quinta-feira, 12 de maio de 2016

A prisão no gozo


Alípio era um antigo aluno de Agostinho, em Tagaste. Ambos estavam em Roma. Agostinho lecionava, Alípio estudava direito. Agostinho via no amigo uma índole inclinada à virtude. Ele detestava os espetáculos de gladiadores, que atraíam multidões. Um dia, amigos de Alípio conduziram ele à força para assistir os jogos cruéis daquele dia. “Por arrastardes a esse lugar e lá colocardes o meu corpo, julgais que podereis fazer com que o espírito e os olhos prestem atenção aos espetáculos? Assistirei como ausente, saindo assim triunfante de vós e mais dos espetáculos” (Confissões, p.140)

Alípio mantinha os olhos fechados. O ambiente fervilhava nas paixões mais selvagens. As crueldades envenenavam os espíritos, que tornavam-se sequiosos, dependentes. Em certo momento, um lance atípico arrancou do público um grande clamor. A curiosidade bateu forte em Alípio. Ele poderia dar uma olhada, e depois tornar a fechar os olhos. Alípio julgava-se capaz de dominar o que a cena provocaria nele. Bastou aqueles olhos abrirem-se: o que eles viram atingiu a alma de Alípio, e o ferimento foi mais profundo do que o causado no corpo do gladiador golpeado.

A alma de um viciado foi ferida e encontra-se abatida pelos prazeres. Apesar disso, ela é presumida de si mesma. Alípio fixou-se no espetáculo, seus olhos vidraram-se. Deleitavam-se no combate, participavam do furor popular. Ele tornou-se amigo da bestialidade, mais um da turba.

A partir do momento em que considerou apenas a própria força para resistir ao espetáculo, e depois em manter-se no controle das sensações, Alípio pôs-se distante do Deus, de onde o homem recebe suas forças. A falta de confiança em Deus e na força que Ele dá levaram Alípio a ficar sozinho, e falsamente confiante em si mesmo.

Agostinho lembrava deste amigo, a quem Deus, com mão forte e misericordiosa, arrancou daquele caminho. Também lembrava de si mesmo, aos dezenove anos: desejava obter dinheiro, reconhecimento intelectual, e casar. Nas Confissões, qualifica estes desejos como frivolidades, loucuras enganosas. Aos dezenove, também desejava obter sabedoria. Imaginava que, uma vez tendo sabedoria, ele superaria os outros desejos. Aos trinta anos, via-se com sabedoria acumulada. Isso, contudo, não o livrava de dissipar-se na busca por aqueles bens. O que tinha de leitura faltava-lhe em direção na vida!

Não podia desesperar-se. Fixaria os pés no degrau em que o puseram seus pais, e procuraria, a partir daí, ascender à verdade. Buscaria disciplinar-se, reservaria um horário para a salvação da sua alma. A vida é miserável, e a qualquer hora a morte pode chegar. Quando ela chegar, em que estado ele quer que a morte o encontre? E em que outro lugar ele poderia aprender o que negligenciou saber, enquanto estava vivo?

Agostinho se perguntava o motivo por que tardava em dedicar-se totalmente à busca de Deus, e abandonar os bens do mundo. Eles são, entretanto, agradáveis, e não se deve distanciar-se por completo deles, pois vergonhoso seria voltar de novo a eles. E ele próprio, Agostinho, estava próximo de ter um cargo honroso. Faltava-lhe apenas casar. Desejava a vida feliz, mas o tempo fugia, sem que buscasse a morada de Deus.

Mesmo casado e obtendo uma profissão honrosa, Agostinho continuaria perseguindo a sabedoria. Alípio opunha-se a que o amigo se casasse. Uma mulher se colocaria entre ele e o amigo, impedindo que eles vivessem juntos, no amor à sabedoria. Alípio experimentara o prazer carnal na juventude, mas arrependera-se e agora desprezava isto, vivia casto. Agostinho lhe lembrava de homens casados que mantinham o amor aos amigos, e também o cultivo das ciências e a entrega a Deus.

Mas o próprio Agostinho se sabia preso à falta que lhe fazia uma mulher. E não eram os cuidados com esposa e os filhos, as virtudes matrimoniais, o que o motivava a se casar, mas a prisão dele no hábito da concupiscência. A prisão na busca por saciar o insaciável: era por isso que Agostinho queria uma esposa.

Através da boca de Agostinho, a serpente falava a Alípio, tentando prender seus pés inocentes e livres. Havia uma grande diferença, Agostinho dizia ao amigo, entre o prazer furtivo, dos quais não se lembra depois, e o deleite do matrimonio. Alípio, enfim, caiu nesta armadinha, quando foi vencido pela paixão da curiosidade: que felicidade era essa que seu amigo Agostinho tanto buscava, sem a qual ele tanto sofria? Esta enfermidade da carne e prisão da alma?

Agostinho viveu quinze anos com uma mulher, antes de com ela se casar. Ela viajou para a Africa, mas voltaria. Deixou com ele o filho de ambos, e prometeu-lhe jamais ter outro homem. Agostinho disse ter se impacientado com a espera pelo retorno de sua mulher. Escravo do prazer, que era, procurou outra mulher. Ele manteve este hábito até casar-se, mas temia a morte e o juízo que receberia de Deus.

Vivia miseravelmente, imerso no vício e cego para a luz da Virtude e da Beleza. O gozo corporal era a sua principal preocupação, e chegou a perguntar aos amigos se haveria mais a almejar na vida além de ser imortal e viver experimentando o prazer, sem receio de perdê-lo.



P.s.: Este é um estudo do livro Confissões, de Santo Agostinho, compreendendo o intervalo entre as páginas 140 e 150.

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