideias surgirão. Esse exercício faz surgir ideias novas. Os gregos antigos ouviam a Ilíada e a Odisseia. Inspiravam-se nos grandes personagens, deuses e heróis. No inapreensível campo da linguagem, os personagens são as balizas para cada um agir ou pensar a si mesmo. Na tentativa de um grego em ser como Aquiles, ele excedia o herói. Levamos tão a sério o personagem que o exageramos. Se não o levamos a sério, sentimos que estamos aquém dele, não sendo realmente "Aquiles".

Agora entre nós, modernos, cada pessoa tem a sua referência para ser ela mesma - o eu particular. Não há modelos para todos. Cada um deve ter um eu, para apresentar a si mesmo e aos outros. E, como já falei aqui, para empregar nas situações de bate-rebate. Ou lacanianamente, para ter uma mínima delimitação do campo da linguagem. Por haver esse eu é que cobramos que cada um inspire-se na sua individualidade. Bem, pegando a noção de esfera, de Sloterdijk, diremos que primeiro há a relação, e dela emergem um eu, talvez também outro eu. Estes dois eus têm coisas em comum - a esfera, a intimidade, o "mundinho particular" - , mas são diferentes.

Cada um reinvindica para si mesmo a utilização do próprio eu. Mas caso um irmão me imite, ele que passou por muitas situações comigo, emergiu do mesmo ambiente, e é alguém a quem eu posso observar os passos, não ficarei tão puto quanto ficarei se um estranho me copiar. Afinal, ele emergiu de outra esfera, então se ele me copiar será totalmente ilegítimo e difícil de eu acompanhar. Mas me divertiria um amigo me contanto o que aconteceu quando ele agiu, à mesa de jantar, exatamente como eu faria. É a sensação de ser um deus. Mas me desagradaria se ele não me contasse, se eu sequer soubesse disso, ou se alguém pegasse um texto inteiro meu e mudasse o nome, sem que eu pudesse ver e me regozijar com a reação das pessoas.

A quem pergunta porque é ruim ser imitado, eu diria que o que pode haver de ruim é o imitador ter repetido o meu texto de tal modo que ele não o utilizou para conversar com o papel. Caso tivesse feito isso, teria a tal ponto pensado coisas que daria outro nome para o texto. Eu não quero ver o meu eu por aí, justamente porque não quero ver gente na mesmice, assim como me incomoda eu me repetir.

P.s.: Escrito a partir de uma conversa com Kelson JS.

O adulto e a criança (ou: o que é absurdo no caso do menino que quebrou a escola)



Um vídeo recentemente divulgado (http://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2015/10/mae-diz-que-vai-acionar-justica-contra-escola-onde-filho-foi-filmado.html) mostrou um garoto pondo abaixo uma sala de sua escola. Os funcionários olhavam, alguns se aproximavam e puxavam-no, ao que a pessoa que filmava dizia para que o deixasse fazer o que quisesse, pois estava sendo filmado. Na internet, muitos disseram que punição física mudaria aquele comportamento.

O garoto ameaçava derrubar uma estante, sob o som de pedidos de socorro aos bombeiros. Antes de se falar em bombeiros, chegou-se a falar em polícia, mas deixaram esta ideia de lado, pois com ela ficaria por demais claro que os observadores, à medida em que se faziam observadores e gritadores, transformavam o menino em homem. Com um menino tenta-se falar, no limite, gritar ou puxar pelo braço. Contra um homem não se faz nada, só pedir socorro.

A escola está colapsada: não existe qualquer estrutura didática com pessoas fazendo bico como professores (a 9 reais a hora aula, é assim), não tendo qualificação para buscar um melhor emprego, fazendo a função de observar o banho de sol e o encarceramento de crianças e jovens. Crianças e jovens são largados, no interior da escola. Ninguém os assume, e eles reproduzem muito do que fazem na rua.

Meninos desenvolvem o senso de que, naquela socialização, eles devem ser "donos do pedaço", quer dizer, cada menino deve se apresentar não como responsável por si mesmo (o que já seria absurdo), mas como senhor territorial, dividindo esta função com outros integrantes de seus grupos, e apresentando, neste ambiente, uma atitude para que tudo ande conforme o que eles querem. Não há contraponto educativo para o que eles querem, o que lhes ensinaria a desenvolver a senhoria de si mesmos. Há o contraponto violento, mantido esfriado, mas com episódios quentes, de enfrentamento.

O respeito está todo com esses meninos, não com os adultos, incapacitados, que os assistem, como crianças. O abandono desses meninos na escola, nas ruas, em casa, o fato de não terem quem os assuma, os ame e deles exija coisas, é o que os deixa em situação de terem que ser homens. Os adultos, as verdadeiras crianças nesta história, chamam um pai punitivo: o pai da criança e o policial devem exercer extrema violência.

Os adultos viram a destruição do seu lugar de educadores. Nada elevado como a educação se apresenta mais à mão, como se a civilização tivesse acabado e precisasse ser reconstruída. Em nossa tribo ancestral, dita por Freud, os homens queriam matar uns aos outros e roubar suas mulheres. O indivíduo mais forte impedia a ocorrência disto, sob pena de morte. Os demais formaram um grupo que matou este mais forte, mas logo viram que se destruiriam mutuamente se se deixassem viver sem regulamentos sociais. Ergueram um totem, à imagem do líder morto, de onde se acreditava emanar esses regulamentos.

A lei que reprime a violência e a sexualidade desmedidas era observada por todos, e aplicada por indivíduos especialmente encarregados, e que não podem se exceder, não podem ser tiranos. Ninguém pode ser tirano, a punição deve ser bem aplicada. A aposta principal da nossa civilização é a educação. Se por ventura ela vai mal, ela é corrigida, não se chama a punição extra-escolar para ensinar o que é para ela ensinar. Até mesmo porque, punição extra-escolar não é educação, pois educação é direcionamento de impulsos, não simples repressão.

A fala "uma escola aberta é uma cadeia fechada" é fruto da ausência deste modelo civilizacional descrito por mim: no horizonte, o que se vê é antes a punição do que a educação. Este olhar é o que a sociedade-criança lança ao pobre, aquele que já nasce homem perigoso. Queremos que o governo cuide de tudo, como um pai em cujas mãos está a nossa segurança e encaminhamento. Conversar com ele a respeito desses assuntos, apresentar os próprios interesses e melhorá-lo, enquanto governo, está totalmente fora de alcance, para o povo-criança.

O fim da escola ocorre junto do fim da civilização.

Intimidade e privacidade


Intimidade é o que fazemos dentro do quarto. Privacidade, dentro do banheiro. O que faço na intimidade, quero mostrar para alguém, seja para o BBB, seja para a pessoa amada. Quero mostrar o que faço no quarto, seja sexo, sono ou experimentação de roupa, pois estas são ações em que vejo imprimida minha identidade. Tenho meu estilo sexual, meu jeito de dormir e meu gosto distribuído em cada peça de roupa. Considero meu desempenho, a forma com que sou cuidadoso, audacioso, enérgico ou sutil, em cada ação que compõe o sexo, o sono e o experimentar de roupa, digno de ser notado e elogiado. Aceitamos sugestões de melhora, lógico, vindas da pessoa amada.

No banheiro fazemos o que todos os homens, e os animais mais próximos, fazem, que é defecar e higiene pessoal. Não consideramos que estes hábitos possam ser compartilhados com outra pessoa. Consideramo-os primitivos e sujos. Bem, no sexo também exibimos animalidade e secreções mas, neste contexto, eles são isso mesmo, exibições. São intercorrências do sexo que aproveitamos para incrementá-lo.

O sujo e o baixo do homem no que é feito no banheiro, embora sejam tão cheios de cultura quanto é o sexo, são respostas a necessidades de descarte e limpeza. Quanto mais imperiosas são as necessidades, menos controle temos sobre elas, mais à mercê delas estamos. Em uma guerra, venceríamos se fizéssemos sexo com o comandante adversário ("a posição em que Napoleão perdeu a guerra" parece o único modo em que o encontraram vulnerável); não correríamos perigo ao dormir, que seria no mesmo horário dele; terrível seria sermos pegos de calças curtas, tropeçando e nos sujando.

Um amor verdadeiro quer ver seu strip no quarto e a cueca que você escolheu, mas te deixa em paz quando você vai ao banheiro. Ele nem pensa no que você faz lá, pois te preserva.

Peter Gay, no prefácio da biografia de Freud, de sua autoria, conta que o biografado fez de tudo para destruir o material que poderia oferecer a futuros biógrafos seus. Os biógrafos deveriam se esforçar para adentrar a intimidade do grande mestre da intimidade do homem. Ninguém mais senão Freud poderia fazer a análise de Freud, conhecer sua intimidade.

Freud, no entanto, se sabia um importantíssimo homem, inevitável personagem de futuros escritos. Desejava este reconhecimento, embora tardio. O preço, porém, era que tivesse seus rastros farejados. Fotos, cartas de amor, papéis amassados, elementos íntimos jogados fora, marcas, enfim, das coisas que ele quis se livrar, dejetos, Anna Freud os pegou do lixo e mostrou ao mundo.

Freud não está mais disponível para mostrar ou não sua intimidade. Então o que lhe é privado tornou-se público, à sua revelia.

O desempenho


Não é porque ela finge, que não está gostando. É uma preocupação do homem se ele satisfaz a mulher. Ele acha que, com isso, aplaca temporariamente o desejo dela. Se ela finge com ele, não está sentindo prazer, e pode buscar isso com outras pessoas, pensa o homem. Ou, ele também pode pensar, o fingimento é um incentivo para que ele continue, não significando que a mulher dele vá procurar outros homens. A constatação disso, pelo homem, aumenta a sua libido.

Fingindo ou não, a mulher pode estar gostando. E o homem tem o costume de tomá-la como medidor da própria potência. É também por isto que o incomoda o fingimento: o atestado do seu desempenho deve ser confiável. O homem precisa confiar em si mesmo e, para isso, ele olha para a carteira, o carro, o tamanho do pênis, o desempenho sexual, a proximidade que ele tem dos interesses masculinos e o distanciamento que tem dos interesses femininos. Essas coisas todas podem faltar, exceto o desempenho sexual, o atletismo.

A mulher quer que o homem dela sinta o prazer até o fim. O prazer vem com a descarga completa da excitação, cujo acúmulo causa desprazer. O objeto amado será o que proporciona isso, como foi dito por Freud. Homens e mulheres assumem para si a tarefa de descarregarem a excitação do outro, e serem, um para o outro, objeto de amor.

Quando se preocupa com o próprio desempenho, é em ser um "bom descarregador" que o homem tem na cabeça. Alguém que exaure a mulher que tem, tira momentaneamente a consciência dela, etc. A mulher que finge, que sempre esconde o que está sentindo, tira isso do homem. Ela pode estar pensando no prazer dele, mas ele nunca saberá se está havendo efetividade no próprio gasto de energia. Ele goza, mas está fazendo diferença para a mulher?

Cazuza se interessava por mentiras sinceras, mas parecia ser do tipo que uma leve correspondida o fazia se sentir muito potente. Ele tinha uma autoconfiança que eu e você não temos. Por isso imploramos pela chance de agradarmos. E pela verdade.

Será que com uma garota de programa, o homem se preocuparia apenas com o próprio prazer? Se pensarmos bem, o homem procurará ser o último homem, ao menos da noite, da garota de programa. Com ela, chegará ao máximo a busca dele por desempenho.

Esta busca, junto à mulher que ele ama, mas que, na procura por descarregar sua excitação, ele quer que o ame, está uma grande preocupação com o prazer dela, ao contrário do que pensa o senso comum: o homem que quer um grande desempenho no sexo é preocupadíssimo com o prazer da mulher.