quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Vestimentas da vida nua


Fazer um curso superior. Trabalhar na área. Comprar aparelhos com tecnologia avançada. Viajar para mais ou menos longe. Financiar um carro. Fazer uma festa de casamento. Viajar para longe. Financiar uma casa. Viajar para longe. Pagar o curso superior de um filho. Trocar o carro. Sustentar o filho recém-formado, que não encontrou emprego em sua área. Viajar para longe.

A reprodução dessas atividades da classe média tem dependido dos pais. Os sonhos estão difíceis, conversa-se em casa. Mas não se acredita nisto, e segue-se em frente. O pai vai pagando as prestações.O dinheiro atinge o máximo da abstração com a futurização, nas prestações. O futuro existe como crédito no presente.

Outro doador de futuro é fazer campanha para um candidato a presidente da República. Os problemas da administração pública são muitos, há corrupção, e em poucos anos um líder competente e honesto consertará tudo. Ganha-se, como militante, mais alguns anos de vida. O homem quer apresentar-se como vida qualificada, bios, na acepção do filósofo italiano Giorgio Agamben (veja a explicação do Ghiraldelli, para as noções de bios e zoé, em Agamben: https://www.youtube.com/watch?v=SNbKMjftAmM).

O interesse do homem em esquecer a própria pequenez é atacado pela falta de crédito. Também são doenças deste homem o desemprego, por causa das faltas do governo, e os atentados dos inúmeros discriminadores e ladrões, na esquina. O alarme soado pelos militantes, no facebook, pelos programas de crime, na tv, e por outros, relembram-no que, na modernidade, sua condição essencial não é a de politizado, trabalhador ou consumidor, mas de zoé, vida pura e simples, vida nua.

Assinar a carteira ou iniciar um negócio, almejar a compra de um aparelho ou a realização de uma viagem, ou a escolha crítica de um candidato político são coisas que se diz serem boas, fiadoras para a postergação da decomposição da carne.

O homem corre contra a verdade sobre sua própria estatura. Busca relevância de qualquer forma, sendo um mendigo que clama, uma criança que quer ser amada, um jovem que quer ser um chato indispensável, um pai que faz promessas à sua família, um desempregado que vira dona de casa, um homem velho, com carreira, que viaja e se tecnologiza, e quer tecnologizar a família. Todos esses temem ser apagados.

A vida do grego antigo era a vida dos seus feitos. A vida do homem de hoje é a flutuação e a incerteza do sonho, como proteção da vida nua. O doente, o militante, o cidadão indignado são os gritos de quem teme que ela seja tocada.

P.s.: Neste texto inspirei-me em "O luto atarefado", de Cioran, constante em seu livro "Breviário da decomposição".

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