quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Eu vivo na cidade


Eu vivo na cidade

"Porque ninguém mata esse cara?". É o que volta e meia ouço alguém dizer, em resposta a uma notícia sobre alguém que cometeu violência contra uma criança, um idoso ou um cachorro. No livro "Rio de Janeiro: histórias de vida e morte", Luiz Eduardo Soares comenta certas falas que ouviu de pessoas em uma das maiores manifestações de junho de 2013: "eles têm que melhorar os serviços públicos" ou "eles têm que responder pelas corrupções". Segundo Luiz Eduardo, com esses "eles", os falantes referem-se a agentes externos abstratos, neles apontando as causas de certos problemas. Um efeito disso, para Luiz Eduardo, é o afastamento de si mesmo da possibilidade de também se responsabilizar pelo problema. O sujeito fica abstrato.

Nas manifestações daquele ano, cada um foi à rua e colocou-se da forma que quis, em cartazes e brados. Luiz apontou a formação, naquele contexto, de "nós", a partir dos encontros, negociações e articulações de questões semelhantes, e do compartilhar da voz que exigia a resolução dos problemas. A respeito daquelas manifestações, também é possível dizer que a voz se individualizou, assumiu a forma de um eu que falava, à sua maneira, do que queria falar.

Aquele que fala "alguém tem que matar esse cara" está à espera de um agente impessoal, sem qualquer envolvimento com ele mesmo, para fazer essa execução. Bem, dependendo do grau de sadismo, esse indivíduo pode ser capaz de dar a ordem para a execução, ou até de tomar o lugar do executor e atirar. Surge, então, um eu que se forma pela enunciação da vontade violenta.

No livro do Luiz (vou me aproximando dele), alguns indivíduos são construídos, com a narração de suas histórias. Um deles é Dulce Pandolfi, historiadora do CPDOC/FGV. A segunda conversa de Dulce com o Luiz foi encerrada pela emoção de ambos: a primeira por ter começado a recontar os 60 dias de horror que passou no DOI-CODI, em poder dos militares, e o segundo por ter feito Dulce voltar a essa história inenarrável. Em uma ocasião posterior, Dulce conseguiu relatar por escrito, para a Comissão da Verdade, que apura os crimes cometidos pelo Estado na época da Ditadura Militar, as torturas e outros abusos que sofreu.

Destruição das articulações, exposição do corpo nu, queimaduras nos genitais e em diversas partes do corpo, devido a choques, espancamento e terrores psicológicos foram sofridos por Dulce. E Dulce não é um nome fictício. Luiz quis garantir que o indivíduo leitor sentisse o que ele sentiu, ao sair da segunda entrevista e refugiar-se atrás da porta de uma lanchonete, sem folego, chorando desesperado. Ele quis que sentíssemos o ódio à violência e à destruição do indivíduo e da sua liberdade.

Houve militares que participaram de torturas que, atualmente, disseram publicamente que cumpriam ordens. Alguns disseram que repetiriam o papel de torturadores. A maioria, porém, diz tais coisas no semi-anonimato da família ou dos amigos. São eus formados em lugares pequenos, e que, pela natureza do que defendem, não podem se expandir.

Gente como Jair Bolsonaro, no entanto, encontrou um meio de expandir essas opiniões. Sempre encontro na rua alguém que aproveita que divide uma fila de mercado comigo para dizer "Bolsonaro pisa na bola, no que fala, mas ele faz o necessário. Eu votaria nele." É como o cara que fala, também na fila de mercado, que bate em sua mulher, ou que ele e uns amigos se reuniram para espancar alguém. Não sei se eles topariam ocupar o lugar do Bolsonaro, ou seja, se iriam querer perder totalmente o anonimato. Sabem que a sociedade amplamente considera o deputado um completo imbecil e filho da puta. Talvez no dia em que essa percepção geral mude, o eu sádico do cara da fila queira falar mais alto, como hoje podem falar Dulce e Luiz.

Não nos curamos do trauma da ditadura. A lufada de ar fresco, o gozar da liberdade, sentida por Luiz e todos nós nas Diretas Já e nas manifestações de 2013, é bloqueada quando alguns resolvem tratar as feridas com ácido. Márcia Tiburi faz listas de candidatos a fascistas (http://revistacult.uol.com.br/home/2015/05/como-conversar-com-um-fascista/). Vladmir Safatle sugere a prisão de alguém que se pronuncie favorável à ditadura (http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/174427/Safatle-'Quem-defende-ditadura-deve-ser-preso-por-apologia-ao-crime'.htm). O apoio público à ditadura é contrário à nossa atual sensibilidade, por isso é tímido. Nenhuma opinião jamais pode ser proibida. A nossa esquerda imita a nossa direita.

Luiz saiu do banheiro, foi à rua e sentiu o frescor das vozes, cartazes, expressões. Bem diferentes dos porões, do banheiro, do anonimato da vergonha. Os manifestantes de 2013, aos milhares, sem se deixar secundar e esconder por bandeiras, formaram-se como corpo que falava, gesticulava e levava bombas de gás lançadas por policiais escondidos em sobrenomes.

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