domingo, 25 de setembro de 2016

Os comovedores


Hoje, o Padre Fábio de Melo apresentou-se no show “A estrada sou eu”, num ginásio próximo daqui. Só agora parei de escutar a música comovente.

Chamo-a assim ao lembrar de Agostinho que, nas Confissões, falou de um bispo que mandava recitar cânticos com o mínimo de inflexão de voz. A música deveria ser o menos comovente possível. É que o espírito seria seduzido pelos prazeres corporais, entre eles os do ouvido, fazendo a razão desviar-se do sentido das palavras.

A razão deveria voltar-se ao suprassensível. O eterno merece toda a nossa atenção, não o temporário.

É esse o sentido das recitações, dos cantos, dos rituais, enfim, da Igreja. O papa Francisco tem feito exortações sobre o cuidado com a Terra, incluindo o homem, criatura. A chamada Renovação Carismática, da Igreja, e também o neopentecostalismo, tem apostado em shows, para formar um público.

A TV Record, por exemplo, pela manhã e à tarde passa histórias de crimes, e à noite pastores dramatizando na sua pregação. As vivências das pessoas são tratadas numa dramaticidade.

Agora, escutar o Papa te faz pensar. É como escutar um professor: são frases com espaços de silêncio. Ler também é assim: a folha é branca, o espaço após cada frase vai sendo preenchido com pensamento.

Esse pensamento não é o da pessoa sobre si mesma. Ela não está sendo ganha por alguém que diz “exatamente o que eu precisava ouvir, sobre mim.” O pensamento é um ser levado para fora de si mesmo.

Em Platão, pensar é rumar para o conhecimento acerca do que é mais real, desvencilhado das experiências particulares de cada um. Essa é ainda a pretensão da filosofia, mesmo que parta das experiências particulares: ela não quer entreter, fazer rir ou chorar. Ela até pode provocar isso, mas almejando que a pessoa deixe o lugar do saber e pise no do não saber, que é o do espanto e o do olhar diferentemente as coisas.

Uma frase solta. um cliché, que é a forma em que se estuda, atualmente, faz a pessoa jurar que está pensando. A mesma pessoa jura que não há pensamento numa mulher nua. Bem, peço licença a Agostinho para dizer para uma mulher linda nua: “Meu Deus do céu!”.

Ídolos pregando sobre violências, golpes, prometendo que retornarão em 2018, como se fossem Jesus, são lances de um espelho, que quer te manter cativo e sempre igual a si mesmo.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

"O fim do amor"


Como você já deve saber, Angelina Jolie e Brad Pitt se separaram. Um jornal carioca noticiou-o como “O Amor Acabou”. O palco é o lugar para onde o homem olha para se enxergar. Os enredos são acompanhados, e os dramas sentidos, como uma forma do homem observar a si mesmo.

Após a peça, ou no intervalo da novela, o comentário volta-se à decisão de um, ao sofrimento de outro personagem. A ficção é o espelho da nossa realidade particular. Mas acabou o amor, com a separação de Jolie e Pitt? O amor deles era O Amor?

Se a peça é o nosso espelho, a vida do ator que a interpreta também o é. O ator, o que tem por profissão encenar, falsear, em sua vida particular só pode ser verdadeiro. Assim pensamos. Por isso gostamos de bastidores, de fofocas.

Após atuar em diversos pares românticos, Pitt casou-se com Jolie. Então certamente ela é a verdadeira mulher dele, é por ela que ele tem amor. Também Jolie, tendo interpretado mulheres que viveram e sentiram todo o tipo de coisa, estando realmente casada com Pitt só pode ter por ele um sentimento também real.

Reservamos o uso da palavra amor ao que permanece. Sabemos que somos temporários, que o que vivemos e vivenciamos passa tão rápido quanto uma novela. Às vezes mais rápido do que uma temporada de série. Então o que dura tem cheiro de eterno. E só podemos atribuir a palavra “verdadeiro” ao que nos parece eterno.

Jolie e Pitt adotaram crianças. Diferentemente das crianças das quais eles porventura possam ter sido pais, na ficção, aqueles são seus filhos reais, justamente por permanecerem com eles no lugar onde parece que o tempo não passa: a casa. A casa é o reino da geração, enquanto fora dela é o reino do ciclo da natureza, o do nascer e do morrer.

Segundo Platão, em O Banquete, gerar é o que faz o homem saltar do tempo da vida e da morte, e tocar a eternidade. Em uma família, as pessoas morrem, mas os lugares permanecem, e cada ocupante vai deixando suas marcas. O amor entre Jolie e Pitt gerou os filhos que eles adotaram.

Após casarem, eles continuaram fazendo pares românticos com outras pessoas, na ficção. Pitt, por exemplo, chegou a gravar com Julia Roberts. Dizem que existe algo chamado “beijo técnico”. O beijo sem língua, é “técnico”? Encostar a língua no lábio do outro, é uma intimidade?

A língua na língua, um acidente causado pelos dois, parece ser traição em relação ao terceiro. E uma cena de sexo, feito com tapa-sexo? Os atores estão obrigados a estarem ali, mas têm aquele ato particular de protegerem-se da intimidade com o outro.

Nossa necessidade de ficções coloca os atores nus, numa cama. Mas deles também se espera o ato de usar o tapa-sexo. Essa vontade parece ser o que separa a intimidade/traição da não intimidade/não traição, pois ela leva ao uso de algo que cria uma barreira ao contato íntimo.

William Bonner e Patrícia Poeta, nos bastidores, reuniam-se para discutir o JN. Faziam juntos o que fazem de melhor. Passavam horas, naquilo. De vez em quando riam, de vez em quando se emputeciam um com o outro. Depois voltavam à concentração.

Mesmo havendo esse envolvimento, compartilhamento do que mais gostam, se não ocorria o toque, o envolvimento não era amoroso. O envolvimento era de trabalho. Apesar disso, quanto mais tempo durou a parceira deles, mais pensávamos que eles estavam na ante-sala de um romance.

Bonner e Jolie. Fátima e Pitt puseram fim às relações que permaneciam enquanto as parcerias de trabalho dos seus integrantes trocavam. Nesses papéis públicos, em que há troca de parceiros, todos vêem casos, lances de amor. Mas, desligando a tv, todos sabem que a relação deles não é aquela.

Verdadeiro era Bonner e Fátima, Pitt e Jolie. Eles é que permaneciam, sobrevivendo à troca de capítulos, gerando filhos. O fim dessas relações, aí sim, é o fim do amor.

Generosidade e mesquinhez


O menino amava a árvore. A árvore ficava feliz quando ele se balançava em seus galhos, descansava à sua sombra, comia dos seus frutos. Um dia o menino sumiu. Voltou crescido.

A árvore animou-se, chamou-o para brincar, como antes. O menino crescido se disse preocupado em ganhar dinheiro. A árvore ofereceu-lhe seus frutos, que ele poderia vender. A árvore ficou feliz, e o menino crescido partiu.

Algum tempo depois, o menino retorna. Um homem. Novamente a árvore o chama, para brincar com ela. Ele quer uma casa, mas não sabe como conseguir. "Meus galhos estão aqui para isso! Pegue-os." Assim fez o homem, e saiu com os galhos. A árvore ficara feliz.

Muito tempo depois, o homem meio velho vem até a árvore. Não quer dinheiro, nem casa. Ele está cansado, e quer ir para algum lugar distante. A árvore alegremente disse para ele cortar seu tronco, e dele fazer um barco. O velho faz isso, e vai embora.

Mais algum tempo depois, o velho vem até o toco da árvore. Este, muito alegre em ver o menino, chamou-o para brincar. O velho não tinha mais dentes para comer frutas, nem pernas para se balançar. Ele mal conseguia parar sobre a própria coluna, reta. "Sente-se em mim, e seja feliz!". O velho sentou-se, e ali permaneceu.

A árvore fica feliz em dar. É generosa por dar o que sabe que tem de melhor: sombra, frutas, galhos, tronco, toco. Ela dá sem esperar retorno. Ela o faz porque isso a faz feliz.

Ela dava sem se preocupar em se esgotar. O homem é carente, sempre precisa de algo. E pega o que acha que é exatamente o que precisa, o que o satisfará. A árvore dá aquilo e muito mais, não é um espelho da carência do homem.

O menino esbanjava alegria. Tinha alegria para dar e vender. Alegre de quem dá! Quando cresceu é que ele passou a precisar. E também passou a se preocupar com seu próprio fim, e quis se preservar. A árvore manteve-se generosa, pois jamais poupou a si.

Mesmo reduzida a um toco, o espírito da árvore estava inteiro, para ficar feliz com o menino. Vida existe para se gastar, não se economizar, mesmo ela sendo uma só. O que há depois dela? Quando o homem morrer, a árvore não estará mais lá.

A generosidade da árvore não é a do mesquinho, que oferece tudo, mas querendo que o outro pegue pouco. E ainda o chamando, no seu íntimo, de aproveitador.

A subjetividade da árvore é plana: ela simplesmente fica feliz por dar. Ao homem, contudo, atribuímos uma segunda intenção: imaginamos más as aproximações dele em relação à árvore, e mau o que ele diz a ela.

Talvez nós mesmos estejamos entre a mesquinhez e a rapinagem, e nos seja estranha a generosidade. E talvez estejamos psicologizados demais, deixando de ver a árvore.

p.s.: Este texto é um comentário ao livro "A arvore generosa", de Shel Silverstein.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Divino sono



Segundo a Teogonia, de Hesíodo, os primeiros deuses foram o Caos, depois Terra e Tártaro. Estes dois eram opostos: o primeiro significava o chão seguro, o segundo significava buraco sem fundo e enevoado. A eles se assomou Eros, domador do espírito e da vontade de deuses e homens. A confusão, a terra, o vazio e a controle da força de união foram os primeiros elementos que existiram.

Caos, ainda, deu nascimento a Érebos, trevas, e à Noite. Érebos e Noite produziram Morte e Sono. E também produziram Éter, luz celestial, e Dia.

Era uma casa cercada de chuva. Em suas laterais, avolumavam-se árvores. Após essas árvores, vegetação densa, indiscernível, à noite. Os filhos de Caos estão nesta cena. A floresta é trevosa, e a Noite cai sobre a casa.

Sono, filho da Noite, abateu-se sobre os seus habitantes. Sono imortal, irresistível aos imortais. A avó ronca, e este som faz os olhos do neto se fecharem. O sono passa de pessoa a pessoa. Eles estão em uma casa, sobre a terra. O Tártaro está fora, mas não longe.

Eros acerta o passo do menino para cima da avó. E sobre ele, um cachorro veio cochilar. A avó muda de posição, roncando mais. Nisto, ela convida mais sonolentos. Sobre o cachorro instalou-se um gato, e sobre este um rato. Sem disputa.

A Noite cobria a todos com o seu manto. O Sono os entorpeceu. Eros os uniu feito uma matilha, formada de cachorros que, façam o que façam durante o dia, dormem amontoados. Sobre o rato havia uma pulga, que não dorme. A pulga está sobre todos, coroando o sono.

Quando quis, a pulga picou o rato, que assustou o gato, que arranhou o cão, que sacudiu o menino que acordou a avó. Das entranhas da Noite nasceu o Dia. Menino e avó acordaram sorrindo, pois estava na hora.

A floresta iluminada. A casa novamente em cores. Cada um da casa agora poderia seguir sua vida. Até o retorno das trevas. Da noite. E do sono.

p.s. Eis o trecho da Teogonia:
"Sim bem primeiro nasceu o Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre os Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
Do Caos Érebos e Noite nasceram.
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram.
Gerou-os fecundada unida a Érebos em amor."

p.s.2: Texto baseado no livro "A casa sonolenta", de Audrey e Don Wood.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

A filosofia observa nosso prazer e nossas cabeçadas


O amor é lindo. Minha mulher é linda. Fiz uma poesia linda, para presenteá-la. Acompanhada dos melhores bombons. Fomos a um restaurante bem gostoso, depois assistimos a um filme que nos fez ficar agarradinhos. Estou falando do amor, ou da minha mulher e das coisas que eu e ela fizemos?

Não é fácil falar do amor. No Banquete, Sócrates percebeu que o discurso de Agatão, poeta premiado, quisera tratar do amor, mas antes fez o elogio do amado. Atualmente, em nossas músicas, vemos bastante o elogio da beleza da amada, do prazer com o seu carinho, etc.

"Amor é um fogo que arde sem se ver. É ferida que dói, e não se sente. É um contentamento descontente. É dor que desatina sem doer.", de Camões, não de Renato Russo, fala de amor. Perceba que não é exatamente elogioso.

Agatão havia dito que Eros é o mais jovem dos deuses, e delicado, de forma fluida, até, de modo a que possa envolver-nos. De pele semelhante à das flores, pois se afina a quem tem viço e beleza, e se desafina com quem tem a pele enrugada. Este é um elogio ao amor, um louvor.

Agatão sente o prazer amoroso e quer expressar isto. É o agradecimento, então, por algo experimentado, e os votos de que novamente ocorram com ele. As músicas tristes, sobre o amor, falam da dor da perda do prazer.

Agora me ocorre essa música do José Augusto: "Eu já tentei, fiz de tudo pra te esquecer. Eu até encontrei prazer, mas ninguém faz como você. Quanta ilusão, ir pra cama sem emoção, se o vazio que vem depois, só me faz lembrar de nós dois." Não é uma análise sobre o amor.

A intervenção de Sócrates traçou uma aparência de feio e enrugado, para o amor. Isso porque ele é filho da falta de recursos com a astúcia, Penia e Poros. Pense se o amor realmente não é a sensação de total desespero, falta de tudo, se se está longe de quem se ama? E se a pessoa que passa por isso não é a maior estrategista para se conseguir o que quer, no caso, o amado?

O regozijo do amor dura momentos. Amar alguém é, predominantemente, sentir uma grande falta e bolar mil maneiras de ter novamente o encontro prazeroso com o outro. O amor é destituído de beleza. Ele tem de ser assim, do contrário, se fosse belo, não sentiria falta e desejo por aquilo que já possui. Este é o argumento de Sócrates.

Poros e Penia fizeram Eros na festa de comemoração do nascimento de Afrodite. Eros tem uma ligação com esta deusa. Penia, que a tudo assistia da soleira da porta, por não ter o suficiente para estar junto aos deuses, aproveitou um momento de embriaguez de Poros para furtivamente entrar e deitar-se com ele. Ela é a miséria, o rebaixamento total diante das excelências dos deuses, da beleza de Afrodite.

O amante, sem a sua amada, é esse miserável que está na letra de José Augusto. Ele até faz letras de música, para recuperar sua amada! Sócrates bem lembra que aquele tocado pelo amor faz criações comparáveis a quem é possuído pelas musas.

Longe da sua amada, o amante é um obcecado pela falta. Fica monotemático, e não consegue ver anda além. Quando está satisfeito, no entanto, ele levanta-se da cama e vai fazer um bolo, escreve um texto, sai para trabalhar. Pensa que aquela mulher o ama, e isso anima seus passos. A fantasia, imaginação, naquele momento está com ele, permitindo que ele veja outras coisas além do amor que sente.

Sócrates colocou-se de lado, em relação a este homem ora insatisfeito-ora satisfeito. Quis dizer a verdade, do jeito dele. A verdade não combina com todas as musicas e enredos que passam em nossa cabeça, pois eles são 8 ou 80, ou amam estar amando ou odeiam estar amando.

Os homens têm pouco discernimento do que vivem com o amor (embora desconfiem, pois não há apaixonado que seja calmo). Sócrates consegue analisar isto, pois escuta seu daimon, e também às mulheres. Mulheres sempre têm uma posição privilegiada para observar as desventuras do homem que move o mundo e pira, por elas.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Fugir do Temer?


Um rapaz chegou pelas minhas costas, hoje, esticou a mão até a minha. Virei-me, olhei-o nos olhos e ouvi “Fora Temer”.

Antes de qualquer coisa, as pessoas estão soltando “Fora Temer”. Não falam nada, não mudam a expressão do rosto, nada. É como se fosse um cartão de visitas, distribuído por alguém que nem ao menos antes fala a que veio. Quer ser aceito. Na marra.

“Vão ter que me engolir, não importando o que pensem ou o que digam”. “Não vou escutar, não quero saber nem do que eu mesmo estou falando.”

O Golpe de 64 foi mais do que a derrubada de um presidente democraticamente eleito e a instauração forçada de um governo ditatorial: é um bicho-papão, talvez a pior coisa que uma pessoa considera que tenha existido no planeta. É um monstro com ares de absoluto, do qual nem se tenta descrever direito e já se grita por socorro.

Ameaçadas pela volta desse monstro, muitas pessoas estabelecem, para o que ouvem na escola ou para o que escutam em suas relações e na mídia, níveis de periculosidade para o retorno do monstro: individualidade-família-lei-religião-consumo-mercado, numa escala gradual do menos para o mais perigoso. Para cada um desses males há um remédio, seguindo a graduação: igualitarismo homogeneizante-ser contrário a pais, professores, juízes e padres, ou seja, a todo mundo que saiba mais e proponha mudança de comportamento-evitar comprar coisas, ou de preferencia comprá-las usadas, e plantar ou reaproveitar o máximo possível para vestir, comer ou usar.


O PT ganhou o amor de uma multidão não pelo discurso da honestidade, e não exatamente pelo discurso “pró social e minorias”. O ibope do PT foi conquistado por ele ser um catalizador da solução daqueles males que levam ao grande monstro da ditadura.

Se O PT faz bolsa-família não é porque milhões de pessoas precisam sair da miséria e terem uma participação no consumo. É porque quem consome gostaria de livrar-se deste mal, embora não queira, então por isso estanca a fome de quem morria disso só para poder ficar perto dele, acompanhando-o na sua pobreza redentora.

O PT não faz cotas éticas em universidades porque o negro e o branco precisam conviver no espaço que tem um nome que sugere a inclusão de tudo o que existe. Para os que têm medo de monstro, e no discurso dos que metem esse medo neles, os negros entram na universidade como uma vingança contra os brancos. E estes brancos jamais os aceitarão, por isso o negro, mesmo matriculado e estudando, deve empreender ações que atrapalhem as aulas do brancos, que também poderia ser a deles, se eles quisessem.

“Fora Temer” é o balbucio de quem se vê diante do seu pior pesadelo, e não tem qualquer recurso para entendê-lo. Perguntei ao rapaz do início, “porque Fora Temer”? “Porque o PMDB sempre se elegeu de forma indireta, golpista. E por ser corrupto.”, ele me respondeu. Enquanto isso, eu me perguntava: mas o PT também era corrupto, e os que dizem ‘Fora Temer’ não gritaram ‘Fora PT'”. Eu também me perguntava: “Fora Temer, mas depois o que?”

Temer saindo, o que vem depois? Ele é o monstro que surgiu por resultado do golpe, de modo que há de se tirá-lo a qualquer custo, da nossa frente? Seus pais vêm a acendem a luz. No momento em que o jovem acha que estudar é gritar na rua e interromper aula, dar de ombros para quem sabe mais do que ele e ansiosamente buscar uma causa e um necessitado para chamar de seus, o presidente acaba com as escolas, substitui os pais ou figuras vencedoras por sua capacidade e talento, e se apresenta como quem mais entende de pobre e minoria, fazendo crer que fez por eles, e ainda fará, coisas que nenhum político mesquinho faria.

Esse presidente é o grande pai, e superior a qualquer valor, lei ou razão. “Fora Temer” quer dizer “Fora sentir medo”. “Fora dar ouvidos a qualquer coisa diferente da voz do meu líder, que me diz que cuida de tudo, ou me mobiliza certinho, e não força o meu pensamento”.

O que é ser um indivíduo?


Janaína encerrou seu discurso (https://www.youtube.com/watch?v=P5FQH9f5ads) no julgamento de Dilma dizendo que, após o fim daquilo tudo, caso fosse novamente necessário, ela sairia do conforto do anonimato para entrar com um novo processo de impeachment. O Deus de Janaína (entenda-o aqui:http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/deus-nao-faz-impeachment-mas-ajuda.html), o mesmo que o de todos nós, pois dizemos “tudo isso foi obra de Deus”, “ou tudo isso foi coisa do destino”, caso novamente coloque no poder um outro presidente participante de esquema de corrupção, assistirá uma nova ação daquela mulher.

Ela, um indivíduo, viu os fatos, pensou e agiu. Está vendo os fatos, e chamando-nos para também vermos, para além da propaganda ideológica. Está pensando, e chamando-nos para também pensarmos para além do pensamento ideologizado, que é o não-pensamento.

Janaína está agindo e fazendo-nos ver o que está em nossa cara, e dizermos: “porque tenho que fechar os olhos para banditismo, em troca de esmola? Tenho que me humilhar desse jeito? Porque não posso ter um presidente que seja um indivíduo, que mostre as reais condições de trabalho, dele? Quero um presidente que tenha valores, princípios de visão e de ação, e os mostre. Que não seja um burro perdoado por gente que duvida da própria inteligência. Um corrupto perdoado por gente que duvida da própria honestidade. Um inapto perdoado por gente que duvida da própria aptidão.”

Todo americano quer se Obama. Duvido que algum petista, em seu íntimo, queira ser Lula ou Dilma. Não quer, embora diga para si mesmo que coisa melhor ele próprio não consegue ser. Quer ser Lula ou Dilma por desistência de ser algo bom. Também não se trata de ser Temer, que também nada apresenta, não é um indivíduo.

O indivíduo é a manifestação de uma capacidade, e esta manifestação estimula a quem o vê. Esta estimulação é por criar indivíduos também excelentes. Janaína mostra seus princípios, sua trajetória acadêmica e profissional, mostra seus amigos e o instrumento que com eles elaborou para o impeachment de Dilma. Mostra a si mesma no que ela é, na sua exata medida, sem inventar para mais ou menos, sem fazer propaganda ideológica.

A profissão de direito e a USP são honrados pela fala de Janaína. Os advogados, de quem volta e meia se duvida da honestidade, ou pelo menos da boa-vontade, devem orgulhar-se de Janaína e estudá-la. A USP deve cuidar do nível do seu ensino para que mais Janaínas sejam formadas, em todas as áreas.

Janaína não é Deus. Ele articula as coisas e cria o momento propício. O momento propício para Janaína entrar com seu pedido de impeachment foi o racha entre o PMDB e o PT. Ela percebeu que a hora era aquela. Mas que aquele era um momento tão oportuno assim, que seu processo seria conduzido de forma a vencer Dilma e o PT (uma mulher contra uma “presidenta”), Janaína não sabia. E nem precisava saber. Ela conhecia os problemas, percebeu o momento e pimba! Ela o fez com capacidade técnica e humana. Janaína, claro, foi ajudada pela sorte, mas não acredito que ela tenha pensado nisso. Quando mais se pede a ajuda de Deus, menos ele atende. Janaína também não fica se arvorando em ser “filha de Deus.”

Aquela frase “Deus não escolhe os capacitados, mas capacita os escolhidos” é ouvida por nós como um convite a que percebamos as coisas que estão rolando, e que façamos o que temos que fazer, na hora certa. Por algum motivo não explicado, tudo andará a nosso favor.

Aqueles de pensamento ideologizado têm a ação amarrada: queixam-se de diversos problemas e, para solucioná-los apostam em um herói, um deus, uma espécie de indivíduo superior. Assim os petistas abaixam a cabeça para Lula. É como se só ele conhecesse os problemas do Brasil e pudesse solucioná-los. Se rouba é por ser brasileiro demais, mas também por isso ele é bom de coração. E salvará a todos por ser esse super-indivíduo, o Brasil encarnado.

Ao verem a si mesmos como filhos de Lula, de “Deus”, os petistas acreditam-se dotados de ao menos uma porção das características dele. Os olhos dos petistas vêem as coisas sob o filtro de Lula, as suas mãos estão amarradas às dele, de modo que, se ele as faz avançar, em seguida vêm as mãos dos petistas para fazerem o mesmo, e também para apoiar as mãos principais. Eles se acham bons, como acham bom o pai. Acreditam-se capacitados e aptos a serem escolhidos.

Mas Lula não é Deus. Ele tem os esquemas dele, e milhares de seguidores, mas não controla o andamento do destino. É um homem que acreditou ser enorme, e fez muitos crerem nisso. Mas que foi derrotado por uma mulher, com visão clara das coisas e de si mesma. E sabedora que entre a mão dela e o que ela quer realizar há uma distancia que é a do desconhecimento do que vai acontecer. É a distância da sorte. E é a do torcer para se estar fazendo a coisa certa, abençoada por Deus.

Porta na cara


Eduardo Paes, ao entregar uma casa a uma mulher negra, em uma favela, disse que ela usaria o lugar para trepar muito (http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2016-08-28/paes-aparece-em-video-sugerindo-que-mulher-vai-trepar-muito-na-nova-casa.html). Paes, inclusive, sugeriu a formação de uma fila, com distribuição de senhas.

Luciano Huck fazia o mesmo ao reformar o carro das pessoas: chamava-os de podres para baixo. As pessoas são pobres, moram mal, têm carros podres e trepam muito. Paes e Huck, benevolentes, deixam o trato social de lado e “humilham” os beneficiários de suas ações.

É preciso entender melhor essa “humilhação”. Paes e Huck apontam, trazem para o show, certos elementos da vida privada das pessoas com quem eles lidam. Em seus programas e caminhadas-palanques, quando desviam o foco de si mesmos e focalizam as pessoas é para contraporem o necessitado ao não necessitado. Eles dizem que farão algo por “quem precisa”, e logo mostram uma imagem ilustrativa. E então o foco volta a ser eles mesmos, já mostrando-os como benevolentes.

Paes e Huck têm grande sucesso popular. Vestem-se de cariocas e vão comer feijão na casa de alguém, na favela. Criticam tudo o que podem. Ao fazerem isso, pensam ver nos olhos das pessoas a confissão de que erraram na vida, e o pedido de ajuda. Esta visão, é claro, será mencionada no vídeo, através das palavras dos apresentadores ou de “depoimentos” dos pobres.

Para entregar o carro reformado e a casa nova, não podem simplesmente passar as chaves para as famílias. Isso faria com que parecesse que se trata de um serviço que eles prestaram, que receberam alguma coisa, por exemplo um e-mail, e pagaram com o bem. Não. Eles não são servidores.

Mesmo que Paes esteja entregando a casa através de um programa social do seu governo, ele não se coloca como servidor público. Ele não honra o seu cargo porque não honra aquele para quem ele trabalha. Ele não gosta do pobre, e também despreza a casa que entrega. Tratando o pobre como um necessitado, e a si mesmo como um provedor-que-puxa-orelhas, ele fica distante de, por exemplo, ser um Obama, que vê a si mesmo como o melhor presidente do melhor país, pois foi um lutador em defesa dos valores que ama.
O preço que as pessoas pagam pelos bens que recebem de Paes e Huck é exibirem sua pobreza. Isso significa que devem exibir tanto uma carência de bens quanto uma alegria meio insana. Neste vídeo, Paes quis mostrar a falta da mulher em cuidar da própria intimidade. Carro podre, favela podre, casa podre e, agora, comportamento sexual podre.

A mulher pode ou não fazer sexo com muitos homens. Isso não sabemos, no que fica bem demonstrado ao final do vídeo quando ela fala “deixa eu fechar essa porta”. Ter uma casa é ter dignidade porque é ter uma barreira aos olhares dos outros. É ter um lugar a partir do qual a pessoa se exibe, mas regulando a abrangência do público da exibição. Quando eu tomo banho, o público de exibição é restrito a mim mesmo. Ou melhor, eu não consigo me ver por inteiro.

Desde que surgiu, Paes quis ser uma espécie de carioca-modelo: sorriso largo, camisa listrada, chapéu, samba. E guardas-municipais batendo e roubando camelôs não cadastrados, e polícia despejando favelados e executando jovens desses lugares. Bom carioca deve ser ordeiro e alegre. E, lógico, não subir e não descer a favela. O que ele disse para a mulher, no vídeo, é da vontade dele em ser um amigão, aquele que “saca do povo”. Mostrou aberta a casa que deu à mulher. Agiu como aquela vizinha que comenta a vida dos outros e é fonte de incômodo e, também, pouco apreciada.

É como uma ave negra que fica “agorando”, “agourando” a felicidade dos outros. Ao fazê-lo Paes não sabia que estava sendo filmado. Ao tratar o outro como deseducado, mostrou-se ele mesmo deseducado. E certamente fez surgir uma voz que nunca se calou, quando um figurão desses aparece no meio dos pobres: “quem ele pensa que é para falar assim com a gente? Deu a casa, tudo bem, mas já para a rua! Deu o carro, tudo bem, mas não te dou carona!”.
Eu ou você podemos dizer, pouco ou muito, o que Paes falou no vídeo. Falamos para nós mesmos, para nossos amigos. Se formos o Bolsonaro ou o Trump, dizemos em vídeo. Agora, um governante dizê-lo, enquanto realiza uma ação do seu governo, é não apenas a desmoralização do outro, mas de si mesmo, enquanto governante. Gritando a baixeza que supõe na mulher, Paes mostrou a própria baixeza.