sábado, 27 de fevereiro de 2016

Freud, o primeiro a sentir o desconforto



No Natal de 1920, Freud escreveu a seu médico, Pfsiter, que havia recebido de vários lugares respeitáveis obras de popularização da psicanálise. "A causa avança por toda parte" (Peter Gay. Freud, uma vida para o nosso tempo. p.453). Em Viena, os termos freudianos tornavam-se de uso comum. Nos salões, serviam ao novo humor refinado. Pregadores, jornalistas e pedagogos apontavam a obscenidade e a má influência das ideias freudianas sobre as crianças e as famílias.

No âmbito científico, a psicanálise não recebia tratamento mais cuidadoso. Em um simpósio ocorrido em Nova Iorque, no ano de 1924, o dr. Brian Brown afirmou que Freud reduzia tudo ao sexo. Esta sempre foi a acusação numero um sofrida pela psicanálise. Dr. Brown também afirmou que "a ideia de [Freud] era a de que havia um compartimento externo onde as ideias prejudiciais eram armazenadas, prontas para se precipitarem à nossa consciência" (Gay, p.455).

Sim, era disso que se tratava a psicanálise: de algo externo à consciência, de onde ideias e intensidades psíquicas vinham às vezes como riso incontrolável, às vezes como tempestade com raios. Freud distinguiu um inconsciente da mente. Distinguiu a própria pesquisa, então, da psiquiatria organicista, da época, e também da psicologia dos processos mentais conscientes. Por fim, ele também estava inadequado para a moralidade da sua época, conforme expressavam as preocupações dos educadores sociais, a respeito das suas teorias.

A mãe de Freud era muito jovem quando casou-se com o pai dele. De um casamento anterior, Jacob Freud já possuía dois filhos, Emanuel, pai de John, e Philipp. John, sobrinho de Freud, tinha uma idade próxima da dele. Foram amigos de infância. Contudo o ponto de estranheza da família ficou por conta de Philipp, com apenas um ano a menos do que a nova esposa de Jacob Freud, Amália. Freud suspeitava que o meio-irmão e a mãe, secretamente, tinham uma relação distinta do tipo enteado-madrasta. Este era mais que um segredo de família: era um mistério.

Freud notabilizou-se por ser o escavador de um novo continente. Para ele, as pessoas estavam longe de serem o que lhe mostravam à primeira vista. Durante anos manteve do pai Jacob uma imagem de fraco e subserviente. Quando pequeno, viu o pai tendo o próprio casaco derrubado na lama, por um homem, enquanto eles andavam na rua. Pacificamente, o pai apanhou o casaco e não se indispôs com o sujeito. Sigmund sugeriu que ele tirasse satisfações, mas o pai não tinha esse temperamento.

Freud cresceu odiando o antissemitismo que cresceu em Viena, durante a sua infância. Essa mesma energia combativa foi a que empregou na defesa das suas primeiras formulações sobre histeria e hipnose, contra neurologistas que desqualificavam estes objetos de pesquisa. Tanto como membro de uma família, assim como um judeu, e também como pesquisador, Freud não conheceu uma integração com o seu ambiente. A pesquisa primordial com as histéricas foi o abraçar de um mistério, cujos resultados foram defendidos com uma gana de quem desde criança se sentia revoltado com o antissemitismo e a passividade do pai.

Próximo do ano de 1900, Freud empreende uma auto-análise. Aquilo que nunca pareceu integrado foi formalmente desintegrado, desmembrado em partes que foram examinadas. Como um relógio que funcionava esquisito, e ao qual se desmontou para se saber o motivo. Era precisamente disto que se trata a psicanalise: desmembrar as falsas sínteses, quebrar o amálgama do sintoma em suas partes constituintes. A estranheza de um paciente, todo o "não mostrar dos seus verdadeiros motivos", Freud experimentou primeiro consigo mesmo.

Freud possuía um certo desencontro em relação ao judaísmo e ao seu pai, e que se deslocara para a pesquisa dos fenômenos mais cercados de más palavras. Foi como um desbravador solitário, muitas vezes incompreendido, que Freud viu a si mesmo, não sem razão. Ele confrontava as opiniões correntes no meio científico e no senso comum, no tocante às neuroses, à hipnose, à sexualidade infantil, aos sonhos e a muitos outros temas.

Os primeiros anos da psicanálise, de isolamento, de falta de adeptos, de polêmicas públicas e de falta pacientes jamais foi de falta de vigor investigativo. Freud tinha mais de sessenta, nos anos 20. Com a incompreensão e o escândalo por parte de alguns círculos, principalmente em Viena, Freud não pôde sentir-se confortável com a fama e a aceitação. E nem um pingo mais satisfeito com o homem.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Fernandinha no caminho das formigas


Escrevo para ser livre. Quem fica um pouco ao meu lado percebe que sou falante. Uma frase puxa uma ideia, que puxa uma reação, que puxa uma ideia e depois uma frase, e assim vai. No texto ocorre o mesmo. Minha ideia inicial transforma-se à medida em que vou batendo bola com o papel do Word. O resultado é livre inclusive de mim, que tive a ideia-start, aquela que me fez ir para a frente do pc. Escrevendo encontro o caminho do que quero escrever.

A plataforma da escrita, o outro indivíduo ou até eu mesmo são eixos com quem converso. O papel pode estar torto. Pode ter a seguinte frase sem poder se apagada: "Fã do Bolsonaro". Reajo a ela e escrevo a segunda linha. O outro indivíduo pode ter a mesma ideia fixa na cabeça. Se for alguém com quem não convivo muito, direi a ele algo sobre sua ideia fixa. Estas coisas não me desanimam.

Papel e pessoa são velhos conhecidos, cresci com eles. Literalmente, Fernanda Torres cresceu com Millôr Fernandes e Miele. Segundo ela (http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/22/mulher/), machões preconceituosos. Irresistíveis. Li Millôr. Um gênio. Fico só imaginando o quanto eu viveria se tivesse convivido com ele, como Fernanda. Eu me inibiria de escrever? Como Fernanda, eu sentiria amor por essas companhias, e sempre as louvaria.

Em meus textos sempre há o nome daquele que foi o meu parceiro mais evidente. Vivi num bairro em que o pipoqueiro, o velhinho doente do prédio, o dono da banca de jornal e o lavador de carros da concessionária eram os mesmos de anos. Machistas, homofóbicos, autoritários, militaristas. Eu ouvia de tudo. Eram meus companheiros de dia-a-dia, eu não os confrontava.

Hoje sou um observador paciente. Quando pequeno, via o caminho das formigas. A ideia vinha se desenvolvendo, subterraneamente. Quando chegava, a ideia era minha, para eu fazer o que quisesse. Não era do companheiro, não tinha que devolvê-la. Formigas não escutam.

Nunca gostei de violência, discriminação, e estas coisas injustas. Não sei com quem aprendi essa generosidade. Bem, talvez eu saiba... Não foi com nenhum companheiro humano em particular. Volta e meia o que eles diziam feriam essa minha sensibilidade, mas meu interesse por ouvi-los era maior. E no que lhes respondia, não mirava na mudança daquela ideia específica.

Mantinha minhas conversas leves, com meus queridos querendo falar mais coisas para mim. Eram tardes de sábado, com brisa balançando amendoeiras, Hoje continuo conversado, e com a mesma sensibilidade para a dor dos outros. A dor de qualquer um, mesmo a do bicho, da planta, do preso, etc. Talvez tenha ficado mais sensível. Isso que eu sou, que traz uma história predominantemente inconsciente, é o pano de fundo de tudo o que digo e escrevo.

Militantes feministas reclamaram do texto de Fernanda (um exemplo: https://medium.com/polemiquinhas-com-a-carol-patrocinio/ref%C3%A9m-uma-resposta-%C3%A0-fernanda-torres-71a5a1a5cbed#.4f2n2seyn). Disseram que, ao ter escrito que "a irrita o vitimismo do feminismo", ela ignorou os problemas das mulheres. Fernanda, inclusive, reconheceu isso e desculpou-se (http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/24/mea-culpa/). Eu não teria me desculpado: por alguma razão, o primeiro texto saiu daquele jeito. Tem uma dignidade a ser defendida. Não é para ser apagado. Ou será que o pedido de desculpas de Fernanda não é uma ironia, um fazer de conta de que dá o braço a torcer para as chatas? Pode ser!

Sim, eu disse chatas: todo mundo tem um pai escroto, ou pelo menos um tio, a quem ama e odeia. Essa complexidade é difícil traduzir em frases. Ocorre muito de uma filha brigar com o pai, acusando-o de machista. Mas ela mesma faz o namorado dormir na sala, pois "o pai não vai gostar dele no quarto". O pai é um caso sério, dessa moça. Quanto mais tiver algo engasgado para dizer a esse pai, sem saber como, mais responderá de forma confusa para quem cruze seu caminho.

As militâncias deram às pessoas uma gramática para as suas emoções e palavras presas. Um escoamento fácil, que situa bons e maus na história das mulheres, dos negros, dos gays, etc. Em troca, a militância, que é um espírito, exige engajamento. "Já que eu te dei o que dizer ao seu pai, agora te dou o que dizer ao homofóbico da esquina. A fala dele tem consequências ruins para os gays. Aponte isso para ele, para ele mudar." Por ter descomplicado a sua vida, a militância escraviza, obriga a trabalhar para ela.

Nunca fui complicado. Acho que o caso de Fernanda deve ser parecido com o meu: figuras que eu amo não são como eu gostaria, mas amo mais estar com elas do que persegui-las. Não jogo nelas a consciência pesada de uma militância. E minhas ideias vêm se desenvolvendo sem pressa. Mentira, quando estou em casa, corro para o pc.

Posso pensar em como as pessoas são autoritárias, e no problemas das mulheres. Uma coisa não tem diretamente a ver com a outra. Um homem que canta mulheres na rua pode ser amorosíssimo com a mulher dele, procurando sempre se antecipar aos desejos dela. No filme "Homens brancos não sabem enterrar" (dir. Ron Shelton, 1992), o personagem de Woody Harrelson acorda ao lado da sua namorada, feita pela Rosie Perez. Ela esboça que também irá acordar, mascando a própria boca seca.

Ele busca um copo d'água. Ao voltar, ela se revolta: se ela quer água, ela pedirá. Ele não tem que se adiantar. Aquilo é dominação masculina. Rosie brinca com o militantismo de filmes como os de Spike Lee, por exemplo, com quem trabalhou algumas vezes.

Os problemas das mulheres são coisas a serem resolvidas. Elas precisam de mais condições para serem livres. Cada minoria tem atravancamentos que é responsabilidade de todos ajudar. Alguns problemas das mulheres demandam resolução urgente. Aí o caso talvez seja criação de leis. Mas o feminismo, assim como outros movimentos, tem criado o problema da falta de socialidade. Você já reparou que quem se apresenta como militante geralmente é irritadiço?

As emoções da infância, que podem se expressar nessa gramática, não se esgotam. A criança tem ódio inconsciente pelo pai, e culpa consciente. A militância se oferece ao jovem que quer saber como expressar a vinda à tona, para a consciência, da própria agressividade. O ódio passa a ser o conhecido, e como o discurso militante é obsessivo, repetitivo, o amor ao pai não encontra chance de voltar.

É sinal de crescimento conseguir tomar distância de si mesmos, inclusive das próprias paixões. Observar a si mesmo. A má-consciência é, no caso aqui discutido, consciência engajada. Um pesado carrasco. O militante é quem mais sofre, nessa história. Um dia, quem sabe, ele possa andar devagar até a padaria, ver a mulher nua na capa do jornal, achar graça da manchete "machista", e não perder a leveza.

Civilização, amor e medo


“Totem e Tabu” é a primeira incursão de Freud na antropologia. Seu mote inicial é a semelhança entre o homem primitivo, com sua crença em totens e tabus, e o neurótico obsessivo que a psicanálise estuda. O resultado alcançado por Freud, com este texto, foi uma narrativa mítica sobre o surgimento da civilização. Aqui, apresento esta obra, e a utilizo para um início de análise sobre como, em situações sociais, vivemos nossos impulsos eróticos e agressivos.

Darwin havia observado os hábitos dos macacos superiores. Deduziu que, em seus primórdios, o homem vivia em pequenas hordas governadas por um macho mais velho. Em um grupo de macacos, apenas um macho era reconhecido como adulto. Tão logo um jovem crescesse, disputava poder com o líder, e o mais forte matava ou expulsava os demais. Já na horda primeva humana, o pai era ciumento e violento, reservando para si todas as fêmeas e expulsando os filhos, assim que eles cresciam. Certo dia, porém, os irmãos expulsos uniram-se, mataram o pai e devoraram-no. Isso pôs fim à horda primeva.

Cada um dos irmãos rivalizava com os demais, querendo ter todas as mulheres para si. Nenhum deles era tão mais forte do que os outros, como o pai era. Se disputassem poder, destruir-se-iam a todos. Impossibilitados de serem como o pai, abriram mão do uso da força, a fim de poderem viver juntos. Abrem mão também do amor incestuoso, com as fêmeas do grupo, a fim de que os afetos fossem mantidos frios, ou seja, os impulsos agressivos não fossem atiçados.

Em relação ao pai, o filho sentia ódio, por ele ser obstáculo à satisfação das suas necessidades de poder e sexuais. Mas também sentia amor e admiração. Com a morte do pai, satisfez-se o impulso de ódio, do filho. O impulso amoroso, antes subjugado, agora se impõe como arrependimento. Tudo o que o pai proibia agora os indivíduos proíbem a si mesmos. O morto ganha força.

Os irmãos elegem um totem como substituto do pai, e a ele vinculam os dois tabus fundamentais da organização social: a proibição do assassinar e comer o totem, e a proibição do servir-se das mulheres do clã. Esta reação moral é decorrente da impossibilidade de os filhos ocuparem o lugar do pai. O impulso agressivo e erótico, uma vez reprimido, leva aos indivíduos a tornarem-se vigilantes da mesma moralidade que visa reprimi-los.

O totem é um lugar, um objeto ou um animal que o clã relaciona ao pai primevo. É o protetor do clã, o guardião da sua história e a fonte de identificação para cada um. Vestidos tal como o animal totêmico, ocasionalmente os membros do clã repetem o ritual da refeição totêmica. Nestas ocasiões, este animal é morto cruelmente e devorado cru. Todos no clã participam deste momento de liberação da agressividade. Eles dançam, imitando os movimentos e os sons do animal totêmico.

Após a cerimônia, o animal é pranteado, mostrando o arrependimento dos participantes e desresponsabilizando-os pelo que fizeram. Esta é a repetição da história de ambivalência em relação ao pai, em que estão presentes a morte, a culpa e a expressão do amor identificatório com o pai. O pai é o primeiro rival de toda criança. Assim o é porque a mãe é seu primeiro objeto de escolha sexual. Esta é a uma descoberta da psicanálise.

Ao longo do seu desenvolvimento libidinal e psíquico, a criança se libertará desta atração incestuosa. Inicialmente, a criança tem na própria boca a fonte do auto-erotismo. O instinto sexual buscará a obtenção do prazer, com a ajuda dos objetos que se relacionam com esta parte do corpo. O objeto externo preferido é o seio materno. À fase oral se segue a anal, em que o prazer se obtém com o controle da retenção e da expulsão das fezes, sendo o ânus a fonte de erotização. E à fase anal se segue a fálica, em que a criança explora os genitais dela e das outras crianças, e gosta de se tocar e ser tocada nesta região. Após esta fase, a criança deixará de centrar-se nas partes do próprio corpo, e elegerá objetos externos como fonte de promessa de satisfação sexual, ou seja, como objetos de interesse amoroso.

Há, porém, entre o estágio de autoerotismo e o estágio da escolha objetal, um estágio intermediário, no qual o instinto sexual, antes particionado, ganha unidade e liga-se a um objeto. Mas este objeto ainda não é externo. É o próprio Eu. O narcisista toma os próprios pensamentos como a realidade. Se a mãe chega a seu quarto, ele entende que isto foi para atendê-lo. Se o pai sai para uma longa viagem, deverá trazer uma lembrança para ele, como se fosse passar a viagem inteira procurando aquele presente. O neurótico obsessivo é o que melhor representa uma fixação psíquica na fase narcísica. Ele demonstra isso, ao imaginar que pode evitar ocorrências ruins, e provocar boas coisas, com a intenção afetiva do seu pensamento.

Voltando falar da história da humanidade, houve uma fase animista, em que o homem atribuía a si mesmo a total potência sobre o mundo. Posteriormente a esta fase, acompanhando a história individual de saída de si em direção aos objetos externos, há a fase religiosa. Os deuses são os criadores do mundo, e os donos da vontade que o governa. No entanto, o homem mantém a convicção de que, através de cultos e orações interfere nas decisões deles.
Por fim, na fase das concepções científicas, o homem estuda o universo e o tamanho do seu planeta, os animais e o lugar de sua espécie, seu próprio nascimento, desenvolvimento e morte. O homem é obrigado a se haver com a sua estatura e limitações. Ele não tem poder sequer sobre a própria vida, então é claro que não poderá fazer o que bem entende com os seus instintos sexuais e agressivos. Deverá adequar-se aos regramentos da realidade, da vida em comum junto aos outros. Ainda assim, cada saber que situa este homem em relação às outras coisas existentes, relativizando a sua estatura e o seu poder de ação, tem embutida a confiança deste homem na própria racionalidade, herança da crença da onipotência do seu espírito.

Enquanto possuíam uma concepção de mundo animista, os homens tomavam as restrições do tabu como válidas por si mesmas. Não havia qualquer autoridade divina que as fundamentasse, junto a um sistema de privações tomado por necessário numa organização social fundada em uma ordem religiosa. A punição pela infração ao tabu ficava a cargo da instância interna ao violador. O castigo severo era esperado para ocorrer pouquíssimo tempo após a falta.

Há o caso de um homem robusto que encontrou restos de comida na estrada. Ele os comeu, e só após isto lhe avisaram que aqueles restos foram deixados pelo rei. O homem começou a sentir violentas dores, e a ter diarreias. No dia seguinte, estava morto. Todos os objetos pertencentes ao totem, ou por ele tocados, assim como ele próprio, possuem a poderosa e misteriosa energia do que é proibido, ou tabu. O infeliz, ao tocar os alimentos deixados pelo rei, entrou em contato com esta energia, muito acima da sua capacidade de assimilação. Caso ele não houvesse morrido, seu povoado trataria de isolá-lo e fazer com que ele passasse por diversos ritos de purificação. Durante este tempo, ninguém mais se aproximaria dele. Ele mesmo tornara-se tabu, portador da energia.

Vivendo sob o sistema totêmico, o homem mantém um contrato com o pai primevo, em que este oferece proteção em troca do compromisso de que os filhos não repitam o ato que destruiu o pai real. E que não esposem as mulheres do clã, a fim de não despertarem o desejo incestuoso dos outros membros. Isso os faria guerrearem e se esfacelarem enquanto sociedade. Os homens do clã vivem fraternalmente, não se tratando mutuamente da mesma forma como o pai uma vez fora tratado por todos os homens unidos.

O totem, enquanto representante do pai, recebe os cuidados dos membros do clã fraterno, e os agradecimentos por protegê-los. O homem, contudo, jamais deixa de desejar o proibido. A destruição do totem e o incesto ou endogamia são tudo o que ele mais gostaria de fazer. O neurótico obsessivo, estudado pela psicanálise, tem uma ambivalência afetiva com relação ao próprio pai. Este neurótico tem desejos de agressão contra o pai, mas os nega obsessivamente. Em sua consciência vicejam a consciência de culpa, e o amor pelo pai.

A má-consciência é o maior carrasco que alguém pode ter, pois é a certeza da condenação contra os atos através dos quais realizamos desejos proibidos. O homem primitivo teme a punição pela infração a um preceito tabu. Os membros do clã aguardam a punição para o infrator. Caso ela não ocorra em breve, o sentimento coletivo de estarem todos ameaçados faz com todos se unam e punam o infrator. Cada homem é movido por impulsos incontroláveis, aos quais tenta manter sob controle. Realizam um linchamento coletivo do infrator, para afastar a sua má influência. A nenhum membro do clã é permitido se ausentar da punição, pois esta é a ocasião em que eles são autorizados a darem vazão ao ímpeto agressivo, expiando aquela falta e afastando-a do convívio dos irmãos.

O desejo de morte da pessoa amada, do neurótico obsessivo, ao ser reprimido, é substituído pelo medo de que essa pessoa morra e pela autoacusação. O altruísmo do neurótico encobre o seu egoísmo. Quanto ao homem primevo, o desejo de destruição do pai e do amor incestuoso pela mãe faz com ele estabeleça os tabus do seu clã. A partir das proibições fundamentais, os vetos se ramificam para outros comportamentos, animados pelos impulsos proibidos: mulheres durante a menstruação e logo após darem à luz, as propriedades dos homens, os rapazes em iniciação masculina e os mortos são incluídos no tabu. Estas proibições organizam a convivência dos membros do clã, e os protegem deles mesmos.

O temor que cada um tem em ser punido é objetivado no tabu, e o homem passa a crer que há um poder demoníaco oculto no elemento totêmico. Objetivados as proibições e a punição, o homem organiza-se coletivamente para lidar com eles. Os tabus são proibições muito antigas, impostas a gerações de homens. O lugar, o objeto ou a pessoa considerada totem é vedada ao toque. Mas, para qualquer um, tocá-lo seria o máximo deleite. Esse desejo é inconsciente, e a proibição, consciente. “Nada gostariam mais de fazer, em seu inconsciente, do que infringi-las, mas também têm receio disso” (Totem e tabu. p.26).

Semelhante ao obsessivo, o homem primevo tem medo do toque. Nem em pensamento se pode tocar no totem. Quem infringe essa lei é passível de eliminação. O infrator é contagioso e, alternativamente à morte, ele é conduzido a um período de isolamento e de grandes renúncias, para e expiação da sua falta.

Uma mudança mitológica ocorreu com a passagem da crença no demônio para a crença em deuses. Os objetos aos quais se entendia como portadores do poder demoníaco, venerados, serão considerados impuros. A crença no poder de deuses, e na sua sacralidade, rebaixou os demônios para objetos de horror, aversão. Essa dualidade mítica colocou de um lado a fonte da lei e das punições, os deuses, e a fonte da tentação, os demônios. Os deuses eram intocáveis porque sagrados, sumamente bons. Os demônios assediavam os homens.

Trago para cá a narrativa que está nas primeiras páginas do Genesis. O paraíso era a perfeita harmonia entre o homem, a mulher, os animais e inclusive as plantas. Bastava esticar o braço para se apanhar o que comer. Não havia mortes provocadas, não se derramava sangue. Também não se morria por velhice. Não se sentia fome, sede, privação de nada. Na esfera de Deus, o homem desconhecia o que era necessidade. Deus criou e colocou tudo para funcionar de forma perfeita, sem a possibilidade de que um ser disputasse qualquer coisa com o outro. E sem que o homem em si mesmo sentisse alguma sensação desagradável. Todos eram irmãos.

Certo dia, a serpente foi ter com Eva. Subiu em uma árvore, e falou-lhe ao ouvido as coisas maravilhosas que aconteceriam a quem experimentasse o fruto da Árvore do Conhecimento. A única proibição de Deus, para o homem, era comer o fruto dessa árvore. A serpente falou que o poder de Deus não era tão grande assim, não tão distinto do poder que teria aquele que comesse o fruto proibido. A mulher comeu a maçã. Em seguida, deu-a a Adão, sem que ele soubesse de que fruto se tratava. A desobediência de Eva foi intencional. E, por um momento fatal, Adão voluntariamente obedeceu a ela, comendo o fruto, e afastando-se do Pai.

A sabedoria era sagrada, havia sido vedada ao homem por ser propriedade do criador. O homem não precisava dela. O filho mexeu nas gavetas do pai. Tornou-se um mau-exemplo para os demais habitantes do jardim. A serpente foi amaldiçoada, para que todos soubessem que ela havia se tornando como que um tabu ou, no vocabulário bíblico, um ser maldito. Deus era verbo falado, comandos de ações: “faça-se a luz”, “crescei e multiplicai-vos”, etc. Quem era a serpente para querer mandar junto dele? Só poderia mandar quem tivesse a sabedoria, quem soubesse o que falar. Deus tornou a serpente maldita, um ser do dizer o mal. Foi condenada a mover-se arrastando-se sobre o próprio abdômen. Deste modo, a serpente não conseguiria chamar ninguém, para escutá-la. Todos os seres deveriam ter aversão por ela, pela energia maligna que a habita e o risco da tentação.

Já a maldição do homem foi a inserção dele na mortalidade. Ele agora nasceria, cresceria e fatalmente morreria, perdendo seus filhos e coisas queridas. O homem ganha um desenlace. Enquanto vivo, derramaria o próprio suor no solo para dele retirar seu sustento. Lançado sozinho no mundo, ele começou o trabalho para fazer o seu destino.

Voltando ao clã fraterno, a obediência ao pai totêmico é transmitida pela mãe. Ela dá geração às sementes do homem, os filhos provêm dela e são inseridos na ordem totêmica. Esta ordem são prescrições para as relações entre homens e mulheres com o totem, entre si e com membros de outros grupos totêmicos. No interior do próprio grupo, é claro, vigoravam a proibição da destruição do totem e o incesto. A mãe é um território vedado ao próprio filho, quando ele nasce. O exílio é sem retorno.

No texto “A Cabeça da Medusa”, Freud diz que a deusa Atena tinha, no centro do seu escudo, uma imagem horrível, porque proibida: a cabeça da Medusa. Não se podia olhar para a Medusa. A punição era instantânea. Freud identifica a cabeça da Medusa com a vagina da mãe, exatamente o solo que gera o homem e do qual ele parte para a própria vida, sem olhar para trás. A imagem da vagina da mãe é petrificante.

A nossa sociedade é uma reunião de pessoas de diferentes origens. Diante do olhar de um transeunte em uma grande cidade, multiplicam-se as diferenças, capas que conferem identidade ao portador, que é não mais do que um suporte, um cabide. O indivíduo circula neste ambiente, cuidando dos seus afazeres. Estes afazeres incluem, certamente, encontrar um cantinho para que possa vivenciar o que sua libido constantemente o empurra a fazer.

Um garoto começa a namorar uma menina que já está crescendo, moradora do prédio em que moram. Os adultos que cuidam dele acham bacana. O namoro ultrapassa a barreira de um mês. A mãe diz ao pai que ele deveria conseguir uma namorada na escola em que estuda. O namoro de vizinhos que cresceram juntos causa certo incômodo das gerações mais velhas.

A escola é um apanhado de crianças com aquelas diferentes origens. As idades são separadas por turma, e os critérios de seleção incluem o nível de renda da família. Em escolas com crianças de famílias de classe média, há barreiras impedindo a entrada de muitas crianças negras. A homogeneização inicial das turmas se encerra aí. Elas formarão um grupo regido pela professora, dentro de sala. Serão Pedro aluno da Professora Helena, Maria aluna da Professora Sìlvia, etc. A professora lhes dá uma identificação. Mas os nomes das crianças são completados com o nome da escola: Pedro aluno da Professora Helena da Escola Patinho Feliz. A ordem que rege todos é a da instituição, ela dá o último nome à criança. O nome da professora é o do meio, como uma transição do primeiro nome da criança, aquele com que ela chega à escola, e o último, o nome da escola. Um dia ela se formará naquela escola, reconhecida como um indivíduo, mas um indivíduo formado pelos ensinamentos da instituição.

Os garotos comentam baixinho, entre risos, sobre o decote da professora. Mas ninguém ousa desrespeitá-la. As meninas inspiram-se nela, para fazerem seus cabelos. Elas não sabem, mas quanto mais vão se tornando semelhantes à professora, mas fazem as cabeças dos meninos virarem em sua direção. Contudo, sobre elas também existe aquela proteção contra as investidas eróticas dos meninos. Um deles, contudo, resolve assumir-se apaixonado por uma colega de sala. Todos já suspeitavam desse interesse dele. Os mais chegados insistiam para que ele contasse logo a coisa para todos. Uma vez falada, a relação torna-se assunto da turma. Enquanto era escondida, incomodava pela proximidade com o proibido. As meninas aprovam. Os meninos desaprovam. E os dois engatam namoro. Logo as meninas já querem casar os dois, e brincam de falar o sobrenome de cada um deles.

O casamento, ou seja, o sobrenome comum, ainda é o avalizador do contato sexual, em nossa sociedade. É a prova de que um indivíduo não pegou qualquer uma na rua, para satisfazer seus impulsos. Os alunos da sala, cada vez mais homogeneizados, agora pelo mesmo aprendizado na série, são heterogêneos demais para que se autorize o seu envolvimento sexual. Um menino não pode mexer com a menina, “não tem intimidade”. Uma jovem pergunta a um jovem mais ousado: “você me conhece?”

Cada indivíduo, contudo, não deixa de ser puxado para a realização dos seus impulsos sexuais e agressivos. Na escola não se permite brigas, mas por ela saber a importância de alguma válvula de escape da agressividade, faz vista grossa para a enxurrada de garotos que corre, após a aula, para uma rua sem saída, para a briga que terá lugar lá. O que acontece lá, fica lá. No máximo se conversa sobre ela na diretoria. Os detalhes do rosto cortado e sorridente do garoto não podem ser conhecidos pelos outros.

Um homem foi preso por atacar sexualmente uma mulher. O direito à propriedade, o que inclui o próprio corpo, é um resquício dos regulamentos totêmicos sobre a relação entre indivíduos de clãs diferentes. Uma mulher estranha é um tabu de propriedade, por estar vinculada a outros homens, seus irmãos. Os presos têm seus próprios regulamentos para sexo e uso da força, de modo a que não se destruam mutuamente. Um indivíduo preso pelo crime de estupro terá um tratamento diferenciado, na prisão. A vítima, o juiz, os policiais e, sobretudo, a nova vítima já sabem que o pior castigo será aplicado pelo grupo de presos.

O primitivo clã fraterno, pela demora na punição do infrator, unia-se para a punição dele, liberando momentaneamente seu impulso destrutivo. Os presos unem-se pelo sentimento de vingança pelo tabu tocado. Espancam o abusador e, particularmente, estupram-no selvagemente. As regras sociais para sexo e força, que mantém a nossa civilização, não existem ali. E dentro do mundo infernal da prisão, o estupro e o assassinato do estuprador são medidas específicas destes casos.

A prisão é um lugar esquecido por Deus. A imagem social a respeito dela é a de um lugar regido pelo demônio. Para lá vão os que não seguiram as leis sociais, que fazem um indivíduo ser bom. Nesta visão, a prisão e quem está nela só podem ser maus. Todos eles são tabu. O demônio é o líder autocrático, tirânico, que mata e come quem quer. Os homens tentam mantém distância dele. Eles mesmos têm estes desejos. E, na prisão, os regulamentos do grupo de presos não proíbe totalmente a mútua destruição e o sexo, mas os regram de forma específica. Há uma hierarquia de poder que determina a agressividade e o sexo permitidos a cada um. As execuções e os estupros são metodicamente aplicados por um motivo que concerne àquela sociedade.

O regozijo demoníaco, contudo, ocorre na situação em que os presos unem-se para lidar com quem cometeu um estupro fora da cadeia. Cada um, em conjunto, torna-se ele mesmo semelhante ao demônio, se imbui da sua energia. Se o divino é distante do homem, o diabo permite-lhe um gostinho do seu poder. Algumas vozes surgem, na sociedade, dizendo que os presos fazem isso porque estão simbolicamente defendendo suas irmãs ou mães. Chegam a dizer que um acusado de estupro deve ser morto, deque forma for, pois “imagina se fosse com a tua filha!”.

Um homem ousou agir como o pai da horda. Ele, que não é mais forte do que todos eles juntos. Os irmãos se animalizam, e destroem-no. A sociedade tem lugares expulsos da lei geral, divina, para os quais olha com horror. São como Sodoma e Gomorra, lugares onde vicejam os piores vícios e impulsos. Não se faz a mínima questão de torna-los dignos de um ser humano. São receptáculos de todo o ódio da sociedade, que neles objetiva suas obsessões, o desejo punitivo e o medo que sentem.



Referências
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Editora Penguin e Companhia das Letras. 2015.
A Cabeça da Medusa. In: Psicologia das Massas e Análise do Eu e Outros Textos. Editora Companhia das Letras. 2015.
Nova Bíblia Pastoral. Editora Paulus. 2014.


terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Uma nova forma de repressão


Eu estava achando bobo meu texto sobre o Rambo (http://psicfilo.blogspot.com.br/2016/02/rambo-macho-toda-prova.html). O homem se curte e se pavoneia tanto que chega a ser gay. Qual a novidade disso? Mas as reações dos homens a ele me mostraram coisas interessantes. As mulheres riram. Era um texto para rir, mesmo. Uma disse que o marido que fala da própria infância com o Rambo não é tão macho quanto pode pensar.

As mulheres ficaram à vontade com um texto que fala sobre algo que os homens escondem, sem saber que escondem. Alguns homens comentaram o quanto o texto ressalta a masculinidade, e os fez lembrarem, com carinho, da própria infância. Ou que os fez serem mais machos ainda. O sentido do texto está um pouco velado, é claro. Esse assunto é velado para alguns homens. Os que fizeram estes comentários talvez não percebam o quanto o macho é gay. Talvez nem tenham que perceber, pois se a brincadeira do menino é de luta, músculos e armas, é óbvio que o erotismo identificatório dele esteja nessas coisas. E ouvir que Rambo seja gay não incomoda esse adulto.

Também me disseram que eu verdadeiramente não assisti ao filme, como se eu houvesse o entendido errado. O Rambo e a macheza são intocáveis. Este sujeito, inclusive, sugeriu que eu apenas lesse os comentários dele e não os comentasse de volta. Quem fala sobre gays não pode se misturar com ele.

Agora, houve um comentarista que travou extensa troca de mensagens, comigo. Ele questionou o porque de eu ter sugerido que o Rambo fosse gay. Segundo ele, a sexualidade de ninguém é para se comentar. E falou como se o meu texto fosse ruim para os gays. Bem, no texto eu mostro o quanto Rambo é homoerótico. Não falei abertamente, para que as pessoas percebessem as sutilezas homoeróticas que há nelas mesmas e, a partir disso, não se espantem e não comentem, ou riam, ou tenham essa reação, para mim inesperada, de dizer que eu não posso dizer certas coisas.

Os gays são vítimas de violência, e têm lutado, com o apoio de grande parte da sociedade, em prol de mais direitos. Contudo, há parte da militância pró-gay que se queixa de piadas, programas de tv ou textos sobre gays. Segundo essas pessoas, esse tipo de material fomenta o preconceito e a violência contra os gays. Eu penso de outra forma: a evitação de que se fale sobre gays leva ao desconhecimento, ao preconceito e à violência.

Quando pequeno eu via o Costinha imitando bicha na Escolinha do Professor Raimundo, e cresci achando as bichas engraçadas. E com "engraçadas" não estou dizendo nada que inferiorize as bichas. Não estou dizendo que elas não devam ter liberdade para fazerem o que quiserem, inclusive amor, no espaço público ou no privado, ou de estudarem ou ocuparem qualquer cargo ou função para a qual se preparem. Estou dizendo que elas são espirituosas, leves, pessoas boas para se ter por perto, melhores do que os militantes que vêem homofobia em tudo.

O combate à homofobia é algo que será tão mais eficaz quanto mais inteligentemente analisar os conteúdos e os comportamentos relativos ao gay, combatendo a violência e as atitudes discriminatórias e estimulando a convivência e a alegria. Mas, se como diz o filósofo alemão Peter Sloterdijk, na era da leveza busca-se engajamentos para se dar peso à vida, dizer que existe uma "realidade" com a qual se lidar, os militantes pró-gay conseguem deixar pesado o que é o símbolo da leveza, que é o próprio gay. Então, que não se comente sobre gays, a opção sexual de cada um é assunto irrelevante. Sim, é mesmo irrelevante na hora de uma disputa de emprego de executivo ou de presidente. Mas, quando se trata de comportamento, abarcando o gestual, os modos de olhar, a valorização da masculinidade, e até o jogo de não se comentar sobre seu profundo erotismo, o ser gay entra na jogada, é relevante mencioná-lo.

Agora estou aqui pensando: se eu tivesse afirmado, dito claramente, que os filmes do Rambo são homoeróticos, teria se queixado aquele que não gostou de eu ter falado sobre gays? Acho que não, pois ele diria que meu texto era uma denúncia da falsidade daquele que se diz heterossexual. Então seria bom o texto que traz mais pessoas para o campo do gay, e ruim o texto que comenta o gay. Eu digo ser bom o texto que me faz olhar de formas alternativas para mim mesmo, seja um texto que me faz me ver como negro, ou um que me faz me ver como um e.t., ou um bicho, ou branco. Um texto que me faz ter novas experiencias, e pensar sobre novas coisas sobre o outro. E sempre que se pensa novas coisas sobre o outro, retorna-se a si mesmo e se vê também a ele de outra forma. E é bom o texto que comenta o gay, para que os aspectos dele se multipliquem tanto, ou para que se ressalte a positividade deles, que fique difícil alguém não se identificar com eles. E também fique difícil uniformizá-lo e protegê-lo dos olhares e dos comentários da sociedade, pondo-o de volta no armário.

Rambo, macho à toda prova


- Macho era o Rambo.

- Rambo era gay, disse minha esposa.

- Que isso! O Rambo ensinou a gente a ser macho. A cada filme ele vinha mais forte, mais bravo, matava todo mundo, explodia tudo. Ele é o macho máximo. Quando saiu o segundo filme, eu pedi: "mãe, me dá o novo boneco do Rambo?" Ela me disse: "mas você já não tem um boneco do Rambo? Para que outro?" "É que esse vem sem camisa, e com uma bazuca grandona." Chorei muito para ter o Rambo sem camisa.

No primeiro filme o Rambo usava um tipo de avental de pano cinza, todo rasgado, que ele mesmo tinha feito, na selva. Usou um cipó para prender na cintura, onde também carregava uma faca, sua única arma. Ele resolvia tudo na faca, naquele filme: matou todos os policiais que o perseguiam, inclusive os que estavam num helicóptero, que ele obviamente fez vir ao chão.

No segundo filme ele já começa sem camisa, e passa o tempo todo assim. Arranja uma bazuca comprida, e sua faca agora tem várias pontas, como uma serra. A namorada dele é séria, uma vietcongue que não fazia qualquer gracejo. Quando ela morre, é um companheiro de guerra que Rambo perde, a única pessoa com quem ele conversa alguma coisa o filme todo. Ela tinha o cabeço comprido, e ele resolve também deixar o dele crescer.

No terceiro filme, ele estava enorme de forte. Os cabelos chegavam na cintura. A falta de camisa era completada pela cintura baixa da calça, deixando ver todos os caminhos. As gotas de suor e de sangue percorriam um longo caminho antes de esconderem-se para molhar lá dentro. Na primeira cena aparece ele lutando com dois paus na mão, contra um adversário que também tinha dois paus. Trocaram pauladas até não aguentarem mais.

O abdômen do Rambo pulsava de respiração e dor, quando ele era torturado, cortado. Num balaço de raspão ele pôs pólvora, mordeu um pedaço de pau, pegou outro pau, em chamas, e tacou fogo na ferida, urrando com aquela boca torta do Stallone. Era ele contra o exército Russo. Um russão de dois metros lutou com ele numas pedras. Após uns socos para tontear, o russão deu um abraço nele, bem apertado. Rambo participou, dando cabeçadas na testa do parceiro, chegando a encostar os narizes.

Os três filmes terminam com o coronel Trautman aparecendo para defender Rambo das autoridades militares. Ele sempre demora os olhos azuis sobre os do protegido. A macheza que o Rambo ensinou tem força, coragem, honra, proteção, prazer e dor. Braços fortes, peitos grandes, líquidos densos, areia, torturas, e um par de olhos azuis paternais, reconfortantes.


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

"Isso é mais do mesmo." Sim!


A filosofia não é senão outra coisa que o mais do mesmo. Sócrates demorava-se no análise de um discurso que escutava. Podia ser a respeito da matéria sobre a qual, no Fedro, ele se disse expert: a arte do amor. O discurso do jovem Fedro poderia trazer algo que ele não soubesse. E trouxe, levando o filósofo, por um momento, a maldizer o apaixonado. Sócrates, contudo, logo percebeu a falta de sentido do que fazia, pois um deus não podia ser mau. A fala de um homem levou-o a isso.

Sócrates, então, voltou-se respeitosamente ao deus Eros, para novamente inspirar-se nele. Não queria perder suas bençãos, "ter azar no amor, deus me livre"! Sócrates podia continuar sendo um colega do Fedro, assim como o era de muitos outros cujos discursos analisava. Muitos deles, porém, evitavam-no, pois sabiam que seriam chamados a verem os problemas internos ao que falavam.

Parar para pensar é parar para conversar. Isso requer bastante esforço. E poucos são os que realmente querem saber sobre o que estão falando, aproveitando as perguntas-guia socráticas. A maior parte das pessoas quer chegar rápido a um objetivo.

Quando Sócrates se aproximava, o objetivo da maioria era sair logo dali. A tigela, o cavalo, o amor, eram os temas de Sócrates. Coisas do dia a dia, que se fala com conhecidos, amigos e cônjuges. Escuta-se essas coisas sem problematização: "se eu tenho que ir ao mercado, comprar comida, algumas horas antes do almoço ser servido, é claro que eu vou." O uso denotativo das palavras muitas vezes não é errado. Mas o que consideramos realidade nem sempre precisa ser mantido, justamente em nome do ideal de criarmos melhores realidades.

O que alguém diz sobre o amor não precisa ser tomado por óbvio. Um enunciado com as palavras Jesus, pedofilia, política, etc, se quisermos ter algo mais do que uma comunicação telegramática e automatizada, se quisermos desenvolver nosso raciocínio, argumentação e capacidade de fazermos o bem, tem que nos levar a parar, escutar, entender e elaborar uma reação. E não responder correndo, como corriam da banalidade Socrática, corrosiva do orgulho grego. Temos corrido da conversa, orgulhosos de sermos autômatos.

As redes sociais da internet são onde mais se expressam opiniões, sobre tudo. É o lugar ideal para perguntar às pessoas sobre o que elas estão dizendo, convidando-as a voltarem sua atenção para o banal. Mas tem sido uma pista em que as imagens de cada um são apresentadas e consumidas com rapidez. Cada um deve cumprir um mínimo de "boa imagem social", que se banaliza, para a partir desse solo se mostrar a novidade da viagem, da comida, até do trabalho. Não pode haver rachaduras no solo. Não se diz palavrão ou palavras "polêmicas", que freiam a correria e obrigam a que se responda algo a quem as disse, o que expõe o respondedor.

Para os apressados, o Facebook é como um salão social, em que só se mostra a novidade, o belo e o rico, e não se comenta o corriqueiro. "Amor", "política" e "Jesus" são palavras banais, e por isso mesmo, são as que mais dão discussão e se prestam a mal-entendidos.

O salão foi um preparatório para a avançada tolerância do mercado. Mas um burguês nunca deixou de olhar para outro burguês, esperando travar com ele uma conversa que o fizesse se sentir aceito em sua "interioridade". Dentro da própria família, contudo, é difícil conseguir ser totalmente aceito pelo outro. Há algo no conjugue que não combina com você, e que permanece um assunto indiscutível.

"Minha mulher é mórmon, e eu sou democrata liberal. Mas eu a amo, quero ficar com ela para sempre. Não vou interrogar o que ela me fala. Concordamos com uma porção de coisas que me são importantes", podia pensar o filósofo Richard Rorty a respeito da sua segunda esposa, na época em que estava com ela (http://ghiraldelli.pro.br/democracia-liberal/comment-page-1/#comment-61323).

Não precisamos concordar com tudo. Mas um filósofo, em uma situação social, não pode ser um carente de amigos, dizendo o que garante receber concordância. Não precisa da polidez do comerciante, que se junta à carência de reconhecimento de si, burguesa.

O filósofo tem que se incomodar com o que os outros apresentam e nem percebem, de tão natural que lhes parece. E tem que ensinar os outros a se incomodarem consigo mesmos, com o "mais do mesmo" que lhes parece maravilhoso, e abraçam, ou péssimo, e fogem. O filósofo quer que as pessoas sejam a mesma coisa, só que melhorada. Ou seja, diferentes.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Uma confortável cama para sua alma




Veja o bonito entendimento de Santo Agostinho sobre a amizade:
Em seus primeiros anos de mocidade, Agostinho lecionava em Tagaste. Este município é o deu seu nascimento, em 354 d.C., e localiza-se onde hoje é a Argélia, na África do Norte. Agostinho cresceu junto de um rapaz, com quem fez escola e brincou. Na mocidade, ambos continuaram dividindo os estudos e as alegrias da mocidade.

A mãe de Agostinho era cristã fervorosa. Deixavam-lhe triste as crenças supersticiosas do filho. Agostinho não deixou de apresenta-las ao amigo. Um dia, este rapaz caiu em forte febre. Os cuidadores dele, vendo sua crescente piora, batizaram-no. Agostinho ficou contrariado com isso, mas acreditava que sua influencia sobre o amigo seria maior do que aquela cerimônia realizada sobre o corpo inconsciente dele.

O rapaz, então, recuperou-se. Agostinho ansiava por lhe falar, e tão logo pôde ser ouvido, ridicularizou o batismo. Eis que, então, o amigo olha para ele como a um inimigo, dizendo que se ele quisesse manter a amizade, que jamais falasse aquelas coisas. Perturbado, mas contendo a emoção, afastou-se Agostinho. Pouco tempo depois, o rapaz recai na febre violenta, e morre. Ele e Agostinho jamais voltaram a se conversar.

O coração de Agostinho encheu-se de trevas. Perdeu o chão. A pátria e até a casa paterna não eram mais seus. Os lugares em que antes encontrava o amigo agora estavam mortos, pois o amado nunca mais estaria neles. A alma de Agostinho perdeu totalmente o pouso. O que fazer com ela? E qual era razão daquela morte? Impossível saber, responderá o Santo, anos depois. Há um fosso entre os julgamentos de Deus e aos homens.

À época, contudo, “o homem tão querido que eu perdera era mais verdadeiro e melhor que o fantasma em que lhe mandava ter esperança.” (p.89). A um desgraçado, só o choro consolava. O doce choro era o único sucessor de um amigo.

O tempo passou, e o sofrimento amainou. Agostinho entra nas confissões a Deus. Desgraçado ele era quando jovem, por sua alma estar presa ao amor às coisas mortais! Com a morte do amigo, a amargura tomou o seu lugar nas afeições de Agostinho. Ele não morreria pelo amigo, pois passara a ter medo da morte. Tinha ódio da morte, que tranquilamente arrebatou seu amigo e o fazia com todos.

“Admirava-me de viverem os outros mortais, quando tinha morrido aquele que eu amava, como se ele não houvesse de morrer! E, sendo eu outro ele, mais me admirava de ainda morrer, estando ele morto” (91). A vida era totalmente insípida para quem vivia pela metade. Eles eram uma alma em dois corpos. Por isso, a fuga de Agostinho à morte era para que não se completasse a morte do amigo.

Sua alma sangrante só encontrava sossego nas lamentações. Ele mesmo não era um bom lugar para a alma dele. Mas como sair de si mesmo? Agostinho saiu da cidade em que seus olhos acostumaram-se com o amigo. Deixou Tagaste, foi para Cartago.

A passagem do tempo fê-lo ter esperança. Retomou antigos prazeres. Arranjou novas companhias, deixou-se seduzir por leituras conjuntas, por trocas de amabilidades e honrarias, etc. Novos amigos a quem pagava com amor o amor que deles recebia. A consciência humana se obriga a amar quem a ama.

A morte de um amigo transforma doçura em angústia. A única forma de não se perder um amigo, Santo Agostinho percebeu, era amá-lo naquele a quem nunca se perde, Deus. Para ele, a verdadeira amizade é aquela em que o Eterno enlaça os que se lhe unem.



Livro utilizado

Santo Agostinho. Confissões. Editora Vozes.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Negócios com o ex



Eles se separaram. O negócio que abriram juntos continuou. Ela espreme pedras e sai clientes. Diariamente ele assenta e dirige a equipe em direção ao sucesso. Jamais um abrirá mão do outro. Só que eles não mais dividem os lençóis, as risadas e a frustração pela incomunicabilidade entre almas.

Agostinho tributou à falta da linguagem verbal dele próprio, quando criança pequena, a impossibilidade de comunicar uma necessidade interna a alguém, externo a ele. Mas o consórcio dos adultos tampouco foi auspicioso, para o bispo de Hipona: a amizade levou-o a roubar, uma ação empreendida para afastar a vergonha, que sente um jovem diante dos amigos, de ter vergonha em roubar. De que adiantava a comunicação com os outros, se ele não se comunicava com Deus, aquele que faria a vida dele não ser uma morte? O faria amar algo além do transitório e pequeno si mesmo?

Queremos um marido para parceiro de almas e das coisas da vida. Entendemos que é fundamental a troca corporal, para a parceria das almas. Manuel Bandeira disse que as almas não se entendem, e sim os corpos. Para um filósofo platônico, o sexo desregrado entorpece as almas. O amante não pode exaurir-se com a pessoa amada. Deve tomar a distância do olhar, para receber sua divina enxurrada de beleza e a alma dele, então, criar asas. A amizade, em Platão, é a situação de mútuo desenvolvimento. Um desenvolve a alma do outro ao se importar com o que o amigo diz, com a forma com que ele conduz a sua vida, e ao querer mostrar melhorias nas coisas que ele mesmo diz ao amigo e faz diante dele. Esse desenvolvimento também aponta para a divinização das almas envolvidas.

Ao levantarem da cama, os amantes descobrem uma distância. Entendem-se como podem, pois gostariam de garantir o reencontro de corpos, na próxima noite. Por estarem se frustrando além do suportável, no jogo amoroso do dar-administrar a falta, param com aquilo. Separam-se. Mas ocorre de eles entenderem-se bem demais fora da cama, e fora da expectativa das almas. A atitude de um combina com a do outro, e o negócio se desenvolve. Segunda-feira se reencontram "como amigos", no escritório, e é animador.

Freud contou que a libido sexual reprimida voltava-se a objetivos culturais. Mas negócios excitam. Homens arrojados são excitadíssimos e excitantes. Eles assim o são enquanto são homens arrojados. Em casa eles não funcionam. O negócio virou o tesão deles.

Eventualmente o ex-casal faz sexo no escritório. Isso tem nada a ver com o sexo que eles fazem com seus novos namorados. Este segue aquela lógica neurótica da busca por satisfazer um pouco a necessidade, parecendo que se a está satisfazendo muito, por causa da promessa, que paira no ar, de um grande gozo vindouro. O homem e a mulher arrojados, por sua vez, estão gozando já a sua grande parceria, e o gozo do desenvolvimento do negócio será fortíssimo, mas tão bom quanto o de hoje. Às vezes não precisa ocorrer sexo: o gosto do sucesso parece melhor do que tudo.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Vamos para as próximas questões




Em um programa de TV que apresentava em 2013 e 2014, Ronnie Von respondia às dúvidas dos leitores. Um vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=HdB0iJhWIQc) deste programa, que circulou bastante na internet e foi muito comentado, mostra Ronnie lendo a pergunta de um jovem: tenho 26 anos. Há uns dias estive numa festa, e conheci um outro rapaz. Desde então, não consigo tirá-lo da minha cabeça. Isso significa que sou gay? Ronnie Von simplesmente responde "significa".

A uma primeira vista, esperaríamos uma resposta mais longa, com uma explicação do porquê a situação descrita indica que o rapaz seja gay. E pareceria frio da parte do Ronnie que ele não tenha se alongado. Bem, essa explicação mais longa poderia ter sido dada. Mas Ronnie não viu razão para isso. Se pensarmos bem, realmente não era necessário explicar. Ou melhor, foi ótimo que Ronnie não tenha explicado. Muitas vezes utilizamos explicações e perguntas quando algo nos parece estranho, mal-colocado, ou seja, quando achamos que o que estamos prestes a dizer causará incômodo no ouvinte.

Há um tempo não tenho visto comentários na internet sobre como um jovem faz para "sair do armário" ou "contar aos pais que é gay". E tenho visto os casais cada vez mais à vontade, em espaços públicos. Talvez essas perguntas tenham perdido o sentido. O que poderia ser um segredo, se fosse algo que não causasse nenhum estranhamento? Nada. Então, suponho, os jovens de hoje não mais estão "contando esse segredo". E, se é assim, ser gay não mais é algo que causa espanto e exige grandes explicações, como as que um pai pedia com a pergunta "onde foi que eu errei?".

Ronnie Von tornou-se conhecido no Brasil no fim dos 60 e início dos anos 70. Era uma época em que muitos artistas mostravam visuais diferentes do comum e liberação comportamental, principalmente sexual. Ronnie apresentava-se com um visual andrógino. Contudo, há uma separação entre o vanguardismo dos artistas e o que a sociedade mostra, com o seu comportamento. A convivência cotidiana com os gays tem momentos de tolerância, intolerância, atração, repúdio, interesse e agressão.

Ronnie, mostrou, com sua resposta seca, que a preocupação com o ser ou não gay é velha e cansativa, e que não há mais motivo para hesitação ou escândalo.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Menino-macaco, sem doer


Alguém que tenha sido discriminado por ser negro ou gay pode reclamar por punição legal contra o discriminador. Também pode fazer isto quem tenha conhecimento de situações de discriminação que vitimaram outras pessoas. Ambos são casos de pessoas que vivem no clima, apontado por Ghiraldelli (http://ghiraldelli.pro.br/menino-preto-e-macaco/), de existência de discriminação por racismo ou por homofobia (Ghiraldelli fala especificamente sobre o racismo), e de possibilidades legais de punição de quem os pratica.

Sob este clima, a sensibilidade está aflorada para as situações que possam ser interpretadas como sendo de discriminação. A situação em que o menino negro foi fantasiado de macaco pelo pai, para ambos saírem num bloco de carnaval, pode ser interpretada como sendo de discriminação por racismo, entendendo que vestir alguém de macaco é retirá-lo da imagem e semelhança com o homem. Mas também pode ser interpretada como um menino que foi tornado semelhante a um ser alegre, brincalhão, e que o fato de este menino ser negro é uma casualidade.

Esta segunda interpretação é possível, se nos atentamos para o relato do pai do menino (veja esse relato no próprio link para o texto do Ghiraldelli), dizendo que, num bloco carnavalesco posterior, ele vestiu o filho de Pequeno Príncipe. Ou seja, este homem não privilegia uma associação entre negro e macaco, podendo fazê-la tanto quanto faz outras associações. Pelo relato do pai, o menino é igualmente o seu Abu e o seu Pequeno Príncipe, ou seja, seu filho e seu rei.

O clima de punição à discriminação cria grupos que se formam pela vigilância contra esse comportamento. Sloterdijk explica a formação de grandes e coesos aglomerados de indivíduos através do elemento psicológico do stress: a sensação de ameaça de liberdade, no sentido antigo de quebra do ethos, leva a essa reação. O aspecto do ethos que foi ameaçado, para que indivíduos tenham se unido para combater o racismo e a homofobia, foi o da tolerância com a diferença.

Também formam-se, a partir desse clima, grupos de defensores e praticantes da discriminação: esse comportamento deixa de se ater ao cotidiano publicamente invisível e passa a ser apresentado em opiniões, principalmente em redes sociais. Essas pessoas reclamam pelo direito de expressão mas, menos abertamente, reclamam pela manutenção da inclinação da balança do poder social, que os favorece. Também há stress, no fundamento deste grupo.

Não sei dizer, aqui, se o grupo anti-discriminação é maior do que o pró-discriminação. Os argumentos anti-discriminação parecem mais desenvolvidos, e isso se dá por uma afluência acadêmica. Os pró-discriminação defendem errado o princípio da liberdade de expressão. Além disso, estes não põem todos os seus argumentos na mesa.

Mas, em nome justamente do favorecimento da tolerância social, o grupo que a defende precisa enxergar cada situação sem o óculos do dano e da raiva: cada cena pode receber diferentes interpretações, os atores dessas cenas podem ter intenções diferentes das que se costumam identificar ao grupo pró-discriminação, e pode não haver ninguém sendo discriminado, feito sofrer, ali.

Quanto mais um indivíduo conseguir limpar o próprio olhar do ódio, mais se destacará do grupo formado por causa desse sentimento psicopolítico (mas quem topa ter clareza com relação às coisas, distanciando-se do grupo?). Ele pode até eventualmente militar por essa causa, mas estará liberado para curtir histórias de macacos, tapetes mágicos e carnavais.

Livre para cuspir


"Lúcido" é um adjetivo que damos a velhos. "Ele não fala besteiras. Ele sabe o que faz, não precisa ir acompanhado nos lugares. Pode ser deixado sozinho. Pode ser deixado livre." Fazer uma caminhada, assistir à novela sozinho é considerado ser livre. O indivíduo se autodetermina. Não perguntamos se, em casa, ele segue o ethos, os hábitos e costumes do seu povo.

Dividimos os hábitos e costumes entre públicos e privados. O privado é o ambiente dos comportamentos opacos, fora do total conhecimento dos outros. Ao falarmos sobre eles, atemo-nos ao que é convencional. Mas nós mesmos não sabemos de tudo o que fazemos, não respondemos por nós mesmos a todo momento.

No livro "Stress and Freedom", Peter Sloterdijk conta uma antiga história relatada pelo historiador Tito Livio: em 509 a.C., um pequeno exército romano-etrusco estava na cidade de Ardea, a 35 km ao sul de Roma. Os oficiais falavam animadamente sobre suas mulheres. Colatino exalta a beleza e a virtude da sua Lucrécia. A fim de observar o comportamento das esposas, na ausência deles mesmos, os maridos, o grupo resolve voltar para Roma.

Lucrécia estava com suas serventes pessoais, tecendo fios. Sexto Tarquínio, filho do tirano Tarquínio, o Soberbo, entra na casa da bela e virtuosa mulher, levando consigo um escravo morto. Ele a obriga a cometer atos sexuais, ameaçando-a de dizer a todos que a flagara com o escravo. Tão logo se retira Sexto, Lucrécia chama pelo pai e o marido. Ela os faz jurar que se vingarão e, em seguida, mata a si mesma, para livrar-se da vergonha.

A notícia corre, e os romanos vão sendo atacados pelo ódio. Na assembleia, esse sentimento psicopolítico os faz unirem-se e legislar para que nunca mais se permita que um homem arrogante seja o chefe do corpo político romano. É o fim da monarquia. Essa antiga cena expõe uma certa ideia de ser livre: manter-se no ethos, ou seja, seguir a cultura onde se nasceu e cresceu e não sofrer ações que divirjam dela.

Em "O cão celestial", Cioran faz ver que Diógenes de Sinope, se quisesse, soltaria um cuspe na cara de um rico, seja ele tirano ou não. A educação, comportamento edulcorado, rebaixa o homem, o escraviza. Deixamos de ser homens à medida em que engolimos o cuspezinho cujo endereço era o chão ou a cara suja de um hipócrita. Em nome da liberdade, no sentido antigo, a res publica foi criada. O homem fica ridículo. No século XVIII, ele conhecerá outra liberdade.

Além das obrigações, do reconhecimento social, Rousseau livrou-se de si mesmo, e o reencontrou, ao flutuar no bucólico Lago Biel (esta é outra narrativa de "Stress and freedom", de Sloterdijk). Nada além de si mesmo, pura existência, sentida pelo genebrino ao deitar-se no pequeno barco e devanear, sem dar objetivo às suas ideias, deixando-as seguir seu fluxo próprio. Liberdade é estar completamente desconectado do mundo e das próprias intenções.

Civilizados, nossa vida transcorre mergulhada no ethos. O que fazer, com um cara que nos enoja? Decepções acumuladas, como lidar com elas? Rousseau sentiu-se atacado e não reconhecido por sua sociedade. Retirou-se para a ilha dos seus devaneios. A subjetividade emerge como o lugar da liberdade, sentir o oceano da própria alma. Uma visão realista diz ser preciso trabalhar para viver. E vive-se buscando garantir o ethos. Essa liberdade não é muto diferente de uma escravidão.

O homem tem necessidades diferentes do que estabelece para ele a polidez e o decoro. Rousseau reconheceu-se num certo si mesmo puro. Para Cioran, na rua o filósofo deve ser como a prostituta, aceitar tudo e recusar tudo. Recusar a si mesmo, estar ao gosto do cliente. O que interessa é fazer negócio. Isto é ter clareza das regras, usá-las ao próprio favor. Depois, no próprio quarto, o filósofo pode cuspir.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Vestimentas da vida nua


Fazer um curso superior. Trabalhar na área. Comprar aparelhos com tecnologia avançada. Viajar para mais ou menos longe. Financiar um carro. Fazer uma festa de casamento. Viajar para longe. Financiar uma casa. Viajar para longe. Pagar o curso superior de um filho. Trocar o carro. Sustentar o filho recém-formado, que não encontrou emprego em sua área. Viajar para longe.

A reprodução dessas atividades da classe média tem dependido dos pais. Os sonhos estão difíceis, conversa-se em casa. Mas não se acredita nisto, e segue-se em frente. O pai vai pagando as prestações.O dinheiro atinge o máximo da abstração com a futurização, nas prestações. O futuro existe como crédito no presente.

Outro doador de futuro é fazer campanha para um candidato a presidente da República. Os problemas da administração pública são muitos, há corrupção, e em poucos anos um líder competente e honesto consertará tudo. Ganha-se, como militante, mais alguns anos de vida. O homem quer apresentar-se como vida qualificada, bios, na acepção do filósofo italiano Giorgio Agamben (veja a explicação do Ghiraldelli, para as noções de bios e zoé, em Agamben: https://www.youtube.com/watch?v=SNbKMjftAmM).

O interesse do homem em esquecer a própria pequenez é atacado pela falta de crédito. Também são doenças deste homem o desemprego, por causa das faltas do governo, e os atentados dos inúmeros discriminadores e ladrões, na esquina. O alarme soado pelos militantes, no facebook, pelos programas de crime, na tv, e por outros, relembram-no que, na modernidade, sua condição essencial não é a de politizado, trabalhador ou consumidor, mas de zoé, vida pura e simples, vida nua.

Assinar a carteira ou iniciar um negócio, almejar a compra de um aparelho ou a realização de uma viagem, ou a escolha crítica de um candidato político são coisas que se diz serem boas, fiadoras para a postergação da decomposição da carne.

O homem corre contra a verdade sobre sua própria estatura. Busca relevância de qualquer forma, sendo um mendigo que clama, uma criança que quer ser amada, um jovem que quer ser um chato indispensável, um pai que faz promessas à sua família, um desempregado que vira dona de casa, um homem velho, com carreira, que viaja e se tecnologiza, e quer tecnologizar a família. Todos esses temem ser apagados.

A vida do grego antigo era a vida dos seus feitos. A vida do homem de hoje é a flutuação e a incerteza do sonho, como proteção da vida nua. O doente, o militante, o cidadão indignado são os gritos de quem teme que ela seja tocada.

P.s.: Neste texto inspirei-me em "O luto atarefado", de Cioran, constante em seu livro "Breviário da decomposição".