quarta-feira, 25 de maio de 2016

Amor pelo divino heroi


Aquiles é um excelente guerreiro. Quem luta ao seu lado, ou de frente para ele, olhando-o nos olhos, dize que esta excelência deve-se ao fato de ele ter uma deusa por mãe. No contexto da Iliada, ou dos antigos gregos, isto não diminui em nada o brilho de um homem.

Aquiles é filho da deusa Tétis, que o protege. Em combate, ele apresenta uma técnica de luta fenomenal. Ele é um fenômeno, mais do que um homem. O modo grego de explicar isto era pelo sobrenatural: se os deuses eram a personificação das forças atuantes sobre os homens, um homem que se assemelhasse a uma dessas forças, por ser irresistível e grandioso como elas, era divino.

Brilhante guerreiro, Aquiles granjeia a glória (kleos). A glória era o que imortalizava um mortal. Quando, porém, ele perde seu melhor amigo Pátroclo, Aquiles torna-se bestial. Os gregos imploravam para que o herói os ajudasse contra os troianos, evitasse a subjugação deles por lanças e espadas. Aquiles mantinha-se doído com a desonra causada por Agamêmnon, o líder dos gregos. Ele envia Pátroclo em seu lugar, para virar o jogo a favor dos gregos sem, contudo, chegar a enfrentar Heitor, o melhor dentre os troianos.

Pátrocolo veste a armadura do amado, e passeia sobre as cabeças dos troianos. Ao aproximar-se de Heitor, porém, tem suas roupas retiradas por Apolo. É apenas um rapaz que está ali, ninguém parecido com um deus. O comandante troiano o mata. Ao saber deste fato, Aquiles se desespera, urra, arranca os cabelos e joga terra por sobre a própria cabeça. Sua mãe encomenda armas de Hefesto, para ele, que as veste com um único motivo. O fogo arrasa os que estão em seu caminho. E não desacelera ao encontrar Heitor, um homem.

Heitor, morto, é amarrado pelos pés, por Aquiles, atrás da biga deste. É arrastado com o rosto virado para a terra, em torno do túmulo de Pátroclo. A bestialidade de Aquiles, a de um homem rebaixado a fera, causa indignação nos deuses. Aquele homem não pode recusar o corpo do seu adversário aos rituais que a família dele anseia por fazer.

Antes de morrer, na iminência de encontrar Aquiles, Heitor esperava dele um "amor heroico", uma lealdade entre heróis, entre guerreiros, tanto na vida quanto na morte. Um pacto entre melhores, que permite que eles joguem dentro de limites que, aqui, são os da não barbarização do outro. E espera-se que estes limites sejam mantidos após a morte de um deles.

Amor pode ser entendido como encontro para namoro, como um jogo, com mútua provação de limites, mas dentro de limites maiores, que permanecem, apesar do que aconteça. Lealdade é manutenção, permanência, respeito a estes limites maiores. É como se o homem, ao ser leal e ao pedir lealdade, apontasse para algo imperecível, divino, diferente dele mesmo, que é perecível. Algo em que se pode depositar confiança, ao contrário do homem, que é transitório e, por isso, indigno de confiança.

O heroísmo de Aquiles, que é o de vencer muitas batalhas e, mesmo assim, estar diante da possibilidade de não ter a glória merecida (esta é a epopeia de Aquiles), transforma-se em tragédia por sua recusa em ceder aos apelos do exército grego, e por sua decisão de enviar Pátroclo para combater (esta tese Frederico Lourenço apresenta no prefácio à edição da Ilíada da editora Penguin-Companhia das Letras, de 2014).

Heitor, filho do rei troiano Príamo, também era um assassino formidável. Ele, contudo, não ultrajava o corpo do inimigo morto. Mantinha-se honrado, enquanto guerreiro. Era um príncipe digno, amado por seu povo. Temido pelos inimigos. Fez seu caminho de mortes esperando aquela que lhe asseguraria a glória, que seria com o adversário com quem melhor namoraria, viveria o amor de herói.

O rei Príamo vai à tenda de Aquiles. Ajoelha-se e beija as mãos que assassinaram seu filho. Diz-se um pai, que veio desesperado em busca do filho morto, mais um perdido dentre outros, todos por Aquiles. Diz-se semelhante a Peleu, pai de Aquiles, pai amoroso. Viu Aquiles em pé, assustado. Reconheceu nele um grande guerreiro, alto como Heitor.

Príamo nem por um momento deixou de odiar Aquiles. Odiava e admirava. Estas coisas não se excluem, aqui. É um jogo, uma disputa, em que excelências se revelam, causam dores e perdas, mas também brilham. A humilhação de Príamo não é a de ser um húmus, um voltar à terra cristão, mas o de reconhecer o grande.

O amor do rei Príamo é o amor de pura admiração. Digo pura admiração pois seria fácil admirar quem te faz se sentir bem. Esta é uma defesa dos próprios ganhos. O amor por quem te faz se sentir mal (não porque ele te faz se sentir mal, mas porque ele é grandioso) é o amor de pura admiração. O grande é o Grande, não importa se é bom ou mau. A preocupação com estes detalhes é humana. Já o Grande é divino.

O amor de Priamo faz Aquiles devolver Heitor. Aquiles oferece doze dias de trégua, para os ritos fúnebres.
Os olhos de Priamo fizeram Aquiles voltar a se ver como grandioso. E devolveram seu heroísmo.


P.s.: Aquiles não é um sujeito no sentido trabalhado por Peter Sloterdijk em o Palácio de Cristal. Neste livro, um sujeito é aquele que consulta uma razão em si mesmo e se auto-desinibe, se auto-motiva. Aquiles remoía o ultraje que sofreu de Agamêmnon, e só um acontecimento pôde fazê-lo agir. Para Sloterdijk, um sujeito age a partir de si mesmo, não a partir de um acontecimento.).

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