terça-feira, 31 de maio de 2016

Herança e mérito


Um pai está para morrer. Não deixa mulher. Mas deixa um filho, um homem que não se esforça para nada. Este pai tem uma rica herança. Pensa em doá-la a terceiros, pois não pára de pensar em seu desagrado por deixá-la para o filho, que a torrará. Ao olhos dele, seu filho não fez nada de bom na vida. Portanto, ele não tem méritos, e não merece receber a herança.

Um outro pai está bem vivo. Tem mulher, dois filhos. Um deles mostra interesse pelos estudos de uma determinada área, área para a qual, inclusive, ele sempre demonstrou aptidão. O pai, que não tem lá dinheiro sobrando, decide bancar os estudos universitários do filho, incluindo computador e viagens para congressos.

Ao longo da sua vida, este filho esforçou-se em toda atividade que quis fazer. Aquele curso universitário seria o coroamento de uma trajetória de sucesso, ao mesmo tempo que seria o início desta mesma trajetória. De certa forma, o pai também é coroado, e tem mérito, pelas conquistas e desenvolvimento do filho. O pai está vivo, mas seu filho já é herdeiro dos ensinamentos que ele lhe transmitiu, e do dinheiro empregado na sua formação.

Na primeira situação, o pai olha para o filho e não gosta do que vê: é a imagem do fracasso dele próprio. Ele queria deixar-lhe de herança não facilidades, não mais recursos a serem gastos à toa, mas uma espécie de ausência, um buraco para, quem sabe, o filho cair e poder levantar. Nesta situação, há uma herança, mas não há mérito de pai ou de filho.

Na segunda situação, o pai se regozija ao ver o filho, vê o melhor de si. Ele tem certeza que ele próprio irá mais longe, ao ver os passos do filho. Pode morrer feliz, quando for a hora. É um grande pai, pois é pai de um grande homem.

A meritocracia é um ideal do liberalismo: você vale pelo seu desempenho. Seus elaboradores não são tontos, como supõe a crítica, geralmente feita pelos militantes de causas sociais, de que eles tratam igualmente os desiguais: em John Rawls, por exemplo, os desiguais devem ser tratados desigualmente, pelo Estado. Ou seja, deve haver políticas públicas e sociais para os grupos com menos chance para competir no mercado de trabalho, grupos com menos chances à boa formação e boas condições de vida.

Estas políticas compensatórias objetivariam fazer com que estes grupos que partem de um patamar inferior possam elevar-se, de modo a competir em posição equivalente aos de patamar médio e superior. Deste modo é que se fala em meritocracia, em valorização do indivíduo pelo seu desempenho, nas sociedades de democracia social.

Reparem que Rawls também não abre espaço às ideias de direita, libertárias, que visam reduzir a participação do Estado no trabalho e na economia. E, também ao contrário do que pensam os libertaristas americanos, e a direita brasileira, receber dons não significa, em teoria, não esforçar-se na vida.

No Antigo Testamento da Edição Pastoral, da Bíblia Sagrada, o livro de Josué é iniciado pela frase: "A terra é dom e conquista". No século XIII a.C., as tribos de Israel entraram na terra que Javé lhes prometeu no Egito. Os patriarcas de Israel sofriam com a escravidão, e foram incitados por Deus a libertarem-se, com a promessa de que receberiam uma terra onde mana leite e mel.

Moisés guiou o povo pelo deserto. Devido ao cansaço e à fome, algumas vezes Israel questionou se Javé estava mesmo com eles, e se tinha valido a pena deixar o Egito. Começaram a achar doce a comida de que se alimentavam à noite, no Egito, no descanso do trabalho forçado. Em um desses momentos de descrença, Javé diz que aqueles homens e mulheres, inclusive Moisés, que não transmitiu confiança ao povo, não veriam Canaã, a terra prometida. Os descendentes deles é que chegariam lá.

Após quarenta anos no deserto, o povo estava renovado. E agora havia Josué, no lugar de Moisés para sacerdote de Javé e guia de Israel. Javé ordena que Josué levante-se e atravesse o rio Jordão, com todo o povo, em direção a Canaã. O filósofo Peter Sloterdijk tem uma passagem em que diz que o homem é o animal que nasce duas vezes: a primeira é quando sai do útero da sua mãe, e a segunda é quando ele dá nascimento a si mesmo.

Em sua ancestralidade, o homem foi algo que rastejou, depois andou de quatro patas, próximo ao chão. Então ele tornou-se bípede, levantando-se. O ser que um dia tornou-se homem viveu em uma situação aquática, em que ele abria a boca e recebia o alimento. Evolutivamente, o homem um dia ergueu-se, virou bípede, e usou a mão para obter o alimento.

O homem é o ser capaz de agir por si mesmo, e o faz ao consultar sua bagagem psíquica, formada desde sua vida intra-uterina. Inicialmente, ele adquire informações sensoriais sobre o que é bom e o que é mau, e depois ele terá uma voz interna que o orientará. Esta voz será a do anjo da guarda, ou a de Deus.

Ele também formará uma voz dele mesmo, a partir dos elementos que ele considera como o "si mesmo". E essa voz do si mesmo que o homem vai auto-consultar, para então agir, ou se auto-desinibir, levantar-se.

Deus disse a Josué: "sou eu quem lhe estou ordenando para ser firme e corajoso". O livro não fala em auto-consulta de Josué. Ele age a partir de Deus, não apresentando uma deliberação, uma conversa interna como veremos com Jesus, tentado pelo demônio, no deserto.

Josué levantou-se, e Javé disse-lhe que o povo havia de por as plantas dos pés na terra que seria dele. Não rastejar, mas por-se de pé e plantar-se, adquirir raízes e crescer. Javé garantiu que não o abandonaria, ou ao povo, se eles se mantivessem firmes e corajosos. Josué fala ao povo, orientando-o quanto ao que fazer para conquistar a herança de Deus. O povo diz que será firme corajoso, se Josué também for firme e corajoso.

O povo acredita na promessa e levanta. Agirá bem, realizará o seu propósito, mas se Josué também agir bem, realizar o seu propósito. O desempenho de um, o mérito e a recompensa de um dependem dos do outro. Apesar de não verificarmos um levantar-se por si mesmo, em Josué, vemos na parceria dele com Deus, e na parceria dele com Israel, crendo em promessas e levantando-se, a formação de esferas e de subjetividades, como traçou Sloterdijk.

Cumprir a promessa que lhe foi feita, ou melhor, o propósito da própria vida, significa não desviar-se do caminho para a conquista da terra recebida. Recebida, mas ainda não herdada. Herança é algo que se deve realizar pelo homem que, ao receber um dom, emprega as possibilidades que tem, enquanto criatura humana. O ter sido feito "à imagem e semelhança de Deus" não é algo que se é de antemão, mas é um "tornar-se quem tu és" nietzscheano.

O homem deve tomar posse de quem ele é, endereçando as possibilidades recebidas para a consecução do plano de crescer e multiplicar-se. "Deus promete por dentro das aspirações do homem, e realiza seu dom por dentro das conquistas do homem". A promessa de Deus é como a promessa da mãe, que guia o ser que sai dela, teme o abismo, é pego em seu colo e com ela faz uma dupla inseparável, um mundo à parte. Ela anuncia uma saída do abismo, e uma condução segura e imune aos perigos externos. Mas ela também exige que dali nasça um sujeito, um ser que age por si mesmo.

As aspirações do homem são o que um dia prometeram para ele. Um dia ele as conquistará e voltará para casa, herói vencedor. E isso realiza o que de melhor uma mãe e um deus podem ser.

Um dom só deve ser dado a quem está à sua altura. Se ocorre de alguém que não consegue se levantar, receber bens, haverá a perda de tudo. A promessa contida nos dons não será cumprida. E eles não se tornarão realmente herança, benção. O indivíduo jogou cal nesta terra.

Quem se preocupa muito em pedir dons, geralmente não faz jus a eles.


sábado, 28 de maio de 2016

Quem se choca não está na escola


Dificilmente o discurso sobre a violência é totalmente honesto. Ou seja, dificilmente o discursador não tem o que confessar. Também é difícil o discurso sobre sexo. O discurso sobre violência vestida de sexo, então, causa muito mal-estar. O estupro choca, e o que dizem sobre ele também causa reações de choque.

Sobre o estupro da moça por trinta e três rapazes (http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/adolescente-diz-a-policia-ter-sido-dopada-e-estuprada-por-33-homens-26052016), as pessoas disseram-se chocadas com o fato em si. Disseram-se, também, chocadas com o discurso que aponta a moça como culpada do fato, que é um discurso, então, que endossa o estupro.

Se o estupro, e a sua reiteração por meio de discurso, é uma ação que se empreende por ter se retirado o outro da condição de humano (https://www.facebook.com/ghiraldelli.filosofia/videos/1039981892705320/?pnref=story.unseen-section), podendo ele ser tratado como qualquer coisa (diferente de ser tratado como coisa, por exemplo, no momento do sexo), uma proposta para a sua diminuição é o fortalecimento do que justamente diz respeito à condição do humano: a educação humanizadora, inseridora na cultura. Isso, para se efetivar, requer boa escola. Sem boa escola, não há barreiras para um ato desumanizador como um estupro.

A escola é o lugar onde os mais velhos transmitem o melhor da cultura para os mais novos, em elementos científicos, filosóficos, religiosos, literários e comportamentais. Ao começar a receber estas referências, a criança poderá olhar para as próprias experiências. A criança olhará para a vida que leva com sua família e comunidade. A partir dessa mirada, ela poderá modificar coisas nela mesma. Há, aí, um primeiro momento de espanto com o mundo, e um segundo, de espanto consigo mesmo, ambos causados pela escola. E falo de espanto, não de choque.

Uma pessoa pode perguntar se não é precoce mostrar a uma criança de cinco anos um livro com um casal de patos machos. A premissa é de que criança se chocaria. Ou será que o choque, aqui, está com o adulto, diante do espanto e do interesse da criança? Na escola, uma história com um casal de patos machos espantaria a criança que tem pai e mãe, e este espanto seria tratado como um começo de curiosidade a respeito dos possíveis casais e também do que ela quer para si mesma. Agora, na família ou no grupo de amigos, as chances são que a criança seja ensinada a chocar-se com um casal gay, ou seja, a repetir o comportamento dos pares, e entrar num estado que impede a reflexão.

Sem boa escola, ocorre o ato desumanizador. E também fica-se entregue ao estado de choque, por este ato. Um ato de estupro centra seu interesse completamente na busca por chocar, e a partir daí exercer poder.


Fora da escola, as pessoas entram em estado de choque. Choram de dor, gritam por vingança. Entendem aquele ato como machismo, igual a uma cantada na rua. Param, então, de raciocinar e não distinguem mais nada. Pedem a castração química do estuprador. Incitam a caça aos estupradores. Acham ótimo que ele seja estuprado quando for para a cadeia. Entram pelo sentido contrário ao do discurso feminista, dizendo que a maior defesa da mulher é uma arma na mão. Dizem que a mulher que se veste sensualmente é puta e merece mesmo ser estuprada. Estar à mercê do ato desumanizador, chocar-se com ele, é fazer com que a desumanização prossiga em você e no que você passa a querer que aconteça aos outros.

A humanização proporcionada pela escola é uma interrupção do choque, do desejo de vingança e da violência. Na escola, a criança pode se espantar com o mundo, no sentido de achá-lo intrigante e atraente. Ela espanta-se consigo própria, reflete e muda detalhes ou bastante do próprio comportamento. Convive com pares igualmente interessados no mundo, não em cuidar para que o mundo não ocorra. E aprende a lidar com a maldade, de modo a buscar a justiça, não a vingança. A buscar a diminuição da violência, não o seu aumento.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Então, barbarizar o estuprador?



Ao redor da mesa de café da empresa fala-se em linchamento e pena de morte para os trinta estupradores. Um pouco mais de informação permite que alguém diga que a solução é a castração química. A tv está ligada no jornal, onde aparece o secretário de segurança garantindo que os responsáveis serão investigados, identificados e punidos, respondendo à sociedade.

Os colegas de trabalho escutam na tv o assunto sobre o qual dirão coisas aos seus pares. A tv quer falar à sociedade. A fala de um colega ao outro é entre integrantes da sociedade. O discurso "para a sociedade" é pobre, pão pão queijo queijo. E a pobreza passa também pela ideia de que o problema do estupro é simplesmente algo que possa ser solucionado, no sentido de apagado.

O maior número de casos de estupro é perpetrado por conhecidos da vítima. O interesse é por dominar o outro, tirar-lhe o poder, e também servir-se à vontade dele, para se sentir com poder. Já que nossa vida é avaliada pelo estar respirando e com alguma quantidade de energia para gastar, e aos jovens pobres existe a possibilidade de haver uma falta precoce destas coisas, então instaura-se a lei e a moral do mais forte, baseadas na humilhação do mais fraco.

Há, portanto, em torno de uma cena de estupro mais a ser falado do que a perversidade do estuprador e a necessidade de puni-lo. Sim, é claro que o mal existe, e ele não pode ser reduzido ao rebatimento dos fatores sócio-econômicos sobre a subjetividade. Mas o estupro, no conjunto das ações de dominação de um indivíduo sobre o outro, podem ter aquela explicação que lancei anteriormente.

Também é possível apontarmos a falta de boa escola, como uma das causas do estupro. A educação é, entre outras coisas, uma educação da forma como o homem lida com seus próprios impulsos sexuais e agressivos. E sobre esta educação depositam-se esperanças liberais para o indivíduo, ou seja, que ele trabalhe, tenha família, cumpra as leis e tenha garantias legais. A falta de educação disciplinadora dos impulsos, e que aponte para um ideal liberal, deixa-nos à mercê da barbárie individual e do Estado.

Esta falta de escola, e dos seus efeitos, é observada tanto na cena de estupro, como ao redor dela, no desejo de punição violenta do estuprador. Um respingo desta falta é observada na fala do secretário de segurança, quando ele, apesar de garantir uma resposta legalista ao estupro, coloca-se para dar uma resposta à sociedade. É como se a sociedade cobrasse do Estado, da polícia, uma rápida ação, para que ela mesma não se torne bárbara, para que seu desejo vingativo não cresça.

A criança não sabe lidar com o monstruoso, desespera-se. Não sabe o que pensar e o que fazer, além de gritar e correr. Aqueles que se põem a linchar quem comete estupro nada mais são do que crianças que, ao invés de fugirem do monstro e gritarem para os outros acudirem, resolveram elas mesmas serem os que acodem. Mas, como são adultos, o espancamento que promovem é um crime. A sociedade não suporta que eles levem adiante a barbárie.

O discurso "para o social", ou o discurso para a massa, é movimentado por indivíduos que não querem ou não conseguem dizer algo surgido a partir de uma reflexão. Fala-se de forma pobre sobre o estupro, e se faz o mesmo em relação à política, à cultura, etc. As próprias ideias sobre si mesmo também ficam pobres. Não se sabe explicar muito bem o que se está sentindo, a complexidade disto. O próprio dia-a-dia deste indivíduo, ou as notícias que ele recebe, caem em sua cabeça sem recursos para entender e saber o que fazer. Então ele responde a cenas como esta, do estupro, como se estivesse com uma batata quente na mão, querendo que algo rapidamente seja feito. E acaba fazendo mais mal ainda.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Pensando no macho


O estupro de uma moça por trinta rapazes é chocante (http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/05/jovem-que-teria-sido-vitima-de-estupro-coletivo-faz-exames-no-rio.html). O estupro de uma moça por um rapaz, ou uma outra moça, também seria chocante, caso não estivesse banalizado, e alguém mais, além da vítima, realmente se importasse com ele. Um estupro destes talvez pese mais para quem o cometeu do que para quem fica sabendo sobre ele.

É comum jogarmos a causa de um estupro para algo a que damos o nome de "machismo". Também é comum lançarmos esta causa para explicar o fato de uma mulher ganhar um salário menor do que um homem, para fazer o mesmo trabalho. Ou para explicarmos porque um taxista tem costume de ser desonesto, roubando no taxímetro, ao conduzir mulheres e não homens. Ou, ainda, para censurarmos o assovio de um homem para uma passante. Frequentemente nomeamos estas três situações de machismo.

Caso pensemos sobre esta palavra, logo perceberemos que é necessário distinguir entre o que um homem faz a uma mulher, por ela ser mulher, do que um homem faz a uma mulher independente de ela ser mulher. A cena em que a mulher recebe um salário menor do que o do homem pode, sim, dever-se à discriminação que o chefe de ambos faz à mulher, por ela ser mulher. A palavra "machismo", então, caberia aí.

A cena do taxista, contudo, podemos explicar pela desonestidade dele, e dispensarmos a possibilidade de ele preferir aplicar seus golpes em mulheres. Trata-se da escolha da vítima que o desonesto considera mais fácil de ser pega. Um velho também poderia ser tomada por vítima dele.

Ao assobiar para uma mulher, na terceira cena, o homem mostra, sim, uma discriminação que tem por alvo a mulher. Contudo, diferentemente do que ocorre na primeira cena, em que provavelmente o chefe considere a mulher, por ser mulher, uma funcionária pior do que o homem, a discriminação que baseou este assovio não tratou a mulher como menor do que o homem. O homem que assobiou mostrou o seu agrado, de forma grosseira, é verdade, pela mulher que passava. A este homem agradam as mulheres, e não outros homens, e o seu sinal é direcionado a elas. Podemos também chamar esta atitude de machista, embora ela não traga qualquer prejuízo à mulher que a recebeu.

Então, dentre os comportamentos dirigidos às mulheres pelo fato de elas serem mulheres, precisamos também distinguir aqueles que valem a pena serem mudados, por levarem a reduções de salários e violências, ou seja, a uma tentativa de piorar a vida de alguém, e os que não valem a pena ser mudados, pois não piora em nada a vida de alguém.

Podemos considerar que aquele caso de estupro, com os trinta rapazes, é uma violência dirigida à mulher, por ela ser mulher. Atribuiríamos-lo, então, à dominação que estes rapazes quiseram ter sobre a moça. Estaríamos falando de machismo. Porém, se o caso é de dominação, e não exatamente de excitação sexual, podemos considerar que o alvo poderia ter sido posto em um outro indivíduo, portador de outras características que não a de especificamente ser mulher, com quem convivem aqueles trinta rapazes, que pudesse ser considerado fraco ou passível de dominação. Entrariam, aí, o colega nerd, o colega gay, o colega gordo, o colega de classe média, e por aí vai. Estaríamos falando, então, não de uma ação especialmente dirigida às mulheres, mas de uma ação movida pelo ódio ao fraco.

Até agora nos perguntamos sobre as situações em que cabe ou não falarmos em machismo, baseando-nos no que podemos entender por ele. Nestas avaliações, estamos pensando no motivo que supomos para o agente da ação, que é o de ele discriminar mulheres, distinguindo-as do restante dos indivíduos com quem ele convive, para tomá-las por alvo.

Quem sabe o que se passa na cabeça do agente desta ação? No caso do taxista, supomos que o interesse pelo lucro seja a sua principal motivação, e não o de roubar exclusivamente mulheres. No caso do assobio e do salário diferente, podemos, sim, juntar à ação o fato de ser mulher o sujeito que a sofre: o chefe paga menos à mulher por ela ser mulher; o passante assobia para a mulher por ela ser mulher. Fazendo esta associação, podemos supor com mais segurança o motivo dessas ações. Um estuprador, um chefe filho da puta e um assobiador podem ser machistas, cada um à sua maneira.

As cenas que apresentei aqui tiveram por agentes passivos mulheres. Mas será que há necessidade de só se elencar mulheres dentre os alvos do machismo? Será que apenas elas sofrem o machismo? Para responder a essa pergunta, é útil focalizar melhor aquele a quem chamamos de machista, em busca da variedade do que ele faz. Olhando para o agente daquelas ações, encontraremos o macho, pois macho é aquele que pode ser machista. E por macho eu não quero dizer o homem, mas simplesmente aquele que pode ser machista (digo "pode ser machista", para que ninguém venha me dizer que há macho que não é machista).

O que caracteriza o macho que comete machismo é, como vimos nas cenas apresentadas aqui, o fato de ele discriminar as mulheres para alvo de suas ações, sejam elas boas (ou neutras, vá lá!) ou más. O que têm em comum o caso do estupro, a prática do chefe e o assobio, além do fato de terem sido dirigidos a mulheres? O fato de que procuraram diminuir as suas vítimas, dominá-las.

Bem, podemos apontar muitas outras situações em que uma pessoa, a quem bem podemos chamar de macho, tenta dominar uma outra pessoa: o machão de uma turma pode adorar dar cascudos do carinha de óculos; um grupo de trinta rapazes pode se aproveitar deste número para destruir uma banca de jornais ou fazer um arrastão; um grupo de cinco homens pode espancar até a morte um mendigo, acusando-o de pegar água sem pedir, em uma casa. Estes homens aproveitaram-se de sua força ou de seu número para humilhar ou dominar outras pessoas.

O machismo, então, não é algo que possa ser atribuído exclusivamente a cenas que tenham por vítimas mulheres. O macho age para dominar quem pode ser por ele dominado. Apesar de o discurso militante a favor de grupos minoritários puxar para eles todas as dores do mundo, o macho nem sempre tenta preferencialmente diminuir a mulher. Se lembrarmos do Totem em Tabu, de Freud, perceberemos que a questão é o combate que uma força abre a outras potenciais forças, como o pai primitivo expulsa da horda os machos que amadurecem sexualmente, zeloso por sua supremacia física e de fruição das fêmeas.

Quer dizer, a violência se exerce contra certos indivíduos, para que haja o domínio de um grupo inteiro. O macho considera que ninguém além dele pode usufruir de benefícios. Isto, sem dúvida, relaciona-se ao fato de uma horda selvagem ou uma comunidade de baixa renda não ter garantias de sobrevivência. E, por sobrevivência falo aqui mais da sobrevivência da vida digna, um resquício de biós, do que da sobrevivência da vida nua, vida do organismo, zoé.

Em Agambem, a modernidade define-se pela assunção do indivíduo da espécie humana como vida nua, zoé, destituída da glória que definia a vida dos antigos como biós. Resta, então, a preocupação com a dignidade como um arremedo de glória, tentando dar um outro sentido à vida que não ao fato de apenas de se estar respirando e nutrido (http://ghiraldelli.pro.br/agamben-e-sloterdijk/).

O desejo de poder que leva o macho a buscar dominar os demais é uma ação que ocorre onde há mais escassez de dignidade. O risco de não se valer nada é alto. O sistema de valorização e, consequentemente, de atribuição de poder a um indivíduo precisa ser simplificado. Mulheres, feios, magrelos e gordos, a diferença, enfim, torna-se insustentável.


P.s.: Ainda com Freud, em Totem e Tabu, podemos entender o motivo de o estupro com um ou dois agentes ativos não chamar tanto a atenção do restante da sociedade quanto o estupro com trinta algozes: o homem primitivo, participante de um clã fraternal, era sujeito aos tabus do incesto e da agressão ao totem. Ninguém poderia fazer estas coisas, sob pena de severa e imediata punição. Um membro do clã que os desobedecesse motivava todos os outros integrantes a se juntarem para linchá-lo até o matarem. Este era o único momento em que o homem primitivo podia exercer a agressão contra membros do seu clã, e o fazia junto de todos os demais. Ninguém podia ausentar-se do linchamento.

Nós vemos um estupro perpetrado por trinta indivíduos como um crime de massa. É como se todo um clã tivesse cometido um crime. Alguns cogitam não se tratar de um crime, mas do linchamento justiçatório à moda primitiva, em resposta a uma possível falta cometida por uma integrante do clã/grupo. Estes são os que atribuem a culpa deste estupro à mulher. Mas o restante da sociedade estranha este fato ocorrido no clã/grupo. Ao mesmo tempo em que nos reunimos para linchar os criminosos, temos a impressão de que o fato ocorrido naquele clã/grupo diz respeito a uma dinâmica interna dele, que o explica. Mas é impossível que se aceite esta falta e que um de nós deixe de fazer o possível para condenar os seus agentes. Com esta explicação, podemos dizer que o estupro cometido por um indivíduo não desperta esta dinâmica clã/grupo e sociedade, não chamando tanto a atenção geral.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Amor pelo divino heroi


Aquiles é um excelente guerreiro. Quem luta ao seu lado, ou de frente para ele, olhando-o nos olhos, dize que esta excelência deve-se ao fato de ele ter uma deusa por mãe. No contexto da Iliada, ou dos antigos gregos, isto não diminui em nada o brilho de um homem.

Aquiles é filho da deusa Tétis, que o protege. Em combate, ele apresenta uma técnica de luta fenomenal. Ele é um fenômeno, mais do que um homem. O modo grego de explicar isto era pelo sobrenatural: se os deuses eram a personificação das forças atuantes sobre os homens, um homem que se assemelhasse a uma dessas forças, por ser irresistível e grandioso como elas, era divino.

Brilhante guerreiro, Aquiles granjeia a glória (kleos). A glória era o que imortalizava um mortal. Quando, porém, ele perde seu melhor amigo Pátroclo, Aquiles torna-se bestial. Os gregos imploravam para que o herói os ajudasse contra os troianos, evitasse a subjugação deles por lanças e espadas. Aquiles mantinha-se doído com a desonra causada por Agamêmnon, o líder dos gregos. Ele envia Pátroclo em seu lugar, para virar o jogo a favor dos gregos sem, contudo, chegar a enfrentar Heitor, o melhor dentre os troianos.

Pátrocolo veste a armadura do amado, e passeia sobre as cabeças dos troianos. Ao aproximar-se de Heitor, porém, tem suas roupas retiradas por Apolo. É apenas um rapaz que está ali, ninguém parecido com um deus. O comandante troiano o mata. Ao saber deste fato, Aquiles se desespera, urra, arranca os cabelos e joga terra por sobre a própria cabeça. Sua mãe encomenda armas de Hefesto, para ele, que as veste com um único motivo. O fogo arrasa os que estão em seu caminho. E não desacelera ao encontrar Heitor, um homem.

Heitor, morto, é amarrado pelos pés, por Aquiles, atrás da biga deste. É arrastado com o rosto virado para a terra, em torno do túmulo de Pátroclo. A bestialidade de Aquiles, a de um homem rebaixado a fera, causa indignação nos deuses. Aquele homem não pode recusar o corpo do seu adversário aos rituais que a família dele anseia por fazer.

Antes de morrer, na iminência de encontrar Aquiles, Heitor esperava dele um "amor heroico", uma lealdade entre heróis, entre guerreiros, tanto na vida quanto na morte. Um pacto entre melhores, que permite que eles joguem dentro de limites que, aqui, são os da não barbarização do outro. E espera-se que estes limites sejam mantidos após a morte de um deles.

Amor pode ser entendido como encontro para namoro, como um jogo, com mútua provação de limites, mas dentro de limites maiores, que permanecem, apesar do que aconteça. Lealdade é manutenção, permanência, respeito a estes limites maiores. É como se o homem, ao ser leal e ao pedir lealdade, apontasse para algo imperecível, divino, diferente dele mesmo, que é perecível. Algo em que se pode depositar confiança, ao contrário do homem, que é transitório e, por isso, indigno de confiança.

O heroísmo de Aquiles, que é o de vencer muitas batalhas e, mesmo assim, estar diante da possibilidade de não ter a glória merecida (esta é a epopeia de Aquiles), transforma-se em tragédia por sua recusa em ceder aos apelos do exército grego, e por sua decisão de enviar Pátroclo para combater (esta tese Frederico Lourenço apresenta no prefácio à edição da Ilíada da editora Penguin-Companhia das Letras, de 2014).

Heitor, filho do rei troiano Príamo, também era um assassino formidável. Ele, contudo, não ultrajava o corpo do inimigo morto. Mantinha-se honrado, enquanto guerreiro. Era um príncipe digno, amado por seu povo. Temido pelos inimigos. Fez seu caminho de mortes esperando aquela que lhe asseguraria a glória, que seria com o adversário com quem melhor namoraria, viveria o amor de herói.

O rei Príamo vai à tenda de Aquiles. Ajoelha-se e beija as mãos que assassinaram seu filho. Diz-se um pai, que veio desesperado em busca do filho morto, mais um perdido dentre outros, todos por Aquiles. Diz-se semelhante a Peleu, pai de Aquiles, pai amoroso. Viu Aquiles em pé, assustado. Reconheceu nele um grande guerreiro, alto como Heitor.

Príamo nem por um momento deixou de odiar Aquiles. Odiava e admirava. Estas coisas não se excluem, aqui. É um jogo, uma disputa, em que excelências se revelam, causam dores e perdas, mas também brilham. A humilhação de Príamo não é a de ser um húmus, um voltar à terra cristão, mas o de reconhecer o grande.

O amor do rei Príamo é o amor de pura admiração. Digo pura admiração pois seria fácil admirar quem te faz se sentir bem. Esta é uma defesa dos próprios ganhos. O amor por quem te faz se sentir mal (não porque ele te faz se sentir mal, mas porque ele é grandioso) é o amor de pura admiração. O grande é o Grande, não importa se é bom ou mau. A preocupação com estes detalhes é humana. Já o Grande é divino.

O amor de Priamo faz Aquiles devolver Heitor. Aquiles oferece doze dias de trégua, para os ritos fúnebres.
Os olhos de Priamo fizeram Aquiles voltar a se ver como grandioso. E devolveram seu heroísmo.


P.s.: Aquiles não é um sujeito no sentido trabalhado por Peter Sloterdijk em o Palácio de Cristal. Neste livro, um sujeito é aquele que consulta uma razão em si mesmo e se auto-desinibe, se auto-motiva. Aquiles remoía o ultraje que sofreu de Agamêmnon, e só um acontecimento pôde fazê-lo agir. Para Sloterdijk, um sujeito age a partir de si mesmo, não a partir de um acontecimento.).

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Aquiles de brônzea face



Aquiles matou muitos, em batalha. Deu muitas vitórias aos gregos. Agamêmnon, o líder deste exército, ia granjeando territórios. O pai de uma das escravas do líder, Crises, um sacerdote de Apolo, rezou ao deus pedindo a filha de volta. Apolo então matou muitos dentre os comandados de Agamêmnon, que então devolveu a filha do sacerdote. Contrariado, o líder pegou a escrava de Aquiles, uma troiana de nome Briseida. Aquiles, já insatisfeito por muito vencer e pouco receber, e sem ter qualquer motivo pessoal para combater os troianos, agora, tendo Briseida retirada de si, feriu-se em seu orgulho e retirou-se por completo da guerra.

Aquiles estava fadado a uma vida curta, porém gloriosa, e o líder dos gregos o aviltara. Chorou à sua mãe, a deusa Tétis que, por sua vez, fez Zeus garantir que os troianos esmagariam os gregos, e os fariam clamar por Aquiles e repudiar Agamêmnon. Assim foi feito. Os gregos morriam aos montes, já encurralados em suas próprias embarcações. Chamavam por Aquiles, inclusive a pedido de Agamêmnon.

O herói era superior a todos os guerreiros, a todo o exército. Nada faria para reverter a batalha a favor de um rei que se aproveitou dele e dos outros guerreiros, e ainda o humilhou. Em seu lugar, Aquiles enviou seu melhor amigo e seu amante, Pátroclo, vestido de suas roupas. Os inimigos sofreram um duro golpe só de verem a armadura de Aquiles.

O jovem Pátroclo matou muitos, no estilo de luta de Aquiles. Heitor, o melhor dos troianos, encontrou-o. Pôs fim à sua vida. Despiu-o das roupas e vestiu-as nele mesmo. Heitor era filho do rei de Tróia, Príamo. Marido de Andrômaca e pai de Astíanax. Comandante impecável. Glorificado por todos, de uma glória derivada dessas funções de pai, marido, filho, príncipe e comandante. Mas também era carrasco de seus inimigos. Guerreiro temível. Matava à farta os seus inimigos.

Enquanto guerreiro, Heitor ansiava pelo namoro com Aquiles. Sim, a comprida e pesada lança, saída de uma mão, voava e penetrava um corpo. Um coito entre homens. Heitor não queria ser morto por uma lança pelas costas, como se fosse uma mulher. Ele queria olhar seu terrível adversário de frente. Era um homem namorando um homem.

Aquiles estava no destino de Heitor. A mulher do troiano teve a família morta pelo herói grego. Fora por ele escravizada. Muitos do seu povo foram enviados ao Hades, pelas mãos de Aquiles. Heitor era mais fraco do que ele, mas precisava matá-lo. Ou precisava se entregar, dar tudo de si até que não restasse nada e seus olhos escurecessem. De acordo com a lealdade dos guerreiros, ele sabia que, caso fosse morto, teria o corpo devolvido ao pai. Seria respeitado pelo adversário. A lealdade não se quebrava com a morte, pois os guerreiros as transcendiam pela glória geradora de mútua atração e admiração.

Heitor estava no destino de Aquiles. Matou o melhor amigo dele. Patróclo amava Aquiles, queria ser como ele. Heitor tomou-lhe as roupas, tomou o seu lugar no fazer-se de Aquiles. Heitor queria ser o verdadeiro amante do carniceiro glorioso. Queria ser o único a poder vestir as roupas do ídolo, tal como uma filha veste as roupas da mãe, e se orgulha e se excita. E a odeia, por não ser ela.

Aquiles encontrava-se em um poço de sofrimento, por causa de Pátroclo, até estar diante de Heitor. Um leão, diante de um outro leão, que tenha matado a sua família, tem a própria ira passando de ódio remoído a descarga de adrenalina e aceleração de raciocínio, para fazer o embate mais feroz e bonito de todos.

Aquiles mata Heitor, com beleza. Após este momento, volta a ser leão ferido. Se Heitor havia se vestido com as roupas de Aquiles, uma vez morto teria a própria roupa de Heitor retirada dele. Não era um familiar amado ou um nobre que estava amarrado à biga de Aquiles. À medida em que os cavalos corriam, seu rosto, virado para baixo, arrastava-se.

Aquiles queria que as carnes de Heitor se espalhassem por sua própria terra, que sua face se desfizesse no chão de Tróia. Isso poria um fim ao heroísmo familiar e de combatente leal, de Heitor. Só existiria o heroísmo bestial de Aquiles. Os deuses, porém, protegem a face de Heitor do desaparecimento. Mesmo varrendo o solo, ela permanecia intocável.



P.s.: Este texto é um aquecimento para o Sarau Ilíada, Leitura do Canto I. Curta a fanpage: https://www.facebook.com/sarauiliada/?fref=ts

sexta-feira, 20 de maio de 2016

O apaixonado está por dentro. O militante está por fora.


Rubem Fonseca tem um conto em que um casal passa por uma noite de sexo maravilhoso e, pela manhã, enquanto eles relaxavam na cama, o homem fala em Nietzsche. Uma gota disso foi o suficiente para transbordar: a mulher se levanta, veste-se a jato e vai embora.

Segundo Platão, no Fedro, apaixonamo-nos por aquela pessoa que se assemelha ao deus nosso de devoção. Por exemplo, uma pessoa que adore Ares, o deus da guerra, amará alguém que na vida se mostre firme e decidido; um adorador de Afrodite amará alguém de rosto e corpo impecáveis. A pessoa que é alvo deste amor tem a característica pela qual está sendo amada. Contudo, o apaixonado exagera em sua percepção. Ele vê o seu amado como mais batalhador, mais bonito, mais justo ou mais inteligente do que realmente é.

A qualidade que um amante mais aprecia em seu amado é o que mais o fará se regozijar, quando na companhia dele. Observando como ele lida com o seu trabalho ou problemas por que passe, ou conversando ou fazendo sexo com ele, aquele traço fisionômico ou comportamental encherá os seus olhos.

Além de aumentar o que ama no amado, o apaixonado diminui o que odeia no amado, o que odeia em qualquer um. A desonestidade de um belo rapaz não será facilmente percebida por quem está caído por ele. Uma mulher demorará a se incomodar pela falta de gosto pela leitura, de um empresário altamente assertivo e que é um garanhão na cama.

O apaixonado goza a todo o momento em que está ao lado do seu amado. O gozo sexual é um dentre eles. O esfriamento da paixão ocorre quando vai se tornando maior o que se desgosta no amado. Isso é óbvio. Então digo mais sobre o óbvio, para que reparemos nele: a mulher levantou-se da cama do homem que "desandou a maionese", resolveu "pagar de intelectual" numa situação de deleite pós-explosão sexual. "Pagar de intelectual" não cabe quando se está exausto depois de uma batalha, e seu oponente foi nada menos do que um excepcional lutador. O pretenso intelectual estraga o momento. E é um pretenso intelectual, alquém que quer ser intelectual.

Um intelectual lê, conversa, pensa, principalmente junto da sua amada. Ambos curtem isso. Não é por moralismo que eu digo que esta não é a hora de eles começarem os toques que levam ao sexo: um momento de prazer a dois, em torno de determinado gosto em comum, espera-se que tenha mais importância, naquele momento, do que todos os outros gostos que um deles possa ter. Se estou conversando com minha mulher, e estamos nos amando mais em torno dessa atividade, e ela começa a arrumar a casa, inclusive me ordenando que pare de sujar a cozinha, considero-o frustrante. Da mesma forma que, quando estou escrevendo um texto, fico absorto e indisponível para fazer outras coisas.

Quando um casal apaixonado está em um dos seus momentos de curtir o que gostam de fazer juntos, o que aparecer de distinto desse interesse ou das características pessoais envolvidas nele gerará incômodo. Mostrará que o parceiro não está envolvido no momento, não está entregue à paixão.

Um homem que gosta de filosofia se apaixona por uma militante do movimento negro. Ela é lindíssima, e ele vê bem isso. Eles vão ao shopping, pois o que mais desejam é passar um tempo coladinhos um no outro, andando por aí. Eles olham-se nos olhos e olham os passantes, com cara de apaixonados. Em um dado momento, a moça reclama que nas vitrines das lojas não há nenhuma mulher negra nas fotos de exibição dos produtos. Ele fala o quanto ela é mais linda do que todas, e que deveria estar naquelas fotos. Ela continua falando do absurdo daquilo, de que é racismo.

Vem ao rapaz o pensamento de que ele gostaria de ler um texto sobre racismo, com ela, e discutir. Mas depois. Ele considera que os casos devem ser analisados com calma, e um momento oportuno. E sua amada está tratando com mãos brutas demais aquelas vitrines. Ela insiste que a hora de conversar é aquela, pois deve ser quando "se sente o racismo ocorrendo".

O militante é aquele que fala em Nietzsche na hora errada. É o que fala coisa intelectualizada no meio de um filme Corra que a Polícia Vem Aí. É o que sai do transe do amor, para reclamar do que se passa no caminho. É o que interrompe uma aula, onde se devia entrar no clima de um autor, para falar de problemas educacionais.

O militante é aquele que está fora de determinado clima, enxergando e dizendo o que não convém. E ele é pseudo militante, pois não se engaja no círculo de pessoas que estudam o que as incomoda, elaboram ideias e ações em torno do que possam fazer para resolver isso. Ou seja, enquanto o militante aproveita o momento de estudar (é estudante), o momento da escrita (é escritor) e o momento da manifestação (aí, sim, será manifestante. E, por querer que sua demanda seja resolvida, ele deve esperar que sua atuação como manifestante tenha um fim), o pseudo militante é um incessante e eterno queixoso. Ele é aquele que se põe fora dos círculos. Ele está longe de estar apaixonado, coitado.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Um momento em um destino



A guerra odiosa dura para sempre. Consome vidas, tempos de vidas (lifetimes). No livro Ilíada, de Homero, os deuses decidem quem vencerá, protegem um homem, um exército ou uma cidade.

Os homens são folhas: surgem fortes e rijos, morrem com sua rigidez mostrando-se quebradiça. Cada homem sabe que morrerá. Sorte daquele que possuir um belo destino a cumprir. Os deuses favorecem o guerreiro destinado a grandes feitos. Seu corpo, ao morrer, é pranteado pelos outros mortais. Deuses e homens lembrar-se-ão dele, que tornou-se imortal em sua glória.

No filme Tróia (Petersen, 2004), Aquiles decepa a cabeça da estátua de Apolo, na entrada do templo deste deus. O rei troiano, Príamo, é devoto deste deus. A troiana Briseida, que está sob o poder de Aquiles, é devota de deuses. Os deuses têm inveja dos homens, disse Aquiles para ela: em uma eternidade de guerras, o momento de um homem não se repetirá. Este momento pode ser gerador de glória, encaminhando o homem para a eternidade. Este momento pode ser, por outro lado, válido por ele mesmo. A noite de amor entre Aquiles e Briseida é válida porque passageira.

No fim do filme, os troianos acreditaram que o grande cavalo negro de madeira era um presente dos gregos ao templo de Poseidon, mantido por eles. Os crentes levaram o grande cavalo para o interior do seu espaço protegido. Rindo deste deus e dos crentes, os gregos aproveitaram a noite para saírem do cavalo e destruírem Tróia de belas muralhas.

Menelau, Patroclo, Heitor e Aquiles, mortos importantes, amados ou gloriosos, passaram pelo ritual de entrega de seus corpos a Hades. O ritual que marca o encerramento da vida é prática comum, no filme. Os rituais aos demais deuses, responsáveis pelos outros aspectos da vida dos homens, não são, contudo, uma unanimidade. A mortalidade manteve um cuidado especial. A vida continua na glória. Por outro lado, a vida se encerra a cada belo momento vivido.

O corpo de Heitor está degradado, no filme. Aquiles o arrastou atrás de sua biga. O leão destroçou um homem. No livro, os deuses reprovam esta selvageria de Aquiles, e protegem o corpo de Heitor. Ele é amado pelos deuses, assim como Aquiles. Heitor vai íntegro para o Hades e a glória eternizadora.

No filme, ele vai esfacelado para estes lugares. Algo foi perdido, algo passou no filme. O rosto de Heitor era bonito durante a sua luta com Aquiles. Um retrato deste rosto o eterniza. Morrer pela espada de Aquiles era o seu destino. Esta morte, contudo, ocorre num segundo, e momentos são coisas que os deuses desconhecem.

Um momento no interior de um destino é um retrato de homem na parede de uma cidade divina.

sábado, 14 de maio de 2016

O ser que pergunta e fala


Você está conversando com alguém. Alguma coisa que esta pessoa lhe diz mostra uma ponta de como ela interpreta você. Você, então, pergunta: "por que me disse isso?" É uma pergunta para ela falar o que está pensando (apesar que, quando se fala, o pensamento ocorra junto).

Você também pensa em dizer algo que confirme ou desconfirme o que ela parece pensar a seu respeito. Uma confirmação, numa tal situação, seria para afirmar-se, senão parecido com essa outra pessoa, parecido com o que ela pensou de você. Em ambas as intenções, a busca é por alguma semelhança. Uma desconfirmação teria ou o propósito de apenas negar, querendo permanecer sendo o "não sou isso", ou de abrir caminho para que tanto você quanto ela digam outra coisa de você.

Mas você não muda a primeira pergunta que fez, "por que você me disse isso?". Essa é uma pergunta que deixa a conversa interessante. É quando se procura dar um tempo nas expectativas trocadas, e perguntar pelo que se está vendo e pensando.

Perguntar pelo que o outro está pensando, a respeito de qualquer coisa, ainda mais a respeito de você, que está diante dele, é pedir uma resposta difícil. Existe o temor de magoar um interlocutor. Na verdade um temor egoísta, pois o temor é por estar sozinho e se magoar. O outro tem impressões a seu respeito, e pensa coisas que pode levá-lo a conclusões. E esse outro, sem coragem de estar sozinho, apenas solta um rabicho do que pensou de você.

Sócrates era racionalista, foi o que aprendemos. Ele queria saber se sabíamos o que dizíamos. Queria saber sobre o que restaria do que sabíamos, ao sermos perguntados por ele. Mas, estranhamente, antes de ultrapassar a porta de entrada da casa de Agatão, onde ocorreria O Banquete, Sócrates estacou. Ficou um tempo, parado, sem nem responder. Logo saiu desse estado, e entrou na festa. Bebeu, escutou discursos e discursou, como sempre.

Em diversos momentos da obra de Platão fala-se do daimon de Sócrates. Sócrates ouvia vozes! Seriam essas vozes uma realidade divina ou uma astúcia, uma piscadela do grande racionalista? Estas questões são colocadas por Cioran, no texto "A Habilidade de Sócrates" (busque este texto aqui na biblioteca do Ghiraldelli: http://ghiraldelli.pro.br/biblioteca/). Sócrates desperta a nossa curiosidade. Ele não é bem racionalista, nem irracionalista. O que ele é? À filosofia ele deu o que pensar a respeito de ambas as coisas.

Seguindo o entendimento do Cioran, Sócrates quis escapar dos que o rodeavam. Aquela gente que insiste em falar das coisas sobre as quais realmente não sabem. Gente que se desconhece. Sócrates estava em outra, pois sabia o que não sabia. Ou então aquela gente querendo ensinamentos, acreditando que Sócrates tinha algum tipo de saber "a mais". Bem, o que ele dizia vinha das musas. E quem falava com ele era o daimon. O saber sobre as coisas não é para os mortais.

Sócrates era um solitário cercado de mortais. Ou um acompanhado daqueles seres divinos. Da mesma forma que não se sabe a natureza do seu daimon, não se tem acesso à natureza da sua razão, sendo ela inspirada pelo divino.

Estudo e escrevo sobre a Bíblia e Santo Agostinho. Sobre histórias e teorias a respeito da relação entre homem e Deus, entre o mortal e o imortal, o corruptível e o incorruptível, o particular e o absoluto, etc. "O Thiago acredita em Deus!" "Ué, mas ele parecia não acreditar, antes." A última coisa em que penso é nessas questões. Através dessas questões, busca-se testar, por identificação aqueles com quem se pode "ser amigo".

Sou amigo, viro amigo de quem se senta à minha frente e me fala sobre qualquer coisa, e responde às minhas perguntas. Ou que me pergunta. Amigo é aquele que puxa o pensamento do outro, produzindo-o boca afora, pela fala. Não importando se somos filósofos, evangélicos, negros, espíritos. A conversa filosófica é maior do que o indivíduo. Ela deixa sozinhos os eus que querem identificar-se com outros eus, pois ela estranha os elementos usados para produzir a identificação. E também estranha as diferenças.

Diante de um afoito por ser um amigo ou um inimigo, um igual ou um diferente, o filósofo refugia-se no pensamento. Nessas horas, sua melhor companhia é ele mesmo. Ele fica estranho, indiscernível ou sem paciência. Um mau amigo. Pior de se entender do que um inimigo. Para quem o escuta, ou tem a generosidade de dizer a ele o que pensa (inclusive de si mesmo ou do filósofo), o filósofo é alguém que existe desta forma, mesmo. Alguém que fala algo, que escuta algo. Que com você conversa sem a prisão de, a priori, ser alguma coisa.


sexta-feira, 13 de maio de 2016

O professor e o aluno politizados



O politizado quer ter amigos. Politizado pode ser o jovem, o estudante, o professor ou o profissional. Hoje isso se refere apenas à pessoa que fala aos outros sobre o que considera seus problemas. Aquele que quer que os outros confirmem que se trata de um problema. Que os outros lhe sejam espelho, para ele assegurar-se de si mesmo. Ter certeza. Um si mesmo baseado em problemas.

Na sociedade da leveza (Sloterdijk), do desimpedimento e da falta de gravidade, eus são baseados em problemas. O direito à diferença tem sido o direito a fazer da própria diferença um problema para si mesmo, criado pelos outros com quem não se sente haver correspondência. É como se o espelho fugisse. Quero me olhar, para ser um eu, mas o outro foge, não me deixa eu me ver, não permite que eu seja. Chamo-o de machista, homofóbico, racista, fascista, etc.

Não falo, aqui, do que ameaça à vida biológica, zoé. Falo do que ameaça a capa de dignidade que erguemos para proteger a zoé. Esta é uma distinção feita por Agamben, a respeito dos registros da vida na modernidade. Qualquer poeira no meu balão, na minha plena liberdade e leveza, é uma bigorna: um sério inimigo atingindo minha dignidade, ofendendo-me profundamente, fazendo-me mergulhar nas profundezas do lugar onde falta-me vocabulário, desenvolvimento conceitual para acusar o golpe: por isso falo os fáceis "machismo", "racismo", "fascismo", etc.

Foge-me espelho da diferença que eu gostaria de viver. À minha frente, o espelho da diferença que não me deixam viver. O outro é meu malvado favorito, aquele que sempre me acompanha, cortando as minhas asas. Mantenho este espelho, pois devo ser aquele que luta contra quem não me deixa ser.

Não sei o que ser. Sou mulher, mas e daí? Tenho que sofrer um machismo. Sou professora, mas e daí, o que é isso? Falta-me o conceito. E salário. Encontro o ser professora no ser professora e politizada, ou seja, viver em greve, viver procurando racismo ou machismo em livros e em alunos.

O problema que um dia motivou a greve já se perdeu. Não sei o que de prático quero com a greve, que honra pleitear. Faço greve porque o espelho do "contra-mim" eu não retiro da minha frente. Há os que culpam os alunos. E há os que juntam-se aos alunos para chorar pelo que apanham. Toda a proteção que o professor quer, chama o aluno para também querer. Chove racismo, machismo e homofobia em cima deles.

Estudar o conceito de liberalismo, de democracia, de minorias, as histórias deles, de modo a ponderar o que, hoje, é problema ou não, e que soluções pode ter, é algo que não é feito. Não se estuda, não se quer partir do que se sabe e se é para o que não se sabe e não se é. Não. Não se pode ser professor ou aluno, ter o que sabe e o que não-sabe-mas-saberá, encarando a dureza que é o não-saber. O não-saber é escamoteado, pois qualquer saber vale igual. E qualquer tentativa de ensinar ao aluno, apontar seu não-saber, é oprimi-lo. Ele é rico na sua miséria. E será bom aluno, se for aluno-militante. De um professor-militante.

Oxalá os estudantes que estão a fazer greves em suas escolas queiram que seus problemas sejam rapidamente resolvidos, e que eles possam logo voltar a serem alunos. Para isso, é preciso enxergar a greve como uma ação eventualmente necessária para que seja possível existirem alunos e professores. Só alunos e professores. Se conseguirem ser isso, está ótimo.

Colocar a politização como estado permanente, pelo contrário, é ter uma relação de animosidade com o mundo. É considerar a si mesmo como já tendo nascido pleno de saber, à medida em que o indivíduo crescido, porém chorão, é pleno na queixa e no se sentir "incompreendido". É não desgrudar do espelho em que se vê um perseguidor.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

A prisão no gozo


Alípio era um antigo aluno de Agostinho, em Tagaste. Ambos estavam em Roma. Agostinho lecionava, Alípio estudava direito. Agostinho via no amigo uma índole inclinada à virtude. Ele detestava os espetáculos de gladiadores, que atraíam multidões. Um dia, amigos de Alípio conduziram ele à força para assistir os jogos cruéis daquele dia. “Por arrastardes a esse lugar e lá colocardes o meu corpo, julgais que podereis fazer com que o espírito e os olhos prestem atenção aos espetáculos? Assistirei como ausente, saindo assim triunfante de vós e mais dos espetáculos” (Confissões, p.140)

Alípio mantinha os olhos fechados. O ambiente fervilhava nas paixões mais selvagens. As crueldades envenenavam os espíritos, que tornavam-se sequiosos, dependentes. Em certo momento, um lance atípico arrancou do público um grande clamor. A curiosidade bateu forte em Alípio. Ele poderia dar uma olhada, e depois tornar a fechar os olhos. Alípio julgava-se capaz de dominar o que a cena provocaria nele. Bastou aqueles olhos abrirem-se: o que eles viram atingiu a alma de Alípio, e o ferimento foi mais profundo do que o causado no corpo do gladiador golpeado.

A alma de um viciado foi ferida e encontra-se abatida pelos prazeres. Apesar disso, ela é presumida de si mesma. Alípio fixou-se no espetáculo, seus olhos vidraram-se. Deleitavam-se no combate, participavam do furor popular. Ele tornou-se amigo da bestialidade, mais um da turba.

A partir do momento em que considerou apenas a própria força para resistir ao espetáculo, e depois em manter-se no controle das sensações, Alípio pôs-se distante do Deus, de onde o homem recebe suas forças. A falta de confiança em Deus e na força que Ele dá levaram Alípio a ficar sozinho, e falsamente confiante em si mesmo.

Agostinho lembrava deste amigo, a quem Deus, com mão forte e misericordiosa, arrancou daquele caminho. Também lembrava de si mesmo, aos dezenove anos: desejava obter dinheiro, reconhecimento intelectual, e casar. Nas Confissões, qualifica estes desejos como frivolidades, loucuras enganosas. Aos dezenove, também desejava obter sabedoria. Imaginava que, uma vez tendo sabedoria, ele superaria os outros desejos. Aos trinta anos, via-se com sabedoria acumulada. Isso, contudo, não o livrava de dissipar-se na busca por aqueles bens. O que tinha de leitura faltava-lhe em direção na vida!

Não podia desesperar-se. Fixaria os pés no degrau em que o puseram seus pais, e procuraria, a partir daí, ascender à verdade. Buscaria disciplinar-se, reservaria um horário para a salvação da sua alma. A vida é miserável, e a qualquer hora a morte pode chegar. Quando ela chegar, em que estado ele quer que a morte o encontre? E em que outro lugar ele poderia aprender o que negligenciou saber, enquanto estava vivo?

Agostinho se perguntava o motivo por que tardava em dedicar-se totalmente à busca de Deus, e abandonar os bens do mundo. Eles são, entretanto, agradáveis, e não se deve distanciar-se por completo deles, pois vergonhoso seria voltar de novo a eles. E ele próprio, Agostinho, estava próximo de ter um cargo honroso. Faltava-lhe apenas casar. Desejava a vida feliz, mas o tempo fugia, sem que buscasse a morada de Deus.

Mesmo casado e obtendo uma profissão honrosa, Agostinho continuaria perseguindo a sabedoria. Alípio opunha-se a que o amigo se casasse. Uma mulher se colocaria entre ele e o amigo, impedindo que eles vivessem juntos, no amor à sabedoria. Alípio experimentara o prazer carnal na juventude, mas arrependera-se e agora desprezava isto, vivia casto. Agostinho lhe lembrava de homens casados que mantinham o amor aos amigos, e também o cultivo das ciências e a entrega a Deus.

Mas o próprio Agostinho se sabia preso à falta que lhe fazia uma mulher. E não eram os cuidados com esposa e os filhos, as virtudes matrimoniais, o que o motivava a se casar, mas a prisão dele no hábito da concupiscência. A prisão na busca por saciar o insaciável: era por isso que Agostinho queria uma esposa.

Através da boca de Agostinho, a serpente falava a Alípio, tentando prender seus pés inocentes e livres. Havia uma grande diferença, Agostinho dizia ao amigo, entre o prazer furtivo, dos quais não se lembra depois, e o deleite do matrimonio. Alípio, enfim, caiu nesta armadinha, quando foi vencido pela paixão da curiosidade: que felicidade era essa que seu amigo Agostinho tanto buscava, sem a qual ele tanto sofria? Esta enfermidade da carne e prisão da alma?

Agostinho viveu quinze anos com uma mulher, antes de com ela se casar. Ela viajou para a Africa, mas voltaria. Deixou com ele o filho de ambos, e prometeu-lhe jamais ter outro homem. Agostinho disse ter se impacientado com a espera pelo retorno de sua mulher. Escravo do prazer, que era, procurou outra mulher. Ele manteve este hábito até casar-se, mas temia a morte e o juízo que receberia de Deus.

Vivia miseravelmente, imerso no vício e cego para a luz da Virtude e da Beleza. O gozo corporal era a sua principal preocupação, e chegou a perguntar aos amigos se haveria mais a almejar na vida além de ser imortal e viver experimentando o prazer, sem receio de perdê-lo.



P.s.: Este é um estudo do livro Confissões, de Santo Agostinho, compreendendo o intervalo entre as páginas 140 e 150.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Angústia


Quem nunca sentiu aquele “aperto no peito”? Essa sensação pode aparecer em situações de muito estresse, medo ou ansiedade, como escolhas difíceis ou uma situação ruim. Infelizmente quem se sente angustiado só procura ajuda quando a situação está insuportável ou quando confunde com uma situação médica, como por exemplo, o infarto.

Algumas estáticas dizem que a angústia pode ser facilmente confundida com infarto. Em “ataque” os pacientes costumam procurar um cardiologista em busca de medicamentos e cura, quando tem a hipótese de infarto negada esse pacientes normalmente são encaminhados para uma psicoterapia. A cultura errônea de que a psicoterapia não é funcional faz com que muitos fiquem buscando medicamentos em vários médicos até conseguir e negar aquela “dor”.

Segundo Gentil, a angústia é um sofrimento relacionado ao presente, diferente da ansiedade que é uma apreensão exagerada em relação ao futuro. Entretanto, Freud diz que a angústia se caracteriza pela ausência ou perda do objeto e Lacan diz que é a presença do objeto (sendo esse objeto bem particular, objeto de análise).
*Objeto: esse termo é usado na psicanálise com um significado bem diferente do que utilizamos usualmente. Clique aqui para ver uma explicação de um psicanalista.

A angústia pode ser tratada em psicoterapia, procure ajuda. Ela pode vir por algo que você não saiba explicar ou que possa falar sobre, algo recente ou bem antigo, ou múltiplas questões. Você não precisa viver assim.
Em todo material estudado para a produção desse texto, não há um acordo sobre quando essa sensação começa. Uns estudiosos relatam que pode acontecer na infância, enquanto outros dizem que a angústia vai surgindo conforme você vai ficando perto da fase adulta, quando as responsabilidades tendem a ser maiores.

É importante saber o que você está sentindo
Saber nomear seus sentimentos e emoções não é uma tarefa fácil. É preciso se conhecer, conhecer as emoções e sentimentos e saber onde e como elas se encaixam. É uma prática que muitas vezes requer a ajuda de um psicólogo. Com as sessões terapêuticas o individuo começa a se perceber a partir de intervenções feitas e, assim, ele conseguirá aplicar as aprendizagens da terapia para fora do setting, chegando a um momento que ele conseguirá, sozinho, saber o que está sentindo e o porquê.

A angústia precisa de atenção; desate esse nó no peito.


autora: Dayane Marins

domingo, 1 de maio de 2016

O mundo não existe sem verdades absolutas


Pedro Álvares descobriu o Brasil. É preciso obedecer ao pai e à mãe. Comida tem que ter arroz e feijão. Ayrton Senna foi um herói brasileiro. Roberto Carlos é rei.

Estas e outras afirmações são apresentadas como verdades dogmáticas. Escutamo-las desde sempre, dos nossos pais, professores e tv, sem que eles nos dissessem a razão delas. São tão absolutas que nos parece estranho quando alguém as recusa. Conversando com esse alguém, ouvimos outros pontos de vista. Também dizemos o nosso próprio ponto de vista que, não raro, também nega aqueles absolutos. Mas, se um e.t. nos visitasse e quisesse conhecer o Brasil, certamente o levaríamos para comer uma feijoada, ouvindo Roberto Carlos e só dando uma pausa no som para escutar a hora da bandeirada para o "Ayrton Senna do Brasil!!!", gritado pelo Galvão.

Aprendemos essas verdades dogmáticas e nelas depositamos nossa fé e algo básico da nossa identidade. Falo em uma identidade que não é a do eu no sentido das ideias que colecionamos e que entendemos como formadoras de algo próprio, meu. Falo de um eu que é próximo ao "eu quero e vou fazer isso". Este eu é social antes de ser meu.

Todos quiseram ser o Michael Jackson do "Bad". Eu quis ser. Michael, sendo apresentado em todo canto como o Rei do Pop, era o meu herói. Através dele, eu me achava maneiro. Eu me via como um eu. Sloterdijk explica no "Estranhamento do Mundo" sobre esse eu entusiasmado por heróis. Quando eu era adolescente, começaram a dizer que Michael abusava de crianças. Mas este era outro Michael. O meu herói continuava o mesmo, e uma dançadinha a que ainda hoje me permito é autorizada por Ele.

Hoje em dia muitos pais e professores acham que, ao dizerem uma verdade a uma criança, devem explicar as razões. Desde cedo a criança é ensinada a argumentar e a escolher. É como se ela devesse ser sujeito, desde o início da vida. A verdade pelo consenso estimula o raciocínio. Mas a verdade absoluta é um espaço de segurança e conforto para uma criança, e a esperança de que ela sempre o terá permite que ela se lance para explorações. Essa fé básica permitirá o entendimento e talvez a crítica dos seus próprios pressupostos.

O Brasil já possuía os índios, e os espanhóis já haviam demarcado a América do Sul antes da chegada de Cabral. E a vinda dele não foi por um acaso, mas por interesses econômicos e políticos.

Nem sempre é possível fazer os que os pais mandam. Chega uma hora na vida em que a vontade de fazer o que se quer é imbatível, e se vai com tudo.

Arroz e feijão, dizem os especialistas, é uma combinação equilibrada e que provê grande parte da nutrição de que precisamos. Mas o jovem pode fazer o seu miojo, fritar a sua linguiça com cebola e dar um tempo no feijão com arroz dos pais.

O motorista de ônibus do Rio dirige melhor do que o Senna. Ele não aguentaria o tranco. Mas, vai, ele foi piloto talentoso, vencedor e carismático. O Brasil precisa de heróis, heróis que dêem bons exemplos e que não morram cedo.

Roberto Carlos não é um ótimo cantor, mas é um excelente artista. Suas músicas ecoam em nossos ouvidos, mais do que as de Agnaldo Rayol. Temos uma bagagem cultural básica que forma a nossa sensibilidade, coisas que ouvimos desde cedo e que até falam conosco, quando pensamos estar sozinhos. Coisas que nos fazem sentir em casa.

É preciso que a nossa formação escolar tenha Homero, Platão e a Bíblia. Eles nos fazem entender a cultura ocidental. Quando advogo o ensino da Bíblia nas escolas, sempre me dizem que a Igreja perseguiu e matou muita gente. Bem, se devemos começar com verdades absolutas, para que tenhamos material para o entendimento e a crítica delas, e do mundo, quando formos jovens, o conhecimento deve ser aprendido antes da crítica ao conhecimento. A Bíblia deve ser ensinada, para que um dia se possa falar algo sobre ela, contra ou a favor.

Quando a pessoa coloca a crítica antes do conhecimento, dizendo que a Bíblia ou outro livro servem à dominação política e cultural, ela está se comportando como um jovem que não foi uma criança que aprendeu a ter fé em heróis, livros sagrados e histórias mágicas. É um jovem que pára no saber que a crítica lhe dá, e não avança, pois lhe faltou o saber básico.

Uma criança que teve aula de filosofia, de religião e de poesia, que aprendeu a ouvir histórias diferentes e a distinguir gêneros literários, passará pelo período da crítica e se tornará um adulto. E o que é um adulto? É alguém que precisa saber muitas coisas? Sim. Mas em igual medida é alguém que precisa ter esperança, acreditar no que ainda não existe e deveria existir. É alguém que sabe sobre o que deveria ser e o que deveria ser considerado verdadeiro. Alguém que entenda ética e moral e que, portanto, poderá criticar a ciência. Alguém com chances de ser alguém melhor do que ele mesmo.

O básico precisa voltar a ser visto como obrigatório.


P.s.: Sobre a obrigatoriedade do que é básico, veja este vídeo: https://www.facebook.com/ghiraldelli.filosofia/videos/vb.180372365332948/869893103047534/?type=2&theater