quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Os motivos da militância



Em 2013, eu e uns amigos fomos a uma das grandes manifestações ocorridas naquele ano. Levamos um cartaz em que se lia "Pelo direito de fazer sexo com a Dilma". Nossa justificativa partia do entendimento que tivemos, de que, naquelas manifestações, não havia uma grande bandeira, seja estudantil, racial, sexual, partidária, etc. Na rua reuniram-se milhares de indivíduos com liberdade de falar o que queriam e, a partir disto, lançavam demandas políticas. O clima parecia favorável a que todos pedissem os direitos que queriam pedir.

Eu e meus amigos quisemos pedir um direito do qual não tínhamos necessidade - "fazer sexo com a Dilma" -, pois a necessidade era de pedir direitos. Era como se ali se iniciasse uma era em que todos poderiam inventar o que queriam, indo além do querer o que necessitavam. Sim, havia grupos com reivindicações ligadas a necessidades deles próprios, ou de outras pessoas. Um grupo grande era do Colégio Pedro II, com gritos que expressavam interesses particulares deles, mas também com gritos que expressavam a curtição do poder manifestar-se na rua.

Após o fim dessas grandes manifestações, houve quem dissesse que elas não mudaram nada, na relação da sociedade com a política. Mas os efeitos de um evento, envolva muita ou pouca gente, se desdobram de uma forma que ninguém pode observar ou prever. Em 2013, descobrimos que podíamos pedir direitos. Eu e meus amigos descobrimos que, na verdade, não precisávamos pedir algo que nos fosse necessário. Fizemos isto, repito, pela descoberta de que se podia pedir. Esse momento passou.

Atualmente há, na internet, uma forte militância a favor da descriminalização do aborto. Homens e mulheres, de várias idades, dizem que se deve salvar a vida das muitas mulheres que fazem abortos clandestinamente, e estão morrendo em clínicas assemelhadas a açougues. É um motivo que, obviamente, considero justo. Ao lado desse benefício, estes militantes dizem não existir o malefício de se estar matando uma outra vida humana, a que seria do feto. Argumentam que quando um feto humano encontra-se abaixo de certo nível de desenvolvimento, não possui atividade cerebral e que, portanto, ainda não é uma vida humana.

O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. vem apontando, em vários textos (leia, por exemplo, esse http://ghiraldelli.pro.br/maria-rita-kehl-e-o-aborto-nosso-de-cada-dia/), o problema de se defender a descriminalização do aborto com base no argumento da imaturidade do embrião: o critério com que opera a medicina, para estabelecer o início da vida, pode mudar, à medida em que avançarem as pesquisas em biomedicina e anatomia. A militância pela descriminalização do aborto baseia-se numa concepção científico-metafísica, para dizer o que é a vida humana. Desconsidera que não há mais fundamentos metafísicos para os saberes, e sim perspectivas, e que a própria ciência modifica seus parâmetros.

Considero o argumento da imaturidade e, portanto, da exclusão do feto da humanidade, uma racionalização nossa contra algo que nos sensibiliza demais, que é a morte de bebês.

Mas o maior problema da militância pró-descriminalização, também apontando pelo Paulo, é filosófico e político: mesmo que o embrião imaturo não seja considerado uma vida humana, ele ainda não é uma vida e, portanto, não é melhor que seja salva? Foi o principal objetivo, sonho, do filósofo americano Richard Rorty a diminuição da crueldade dos mais fortes contra os mais fracos. A mulher é fraca, em comparação com o homem. Ela precisa ser defendida por leis especiais e mudança de alguns comportamentos. Mas o feto, humano ou não, também precisa ser defendido.

Como alternativa à descriminalização do aborto, Paulo sugere uma política de doação de bebês ainda em gestação, como ocorre em outros países. Já eu, sugiro uma política que condicione o aborto a um intenso acompanhamento psicológico e de assistência social para a gestante, em que se observaria se a interrupção da gestação é o real interesse dela, ou se ela está de alguma forma sendo coagida por conflito psicológico, necessidade material ou algum outro fator. E a gestante receberia toda a ajuda de que necessitasse, para encaminhar a decisão que ela tomar a partir desse acompanhamento. Paulo e eu queremos lutar contra aquilo que o Papa Francisco vem chamando de "cultura do descarte".

Mas, esta foi uma longa digressão. Voltemos ao tema do pedido de direitos. Se em 2013 houve os que puderam pedir o que lhes era necessário, e alguns sacaram que o necessário era justamente pedir e, portanto, podia-se pedir quaisquer direitos, esta militância pró-descriminalização do aborto, a meu ver, pede por algo que não é necessário para as pessoas que pedem. Imagine uma pessoa que integre essa militância (pode ser você mesmo): você acha que ela gostaria de fazer um aborto? Você acha que ela alguma vez pensou que isto seria algo bom para ela fazer, na vida dela? Posso ser demasiado otimista, mas por eu considerar o aborto algo ruim, uma cessão triste de uma vida (humana, no sentido de que tem tudo a ver com o homem), imagino que a maioria das pessoas, mesmo os pró-aborto, também o consideram ruim e triste. Então porque eles militam?

Além do motivo justo, por salvar vida de mulheres, e do motivo injusto, matar fetos, a militância parece se motivar por uma necessidade de pedir direitos, mas uma necessidade de estranho tipo. Não é uma reivindicação que corresponda a uma necessidade do indivíduo que os reivindica (ou do grupo com quem o reivindicador se identifica). Tudo bem, fizemos isso em 2013, de inventar reivindicações. Mas eu e meus amigos percebemos que o fazíamos, assim como outros indivíduos, na manifestação, também brincaram (a brincadeira necessária) de pedir coisas. Era um exercício pela liberdade, amparado por uma certa ideia de liberdade e política.

Os que pedem pela descriminalização abraçam esta bandeira como uma identidade pronta para usar, e que os reúne numa coletividade. Buscam, portanto, um certo senso de realidade e de si mesmos. E neste senso é importante a ideia do "pedir pelo pedir", que não tem nada a ver com a necessidade de ter a liberdade de pedir: "pedir pelo pedir" é o que faz aquele que vive em busca por aderir a causas que mobilizem a sociedade, que sejam comentadas por muitas pessoas. Ele não tem exatamente necessidade da liberdade de pedir, mas quer um sentido já dado, para a sua vida.

Estamos em uma época de muitas reivindicações, e muitas conquistas de direitos. Isto sem dúvida expressa clamores legítimos, e tem melhorado a vida de muitos indivíduos. Mas tem existido entre nós a ideia de que ser um indivíduo é ter uma bandeira, é colocar politicamente todas as suas questões pessoais. Talvez por que estejamos sem boa educação, e nos falte riqueza na conversa subjetiva, os modelos sociais para nos olharmos a nós mesmos, os espelhos, têm ganho esta preeminência.

Este texto, enfim, foi para você olhar sinceramente para os motivos da sua militância. Ou a do outro.

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