quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Larga deu!


Porque ser copiado é ruim? Imagine alguém fazendo tudo igualzinho a você. Igualzinho mesmo. Não te pareceria que você tem dois corpos, ao invés de um, mesmo que a pessoa assine o que fez usando outro nome? Um problema será se justamente essa pessoa não te copiar com exatidão. Ela te misturar com coisas ruins. Neste caso, então, o problema de ser copiado é o de ser copiado insuficientemente. Caso a cópia fosse idêntica, e você pudesse acompanhar de perto os passos do copiador, você se sentiria agindo em dois corpos (como eu já falei), como se fosse um deus. Você o controla!

Mas você se controla? Se você reparar, uma infinidade de coisas passam pela sua cabeça, sem controle. Consciência pode ser co-ciência, tomar ciência junto, a mesma ideia estar no eu e no mim mesmo, e eles até apertam a mão. Consciência também pode ser uma mediadora entre eu e a realidade, saber diferenciar o que está em mim do que não está. No festival de coisas da minha cabeça, vem a consciência, pegar um desses elementos para ver o que o si mesmo acha dela, e o que eu acho dela. Ou fazer isso com as ideias decantadas no meu eu. O pensamento é o desenvolvimento da ideia nesse trabalho de envia pra lá, envia pra cá, que é a consciência. Esse trabalho é feito entre eu e mim mesmo, entre eu e um amigo, entre eu e um papel, etc.

O que chamo de eu é o que vou retirando, desses momentos de pensamento, do que digo que são ideias, acontecimentos, emoções, etc, que dizem respeito a mim. O eu é um personagem, e o repito, copio a mim mesmo, quando quero agir de forma segura, pois vou no que já me sei agindo. "Como vou fazer esse texto para a faculdade? Estudei, então vou escrever o que aprendi. É só fazer isso." Sinto-me seguro. Mas, na escrita, como ela é relação eu-papel, algo diferente surge. Não consigo me imitar completamente. A conversa leva a algo novo.

Uso o eu como uma baliza, no meio das muitas coisas que passam por mim. Uso-o para me encorajar na situação em que terei que conversar com o papel, pois ela propicia ideias novas. O medo de quem faz um texto para a faculdade pode não ser o de lhe faltar as ideias certas, mas o de não saber se as ideias novas que surgirem podem ser consideradas adequadas. O eu é uma baliza, mas ocorre o que lhe escapa. Ocorre em conversas, e estou referindo-me à relação que antecede o eu, inspirando-me em Peter Sloterdijk. Posso, também, trazer Lacan para dizer que minha fala se insere na linguagem, que é muito maior do que eu, determinando-me e fazendo ideias me atravessarem. Então o eu não é o deus de si mesmo, embora eu conte com ele toda vez em que vou me concentrar minimamente para fazer algo, e eu recomende o eu de uma pessoa para ela mesma, quando ela fará algo.

Ao copiador dizemos para ele copiar a si mesmo. Não, dizemos para ele ser original. Cada um deve conduzir o seu eu à situação de conversa, em que elementos armazenados nele entrarão no bate-rebate da reflexão, seja como si mesmo, seja com o amigo ou o papel, e novas ideias surgirão. Esse exercício faz surgir ideias novas. Os gregos antigos ouviam a Ilíada e a Odisseia. Inspiravam-se nos grandes personagens, deuses e heróis. No inapreensível campo da linguagem, os personagens são as balizas para cada um agir ou pensar a si mesmo. Na tentativa de um grego em ser como Aquiles, ele excedia o herói. Levamos tão a sério o personagem que o exageramos. Se não o levamos a sério, sentimos que estamos aquém dele, não sendo realmente "Aquiles".

Agora entre nós, modernos, cada pessoa tem a sua referência para ser ela mesma - o eu particular. Não há modelos para todos. Cada um deve ter um eu, para apresentar a si mesmo e aos outros. E, como já falei aqui, para empregar nas situações de bate-rebate. Ou lacanianamente, para ter uma mínima delimitação do campo da linguagem. Por haver esse eu é que cobramos que cada um inspire-se na sua individualidade. Bem, pegando a noção de esfera, de Sloterdijk, diremos que primeiro há a relação, e dela emergem um eu, talvez também outro eu. Estes dois eus têm coisas em comum - a esfera, a intimidade, o "mundinho particular" - , mas são diferentes.

Cada um reinvindica para si mesmo a utilização do próprio eu. Mas caso um irmão me imite, ele que passou por muitas situações comigo, emergiu do mesmo ambiente, e é alguém a quem eu posso observar os passos, não ficarei tão puto quanto ficarei se um estranho me copiar. Afinal, ele emergiu de outra esfera, então se ele me copiar será totalmente ilegítimo e difícil de eu acompanhar. Mas me divertiria um amigo me contanto o que aconteceu quando ele agiu, à mesa de jantar, exatamente como eu faria. É a sensação de ser um deus. Mas me desagradaria se ele não me contasse, se eu sequer soubesse disso, ou se alguém pegasse um texto inteiro meu e mudasse o nome, sem que eu pudesse ver e me regozijar com a reação das pessoas.

A quem pergunta porque é ruim ser imitado, eu diria que o que pode haver de ruim é o imitador ter repetido o meu texto de tal modo que ele não o utilizou para conversar com o papel. Caso tivesse feito isso, teria a tal ponto pensado coisas que daria outro nome para o texto. Eu não quero ver o meu eu por aí, justamente porque não quero ver gente na mesmice, assim como me incomoda eu me repetir.

P.s.: Escrito a partir de uma conversa com Kelson JS.

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