sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Literatura e mudança



"Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça. É ela menina, que vem e que passa. Num doce balanço, a caminho do mar." Os olhos de Vinicius seguiam os passos de Helô Pinheiro. Mas uma lírica não representa a realidade. Textos têm regras próprias. As intenções e as emoções de personagens existem no interior deles. Mas enquanto ouvimos esta música, paramos de ser quem somos, e olhamos Helô.

Quando Aquiles teve uma de suas mulheres tomada por Agamenon, encheu-se de cólera. Agamenon devolvera uma das próprias mulheres ao pai dela, sacerdote de Apolo, pois este havia pedido ao deus que se vingasse dos gregos. Agora ele queria que alguém do seu exército o recompensasse. Atena evitou que Aquiles usasse a espada para responder ao general. Aquiles retirou-se da guerra, desejando que o exército grego fosse massacrado pelos troianos, e amargasse a sua falta. O leitor se sente injustiçado, junto do grande guerreiro. Entrega a mulher a contragosto. Deseja que os outros sofram, por ter sofrido.

Fechado o livro, o cotidiano volta, a chamada realidade. Pega o carro, dirige bem, mas é fechado. O barbeiro xinga, e sai como se tivesse razão. O peito enche, dói, e exige uma reação urgente. Os membros ficam quentes e pesados, imediatamente prontos. O leitor sente-se Aquiles. Aprendeu com o herói, contudo, que a recompensa não precisa ser obtida agora, pois uma Ilíada inteira foi percorrida, à espera do momento de obtê-la. Enquanto lia sobre Aquiles, o leitor o vivia. Entendia o personagem. Depois voltou a si. Então, em uma situação de injustiça, pôde reconhecer o que sentia e se preparar para fazer.

Lemos um texto. Então sentimos seu espírito, o vivemos. Entendemos o lido, as nuances dos personagens, com profundidade. Voltamos ao cotidiano, em que cada um tem padrões de entendimento e de conduta para si mesmo e as coisas do mundo. Então ocorre uma situação cuja vivência se assemelha à do texto, a faz ser recordada. "Epa, estou começando a agir feito Aquiles." "Hum, olha como ela passa, a caminho do mar...".

Mas o texto, trazido para o cotidiano, também funciona como metáfora, no sentido que Richard Rorty dá a esta palavra. No cotidiano, a peça literária não tem uso prático além da ludicidade. Com o uso, porém, a frase estranha parece combinar bem com certa situação ou emoção. Quando, no Tom & Jerry, Tom recebe uma pancada, ouvimos "Pow!". Quando, na escola, um coleguinha cai da cadeira, a criança grita "pow!". De que outra forma ela se relacionaria com a cena? Logo ela se preocupará com a criança caída. Mas, no primeiro momento após a queda, "Pow!" é o que de melhor pode ser dito. E até ajuda a medir a gravidade do ocorrido, e chamar por cuidados.

Muito se diz que a leitura deve ser estimulada para todos, principalmente para as crianças. E que se deve ler muito. A criança que só quer saber de vídeo-game, o jovem que só quer zoar, são considerados impulsivos, e convidados a ler livros. De um pedreiro frequentemente se diz que é bruto na expressão das suas emoções. Não tem refinamento de linguagem verbal e não-verbal. Ele precisaria ser educado, aprender a curtir obras de arte. Então ele será mais sensível, o que inclui sentir e expressar que sentiu mas, ao mesmo tempo, sua sensibilidade estará sob controle. Estas posições são tributárias da noção de que a razão deve controlar a emoção, inseri-la numa gramática de sensibilidade.

Nossa expressividade, ideias e emoções foram adquiridas, modificadas e abandonadas, no manejo que temos de nós mesmos e das situações por que passamos. Alguém que pareça "chucro", ou seja, bruto nas emoções, e de vocabulário e gestos grosseiros, na verdade opera com razão e emoção bem coordenadas, e atendendo às suas necessidades e sentidos. E participaram da formação deste homem músicas, filmes, textos, falas, dos quais ele pinçou elementos e os trouxe para seu cotidiano, primeiro como ludicidade, depois, descobrindo uma adequação, como uso, engenho. Sugerir que ele leia um grande livro não é salvá-lo de algo tal como uma insuficiência da razão. Razão não é algo que alguém possa desenvolver depois de que tudo o mais foi desenvolvido. Ela vem junto do homem integral.

As frases, sons, ações, etc, de um bom livro, são trazidos para a vida como metáforas, frases desprovidas de sentido, que não visam representar nada. O uso, contudo, torna-as "candidatas ao valor de verdade", como diz Rorty, ou seja, elementos de dianteira na descrição de certos fatos, redescrevendo-os. Assim, os parâmetros objetivos para a formulação das nossas redes de crenças e desejos mudam, e fazem estes mudar.

Razão, aqui, é tomada como alguma coisa que produz entendimento para um texto lido e vivido, também para o si mesmo e o mundo, cotidianos, e para aonde, neste cotidiano, as metáforas oriundas de textos e artes, em geral, estão alterando as verdades e forçando mudanças nas crenças e desejos.

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