sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Literatura e mudança



"Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça. É ela menina, que vem e que passa. Num doce balanço, a caminho do mar." Os olhos de Vinicius seguiam os passos de Helô Pinheiro. Mas uma lírica não representa a realidade. Textos têm regras próprias. As intenções e as emoções de personagens existem no interior deles. Mas enquanto ouvimos esta música, paramos de ser quem somos, e olhamos Helô.

Quando Aquiles teve uma de suas mulheres tomada por Agamenon, encheu-se de cólera. Agamenon devolvera uma das próprias mulheres ao pai dela, sacerdote de Apolo, pois este havia pedido ao deus que se vingasse dos gregos. Agora ele queria que alguém do seu exército o recompensasse. Atena evitou que Aquiles usasse a espada para responder ao general. Aquiles retirou-se da guerra, desejando que o exército grego fosse massacrado pelos troianos, e amargasse a sua falta. O leitor se sente injustiçado, junto do grande guerreiro. Entrega a mulher a contragosto. Deseja que os outros sofram, por ter sofrido.

Fechado o livro, o cotidiano volta, a chamada realidade. Pega o carro, dirige bem, mas é fechado. O barbeiro xinga, e sai como se tivesse razão. O peito enche, dói, e exige uma reação urgente. Os membros ficam quentes e pesados, imediatamente prontos. O leitor sente-se Aquiles. Aprendeu com o herói, contudo, que a recompensa não precisa ser obtida agora, pois uma Ilíada inteira foi percorrida, à espera do momento de obtê-la. Enquanto lia sobre Aquiles, o leitor o vivia. Entendia o personagem. Depois voltou a si. Então, em uma situação de injustiça, pôde reconhecer o que sentia e se preparar para fazer.

Lemos um texto. Então sentimos seu espírito, o vivemos. Entendemos o lido, as nuances dos personagens, com profundidade. Voltamos ao cotidiano, em que cada um tem padrões de entendimento e de conduta para si mesmo e as coisas do mundo. Então ocorre uma situação cuja vivência se assemelha à do texto, a faz ser recordada. "Epa, estou começando a agir feito Aquiles." "Hum, olha como ela passa, a caminho do mar...".

Mas o texto, trazido para o cotidiano, também funciona como metáfora, no sentido que Richard Rorty dá a esta palavra. No cotidiano, a peça literária não tem uso prático além da ludicidade. Com o uso, porém, a frase estranha parece combinar bem com certa situação ou emoção. Quando, no Tom & Jerry, Tom recebe uma pancada, ouvimos "Pow!". Quando, na escola, um coleguinha cai da cadeira, a criança grita "pow!". De que outra forma ela se relacionaria com a cena? Logo ela se preocupará com a criança caída. Mas, no primeiro momento após a queda, "Pow!" é o que de melhor pode ser dito. E até ajuda a medir a gravidade do ocorrido, e chamar por cuidados.

Muito se diz que a leitura deve ser estimulada para todos, principalmente para as crianças. E que se deve ler muito. A criança que só quer saber de vídeo-game, o jovem que só quer zoar, são considerados impulsivos, e convidados a ler livros. De um pedreiro frequentemente se diz que é bruto na expressão das suas emoções. Não tem refinamento de linguagem verbal e não-verbal. Ele precisaria ser educado, aprender a curtir obras de arte. Então ele será mais sensível, o que inclui sentir e expressar que sentiu mas, ao mesmo tempo, sua sensibilidade estará sob controle. Estas posições são tributárias da noção de que a razão deve controlar a emoção, inseri-la numa gramática de sensibilidade.

Nossa expressividade, ideias e emoções foram adquiridas, modificadas e abandonadas, no manejo que temos de nós mesmos e das situações por que passamos. Alguém que pareça "chucro", ou seja, bruto nas emoções, e de vocabulário e gestos grosseiros, na verdade opera com razão e emoção bem coordenadas, e atendendo às suas necessidades e sentidos. E participaram da formação deste homem músicas, filmes, textos, falas, dos quais ele pinçou elementos e os trouxe para seu cotidiano, primeiro como ludicidade, depois, descobrindo uma adequação, como uso, engenho. Sugerir que ele leia um grande livro não é salvá-lo de algo tal como uma insuficiência da razão. Razão não é algo que alguém possa desenvolver depois de que tudo o mais foi desenvolvido. Ela vem junto do homem integral.

As frases, sons, ações, etc, de um bom livro, são trazidos para a vida como metáforas, frases desprovidas de sentido, que não visam representar nada. O uso, contudo, torna-as "candidatas ao valor de verdade", como diz Rorty, ou seja, elementos de dianteira na descrição de certos fatos, redescrevendo-os. Assim, os parâmetros objetivos para a formulação das nossas redes de crenças e desejos mudam, e fazem estes mudar.

Razão, aqui, é tomada como alguma coisa que produz entendimento para um texto lido e vivido, também para o si mesmo e o mundo, cotidianos, e para aonde, neste cotidiano, as metáforas oriundas de textos e artes, em geral, estão alterando as verdades e forçando mudanças nas crenças e desejos.

Espaços novos freudianos



Em 1896, Richard Von Krafft-Ebing, especialista em psicopatologia sexual, presidia uma mesa com este tema, em uma associação de psiquiatria e neurologia. A conferência "A etiologia da histeria" fora apresentada pelo Dr. Sigmund Freud. Tendo reunido a investigação de dezoito casos de histeria, Freud podia assegurar que a etiologia dela era um trauma sexual sofrido pelos pacientes quando em idade pré-pubere, sexualmente imaturos. Estes abusos sexuais haviam sido perpetrados por pessoas próximas das crianças, muitas vezes o pai.

A plateia mostra-se cética. A Krafft-Ebing, "parece um conto de fadas científico". De modo geral, os pacientes histéricos de Freud, durante a hipnose ou não, e após certo tempo de acompanhamento, relatavam-lhe cenas de abuso ocorridas em uma idade em que não possuíam condições de entender. Na explicação freudiana da histeria, um certo acontecimento mais recente se articulara ao antigo trauma, inconsciente, fazendo com que a intensidade psíquica deste fosse para o membro ou parte do corpo com participação importante na cena antiga, fazendo com que neste membro ou parte do corpo se formasse um sintoma histérico, físico.

Freud ouvia seus pacientes, e descrevia essa história psíquica da doença, referindo-se a um fato ocorrido com eles. No entanto, Freud começaria a perceber as contradições desta teoria. O casos de histeria eram numerosos. Se para cada um deles tivesse ocorrido um abuso sexual, e considerando que nem todo abuso resultava em histeria, então deveria haver uma infinidade de abusos ocorrendo nas casas e outros lugares fechados. E isso não era provável.

O próprio pai de Freud, Jacob Freud, foi repensado, em suas considerações: quando Freud era criança, o pai tivera o casaco jogado na lama por um antagonista dos judeus, na Viena, em que eles habitavam. Docilmente, Jacob abaixa-se e apanha o próprio casaco. Freud desenvolve um espírito de enfrentamento, em tenra idade, dos seus opositores anti-sionistas e, quando adulto, dos desaprovadores de suas ideias. Cada crítica era recebida com ódio. Freud agarrava-se aos relatos dos seus pacientes, para provar suas teorias. Acabou fazendo uma leitura por demais literal, deles. A recusa do próprio pai o fizera acusar os pais, em geral: ele perceberá isto na auto-análise que empreendeu nos anos 1890. Jacob estava longe de ser um abusador, Freud bem sabia.

A verdade da histeria em fatos ocorridos no passado, tal como Freud descreveu, também naquela conferência, como um desencavamento, limpeza e análise de pedras, começa a não ser satisfatória como explicação geral. Freud começa a aceitar que "não há marcas de realidade no inconsciente", nem há como distinguir entre a verdade de um lado e, de outro, a ficção emocionalmente carregada".

As falas dos pacientes podiam, sim, vez ou outra relatar abusos reais. Mas também podiam ser contos de fada, em relação aos quais deve-se procurar o sentido, não acreditar literalmente. Este passo de Freud foi um caminho para a consideração da imaginação, ou da autonomia da vida psíquica, entendendo que um relato pode corresponder a uma fabulação, e não a um fato. Não se tratava mais de focar a atenção no desvendamento de coisas realmente acontecidas, mas de decifrar enigmas psicológicos.

Trazendo o filósofo americano Richard Rorty, podemos dizer que Freud redescreve o sentido de psiquismo: ele não mais é entendido como um aparelho produtor e armazenador de representações da realidade, às quais deve-se olhar para se conhecer a verdade da realidade e do psiquismo, mas algo que pensa de uma outra forma, livre da lógica consciente. Freud neurologista quisera demonstrar verdades sobre a histeria e sobre abusos, a partir da fala dos pacientes. Freud psicólogo viu nos sonhos, chistes e atos falhos produções totalmente novas, inesperadas, que riam das tentativas de explicá-las por meios de outros fatos.

Era necessário cavar, usando os sinais e sintomas como pistas, mas para encontrar não-se-sabe-o-que, que é o universo inconsciente. O inconsciente se apresentará, anos depois, na psicanálise, como algo que desafia "verdades por demonstração". E que também não se oferece a que se diga uma verdade sobre a realidade dele. O inconsciente será uma coisa, um algo que imporá sua presença, cotidianamente, situado fora da dialética com a consciência e a realidade. Apresentará um outro funcionamento que, se o analista e o paciente conseguirem descrever, poderá ser apresentado para o eu como um texto novo, palavras novas, sobre ele mesmo.

A psicanálise foi a aventura de Freud, tanto em sua análise pessoal como na dos seus pacientes, por espaços novos. Ele foi para onde seus críticos, os médicos de sua época, não mais o alcançariam. Apenas ele e seus pacientes estariam lá, para fazer romances que os levariam a palavras e enredos novos para eles mesmos, e para a psicologia.



Thiago Ricardo, psicanalista


Referências

Peter Gay: Freud, uma vida para o nosso tempo. Companhia das Letras.
Paulo Ghiraldelli Jr.: Richard Rorty: a filosofia do mundo novo, em busca de mundos novos. Vozes.

P.s.: Reproduzo aqui uma parte do texto "Verdade e liberdade: uma réplica a Thomas McCarthy", de Richard Rorty, constante no livro do Paulo Ghiraldelli. Foi um trecho que me inspirou particularmente, para o que escrevi acima:

"(citando Milan Kundera)
"A erudição de Rabelais, grande como ele, tinha um sentido diferente da de Descartes. A sabedoria do romance é diferente da sabedoria da filosofia. O romance não nasceu do espírito teórico, mas do espírito do humor. Uma das maiores falhas da Europa é que ela nunca entendeu a mais européia das artes - o romance; nem seu espírito, nem seus grandes conhecimentos e descobertas, nem a autonomia de sua história. A arte inspirada pelo riso de Deus não serve, na natureza, às certezas ideológicas, ela as contradiz. Tal como Penélope, ela desfaz cada noite o tapete que os teólogos, filósofos e professores ensinaram os homens a tecer durante do dia."

Este desfazer é efetuado pela redescrição, oferecendo um vocabulário para falar de algumas pessoas, situações ou eventos específicos que atravessam o vocabulário que temos até então utilizado em nossas deliberações morais e políticas (e psicológicas, insiro eu, Thiago). O romance não oferece um argumento dentro do mesmo espaço dialético que previamente ocupamos, mas oferece antes um vislumbre de outros espaços. O desejo de redescrever, cultivado pela leitura dos romances, é diferente do desejo de demonstrar, cultivado pelas leituras metafísicas." (Ghiraldelli, pags. 107 e 108)

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Lógica da morte



Seres que antes não considerávamos "um de nós", hoje consideramos. Isso tem avançado com o boi e o porco. Pode acontecer com o embrião humano imaturo. No entanto, nossa sensibilidade geral é anti-aborto. Um feto já é considerado um de nós. O impulso pró-aborto busca, então, delimitar um momento entre a concepção e o que se considera o início da vida humana (a atividade cerebral), e o que se encontra em desenvolvimento, no interior deste momento, seria algo possível de ser eliminado.

Em outras palavras: entre uma ação, intencional ou não, que resultou na concepção, e o feto humano reconhecível por ultrassom, que impõe exigências a todos que têm a ver com ele, ou ainda, entre um momento de mais condições para a decisão, e outro com restrições nas possibilidades de decisão, criou-se um momento em que pode-se intervir. É como se as pessoas envolvidas com o feto tivessem uma última chance de intervir sobre seus destinos, e pudessem empregar todos os meios para isso. A atenção que faltou, momentos antes da concepção, torna-se super-aguçada na lida com o embrião humano imaturo.

A liberdade apresenta-se como um grande valor mas, uma pessoa que pede por ela, não raro desconsidera os seus parâmetros. É liberdade em relação a tudo? Em relação a coisas específicas? Liberdade, para ter sentido, precisa ser uma busca baseada nas condições atuais de um indivíduo: o saber que ele possui, as coordenadas geográfico-históricas onde ele habita, e o espaço de intimidade em que ele se fez em condições de ser sujeito, darão um leque de possibilidades de ação. E dificultarão outras. Liberdade é reconhecer esses fatores de onde se parte, e então decidir o que fazer. Não é o desligamento total de tudo: alguém assim ou é uma lufada de ar, ou é psicótico que, no corte com o mundo, aferrou-se a um delírio que ele mesmo produziu.

Ter um filho traz uma série de exigências, desde a gestação. Homens, mulheres, de todas as idades e funções familiares têm seus afazeres e preparo. E esse processo é curtido por todos. As posições pró-aborto consideram as exigências de uma gestação como se abatendo apenas sobre a gestante. Sim, há muitos e muitos casos de mulheres que se encontram só, durante a gravidez. Mas o certo não seria que elas tivessem um acompanhamento, um acolhimento, ao invés de uma autorização para interromperem uma gravidez, caso não a queiram, e continuem seguindo sozinhas, no "meu corpo, minhas regras"? Poderíamos pedir uma política de maior atenção às gestantes.

As exigências decorrentes de uma gravidez parecem ameaçar os que querem liberdade a todo custo, inclusive ao custo da eliminação das relações e dos compromissos que os constituiu, e eles estão indo ferozes em cima do embrião. Recusam-se a ver outro modo de lidar com uma gravidez indesejada. Estão agindo sob a lógica da morte, da eliminação da ameaça à "liberdade total", abstrata. Essas pessoas nunca serão livres, pois são justamente as que não sossegam, não param de criar grilhões contra os quais lutar. Nunca estão em paz.

Os motivos da militância



Em 2013, eu e uns amigos fomos a uma das grandes manifestações ocorridas naquele ano. Levamos um cartaz em que se lia "Pelo direito de fazer sexo com a Dilma". Nossa justificativa partia do entendimento que tivemos, de que, naquelas manifestações, não havia uma grande bandeira, seja estudantil, racial, sexual, partidária, etc. Na rua reuniram-se milhares de indivíduos com liberdade de falar o que queriam e, a partir disto, lançavam demandas políticas. O clima parecia favorável a que todos pedissem os direitos que queriam pedir.

Eu e meus amigos quisemos pedir um direito do qual não tínhamos necessidade - "fazer sexo com a Dilma" -, pois a necessidade era de pedir direitos. Era como se ali se iniciasse uma era em que todos poderiam inventar o que queriam, indo além do querer o que necessitavam. Sim, havia grupos com reivindicações ligadas a necessidades deles próprios, ou de outras pessoas. Um grupo grande era do Colégio Pedro II, com gritos que expressavam interesses particulares deles, mas também com gritos que expressavam a curtição do poder manifestar-se na rua.

Após o fim dessas grandes manifestações, houve quem dissesse que elas não mudaram nada, na relação da sociedade com a política. Mas os efeitos de um evento, envolva muita ou pouca gente, se desdobram de uma forma que ninguém pode observar ou prever. Em 2013, descobrimos que podíamos pedir direitos. Eu e meus amigos descobrimos que, na verdade, não precisávamos pedir algo que nos fosse necessário. Fizemos isto, repito, pela descoberta de que se podia pedir. Esse momento passou.

Atualmente há, na internet, uma forte militância a favor da descriminalização do aborto. Homens e mulheres, de várias idades, dizem que se deve salvar a vida das muitas mulheres que fazem abortos clandestinamente, e estão morrendo em clínicas assemelhadas a açougues. É um motivo que, obviamente, considero justo. Ao lado desse benefício, estes militantes dizem não existir o malefício de se estar matando uma outra vida humana, a que seria do feto. Argumentam que quando um feto humano encontra-se abaixo de certo nível de desenvolvimento, não possui atividade cerebral e que, portanto, ainda não é uma vida humana.

O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. vem apontando, em vários textos (leia, por exemplo, esse http://ghiraldelli.pro.br/maria-rita-kehl-e-o-aborto-nosso-de-cada-dia/), o problema de se defender a descriminalização do aborto com base no argumento da imaturidade do embrião: o critério com que opera a medicina, para estabelecer o início da vida, pode mudar, à medida em que avançarem as pesquisas em biomedicina e anatomia. A militância pela descriminalização do aborto baseia-se numa concepção científico-metafísica, para dizer o que é a vida humana. Desconsidera que não há mais fundamentos metafísicos para os saberes, e sim perspectivas, e que a própria ciência modifica seus parâmetros.

Considero o argumento da imaturidade e, portanto, da exclusão do feto da humanidade, uma racionalização nossa contra algo que nos sensibiliza demais, que é a morte de bebês.

Mas o maior problema da militância pró-descriminalização, também apontando pelo Paulo, é filosófico e político: mesmo que o embrião imaturo não seja considerado uma vida humana, ele ainda não é uma vida e, portanto, não é melhor que seja salva? Foi o principal objetivo, sonho, do filósofo americano Richard Rorty a diminuição da crueldade dos mais fortes contra os mais fracos. A mulher é fraca, em comparação com o homem. Ela precisa ser defendida por leis especiais e mudança de alguns comportamentos. Mas o feto, humano ou não, também precisa ser defendido.

Como alternativa à descriminalização do aborto, Paulo sugere uma política de doação de bebês ainda em gestação, como ocorre em outros países. Já eu, sugiro uma política que condicione o aborto a um intenso acompanhamento psicológico e de assistência social para a gestante, em que se observaria se a interrupção da gestação é o real interesse dela, ou se ela está de alguma forma sendo coagida por conflito psicológico, necessidade material ou algum outro fator. E a gestante receberia toda a ajuda de que necessitasse, para encaminhar a decisão que ela tomar a partir desse acompanhamento. Paulo e eu queremos lutar contra aquilo que o Papa Francisco vem chamando de "cultura do descarte".

Mas, esta foi uma longa digressão. Voltemos ao tema do pedido de direitos. Se em 2013 houve os que puderam pedir o que lhes era necessário, e alguns sacaram que o necessário era justamente pedir e, portanto, podia-se pedir quaisquer direitos, esta militância pró-descriminalização do aborto, a meu ver, pede por algo que não é necessário para as pessoas que pedem. Imagine uma pessoa que integre essa militância (pode ser você mesmo): você acha que ela gostaria de fazer um aborto? Você acha que ela alguma vez pensou que isto seria algo bom para ela fazer, na vida dela? Posso ser demasiado otimista, mas por eu considerar o aborto algo ruim, uma cessão triste de uma vida (humana, no sentido de que tem tudo a ver com o homem), imagino que a maioria das pessoas, mesmo os pró-aborto, também o consideram ruim e triste. Então porque eles militam?

Além do motivo justo, por salvar vida de mulheres, e do motivo injusto, matar fetos, a militância parece se motivar por uma necessidade de pedir direitos, mas uma necessidade de estranho tipo. Não é uma reivindicação que corresponda a uma necessidade do indivíduo que os reivindica (ou do grupo com quem o reivindicador se identifica). Tudo bem, fizemos isso em 2013, de inventar reivindicações. Mas eu e meus amigos percebemos que o fazíamos, assim como outros indivíduos, na manifestação, também brincaram (a brincadeira necessária) de pedir coisas. Era um exercício pela liberdade, amparado por uma certa ideia de liberdade e política.

Os que pedem pela descriminalização abraçam esta bandeira como uma identidade pronta para usar, e que os reúne numa coletividade. Buscam, portanto, um certo senso de realidade e de si mesmos. E neste senso é importante a ideia do "pedir pelo pedir", que não tem nada a ver com a necessidade de ter a liberdade de pedir: "pedir pelo pedir" é o que faz aquele que vive em busca por aderir a causas que mobilizem a sociedade, que sejam comentadas por muitas pessoas. Ele não tem exatamente necessidade da liberdade de pedir, mas quer um sentido já dado, para a sua vida.

Estamos em uma época de muitas reivindicações, e muitas conquistas de direitos. Isto sem dúvida expressa clamores legítimos, e tem melhorado a vida de muitos indivíduos. Mas tem existido entre nós a ideia de que ser um indivíduo é ter uma bandeira, é colocar politicamente todas as suas questões pessoais. Talvez por que estejamos sem boa educação, e nos falte riqueza na conversa subjetiva, os modelos sociais para nos olharmos a nós mesmos, os espelhos, têm ganho esta preeminência.

Este texto, enfim, foi para você olhar sinceramente para os motivos da sua militância. Ou a do outro.

Estereótipo é ruim?


Ontem reparei que minha filha assistia à novela Chiquititas. Hoje perguntei a ela se a história também se passava em uma escola, como a da novela Carrossel, que recentemente ela acabou de assistir. Era num orfanato, ela disse. Ao ouvir isto, me adiantei e contei que as crianças do orfanato não têm família, e complementei dizendo que isso era triste. Ela falou que não era triste pois, na novela, elas formam uma família, junto com as pessoas que cuidam delas.

Minha fala baseou-se no estereótipo de que crianças em orfanatos não têm família, e que por isso são tristes. Geralmente, quando, em uma conversa, estou explicando algo, e à cabeça me vem um estereótipo, um encadeamento de ideias que, socialmente, vêm atreladas a uma palavra ou imagem, procuro pensar no que é particular do caso sobre o qual se está falando, e que escapa às ideias do estereótipo.

Quando falei o estereótipo para a minha filha, sobre o orfanato e as suas crianças, rapidamente ela me apresentou ideias que não eram as do estereótipo. Quer dizer, quando não sou eu que faço o trabalho de ver o que o estereótipo não dá conta e, ao invés disso, solto-o numa conversa, a outra pessoa, que está atenta ao caso, portanto sabe as suas particularidades, é quem diz o que está além do estereótipo.

Jean Willys, uma vez, comentando o seriado Sexo e as Nega, da Globo, não falou o lugar comum de que o estereótipo é ruim pois, quando é utilizado para se referir a um caso, é desatento à sua particularidade. O deputado disse que estereótipo tem função comunicativa, é a transmissão de uma ideia que é facilmente entendida pelo destinatário. Após esse primeiro entendimento, ideias novas podem ser apresentadas na conversa. O estereótipo não precisa se perpetuar.

Sexo e as Nega apresentava mulheres negras moradoras da favela, que trabalhavam e gostavam de sair e se divertir. Às vezes faziam sexo casual. Houve reclamação de que isto era o estereótipo da mulher negra. Claro que é estereótipo! Mas, uma vez estabelecido que as histórias se passariam com personagens com aquelas características, o desenrolar das situações levavam-nas para outros caminhos, e a expor características diferentes.

Uma história pode partir do que nos é familiar (e o familiar são ideias assentadas que levamos conosco e aplicamos para entender as situações por que passamos. O familiar tem todo o funcionamento do estereotípico), mas, se for uma boa historia, nos levará a viver outras coisas.

Estamos sendo capazes de não pararmos no estereótipo, e de sermos bons leitores para boas histórias?

Aquele que mata e aquele que ama



Alimentar-se do fruto proibido foi, para Adão, não uma maldade. Ele não conhecia o bem e o mal. Na análise do Paulo Ghiraldelli Jr (http://ghiraldelli.pro.br/a-biblia/), o feito de Adão foi uma desobediência a Deus. No paraíso, o homem e os animais alimentavam-se do fruto das árvores. Não havia derramamento de sangue. Mais adiante, no Êxodo, veremos que Deus põe-se como o libertador do povo, que fora escolhido por ele, da escravidão no Egito. A Moisés, no deserto, ele transmite as leis que deverão reger a vida da nova sociedade, de modo a que novas situações de escravidão não fossem criadas. O homem pode ser conhecedor do bem e do mal, mas deve obedecer as leis de Deus, para que não volte a criar um novo faraó, um novo Egito.

Na industria de produção de carne (branca ou vermelha, não importa), os cruzamentos de indivíduos, as características de embriões, os processos de nascimento e criação, os sistemas de transporte e os métodos de abate são pensados de modo a que a carne seja produzida de foma mais rápida, barata e rentável. Cada indivíduo que está dentro desta cadeia já nasce sendo pensado como o recheio de uma embalagem, vendido esquartejado e aos bifes. Cada vida é pensada como algo a ser conduzido por esse processo de produção, até a embalagem para a venda. Então não é propriamente uma vida, mas um objeto no qual o destino se rebate em cada etapa do seu desenvolvimento, significando-o.

Um boi foge dessa cadeia. Um funcionário o mata com tiros na cabeça (http://g1.globo.com/sao-paulo/sao-jose-do-rio-preto-aracatuba/noticia/2015/11/boi-escapa-de-frigorifico-e-acaba-sacrificado-por-policiais-em-andradina.html), pois assim a sua retirada da rua será mais fácil. O funcionário obedece à cadeia de produção da carne. O mal não é fruto de uma entidade, mas é o que se vive num mundo infernal criado pelo homem. Infernal porque é o da escravização dos seres: escravizamos animais, escravizamos homens. Na encíclica Laudato Si, Papa Francisco conta que o uso predatório dos recursos naturais, pelo homem, degrada não só a natureza, como o próprio homem. A natureza é a mãe, a criadora dele, e ele precisa agir como está posto no Gênesis: ser não só um utilizador, mas um guardão do solo e da vida que está sobre ele. Deus funciona, aqui, como uma direção a ser olhada pelo homem para que ele tenha consciência, ou seja, para que ele lance uma ideia e tenha uma resposta, e continue conversando sobre o que fazer, aproximando, então, a obediência do fazer o bem.

Hannah Arendt mostrou que o mal é uma realização de funcionários eficientes, obedientes a seus superiores, cumpridores de suas tarefas. O general nazista Eichmann, em seu julgamento, mostrou-se não brilhante a ponto de que pudesse afastar-se das ordens de seus superiores, e de tudo o que ocorria a seu redor, e talvez fazer uma crítica, ver o erro do campos de concentração. O mal foi feito sem a consciência do mal, mas por simples, inconsciente, obediência.

Os funcionários da carne (incluindo os consumidores) desconhecem o boi, o que ele faz quando está num pasto. Nunca enfrentaram a agilidade de uma galinha, ao tentar apanhá-la. Talvez tenham visto o filme Babe e considerado criar um porquinho no lugar de um cachorrinho. O funcionário da carne é um personagem que desconhece isso tudo. Esse personagem pode existir no mesmo indivíduo em que habita o personagem que se intriga com os animais vivos. O primeiro personagem não entra em conflito cm o segundo, pois o segundo não impede a continuidade do primeiro. É que a carne nunca foi viva, para quem mata e come os animais. Este personagem retira da carne toda as qualidades do vivo que, nas considerações de quem gosta dos bichos, recaem sobre aqueles a quem achamos que podem lhe divertir, emocionar ou amar. O ser que está na cadeia da carne, por nunca ter estado vivo, é totalmente diferente do bicho que é considerado fofinho.

Há uma parte nossa que deixamos correr sem consciência, obediente e fazedora do mal. E há uma parte nossa que, no trabalho da consciência, olha para qualquer ser, inclusive os animais, e vê algo importante neles. Algo que fala à própria pessoa que vê.

O homem que atirou no boi, no momento em que fazia isto, não viu um boi. Não viu o boi que veria numa visita à fazenda. Viu uma embalagem de bife que fugiu. A nossa parte sem consciência assim o é por não ver o que está à sua frente - um boi andando -, e por não ver a si mesmo - alguém que gosta dos bois que vê pastando, quando visita uma fazenda. Ele está apartado tanto do empírico quanto a própria experiência. Naquele momento, ele obedece a um processo, e não tem qualquer consciência.

Larga deu!


Porque ser copiado é ruim? Imagine alguém fazendo tudo igualzinho a você. Igualzinho mesmo. Não te pareceria que você tem dois corpos, ao invés de um, mesmo que a pessoa assine o que fez usando outro nome? Um problema será se justamente essa pessoa não te copiar com exatidão. Ela te misturar com coisas ruins. Neste caso, então, o problema de ser copiado é o de ser copiado insuficientemente. Caso a cópia fosse idêntica, e você pudesse acompanhar de perto os passos do copiador, você se sentiria agindo em dois corpos (como eu já falei), como se fosse um deus. Você o controla!

Mas você se controla? Se você reparar, uma infinidade de coisas passam pela sua cabeça, sem controle. Consciência pode ser co-ciência, tomar ciência junto, a mesma ideia estar no eu e no mim mesmo, e eles até apertam a mão. Consciência também pode ser uma mediadora entre eu e a realidade, saber diferenciar o que está em mim do que não está. No festival de coisas da minha cabeça, vem a consciência, pegar um desses elementos para ver o que o si mesmo acha dela, e o que eu acho dela. Ou fazer isso com as ideias decantadas no meu eu. O pensamento é o desenvolvimento da ideia nesse trabalho de envia pra lá, envia pra cá, que é a consciência. Esse trabalho é feito entre eu e mim mesmo, entre eu e um amigo, entre eu e um papel, etc.

O que chamo de eu é o que vou retirando, desses momentos de pensamento, do que digo que são ideias, acontecimentos, emoções, etc, que dizem respeito a mim. O eu é um personagem, e o repito, copio a mim mesmo, quando quero agir de forma segura, pois vou no que já me sei agindo. "Como vou fazer esse texto para a faculdade? Estudei, então vou escrever o que aprendi. É só fazer isso." Sinto-me seguro. Mas, na escrita, como ela é relação eu-papel, algo diferente surge. Não consigo me imitar completamente. A conversa leva a algo novo.

Uso o eu como uma baliza, no meio das muitas coisas que passam por mim. Uso-o para me encorajar na situação em que terei que conversar com o papel, pois ela propicia ideias novas. O medo de quem faz um texto para a faculdade pode não ser o de lhe faltar as ideias certas, mas o de não saber se as ideias novas que surgirem podem ser consideradas adequadas. O eu é uma baliza, mas ocorre o que lhe escapa. Ocorre em conversas, e estou referindo-me à relação que antecede o eu, inspirando-me em Peter Sloterdijk. Posso, também, trazer Lacan para dizer que minha fala se insere na linguagem, que é muito maior do que eu, determinando-me e fazendo ideias me atravessarem. Então o eu não é o deus de si mesmo, embora eu conte com ele toda vez em que vou me concentrar minimamente para fazer algo, e eu recomende o eu de uma pessoa para ela mesma, quando ela fará algo.

Ao copiador dizemos para ele copiar a si mesmo. Não, dizemos para ele ser original. Cada um deve conduzir o seu eu à situação de conversa, em que elementos armazenados nele entrarão no bate-rebate da reflexão, seja como si mesmo, seja com o amigo ou o papel, e novas ideias surgirão. Esse exercício faz surgir ideias novas. Os gregos antigos ouviam a Ilíada e a Odisseia. Inspiravam-se nos grandes personagens, deuses e heróis. No inapreensível campo da linguagem, os personagens são as balizas para cada um agir ou pensar a si mesmo. Na tentativa de um grego em ser como Aquiles, ele excedia o herói. Levamos tão a sério o personagem que o exageramos. Se não o levamos a sério, sentimos que estamos aquém dele, não sendo realmente "Aquiles".

Agora entre nós, modernos, cada pessoa tem a sua referência para ser ela mesma - o eu particular. Não há modelos para todos. Cada um deve ter um eu, para apresentar a si mesmo e aos outros. E, como já falei aqui, para empregar nas situações de bate-rebate. Ou lacanianamente, para ter uma mínima delimitação do campo da linguagem. Por haver esse eu é que cobramos que cada um inspire-se na sua individualidade. Bem, pegando a noção de esfera, de Sloterdijk, diremos que primeiro há a relação, e dela emergem um eu, talvez também outro eu. Estes dois eus têm coisas em comum - a esfera, a intimidade, o "mundinho particular" - , mas são diferentes.

Cada um reinvindica para si mesmo a utilização do próprio eu. Mas caso um irmão me imite, ele que passou por muitas situações comigo, emergiu do mesmo ambiente, e é alguém a quem eu posso observar os passos, não ficarei tão puto quanto ficarei se um estranho me copiar. Afinal, ele emergiu de outra esfera, então se ele me copiar será totalmente ilegítimo e difícil de eu acompanhar. Mas me divertiria um amigo me contanto o que aconteceu quando ele agiu, à mesa de jantar, exatamente como eu faria. É a sensação de ser um deus. Mas me desagradaria se ele não me contasse, se eu sequer soubesse disso, ou se alguém pegasse um texto inteiro meu e mudasse o nome, sem que eu pudesse ver e me regozijar com a reação das pessoas.

A quem pergunta porque é ruim ser imitado, eu diria que o que pode haver de ruim é o imitador ter repetido o meu texto de tal modo que ele não o utilizou para conversar com o papel. Caso tivesse feito isso, teria a tal ponto pensado coisas que daria outro nome para o texto. Eu não quero ver o meu eu por aí, justamente porque não quero ver gente na mesmice, assim como me incomoda eu me repetir.

P.s.: Escrito a partir de uma conversa com Kelson JS.

O adulto e a criança (ou: o que é absurdo no caso do menino que quebrou a escola)



Um vídeo recentemente divulgado (http://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2015/10/mae-diz-que-vai-acionar-justica-contra-escola-onde-filho-foi-filmado.html) mostrou um garoto pondo abaixo uma sala de sua escola. Os funcionários olhavam, alguns se aproximavam e puxavam-no, ao que a pessoa que filmava dizia para que o deixasse fazer o que quisesse, pois estava sendo filmado. Na internet, muitos disseram que punição física mudaria aquele comportamento.

O garoto ameaçava derrubar uma estante, sob o som de pedidos de socorro aos bombeiros. Antes de se falar em bombeiros, chegou-se a falar em polícia, mas deixaram esta ideia de lado, pois com ela ficaria por demais claro que os observadores, à medida em que se faziam observadores e gritadores, transformavam o menino em homem. Com um menino tenta-se falar, no limite, gritar ou puxar pelo braço. Contra um homem não se faz nada, só pedir socorro.

A escola está colapsada: não existe qualquer estrutura didática com pessoas fazendo bico como professores (a 9 reais a hora aula, é assim), não tendo qualificação para buscar um melhor emprego, fazendo a função de observar o banho de sol e o encarceramento de crianças e jovens. Crianças e jovens são largados, no interior da escola. Ninguém os assume, e eles reproduzem muito do que fazem na rua.

Meninos desenvolvem o senso de que, naquela socialização, eles devem ser "donos do pedaço", quer dizer, cada menino deve se apresentar não como responsável por si mesmo (o que já seria absurdo), mas como senhor territorial, dividindo esta função com outros integrantes de seus grupos, e apresentando, neste ambiente, uma atitude para que tudo ande conforme o que eles querem. Não há contraponto educativo para o que eles querem, o que lhes ensinaria a desenvolver a senhoria de si mesmos. Há o contraponto violento, mantido esfriado, mas com episódios quentes, de enfrentamento.

O respeito está todo com esses meninos, não com os adultos, incapacitados, que os assistem, como crianças. O abandono desses meninos na escola, nas ruas, em casa, o fato de não terem quem os assuma, os ame e deles exija coisas, é o que os deixa em situação de terem que ser homens. Os adultos, as verdadeiras crianças nesta história, chamam um pai punitivo: o pai da criança e o policial devem exercer extrema violência.

Os adultos viram a destruição do seu lugar de educadores. Nada elevado como a educação se apresenta mais à mão, como se a civilização tivesse acabado e precisasse ser reconstruída. Em nossa tribo ancestral, dita por Freud, os homens queriam matar uns aos outros e roubar suas mulheres. O indivíduo mais forte impedia a ocorrência disto, sob pena de morte. Os demais formaram um grupo que matou este mais forte, mas logo viram que se destruiriam mutuamente se se deixassem viver sem regulamentos sociais. Ergueram um totem, à imagem do líder morto, de onde se acreditava emanar esses regulamentos.

A lei que reprime a violência e a sexualidade desmedidas era observada por todos, e aplicada por indivíduos especialmente encarregados, e que não podem se exceder, não podem ser tiranos. Ninguém pode ser tirano, a punição deve ser bem aplicada. A aposta principal da nossa civilização é a educação. Se por ventura ela vai mal, ela é corrigida, não se chama a punição extra-escolar para ensinar o que é para ela ensinar. Até mesmo porque, punição extra-escolar não é educação, pois educação é direcionamento de impulsos, não simples repressão.

A fala "uma escola aberta é uma cadeia fechada" é fruto da ausência deste modelo civilizacional descrito por mim: no horizonte, o que se vê é antes a punição do que a educação. Este olhar é o que a sociedade-criança lança ao pobre, aquele que já nasce homem perigoso. Queremos que o governo cuide de tudo, como um pai em cujas mãos está a nossa segurança e encaminhamento. Conversar com ele a respeito desses assuntos, apresentar os próprios interesses e melhorá-lo, enquanto governo, está totalmente fora de alcance, para o povo-criança.

O fim da escola ocorre junto do fim da civilização.

Intimidade e privacidade


Intimidade é o que fazemos dentro do quarto. Privacidade, dentro do banheiro. O que faço na intimidade, quero mostrar para alguém, seja para o BBB, seja para a pessoa amada. Quero mostrar o que faço no quarto, seja sexo, sono ou experimentação de roupa, pois estas são ações em que vejo imprimida minha identidade. Tenho meu estilo sexual, meu jeito de dormir e meu gosto distribuído em cada peça de roupa. Considero meu desempenho, a forma com que sou cuidadoso, audacioso, enérgico ou sutil, em cada ação que compõe o sexo, o sono e o experimentar de roupa, digno de ser notado e elogiado. Aceitamos sugestões de melhora, lógico, vindas da pessoa amada.

No banheiro fazemos o que todos os homens, e os animais mais próximos, fazem, que é defecar e higiene pessoal. Não consideramos que estes hábitos possam ser compartilhados com outra pessoa. Consideramo-os primitivos e sujos. Bem, no sexo também exibimos animalidade e secreções mas, neste contexto, eles são isso mesmo, exibições. São intercorrências do sexo que aproveitamos para incrementá-lo.

O sujo e o baixo do homem no que é feito no banheiro, embora sejam tão cheios de cultura quanto é o sexo, são respostas a necessidades de descarte e limpeza. Quanto mais imperiosas são as necessidades, menos controle temos sobre elas, mais à mercê delas estamos. Em uma guerra, venceríamos se fizéssemos sexo com o comandante adversário ("a posição em que Napoleão perdeu a guerra" parece o único modo em que o encontraram vulnerável); não correríamos perigo ao dormir, que seria no mesmo horário dele; terrível seria sermos pegos de calças curtas, tropeçando e nos sujando.

Um amor verdadeiro quer ver seu strip no quarto e a cueca que você escolheu, mas te deixa em paz quando você vai ao banheiro. Ele nem pensa no que você faz lá, pois te preserva.

Peter Gay, no prefácio da biografia de Freud, de sua autoria, conta que o biografado fez de tudo para destruir o material que poderia oferecer a futuros biógrafos seus. Os biógrafos deveriam se esforçar para adentrar a intimidade do grande mestre da intimidade do homem. Ninguém mais senão Freud poderia fazer a análise de Freud, conhecer sua intimidade.

Freud, no entanto, se sabia um importantíssimo homem, inevitável personagem de futuros escritos. Desejava este reconhecimento, embora tardio. O preço, porém, era que tivesse seus rastros farejados. Fotos, cartas de amor, papéis amassados, elementos íntimos jogados fora, marcas, enfim, das coisas que ele quis se livrar, dejetos, Anna Freud os pegou do lixo e mostrou ao mundo.

Freud não está mais disponível para mostrar ou não sua intimidade. Então o que lhe é privado tornou-se público, à sua revelia.

O desempenho


Não é porque ela finge, que não está gostando. É uma preocupação do homem se ele satisfaz a mulher. Ele acha que, com isso, aplaca temporariamente o desejo dela. Se ela finge com ele, não está sentindo prazer, e pode buscar isso com outras pessoas, pensa o homem. Ou, ele também pode pensar, o fingimento é um incentivo para que ele continue, não significando que a mulher dele vá procurar outros homens. A constatação disso, pelo homem, aumenta a sua libido.

Fingindo ou não, a mulher pode estar gostando. E o homem tem o costume de tomá-la como medidor da própria potência. É também por isto que o incomoda o fingimento: o atestado do seu desempenho deve ser confiável. O homem precisa confiar em si mesmo e, para isso, ele olha para a carteira, o carro, o tamanho do pênis, o desempenho sexual, a proximidade que ele tem dos interesses masculinos e o distanciamento que tem dos interesses femininos. Essas coisas todas podem faltar, exceto o desempenho sexual, o atletismo.

A mulher quer que o homem dela sinta o prazer até o fim. O prazer vem com a descarga completa da excitação, cujo acúmulo causa desprazer. O objeto amado será o que proporciona isso, como foi dito por Freud. Homens e mulheres assumem para si a tarefa de descarregarem a excitação do outro, e serem, um para o outro, objeto de amor.

Quando se preocupa com o próprio desempenho, é em ser um "bom descarregador" que o homem tem na cabeça. Alguém que exaure a mulher que tem, tira momentaneamente a consciência dela, etc. A mulher que finge, que sempre esconde o que está sentindo, tira isso do homem. Ela pode estar pensando no prazer dele, mas ele nunca saberá se está havendo efetividade no próprio gasto de energia. Ele goza, mas está fazendo diferença para a mulher?

Cazuza se interessava por mentiras sinceras, mas parecia ser do tipo que uma leve correspondida o fazia se sentir muito potente. Ele tinha uma autoconfiança que eu e você não temos. Por isso imploramos pela chance de agradarmos. E pela verdade.

Será que com uma garota de programa, o homem se preocuparia apenas com o próprio prazer? Se pensarmos bem, o homem procurará ser o último homem, ao menos da noite, da garota de programa. Com ela, chegará ao máximo a busca dele por desempenho.

Esta busca, junto à mulher que ele ama, mas que, na procura por descarregar sua excitação, ele quer que o ame, está uma grande preocupação com o prazer dela, ao contrário do que pensa o senso comum: o homem que quer um grande desempenho no sexo é preocupadíssimo com o prazer da mulher.

Lendo Ilíada com jovens



No programa Hora da Coruja de 22 de setembro de 2015 (http://flixtv.com.br/tv/a-filosofia-no-curriculo-unico-do-mec-hora-da-coruja-flixtv/), o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. lê um trecho do livro “Morte Aparente no Pensamento”, do filósofo alemão contemporâneo Peter Sloterdijk. No trecho, aparece o filósofo Cícero, dizendo que em um mercado há três grupos humanos: os mercadores, que para lá acorrem em vista da possibilidade de ganhos, os atletas, que, tendo seus corpos trabalhados, buscam aplausos, e aqueles que vão para observar todos os outros. Estes últimos não estão em busca de ganhos ou de receber aplausos, mas são inclinados à busca do conhecimento.

O jovem contesta o lugar de onde ele provém, ou seja, a família, a comunidade e as instituições nas quais ele cresceu serão confrontadas por ele. No entanto, falta-lhe experiência de observação e de reflexão sobre o seu lugar e, consequentemente, sobre si mesmo.

A Ilíada, como um livro clássico, é um tratado sobre os costumes e o hábito do povo que o gerou. Neste aspecto, é um texto que trata de algo circunscrito, particular. Uma pessoa que viva em 2015, no Brasil, pode, através dele, entrar em contato com a cultura grega antiga, e a formação daquele homem. Logo após isso, este leitor começa a fazer o movimento de olhar para o próprio mundo: que moralidade e valores regem a relação entre os homens, qual a participação da ira nas emoções e decisões dele próprio, como são tramados os acontecimentos que escapam do poder decisório dele, mas que, se ele se esforçar muito, pode ser que joguem a seu favor, etc, são temas da Ilíada. E são questões do leitor de hoje. É por esta universalidade, por permitir que qualquer pessoa, em qualquer época e lugar se identifique com ela, que se diz que a Ilíada é um clássico.

A Ilíada nos oferece uma referência para observarmos a nós mesmos, e para nos entendermos de forma profunda. Sair do plano dos saberes corriqueiros sobre o mundo e sobre o eu, e atingir uma base fundamental nossa, aproxima-nos do conhecimento da nossa alma, ou seja, nos aproxima do universal. Portanto, da mesma forma que a Ilíada é um livro sobre uma particularidade, mas que se eleva à universalidade, ser o seu leitor permite que se entenda mais a própria particularidade, e se adquira condições para dizer algo que qualquer pessoa poderia ler com proveito.

O professor deve ser um direcionador do impulso do jovem, trazendo-o para o que vai melhorar a capacidade dele de refletir sobre as coisas, e agir melhor. No livro “Sócrates, filósofo e educador: a filosofia do conhece-te a ti mesmo”, também do Paulo Ghiraldelli Jr, está que Ganimedes, um belo jovem, fora visto por Zeus, que por ele imediatamente se apaixonou. O deus fez-se em forma de pássaro, e apanhou o jovem. Levou-o para a morada dos deuses, para tê-lo sempre por perto.

Os jovens são belos, e gostam de aplausos por seu estilo e movimentos. É pelo corpo que eles querem ser admirados. O professor começa por admirá-los por isso, mas também deseja que a intelectualidade deles acompanhe esta beleza. Nisto, o mestre aposta no desenvolvimento da parte mais divina da alma do jovem, o intelecto.

Aproveitando a exposição de Cícero, sobre os grupos no mercado, poderíamos dizer que o jovem se situa entre os atletas. Mas esta posição não é bem justa ao jovem, pois ele também é curioso, quer conhecimento. O guerreiro, na Ilíada, quando empreende um vigoroso ataque, é visto como tendo sido impulsionado por um deus. Diomedes lutou ao lado de Atena. Ele mesmo não é um filósofo, mas um filósofo, observando-o, pode dizer que a deusa que é, simultaneamente, da razão e da guerra, além de ter insuflado o ânimo guerreiro de Diomedes, orientou os seus ataques, a começar pelo vôo da sua lança.

O filósofo, então, pode ser aquele que observa o desempenho corporal do jovem atleta, e o entende. Ele não vai, portanto, recomendar ao jovem que seja menos atlético, mas aproveitar o desempenho deste para perguntar ao jovem sobre a natureza da coragem, do vigor, da glória, etc, tal como Sócrates faria. O filósofo, então, seria amigo do jovem atlético, no sentido de levá-lo a desenvolver-se também como observador de si.

O professor não deve sugerir ao jovem que seja “menos corporal”, “menos afoito”. Ao invés disso, pode sugerir um caminho para vivência dessa corporeidade. A Ilíada oferece cenas que, se lidas em grupo, permitem a dramatização de ataques, mortes e maquinações. Esta experiência é corporal, e enseja a reflexão sobre o seu sentido.

Segundo Ghiraldelli Jr , o filósofo quer tornar a própria alma mais bela, para que ele, um dia, seja percebido por Zeus e também seja por ele apanhado. Ele quer, para ele próprio, o prazer e a melhoria de si mesmo. Neste ponto, ele encontra o educador, ao querer que o jovem sinta prazer, e parta disto em direção ao conhecimento e a melhoria de si mesmo. O professor deste tipo quer que o jovem venha ler com ele, para, juntos, eles viverem a história.

A professora e a esperança


Eis que, um dia, um filho diz para o seu pai: "vou contar tudo para o seu pai!". Se há uma força superior à do pai, o pai deixa de ser tão forte.

Viver em civilização é renunciar a satisfação de instintos sexuais e de agressividade. É, também, estar protegido da vida em natureza, em que os instintos de outro homem entrariam pela minha porta. Freud nos conta isso, em O Futuro de uma Ilusão. A natureza é a enormidade do mar, e também a selva impiedosa. O pai e os deuses surgem na infância de um indivíduo, e na infância da espécie, como o que obriga à repressão dos instintos, mas, também, oferecem a sensação de proteção contra as feras e o destino.

Não faz muito tempo, no Brasil, a professora era importante em sua comunidade. As professoras eram figuras conhecidas: acompanhavam a vida inteira de cada indivíduo, pois ensinavam a criança, na sala, o jovem, na rua, e o adulto, nas reuniões comunitárias. Não se tratava de serem inesquecíveis: elas nunca se ausentavam da convivência.

As professoras eram figuras respeitadas: o adulto dizia à criança, ao jovem e a si mesmo, que a palavra da professora era a verdade e a lei. Essa afirmação, feita em casa, fortalecia a própria autoridade dos pais. Fortalecia a própria autoridade sobre si mesmo. O indivíduo se sentia apto a fazer a árdua tarefa cultural de conter seus instintos antissociais e trabalhar, na compreensão de Freud. Ou seja, o individuo poderia exercitar a intelectualidade, o conhecimento e a fruição das suas emoções e a melhorar-se moralmente. A professora estava ali para mostrar-se como a realização disso, e que ela era feliz em ajudar as outras pessoas a conquistarem-no.

A professora era admirada: como é ser uma pessoa melhor, intelectual e moralmente, além de mais feliz consigo mesma e com ótimas relações? A comunidade fazia essa pergunta à professora. Ela era como um ponto terreno de um ideal.

Se exagero, embora não me distancie muito do que um dia já existiu entre nós, é para que voltemos a querer ter este tipo de pessoa. Mais do que isso: é para nos termos em tão alta conta a ponto de nos vermos capazes de sermos assim, professores de verdade, e não pessoas que destroem seus idolos, seus ideais, sua cultura, e matam umas às outras.

Freud conta que, acima dos deuses, havia o Destino. A natureza vencia, mas a criança não precisava lembrar-se disso a todo momento, pois o pai, ou ainda os deuses, permaneciam ao lado delas, dando-lhes a ilusão de proteção. Crescíamos acreditando que tudo daria certo. E dava! A morte de uma professora a fazia sempre ser lembrada, e a inspirar decisões, e dava entrada à nova professora, tão especial quanto a anterior.

A criança ou adulto que, hoje, dizem que há alguém acima da professora, levam-na à morte precoce, ao esquecimento. Na verdade, se o desejo de desrespeitar, de roubar, de matar e de destruir, que aparecem na má política e no nosso descarte ambiental e de seres humanos, forem as coisas mais importantes, a professora nem chega a nascer.