domingo, 31 de janeiro de 2016

Volte para casa, Leandro.


O homem, desde o início da sua vida, tem parceiros inseparáveis. Na Esferologia, do filósofo alemão Peter Sloterdijk (http://ghiraldelli.pro.br/esferologia-de-sloterdijk/), o feto e a placenta são dois pólos que trocam ressonância, e um é a continuação do outro. Eles não são a mesma coisa, e esta diferença, ou melhor, a emergência de um como feto e o outro como placenta é antecipado pela relação que eles mantém entre si.

A troca de ressonâncias cria uma esfera, um ambiente climatizado e imunológico. Uma esfera é o que chamamos de lar, intimidade, aconchego e segurança. Do ambiente externo ao organismo materno, e a partir do movimento dos elementos internos ao útero, na esfera chegam vibrações. A esfera filtrará estas vibrações, e as que passarem serão armazenadas pelo feto como uma memória sensorial.

Nossas práticas neonatais afastam o bebê recém-nascido da sua dupla, a placenta. Ele sente a proximidade do vazio gélido. As vibrações agradáveis armazenadas, mais especificamente as ondas sonoras, para o ouvido desenvolvido do bebê, serão uma voz que o acompanhará como sua nova dupla. Este é o daimon ou, para nós, a figura do anjo da guarda. A mãe entrará, para o bebê, como um terceiro pólo dessa nova esfera.

O "sentir-se em casa" será algo formado pela relação intensa e reasseguradora entre o anjo, o bebê e a mãe (posteriormente, poderão entrar mais duas ou três figuras, como o pai, a babá. a professora, etc). O anjo da guarda tem participação fundamental nos nossos inícios.

Nossa cultura é historicista, ou seja, quer explicar fatos a partir de fatos anteriores. Toma o anjo como uma ilusão mística. A criança, contudo, não abre mão do seu anjo, na forma de Papai do Céu, Papai Noel ou Coelhinho da Páscoa. Algumas pessoas dizem que "creem em Deus". "Crer em Deus" não se trata de um atestado de crença racional em uma divindade. É da ordem da fé, uma crença que não implica em um raciocínio, embora possa ser uma base para, a partir dela, ocorrer o raciocinar. A fé tem a ver com a certeza de que as coisas irão bem, de que é possível sentar, relaxar, sem que algo de ruim irá acontecer.

Os filósofos da Escola de Frankfurt denunciaram que, na modernidade, a razão torna-se ratio, deixando de ser logos, isto é, perdeu sua vinculação com eros e physis. O amor e a dimensão do todo das coisas estão ausentes da situação em que o homem não considera que ser precedido por uma relação íntima com os outros, para ser quem ele é.

Este homem considera a si mesmo "racional", enquanto aquele que acredita em divindades se considera um "crente". O primeiro vê a si mesmo como um cumpridor do ideal de ser um indivíduo, dono de ideias e afetos únicos, inconfundíveis e independentes. Ele vê o "crente" como alguém preso a algo, de onde proviria o que se passa em sua cabeça e coração.

Olhando para este homem racional com a lente da Esferologia, não negaremos que participou e ainda está presente aquela voz interior, que lhe chega antes de ele se considerar sujeito, portanto antes de se dizer "laico". O que podemos dizer é que este sujeito qualifica as razões que apresenta para si mesmo e para os outros como laicas.

Por sermos formados numa situação para além e aquém destas certezas que se querem livres, não importando se nos apresentemos como crentes ou não, ao nos referirmos ao entendimento que temos dos nossos inícios cabe falarmos em compreender e em acreditar, coisas não estritas ao ratio.

Nas fontes formadoras da nossa cultura, sejam elas greco-romanas ou hebraicas, havia a ideia de que os acontecimentos do mundo eram determinados por poderes superiores. Zenão de Eléia, o iniciador da escola estóica, de filosofia, tomava o cosmos como seguindo uma ordem determinada: tempos de fartura e de inanição ocorriam independentes da vontade do homem, e sem aviso. Zenão não entregava-se à fruição da fartura, reduzindo ao mínimo o uso que fazia das coisas. Ele o fazia para que não se decepcionasse caso viessem a lhe faltar aquelas coisas, para que elas não o fizessem ansiar por mais.

Santo Agostinho apontou como pecado o distanciamento do homem em relação a Deus, quando o primeiro persegue objetivos ditados pelo eu dele. A consecução destes objetivos narcisistas não aplacam por muito tempo o anseio por novas buscas. A menos que passe a mirar nos objetivos do Absoluto, o homem viverá ansioso e como pecador.

Em um mundo em que os acontecimentos estão determinados, estas filosofias apontam para o homem como aquele que precisa desenvolver certo comportamento. As necessidades e vontades fazem-se sentir, como forças imperiosas, e o homem deve dominar-se.

Em nossa cultura historicista, o mundo não é sobredeterminado, está ao alcance do homem modificá-lo. O homem também vê a si mesmo como dotado de história e, portanto, também devendo modificar-se. Qualquer emperramento nas mudanças do mundo ou do homem resulta em gritos por liberação.

Leandro Karnal afirma, em uma palestra (https://www.youtube.com/watch?v=Kz361SIhkoo Veja a resposta de Ghiraldelli: https://www.youtube.com/watch?v=1eO4zyhr-8Q), que pessoas com crenças místicas têm, sobre sobre as pessoas sem crenças místicas, a vantagem de poderem afirmar que, não importa o que aconteça, aquilo já estava previsto. Então, para elas, nada estaria fora de controle, ao passo que, para o não místico, não restaria nem o consolo do sentido, após uma tragédia.

Apesar de afirmar que as pessoas que têm fé possuem essa vantagem, e que não precisam dar ouvidos a ele, Karnal coloca a si mesmo de um lado que considera o melhor: o lado dos que lidam com saberes testados e aprovados, enquanto os místicos são bobinhos. Leandro faz troça deles, tratando-os como café-com-leite. Seriam pessoas dotadas de uma ilusão que as protege.

O homem que se afirma com a ciência não sabe o que faz com a fé que afirma não possuir. Oscila entre o rebaixamento dela e a pergunta para si mesmo do por que não conseguir tê-la. Karnal se apresenta alérgico à fé, e partidário da ciência. Mas seu sorriso de cínico ruim não esconde sua incerteza quanto à solidez da ciência. Ele ri da fé, mas não quer reconhecer a fragilidade das suas certezas, pois perderia a prótese que o sustenta fora de casa. Nega-se a voltar para casa, e começar a pensar considerando a esperança.

sábado, 30 de janeiro de 2016

O sabor da fome


Desde o início, um olhar o assedia. Uma palavra só lhe foi lançada, porque quiseram ouvir o som da boca sua. Esperaram, de você, um balbucio. Então supuseram-lhe uma intenção. Vêm esperando erros, para lhe corrigir. Esperam acertos, para aprenderem com você. Provocam você, para interferirem ou serem interferidos. Interferir é a expectativa de, havendo proximidade, causar o ferir. Quiseram mudar algo em você, ou serem por você mudados.

O homem insiste em ver utilidade no homem. Insiste no sentido, no sentido de orientação, da vida. Diógenes foi filósofo pelo seu comportamento. Uma roupa, um teto, uma comida, um contato social deveriam cumprir suas funções. Lançar mão deles mais do que o estritamente necessário faria do filósofo cínico um escravo das suas necessidades.

Você se acostumou a pensar em macarrão à bolonhesa, ao sentir fome. Sentir fome, para você, significa isso. Rapidamente você sai do sentir fome para o macarrão. E A fome, já sentiu? Cioran lembrou que Diógenes procurava um homem indiferente, com sua lanterna, na claridade do dia. Indiferente ao que? A algo além do necessário. Algo além do que o próprio corpo sentia.

Comer, se necessário fosse, seria atendido. Se o corpo empurrasse para levantar um transeunte caído no chão, você faz isso. Está voltado ao sentir, sem falas desnecessárias a alguém. E sem aceitar a presença desnecessária de ninguém ou de alguma coisa.

No mundo contado por Marx, a situação de mercado, os homens e os objetos são equiparados pelo dinheiro. O valor é o da troca, o do comprar e ser comprado, incessantemente. Uma camisa não pode ser um tecido cortado e costurado de certo modo que vista alguém, mas o veículo para as marcas do bom gosto, do estar na moda e da identificação do grupo social, que valem algo.
O homem dança no ambiente só de coisas com valor.

No Paraíso, esticávamos o braço para apanhar algo para comer (não a maçã), caso sentíssemos fome. Como era produzido este algo, o seu nome, não importava. Cioran, no "Exegese da decadência" (em "Breviário da Decomposição"), diz que o homem só escutava a si mesmo, ao estar sob o Verbo intransmissível, criador e conduzidor de tudo. A Queda ocorre desde que se fala, desde que se tenta transmitir algo.

O homem expõe seu coração, e pesca o outro para fazer o mesmo. Eva chamou Adão para morrer, e ela ir junto. A Queda se repete na fala mesmo que do homem para si mesmo. Ao sentir fome, ele não precisava conhecer o que comia. O sentir, se comunicado, perde o sabor. A comida não pode chamar mais a atenção do que a fome.

Certa vez, andei por 8 horas dentro do mato. No meio do caminho, paramos para comer o que tinha, um pão. Sem manteiga, nem nada. Tinha gosto de frango assado. Jamais esqueci do delicioso sabor da minha fome. Mesmo quando tento contar esta experiência, resta algo que só eu, de um certa forma, sei.

O momento em que o homem entrega-se ao sentir, "solidão virginal da alma", é o de viver.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Vem comigo, meu amigo


A leitura de Cioran me deu vontade de encontrar meus amigos. Eu queria falar o que descobri, ainda muito próximo ao texto. Ao chegar ao local da reunião, fui o primeiro a falar. O que eu havia lido era tão interessante! Meu amigo Paulo ouviu, recebeu, e a conversa de todos desenvolveu-se a partir disso. Conversamos sobre a folha plana do texto. Pegamos o sentido do seu vocabulário.

Paulo vem falando pra mim e meus outros amigos sobre a necessidade de desligarmos a nossa função cerebral "autocompletar" (http://ghiraldelli.pro.br/ler-em-2016/). Volta e meia, eu ainda a utilizo: na reunião falei do flâneur, figura da Paris do século XIX, pintada por Baudelaire. O flâneur olha as pessoas e acontecimentos das ruas, detém-se observando alguma coisa, mas logo prossegue o passo, até parar para outra observação. Os ricos, os pobres, as construções e os destroços modernos chamam igualmente a sua atenção.

Eu disse que não havia consequência política do que faz o flâneur. Paulo apontou, aí, o autocompletar. Porque consequência necessariamente tem que ser política? O que a palavra consequência pode nos dizer?
Ser co-sequente pode ser eu e você sermos um a sequencia do outro. O feito do flâneur tem uma consequência, pois ele e os objetos sentem-se mutuamente, um é sensível ao outro. Baudelaire também foi uma sequencia, para o flâneur, ao escrever sobre ele.

Outra vez em que autocompletei foi ao tomar o assunto sobre o qual falávamos, o fanatismo em Cioran, como fanatismo político. Aprendi que fanatismo é político. Não apenas eu aprendi isso. Temos até deixado de lado o fanatismo no futebol e o musical. Na ânsia por atingirmos algo com nossa fala, passamos por cima das palavras.

Não precisamos associar "político" a "fanatismo". Fanático, em Cioran, é todo aquele que tem o impulso irresistível por dizer algo a alguém, querendo ajudá-lo. Seu objetivo de vida é uma ideia fixa, uma insistência, uma infernal vontade de ser o acontecimento, em um mundo no qual ele sabe que só há tédio.

Autocompletar, ou aplicar, às palavras com que você se depara, palavras já aprendidas, querendo fazer cumprir uma eficácia, faz com que se perca o sentido do que está acontecendo com você. Sinta o tédio, sinta os movimentos involuntários musculares quando você está diante do seu amado, sinta a dor no peito quando você vê uma injustiça, sinta as pernas pesadas quando você quase cai no chão: acontecimentos que estão aí, e não precisam ser necessariamente ponte para que se adote uma certeza, contra o tédio, ou reaja irracionalmente contra uma injustiça, ou não perceba como o nosso corpo se prepara para reagir aos perigos. Você pode curtir mais seu amor, atentando-se para o quanto ele te faz sentir prazer, ou, às vezes, dores de separação.

Para os meus amigos levei minhas impressões, as marcas que o texto deixou em mim. Eu continuo as sentindo, mesmo tendo falado aquelas palavras. Permanecemos no espírito do Cioran, vendo-o ao ver as coisas na perspectiva dele. Levamos nossas marcas para nossos amigos, pois a conversa dá sentido ao acontecimento, e não o afasta do corpo.

Um homem correu para o amigo, para contar sobre o chifre que levou. Na presença dele, chorou.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Morrer faz parte da vida


Conheço quem levanta da cama e escreve qualquer coisa contra o governo. Qualquer coisa que houve de perigoso no caminho para o trabalho. Uma boa dica de alimentação saudável, ou de educação de filhos. Que selfie é ruim. O mundo vai piorar. Ou os problemas têm uma solução. A história dos fatos aponta para essas certezas do profeta. Ele te pega para acreditar nesses mitos, e junto dele se desesperar, então ter uma esperança dirigida.

Oscila entre o tédio e o terror, o fanático. Compra um carro, põe uma maquiagem, leva o corpo a sério. Seu corpo é a realização de uma ideia fixa. Ele nunca morre. Ideias diferentes, sensações novas, um crime ocorrido em sua rua, ele os odeia, pois ameaçam sua eternidade. A morte não está em seu horizonte.

Cioran diz que viver a angústia, ao longo da vida saborear a morte, é morrer muitas vezes. O corpo é orgânico, decadente, mas também é manequim triunfante. Sem se perder em profundidade melancólica, e sem levar a sério a si mesmo, o manequim desfila e ri da passagem dos anos.

O manequim abraça a morte, e passeia. O fanático adora ao si mesmo repetitivo. De um mundo vazio e apocalíptico, quer ser o único acontecimento, o novidadeiro. Mas não diz nada novo.

O corpo sente uma dor, e a cada dia morre. O manequim, então, se maqueia. Nos 1920, Freud sentiu uma dor insuportável na boca (leia isto em "Freud: uma vida para o nosso tempo", de Peter Gay). Os amigos íntimos não lhe disseram que era câncer. Não queriam abalar o Grande Pai. Freud operou-se algumas vezes, pôs uma prótese no palato. Alimentar-se era difícil. Fumava diariamente. Prejudicado em uma das audições, mudou a poltrona de lugar e continuou trabalhando. A morte sempre esteve com ele. Freud, então, considerou-a com raciocínio especulativo, livre na imaginação. Instinto de vida e instinto de morte.

Freud aprendia com seus pacientes, aprendeu enormemente consigo mesmo. Era aberto à vida, pois considerava a morte. Morrer é mudar, é a forma de mudar a vida, por fim a algo e começar o novo. O fanático só morre uma vez. Vive como se fosse viver para sempre. Não se preocupa em sentir o que está em volta, as palavras e ideias que lhe ocorrem. Está blindado para a vida.

sábado, 16 de janeiro de 2016

O perigosíssimo sexo


Duas crianças se beijam atrás da porta, em uma escola. Ao primeiro sinal, os pais se descabelam. Um homem namora uma mulher de 16 anos. Os pais dela chiam. Dois rapazes passam de mãos dadas na rua. Param, abraçam-se e beijam. Quem olha sente algo que depois, evocará como nojo e ódio. Beijos, abraços, sexo: o que há demais nisso, que justificaria tanto alarde?

Bolsonaro publicou um vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=l6muDArKIXI) em que comenta a respeito de um livro em que aparecem desenhos de figuras humanas, de ambos os sexos, nuas. Em uma das imagens, há a representação da penetração do pênis na vagina. O deputado afirma que o governo federal planejava incluir esse livro no material de educação sexual para crianças de seis anos de idade (em um vídeo resposta, publicado pela revista Nova Escola - https://www.youtube.com/watch?v=rpUnNyE8ztU - , há a informação de que o público a que a editora dirige a obra é de jovens a partir de 11 anos). Ele inicia o vídeo mostrando sua filha, de cinco anos, afirmando que aquela menina nunca entrará em contato com aquele tipo de material. Segundo afirma, crianças que virem aquele livro serão precocemente sexualizadas, além de ficarem mais acessíveis (sic) para pedófilos.

Pedófilos são pessoas com desenvolvimento psicológico comparável ao de uma criança. É uma condição patológica. O abuso sexual infantil, por sua vez, é majoritariamente praticado por adultos sãos e próximos da família da criança. O abuso sexual é o crime, não a pedofilia. O adulto que abusa de uma criança é o mesmo que abusa de outro ser mais fraco, pois se interessa por quebrar o poder de um pai, uma mãe ou uma criança, se sobrepujando a eles. Mais do que satisfação sexual, ele quer o poder de dominar os outros.

No livro "Rio de Janeiro: histórias de vida e morte", Luiz Eduardo Soares relata uma cerimônia de casamento, ocorrida em uma igreja e por ele presenciada, entre dois jovens pertencentes àquela congregação evangélica. O pastor era o pai da noiva. Em seu discurso, ele constrói a imagem de castidade da filha de 25 anos:

"-Eles nunca se tocaram, nunca viram o corpo nu, um do outro. Essa moça tão bela não sabe o que é o sexo. Vai se casar sem saber o que são as provações da carne. Sequer imagina a sujeira do sexo, a depravação. Abominou o pecado antes de conhecê-lo. Eu sou testemunha. Como pai e pastor, como oficiante desse casamento, declaro, diante de Deus e de todos vocês, meus queridos irmãos, minhas queridas irmãs, que ela, ao longo dos seus 25 anos de vida, não olhou seu próprio corpo no banho. Se isso aconteceu, foi por descuido, sem intenção, um relance inocente. garanto a vocês que, se esse acidente ocorreu, ela terá sentido um profundo mal-estar. Essa moça faz jus ao branco de seu vestido. Nunca teve a consciência do mal, da vulgaridade, da torpeza humana, nem se deixou queimar pelo fogo do sexo que desgraça o mundo. Quando a Bíblia, no Apocalipse, profetiza que o fogo consumirá a terra, é do sexo que está falando. O sexo é a fonte de todo o mal. A noiva, minha filha, eu tenho orgulho de trazê-la virgem ao sagrado matrimônio, com a certeza de que jamais o diabo libidinoso lambeu sua alma com a ponta da língua em brasa. Estive a seu lado, sempre alerta. Nunca Satanás torturou o espírito dessa menina com as labaredas de seu tridente e os chifres ardentes do anticristo. Não deixei. Fui seu escudo e hoje, glória a Deus, Jesus seja louvado, hoje a entrego a seu noivo sem pecado." (p.227)

O pai fala a todos o quanto esteve próximo da filha, supondo os desejos do diabo e as tentações dela. Essa é uma forma de falar dos desejo dele em relação à filha. Posteriormente, esse homem viria a ser preso, condenado por estupro de uma mulher. Mas não acho que ele tenha abusado de sua filha. Porém, sua fantasia com relação a ela é patente, e está fora de sua consciência, pois a sedução foi atribuída ao diabo, e retirada dele. Diante do público ele mostra o domínio sobre a filha e o seu risco de pecar. É o senhor da sua castidade, como poderia ter sido o do seu prazer. Coroa-se como protetor da filha contra as forças do mal, mas não disfarça bem o quanto esse mal aproximou-se dele (mais dele do que dela).

Na narrativa de Totem e Tabu, de Freud, o líder da tribo possuía todas as mulheres para si. Seus muitos filhos, individualmente mais fracos do que eles, unem-se e matam-no. Um totem é erguido, simbolizando a manutenção da lei paterna que vedava o acesso deles às mulheres da comunidade. Quebrar a lei seria cometer o pecado, atentar contra o pai divinizado. O acesso àquelas mulheres foi e continuava sendo exclusivo do pai.

O líder que tiraniza sua família com o seu desejo e sua violência irrefreadas é um espirito presente nos homens, por mais civilizados que esses homens sejam. Como o pai legislador foi divinizado, o pai concreto nunca o alcança, e a ele também se submete. Mesmo sendo eventualmente um líder, todo homem é sujeito a uma força superior. Mas o homem também é sujeito a impulsos sexuais e agressivos, que se realizariam plenamente se ele chutasse a civilização, matasse os filhos, que competem com ele pelo amor da mãe, e a mantivesse só pra ele, junto com as filhas. Para o homem comum, isso é insuportável de pensar. O pastor traz esses desejos à tona, e, como eu disse, retira de si e atribui ao diabo o papel do excitador/excitado, e se põe como um perfeito guardião da lei divina, um pai sobre-humano.

Em uma conversa sobre crimes e punições, um homem mais inclinado à vontade de punir pergunta para o outro: "e se um homem estuprasse a sua filha? Você seria contra a pena de morte?" É fácil admitirmos e expressarmos o ciúmes que sentimos de uma filha, quando ela arruma um namorado. E é fácil porque sabemos que não somos o namorado delas, e que nossa interferência, em um namoro que corre sem violência, não pode ir além das sugestões de cuidado. É como se, ao ter cuidado, ao seguir regras, ela estivesse com o pai sempre presente (o pai divino, e também o concreto, pois o concreto se vê como "tudo, absoluto", para a filha).

Quando um homem coloca o estupro de uma filha como algo que venceria qualquer disposição contrária à pena de morte, está indicando que, para ele, este é o maior crime de todos: um homem violou a sua filha, não dando chance para ela controlá-lo, aplicar a lei. Agiu como um pai descontrolado, roubando todo o sentido de ele próprio ter se conduzido como um pai controlado.

Como o regramento do impulso sexual foi rompido, o pai violado em sua preeminência sobre sua família dá vazão ao impulso agressivo contra o violador. É por isso que a evocação do estupro de uma filha aparece na mesma boca que defende pena de morte. E soam como uma ameaça à pessoa contrária a medidas desse tipo.

Esse homem não aguenta a civilização e suas regras, a negociação social e o jogo político que vão concedendo mais liberdades aqui e acolá, e quer escancarar seus próprios impulsos sexuais e agressivos. Ou melhor: parece-me que, em um Bolsonaro, por exemplo, além do descontrole dos impulsos, haja um desequilíbrio em sua balança, pois ele apresenta um temor excessivo ao sexo, e a liberação total da agressividade.

Pais assim exorcizam qualquer fantasia na base da forte repressão contra a filha, incluindo surras. Pessoas assim vêem o mundo como fazendo sexo violador, escabroso, e querem distribuição em massa de repressão e punição.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

A família brasileira


A percepção de alguém com relação ao presidente de seu país é a de um pai, que planeja, trabalha e provê. Isto dá ao pai o direito de andar de helicóptero ou jatinho, de viajar para lugares lindos e ficar em ótimos hotéis, com sua família. O filho vê que o pai, mesmo gozando, lembra dele: se acompanha o pai na viagem, ganhará um brinquedo ou, se não o acompanhou, como é o caso do cidadão em relação ao seu presidente, sabe que ganhará um souvenir. "A imagem do país no exterior ganhará, e ela resultará em mais acordos e negócios com outros países."

O governador de um estado também pode viajar para outro país ou estado, embora com um grau de luxo menor que o do presidente. O prefeito também pode fazê-lo, mas com menos luxo do que o governador, embora bem mais do que o cidadão possa desfrutar. O luxo a que cada um faz jus diz respeito ao tamanho da casa que ele administra.

Quando uma família viaja, ao pai é concebido o direito de boiar silenciosamente na piscina de um resort. Esse resort fica em um estado onde ele e sua família não moram, embora seja próximo. A esposa não deixa as crianças atrapalharem o seu relax. A família do prefeito faz as mesmas coisas, mas em um estado mais distante de casa. O governador, então, respeitando a proporção da relação dimensão do trabalho/dimensão do gozo, leva sua família para Noronha, Amazônia ou Paris. Ficam uma semana.

Noronha, Amazônia e Paris são de constante visita do presidente. Não tem graça passar as férias lá. Quando sua família quer descansar, pode até ir para esses lugares, mas neles permanece por um período tão longo, e faz coisas tão variadas, que sua estadia deixa de ser notícia. Torna-se público o restaurante em que comeu no primeiro dia, e os primeiros passeios, mas logo perde-se seu rastro. "O presidente está em suas merecidas férias de janeiro. Quando retornar, tratará deste assunto com a costumeira seriedade e eficiência."

Atualmente, em nosso país, muitos manifestam desdém em relação à presidente: consideram-na uma péssima líder e administradora econômica e, alguns, vão além e acusam-na de crimes. À imagem comum de um presidente não se mistura suspeitas de corrupção. Contanto que ele mostre um ótimo serviço, ninguém fica conjecturando se ele é desonesto.

Cada homem sabe o que precisa fazer, na rua, para ganhar a vida. Já uma presidente mulher não sai de casa para trabalhar, sua função é estabelecer e fazer funcionar os papéis, evitar desperdícios e desvios de recursos. Entre nós, a queixa tem sido que a presidente é incapaz de ordenar a casa, tendo perdido o controle da roubalheira, e também incapaz de apaziguar os filhos, que choram pelos problemas econômicos.

Quando os filhos estão insatisfeitos, esboçam um choro e procuram a mãe na sala. Deitam em seu colo, para garantir um pouco de mimo, e também que ela fique bem. Vão ao pai e comentam o que sentem, e também sobre a mãe. Sabem que o pai conversa com ela, e as coisas garantidamente voltam a ficar bem. Em nosso caso, desistiu-se de considerar a mãe como minimamente capaz de o que se espera dela, ou ao menos uma palavra bem colocada, de consolo.

O choro não atendido transformou-se em raiva da mãe. Virou-se as costas para a casa em Brasília, e exige-se a troca da mãe. Essa é a condição para que o filho volte para casa. Do pai, Temer, por ter se casado com a mãe por arranjo, não é cobrado amor ou fidelidade por ela. Não havendo esse compromisso, não há o que justifique a manutenção do casamento, se o arranjo não tem mais jeito de funcionar. Pede-se, então, que ele assuma a casa, e expulse a mãe, podendo chamar o amigo Cunha para ajudar. Temer e Cunha serão os dos pais da nação.

Thiago Ricardo, psicanalista.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Repressão sexual. Desoneração total.


Rorty, em um texto de velhice, disse que deveria ter se feito acompanhar por mais poesia, do que pôde fazer. Ele era filho de poeta, e isto lhe proporcionou não uma aproximação a este tipo de leitura, mas uma questão psicológica profunda, que o distanciou dela. Esta questão era do tipo que interessava Freud, investigativamente. Mas, além dos motivos para se esquivar da poesia, ou dos motivos que outra pessoa, ou o velho Rorty, poderiam ter, para curtir poesia, está o que faz com que alguém curta este tipo de arte, e o que é a sua experiência estética.

Freud via motivos lógicos naquilo que ele explicava. Mas sabia não haver quaisquer motivos lógicos na criação ou na fruição estética. A esquiva de Rorty quanto à poesia era marca de uma herança do seu pai. O entendimento desta marca é o entendimento desta herança. Já a fruição que Rorty, afinal, encontrou, demonstrava ter havido uma reconciliação com o pai.

Freud criou um aparelho psíquico no qual se faziam presentes o princípio de descarga de energia psíquica e os processos de retenção desta energia. Estes são os que constituem as memórias, predominantemente inconscientes, dos acontecimentos da vida do ser dotado deste aparelho psíquico. Estes acontecimentos são os lances de satisfação e de exigência de postergação da satisfação das necessidades sexuais, que determinam as formas de escoamento da energia psíquica. Dentre estes acontecimentos também estão as necessidades de escoamento da energia libidinal ligada à memória inconsciente de fatos incômodos ao eu. Esta porção de energia causa, no indivíduo, a formação de sintomas neuróticos.

Os pais de uma criança, com seu modo particular de conduzir a satisfação/insatisfação sexual dela, e de apresentar as referências culturais que fazem o eu da criança avaliar negativamente algumas de suas ideias, fazendo com que ela as recalque e, um dia, tenha o seu retorno como neurose, são os formadores do aparelho psíquico do seu descendente. A criança descende dos pais na formação e funcionamento do próprio aparelho psíquico. O aparelho psíquico é o resultado e a permanência de uma filiação familiar.

A teoria freudiana ofereceu ao senso comum a ideia de que o modo de ser, incluindo o modo de sofrer, de cada um, tem a ver com o que sua família lhe proporcionou, na infância. Em nome disso, buscamos biografias para explicar personalidades. E essa responsabilização das relações familiares no que apresentamos faz com que reforcemos a imagem da família como lugar de sofrimento e, portanto, de necessária intervenção profilática, para se alcançar a saúde (como Jacques Donzelot e Jurandir Freire Costa apontaram), e a felicidade.

Rorty explicou seu caso com o pai utilizando a teoria freudiana. Segundo o filósofo, a sua esquiva em relação à poesia devia-se à permanência de um mal-estar relacionado ao próprio pai. E a possibilidade de Rorty abraçar a poesia na velhice veio a partir de uma certa elaboração desse problema, de um certo fazer as pazes com o pai.

O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr apresenta a noção de desoneração, do filósofo alemão Peter Sloterdijk. Ela diz respeito à modernidade enquanto liberação de cada um frente a uma linhagem iniciada em Adão. Trata-se de uma linhagem de pecado e culpa, que encontra-se na ancestralidade da civilização, do europeu. Pertencer à civilização era se inserir na linhagem do pecado. Jesus foi um marco da modernidade, ao decidir distanciar-se de todos e ir ao deserto, atendendo à voz em sua cabeça (seu daimon). E também por ter morrido pelo pecado de todos, cortando, enfim, nossa filiação à culpa.

Freud falou sobre o homem impedido de realizar suas necessidades sexuais. Seu homem era o reprimido, pelas exigências culturais rebatidas sobre sua família, e então rebatidas sobre seu psiquismo. Contudo, caso consigamos ver o homem além de Freud, ou seja, além de um herdeiro de dramas familiares, chegaremos ao homem moderno, ou seja, no desonerado. Antes de sermos neuróticos, atingidos pela repressão sexual, somos modernos, seres sem filiação à uma metafísica do pecado, com o espírito do fazer-se por si mesmo.

Este homem é um sujeito do acaso. Não se pode dirigir suas escolhas. Não se pode mapear as influências geográficas e históricas do que ele faz. Sua geografia é surreal, seu tempo é o do desatrelamento do passado. Isso quer dizer que ele se fez a partir do dinamismo intenso das relações que o fizeram, do quase insondável processo de autoconsulta e autodesinibição, e da carta branca para experimentar o novo.

O total fraqueamento das escolhas causa vertigem. Ghiraldelli Jr. explica que, de tão isentos de peso, buscamos peso: as igrejas evangélicas crescem entre os jovens que sentem necessidade que algo reste como pecado. A sexualidade é o campo de preocupação escolhido. Também foi a escolha da teoria familiarista freudiana. Rorty sentiu-se castrado pelo pai, quando teve suas poesias reprovadas por ele. A teoria freudiana, do homem comprometido com o passado familiar pode ser vista, então, como uma detecção do quanto o homem é capaz de amarrar uma âncora em seu pé.


P.s.: Este texto beneficiou-se da explicação que Paulo Ghiraldelli Jr, deu, no hangout do CEFA (Centro de Estudos em Filosofia Americana) do dia 03/01, para minha questão sobre o familiarismo freudiano e a desoneração em Sloterdijk.

A verdade da criação


Em uma parte de "Freud, uma vida para o nosso tempo", Peter Gay fala sobre os textos em que Freud analisa obras literárias e esculturas, seus autores e seu público. As ações e características de Hamlet guardavam uma lógica inconsciente. Esta lógica relacionava-se, de algum modo, à biografia e às possíveis necessidades inconscientes de Shakespeare. E seu sucesso deveu-se a uma relação que se estabeleceu entre a obra e as necessidades daquela mesma ordem, do seu público.

A análise dos motivos dos autores, contudo, não explicava, para Freud, a criação artística: os temas e lances do enredo podiam ser compreendidos, mas não a realização de Shakespeare, ou da de Michelangelo, ou de Da VInci, em sua magnitude. Se, por um lado, a arte precisa da compreensão psicológica, por outro, o gênio não pode ser explicado. Ou ainda, se uma grande obra não é tão elevada a ponto de não vincular-se aos conflitos eróticos, sensuais, dos seus autores, o desvio da libido para a cultura só se explica neste ponto mesmo, o do desvio, e não se avança na compreensão da capacidade criativa de alguém.

Freud queria antes a verdade que a poesia, conta Gay. E a verdade de uma obra estava nas raízes, no que está oculto em uma edificação, que são justamente as suas origens ideativas-sexuais. A poesia, Freud a apreciava. O homem libertado do peso do seu corpo podia voar. Do Moisés, de Michelangelo. Freud foi psicanalista até certo ponto. A obra continuou exercendo enorme fascínio sobre ele.

Cada um de nós tem uma infra-história a desvendar, o porquê de criarmos ou sermos tocados por algo. E também, obviamente, o porquê de estabelecermos certos comportamentos, e formas de nos relacionar com os outros. A partir disso, o que há é uma possibilidade maior de lidar com esse próprio modo de ser. E isso inclui aceitar as impossibilidades de satisfação sexual, e assim parar de emperrar essa energia em funcionamentos repetitivos. Então a energia sexual estaria disponível para criar. Deste ponto em diante, o homem sai do consultório e vai ser mais livre do que era.

O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr conta que seu amigo, o filósofo Richard Rorty, vendo a proximidade de sua própria morte, lamentou não ter lido mais poesia. Leia este texto, do próprio Rorty: http://ghiraldelli.pro.br/…/uploads/The_Fire_of_Life.rtf.pdf. Nele está que a filosofia oferece saberes sobre as coisas. Ensina a lidar com a infinidade da vida e a finidade da morte (quero dizer algo, com esta colocação dos adjetivos). Mas a poesia são como amigos com quem se ri.

Rorty já havia nos levado a pensar que o nosso modo de ser, ou seja, o que fazemos, funciona como quadros de linguagem. E também que Platão, Freud, Newton e outros grandes criadores assim são considerados por nos terem oferecidos novos vocabulários, possibilitando novos modos de conversar. Agora, o filósofo apresentava estes grandes como poetas. Mais do que teóricos, explicadores de alguma coisa, sua criação, ou seja, o conjunto das suas palavras e ideias novas, eram humanas, amigos que te levam a viver mais plenamente. Guardiãs de verdades que a prosa não dá conta de explicar, e que, portanto, são para se viver.

Rorty tributou seu afastamento da poesia a uma questão edipiana, relacionada ao seu pai escritor de poesia. Esta é uma explicação. Mas como a poesia tocava o pequeno Richard? Que gosto foi esse que ele passou a buscar? Que vida era essa que ele queria? Há um bocado disso que não conseguimos transformar em teoria.

Estar vivo e fazer o bem


Perguntas eram dirigidas ao oficial nazista Adolf Eichmann, a fim de se obter um desenho das suas ações no extermínio dos judeus. Hannah Arendt¹ percebeu que o réu repetia respostas, tediosamente. Era incapaz de pensar. Eichmann afirmava não ter antipatia pelos judeus, mas às ordens superiores obedecia automaticamente. Nunca tivera êxito em nada, então seria fantástico subir na carreira dentro da SS.

Hoje alguém diz: "se alguém mata, rouba ou estupra também deve ser morto. Imagina se fosse com a sua família?". De tão colado, preso à vivência, ao que sente, não consegue pensar. Repete o cliché da resposta reativa. Está com a atenção fixa no rompimento de uma norma e, obsessivamente, no próprio mal-estar decorrente disso. Diz a todos que também se alarmem, sintam, prendam-se a um fato e a uma avaliação.

Para o realista, a realidade se resume a imoralidades, crimes, pobreza, corrupção, temas recorrentes trazidos por fatos sempre iguais. Toda edição do programa do Aqui e Agora ou do Marcelo Rezende é igual. O realista se fixa nos impactos, e quer fazer carreira como alguém que reage cada vez melhor a eles. Quer conseguir gritar melhor, chamar mais a atenção, fazer a punição funcionar melhor, até atingir a solução final, com o extermínio do alvo.

Obsessivo, repetidor, cultuador da morte. Devota sua vida ao ódio contra quem rouba, mata ou estupra. Se o ódio terminasse, viria para cima dele mesmo, que não conseguiu ser outra coisa na vida. "Medíocre, falhou na única coisa em que foi valorizado." O ódio ao outro e a evitação do ódio a si mesmo criam a visão e a resposta cliché, isenta de pensamento.

Se acontecesse com alguém da minha família, eu sentiria. Talvez eu não pensasse, na hora, e quisesse matar. Mas então eu recebo a visita de alguém. Ou então minha reação, por algum motivo, fica totalmente impedida, e eu ganho tempo para me formar em psicologia e fazer algumas pesquisas. Pensar sobre o homem. Ir para o complexo. Posso lembrar daquele fato impactante e perdoar quem o provocou.

O pensamento, essa suspensão da ação e do juízo, permite que se volte à cena não mais como um gatilho para a repetição de uma reação, perpetuando o presente, mas como algo que já passou, em relação ao qual se sente algo, mas que não é a mesma dor que se sentiu na hora do acontecimento.

O sentimento se transformou. A resposta do mal é sempre a mesma. Fazer o bem requer imaginação, e ocorre de novas formas. Se o Bem platônico está no melhor, o bípede sem penas não pode se permitir ficar parado diante da tarefa de conhecer a si mesmo, para então cuidar de si e participar bem da cidade. O Bem está lá, acima das Formas, mas sua intangibilidade, para o homem, deve mantê-lo inquieto (http://ghiraldelli.pro.br/lutaremos-desigualdades/).

Luiz Eduardo Soares² foi levado, de guia para guia, para um outro mundo, dentro da cidade do Rio de Janeiro. O prefeito da cidade do Primeiro Comando da Capital o recebeu em seu escritório móvel (automóvel). Era época de expansão das UPPS, e ele era um alvo, apesar de para os policiais estarem satisfatórios os ganhos obtidos com a gestão dele no tráfico de drogas.

A cidade do PCC era estreitamente vigiada, mas a invasão era iminente. O prefeito tinha poder, riqueza, o amor de uma linda donzela, mas não tinha escolha: não aguentava mais a pressão, enlouquecia, mas sair dela implicaria em entregar-se e dar-se a morrer aos policiais, ou em fugir, deixando a família e a comunidade vulneráveis aos policiais e às outras facções.

Luiz sente esse aperto. Enquanto escuta, tem tempo para pensar. Ideia maluca: mês que vem o Papa virá ao Rio. Com seus contatos na igreja, poderia se arranjar a sua entrega à justiça, mas perante essa grande autoridade. A manutenção da sua vida tornar-se-ia compromisso de Estado, internacional e institucionalmente vigiado.

O prefeito está vivo, e a vida, podemos dizer, é a mudança das coisas. Não somos rochas. O encurralamento e a situação de ser um realista do cliché pode fazer alguém acreditar que é rocha: duro à toda prova, mas imutável.

A vida não é a realidade. A vida são chances.

Thiago Ricardo, psicanalista.

1. Hannah Arendt - Eichmann em Jerusalém. Editora Companhia das Letras.
2. Luiz Eduardo Soares - Rio de Janeiro: histórias de vida e morte. Editora Companhia das Letras.

Eu vivo na cidade


Eu vivo na cidade

"Porque ninguém mata esse cara?". É o que volta e meia ouço alguém dizer, em resposta a uma notícia sobre alguém que cometeu violência contra uma criança, um idoso ou um cachorro. No livro "Rio de Janeiro: histórias de vida e morte", Luiz Eduardo Soares comenta certas falas que ouviu de pessoas em uma das maiores manifestações de junho de 2013: "eles têm que melhorar os serviços públicos" ou "eles têm que responder pelas corrupções". Segundo Luiz Eduardo, com esses "eles", os falantes referem-se a agentes externos abstratos, neles apontando as causas de certos problemas. Um efeito disso, para Luiz Eduardo, é o afastamento de si mesmo da possibilidade de também se responsabilizar pelo problema. O sujeito fica abstrato.

Nas manifestações daquele ano, cada um foi à rua e colocou-se da forma que quis, em cartazes e brados. Luiz apontou a formação, naquele contexto, de "nós", a partir dos encontros, negociações e articulações de questões semelhantes, e do compartilhar da voz que exigia a resolução dos problemas. A respeito daquelas manifestações, também é possível dizer que a voz se individualizou, assumiu a forma de um eu que falava, à sua maneira, do que queria falar.

Aquele que fala "alguém tem que matar esse cara" está à espera de um agente impessoal, sem qualquer envolvimento com ele mesmo, para fazer essa execução. Bem, dependendo do grau de sadismo, esse indivíduo pode ser capaz de dar a ordem para a execução, ou até de tomar o lugar do executor e atirar. Surge, então, um eu que se forma pela enunciação da vontade violenta.

No livro do Luiz (vou me aproximando dele), alguns indivíduos são construídos, com a narração de suas histórias. Um deles é Dulce Pandolfi, historiadora do CPDOC/FGV. A segunda conversa de Dulce com o Luiz foi encerrada pela emoção de ambos: a primeira por ter começado a recontar os 60 dias de horror que passou no DOI-CODI, em poder dos militares, e o segundo por ter feito Dulce voltar a essa história inenarrável. Em uma ocasião posterior, Dulce conseguiu relatar por escrito, para a Comissão da Verdade, que apura os crimes cometidos pelo Estado na época da Ditadura Militar, as torturas e outros abusos que sofreu.

Destruição das articulações, exposição do corpo nu, queimaduras nos genitais e em diversas partes do corpo, devido a choques, espancamento e terrores psicológicos foram sofridos por Dulce. E Dulce não é um nome fictício. Luiz quis garantir que o indivíduo leitor sentisse o que ele sentiu, ao sair da segunda entrevista e refugiar-se atrás da porta de uma lanchonete, sem folego, chorando desesperado. Ele quis que sentíssemos o ódio à violência e à destruição do indivíduo e da sua liberdade.

Houve militares que participaram de torturas que, atualmente, disseram publicamente que cumpriam ordens. Alguns disseram que repetiriam o papel de torturadores. A maioria, porém, diz tais coisas no semi-anonimato da família ou dos amigos. São eus formados em lugares pequenos, e que, pela natureza do que defendem, não podem se expandir.

Gente como Jair Bolsonaro, no entanto, encontrou um meio de expandir essas opiniões. Sempre encontro na rua alguém que aproveita que divide uma fila de mercado comigo para dizer "Bolsonaro pisa na bola, no que fala, mas ele faz o necessário. Eu votaria nele." É como o cara que fala, também na fila de mercado, que bate em sua mulher, ou que ele e uns amigos se reuniram para espancar alguém. Não sei se eles topariam ocupar o lugar do Bolsonaro, ou seja, se iriam querer perder totalmente o anonimato. Sabem que a sociedade amplamente considera o deputado um completo imbecil e filho da puta. Talvez no dia em que essa percepção geral mude, o eu sádico do cara da fila queira falar mais alto, como hoje podem falar Dulce e Luiz.

Não nos curamos do trauma da ditadura. A lufada de ar fresco, o gozar da liberdade, sentida por Luiz e todos nós nas Diretas Já e nas manifestações de 2013, é bloqueada quando alguns resolvem tratar as feridas com ácido. Márcia Tiburi faz listas de candidatos a fascistas (http://revistacult.uol.com.br/home/2015/05/como-conversar-com-um-fascista/). Vladmir Safatle sugere a prisão de alguém que se pronuncie favorável à ditadura (http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/174427/Safatle-'Quem-defende-ditadura-deve-ser-preso-por-apologia-ao-crime'.htm). O apoio público à ditadura é contrário à nossa atual sensibilidade, por isso é tímido. Nenhuma opinião jamais pode ser proibida. A nossa esquerda imita a nossa direita.

Luiz saiu do banheiro, foi à rua e sentiu o frescor das vozes, cartazes, expressões. Bem diferentes dos porões, do banheiro, do anonimato da vergonha. Os manifestantes de 2013, aos milhares, sem se deixar secundar e esconder por bandeiras, formaram-se como corpo que falava, gesticulava e levava bombas de gás lançadas por policiais escondidos em sobrenomes.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Em 2016, seja o melhor!


Todos sentaram-se para ouvir Aretha (http://www.publico.pt/…/quando-aretha-comecou-a-cantar-ate-…). O presidente do maior país, o diretor do maior filme, outra pessoa, mais muitíssimas outras, ficaram atentos para o que viria da melhor cantora. O que viria dela? A maior cantora do mundo, com mais de 70 anos de idade. Uma potência abaixo do que um dia já foi? Essa pergunta não existe. É uma cantora com a sua voz inteira, a sua presença inteira. Subiu ao palco, e não se economizou.

Um deus estava com ela, leríamos em Homero, sendo dito por um espectador/alguém que estava lá para ser o corpo a receber suas vibrações, na luta. O espectador é combatente, a Aretha canta e ele vibra. Entre nós, não evocamos um deus, diretamente, para explicar a magnificência de alguém. Evocamos a história, mas não do indivíduo, e sim dos momentos em que o escutamos e nos formamos um corpo a recebê-lo, e ele se formou um mestre de sua arte.
Se houvéssemos acabado de ouvir falar em Aretha, sentiríamos algo completamente diferente do que sentimos, tendo participado dessa história. A dificuldade de contar uma experiência é que a contamos do ponto de vista do indivíduo, quando ela requer vivência da relação. Desde pequeno ouço dizer que ela é a melhor cantora do mundo. Isso tem um efeito.

Obama e George Lucas estavam atentos a Aretha. Os melhores. Mas, ao ouvirem a melhor, somaram-se aos milhões que sempre se puseram atentos a ela, para serem a pele que recebe o canto, e a pele que demanda o canto. Essa é a batalha que travamos com Aretha, como há em Homero, apesar de estarmos sentados.

O melhor da nossa atenção incita o melhor de Aretha. Gostamos do seu impacto, gostamos da performance excelente. Ela é capaz de nos tocar, quando estamos insensíveis. Separamos momentos para sermos tocados, para fazermos essa luta. Um italiano assiste um tenor. O brasileiro assiste o futebol. Perdem as estribeiras. São vistos como doidos por quem é de fora. Mas aquele momento foi reservado para eles lutarem. Um torcedor gasta tanta energia (ou mais!) do que um jogador. Lá eles são tocados, e mais: eles tocam, batem de volta.

Sentados ao lado dos melhores, naquele momento somos como eles, temos a mesma sensibilidade e capacidade de incitar o artista. Por tudo o que eu sinto, sou o melhor ouvinte de Aretha. Como negar, isto?
Os melhores sentam ao nosso lado para receber algo melhor do que eles. Obama sentaria para escutar um grande professor, embora fosse um aluno perguntador. Seria a melhor aula para o melhor aluno. A América aprende com os melhores do mundo.

Considero-me o melhor nas coisas que faço. Admiro os melhores do que eu. Como é possível haver dois melhores? É possível, se eles se colocam um diante do outro, batalhando e se admirando.
Na Ilíada, Heitor é o que mais admirava Aquiles. O odiava, queria matá-lo. Mais do que isso: queria vencê-lo, ter a chance de ser melhor do que ele. A luta é a única situação em que pode haver dois melhores.

Quem consideramos os melhores, entre nós? Poucos nomes restam. Temos talento em diminuir quem é bom. E em nos corromper, quando somos bons.

O melhor e o pior homem


Ninguém acha que bater em criança é um modo de educá-la. Mas, se um amigo lhe disser que irritou-se com o filho, vindo a bater nele com o chinelo, você entenderá que ele bateu por um esgotamento das outras formas de resposta à criança, e que ele está arrependido. Afinal de contas, seu amigo precisa ser humano, como você.

Mas há quem faça uso sistemático de surras, não as tomando como um desvio, na educação de uma criança. Um amigo desta família, sabendo deste fato, buscará sinais de que o pai ou a mãe saibam o que fazem, quando surram seus filhos: se eles falam sobre punições leves para faltas leves, moderadas para moderadas, e pesadas para faltas pesadas, demonstrando a presença de uma razão. Você lhes sugere outra forma de tratar a criança mas, ainda que não a aceitem, sabe que não se tratam de monstros.

Este vídeo (http://g1.globo.com/…/pai-e-suspeito-de-agressao-contra-fil…), recentemente divulgado, mostra um pai segurando pelo braço a filha de três anos, e nela dando cintadas, provavelmente acertando várias partes do corpo. Quando criança, algumas vezes apanhei de cinto, na bunda. Já naquela época eu tinha a sensação de que meu pai não precisava fazer aquilo. Mas, eu sabia, meu pai aplicava o castigo com algum controle sobre si mesmo. Era alguém que liberava seu impulso agressivo de forma não caótica. A ação do pai deste vídeo tem no sacudir a criança pelo braço o elemento caótico, quero dizer, de falta de qualquer ordem, qualquer razão no emprego da força.
Em nossa reprovação dos castigos físicos, não apenas contra crianças, a cena de alguém agredindo o outro sem o uso de ferramentas, ou seja, usando o próprio corpo, é a imagem do abandono da humanidade, e o retorno à bestialidade. É como se o homem houvesse involuído.

A não utilização de ferramentas, por parte de um agressor, sugere alguém sem qualquer preocupação de proteger-se do que está fazendo. Um pai que usa chinelo ou cinto no castigo corporal ao filho, ao não usar a mão, mostra um receio por não se sujar do sofrimento inflingido. Um ser bestial usaria punhos, garras e dentes para massacrar e abrir caminho por um corpo, cujo sangue, suor e lágrimas, ao serem tocados, atiçariam ainda mais a fera. No vídeo, o pai foi atiçado pelos gritos da filha.

O extremo que apresentei aqui, mostra alguém indo "às vias de fato" em uma situação doméstica, como se brigasse em um bar. Ir às "vias de fato" é o que vemos em linchamentos, tanto de pessoas que cometeram crimes como roubo ou assassinato, quanto de governantes, através da expressão de dizeres agressivos, em passeatas. São pessoas que pareciam apenas estar esperando a oportunidade de serem bestiais.

Na rua ou em casa, se somos humanos, cuja imagem é a do homem civilizado, não nos é dada a livre satisfação do nosso impulso agressivo. Em seu lugar, em situações em que se é convocado a fazer com que uma pessoa atenda a uma lei ou regra, querermos mostrar, pelo nosso ethos, que o próprio agente da lei ou regra também e sujeito a elas.

Exercitar modos de ação que se acompanhem por razões, e que sejam por elas justificáveis, é o que uma pessoa considera de mais elevado que pode ensinar a um filho, ao cônjuge ou ao governante.