domingo, 18 de outubro de 2015

A miséria da preocupação


Em uma entrevista feita pelo João Gordo (https://www.youtube.com/watch?v=9Q1POtXbeb4), o rapper Criolo comentou o seguinte, sobre a vez em que o Ed Motta disse, em reclamação à sua platéia brasileira no exterior, que ela é chata, não tem educação: "estamos fazendo uma comida. Chato é não ter o que comer." Criolo contou que sua família veio sem dinheiro e perspectivas, do Ceará, e que ele só descansará quando seus pais puderem ter uma vida tranquila.

No episódio comentado, Ed Motta reclamava que os brasileiros no exterior só pedem músicas em português, e se comportam como em estados de futebol.

Há uma sensibilidade nossa em relação à miséria, que não há em relação à educação. O comentário de Ed Motta apontou para uma falha em nossa educação. As críticas que lhe fizeram, lhe chamando de elitista, apontam que as verdadeiras preocupações no Brasil devem ser as carências relativas à miséria: falta de comida, falta de moradia ou moradia precária, migrações forçadas, etc.

Ainda na entrevista, Criolo contou que, no meio caminho de sua família para São Paulo, eles retornaram ao Ceará, por exigência da mãe. Ao chegarem em casa, a mãe tirou metade das roupas que levara, e completou a mala com livros.

Dizemos que o estudo é importante. Mas importante para o que, não se diz. Para ser mais educado? Para conseguir um melhor emprego? Para ganhar um salário melhor? Para aumentar o poder aquisitivo próprio ou da família? Estas últimas respostas não são dadas. Ou melhor: quando falamos de pobres, queremos ver seus filhos na escola, e nos damos por satisfeitos com isso. Não nos preocupamos se a escola os deixarão mais educados. Muito menos nos passa pela cabeça perguntar se o aumento nos seus anos de estudo permitirá que eles tenham um salário melhor. Damo-nos por satisfeitos que o pobre esteja na escola.

Essa preocupação que é negada ao pobre não falta da classe média em relação a si mesma: ela quer a melhor educação possível e, para ela, isso quer dizer as melhores chances de entrar numa ótima universidade, e manter, quiçá melhorar, o padrão de consumo. Mas esta preocupação não é falada em público, não vira sensibilidade social, pois a classe média espera dar conta sozinha (sem o governo) de ter uma boa escola.

A sensibilidade social fica com a preocupação de todos em torno da miséria, que se atenta à chamada "subsistência" dos indivíduos. A fala do Ed Motta pergunta porque não podemos almejar algo mais, bem acima da "subsistência".

O filósofo Diógenes vivia na rua. Lá ele encontrava abrigo e a alimentação que precisava. Ter mais do que o estritamente necessário o colocaria como escravo das próprias necessidades. Em uma célebre passagem, Alexandre, O Grande, surge diante dele, encontrando-o no chão. Estica-lhe a mão, oferecendo alguma ajuda. O filósofo pede que o importantíssimo líder e conquistador apenas chegue para o lado, para não obstruir seu contato com o sol.

Era indispensável para Diógenes a comunicação com o sol, ou seja, a ligação com o Bem, a possibilidade de conhecer, da filosofia. Diógenes não tem amor pela comida. Ele não se alimenta e fica ansiando pela próxima refeição. A comida não reduz suas aspirações, e viver em restrição dela não é a pior coisa que lhe pode acontecer. Ficar sem o sol, sim, seria ruim.

Como foi que reduzimos nossas aspirações à comida? Como foi que passamos a odiar alguém que espera que apontemos para algo melhor do que nós mesmos?

No discurso público, não se espera muita coisa da educação. Desta forma, realmente nos mantemos atados à miséria.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O que é a diferença na escola?




Achamos que todos são iguais, em uma sala de aula. A cidade é o lugar de pessoas diferentes e, por isso mesmo, a princípio, desconhecidas umas das outras. Condomínios, clubes, associações e escolas dão a sensação de que uma pessoa tem ao menos uma coisa a ver com a outra. Contudo, expressões de afetividade e outros comportamentos diferentes do esperado, na situação de suposta igualdade, acontecem.

Crianças de até cinco anos entendem que o que define "menino" ou "menina", mais do que a diferença anatômica entre os sexos, são as coisas que um e outro gostam de fazer: ser menino é gostar de jogar bola, ser menina é gostar de brincar de boneca. A definição da identidade sexual está ligada, neste contexto, à prática, especificamente ao que cada um gosta de pegar para brincar.

Alguns pais também definem as crianças desta forma, entendendo, por exemplo, que um menino se forma, independentemente da genitália que possuir, se a pipa, a luta, a bola e o carrinho forem preferidos às princesas e bonecas. Dentre estes pais, há os que olham para o que a criança gosta de brincar para, justamente, "descobrir a sexualidade" dela, e usar esta informação para atacá-la.

Há crianças que têm um gosto exclusivo por brincadeiras e figuras femininas. No entanto, não é possível dizer que determinado gosto, e a identificação que se segue a ele, produzam, quando as crianças chegam aos oito anos de idade, determinada sexualidade. Muitas vezes as crianças não apresentam a coerência que especialistas e pais esperam encontrar entre gosto/identificação e sexualidade.

Na escola vemos preferências de identificação e brincadeiras indo para um lado, preferências amorosas indo para outro, temperamento indo para um terceiro lado, etc. Em um grupo ocorre a mesma imprevisibilidade que ocorre à pessoa.

"Faca sem ponta, galinha sem pé", da Ruth Rocha, era um livro que eu adorava: dois irmãos, um menino e uma menina, passam embaixo de um arco-íris e, como resultado, os gostos de um passam a ser os do outro. A menina se diverte chutando bola e sendo um moleque. O menino se maquia, embeleza. No fim, eles cruzam de novo o arco-íris. Os gostos voltam a "seus donos"... bem, não completamente: a menina e o irmão passam a voltar da escola trocando passes com uma latinha.

Os gostos não têm donos. As pessoas buscam criar conceitos sobre as coisas. Uma criança, ao definir a si mesma pelo que curte fazer, e ao outro pelo que o vê fazendo, também fica próxima de fazer com que essa definição se essencialize, ou seja, tenha uma validade extra-práticas, no caso, extra-gosto. A criança que se vê como menino pode entender que menino sempre gosta de futebol e desgosta de boneca, e que ele próprio só pode seguir esta ordem de preferências e, acompanhando isto, sempre deverá ser um menino. Acho que isso se dê por causa da participação do adulto na adjetivação de um como menino, e de outra como menina, e na vigilância das escolhas das crianças por brincadeiras. Este adulto acaba ajudando a fixar certos gostos e identidades.

Em uma escola, eu brincava de lobo mau com um menino. Cansei. Reparei que havia um grupo de crianças brincando de Hello Kitty. Do ponto de vista da anatomia, as crianças deste grupo eram meninas. Ainda sob aquele ponto de vista, entre elas havia um menino. Sugeri ao menino que brincava comigo, de ir brincar de Hello Kitty com eles. O menino do grupo grita: "só meninas podem brincar de Hello Kitty!". Por esta e por outras situações, eu observara que este menino tinha uma profunda identificação com figuras femininas, o que aparecia em seus gostos e comportamentos. O menino com quem eu estava, respondeu: "eu gosto de Hello Kitty!" E imitou a personagem. "Eu gosto de Hello Kitty". E novamente a imitou. O outro respondeu, surpreso e contente: "Jura?! Eu também adoro! Vem brincar com a gente!"

Enquanto aquela brincadeira durasse, todos ali de certa forma seriam meninas. A brincadeira era feminina. Talvez o menino que foi brincar depois não se dissesse menina, mas ele não se furtou a achar interessante um tipo de brincadeira "de menina". E, com isso, o outro menino, já uma menina, pôde ver que o outro não precisa gostar de coisas "de menino" e que, portanto, "menino" ou "menina" não precisam ter contornos tão rígidos.

Edgar Allan Poe tem um conto chamado "O homem da multidão". Nele, alguém toma uma bebida, confortavelmente sentado em um bar. Através do grande vidro, ele vê um grupo se deslocando de uma rua para a outra. O observador identifica a origem, as características psicossociais e o destino dos passantes. Passa outro grupo, e o observador também o interpreta. Surge um homem, que cruza a rua, apressado. Acerca dele, o observador não sabe o que pensar. Levanta-se de sua cadeira, sai do bar e vai atrás do homem, que cruza ruas, carros e pessoas. O observador mantém-se no seu encalço, sempre tentando decifrá-lo. Por fim, o homem da multidão some. A curiosidade com o indecifrável fez com que o observador, antes impassível, levantasse e percorresse lugares diferentes, se sujasse de lama e suor. Ele teve experiências novas.

São estes lugares e pessoas diferentes que achamos que se dão a conhecer por inteiro, na escola. Um eu é algo que se constrói e usa para se reconhecer a si mesmo, e para ser reconhecido pelo outro. Uma professora conhece os eus que compõem a sua turma. Entretanto, cada um é mais do que um eu: são vontades e afetos novos, a depender das situações que ocorrem entre as crianças, e junto com a própria professora.

Por curiosidade, a professora pode levantar da cadeira, e ir onde as crianças estão, para observar o que elas estão fazendo, aprender o que gostam e como se nomeiam, e como ela própria pode incentivar a vontade de um de brincar com a brincadeira (e a identidade) do outro.

O empenhado e o retórico


Não é pecado você se achar mais inteligente do que outra pessoa. Do que muita gente, do que a maioria, você ainda pode se achar mais inteligente. O empenhado pegou livros difíceis e trabalhou para entendê-los. Juntou-se à gente que já passou por aquele trabalho, e que ensina a ter empenho, ou seja, disciplina e tenacidade.

O empenhado se sente melhor, ao concluir um grande livro. Sente-se ao mesmo tempo entendendo bastante coisa, e achando que ali há bem mais para se entender. O empenhado tem uma admiração reverente pelos grandes livros por que passou. Ele sente-se capaz de empenhar-se no trabalho sobre o próximo livro. É confiante de que conseguirá ler o novo livro, e de que tirará grandes frutos dele.

O retórico encontra o empenhado: sobre este, fala com segurança, chama a atenção dos outros, como se dominasse a área do saber dele, como se conhecesse bem os passos daquela pessoa. Faz com que o empenhado e o seu empenho sejam secundários à fala que sobre tudo fala, tudo nivela, tudo expõe, e que dá a impressão de dominar.

O retórico desistiu da leitura difícil, mas a critica. Leu o suficiente para aproveitar do livro algo para aumentar seu poder de convencimento. Impressiona quem o escuta. Exala virilidade, mas trata-se de uma virilidade vazia, que quer adeptos.

O empenhado propõe, a poucas pessoas por vez, uma conversa que é lenta, abre caminho por entre algumas dúvidas e saberes, dele e dos demais. Ele se ocupa em saber o que ele e os demais estão dizendo. É realmente um viril: curvou-se ao saber, para assenhorar-se de si mesmo. É senhor. Não busca fascinar, ser fascinante. Busca que todos admirem os clássicos.

O retórico vê defeito nos clássicos, exatamente no que eles não se deixam aproveitar para a formação do seu discurso. A força do retórico está no exército que forma. Com isso, ele se distancia do empenhado que conheceu no começo da sua vida, e que o fez se sentir pequeno. É por isso que, quando o vê, não deixa-o à vontade. O empenhado cala-se, pois ninguém ali está sentando, falando das coisas que sabe, e permitindo que ele entre e comece a comentar.

Quando não se retira, o empenhado escuta do retórico opiniões que o incomodam, e fazem-no não conseguir evitar se considerar inteligente. Como diz Aristodemo, no Banquete, é triste aquele que, sendo poderoso ou rico, afasta-se do prazer da filosofia. O retórico será o primeiro a tentar rebaixar o justo orgulho do empenhado.

Liberdade suposta


Você escreve sobre sexo e religião, ou sobre as duas coisas juntas, no Face. Em resposta, dizem que não se deve falar sobre essas coisas. E não lhe dizem o porquê. Esta resposta espera calar aquele que fala ou escreve, desrespeita-o. Também é um desrespeito à própria pessoa que responde, à capacidade que ela poderia desenvolver de pensar sobre o que ouve ou lê.

Tudo o que Nietzsche quis foi que não nos esquivássemos da vida, não pedíssemos para ela "pegar leve" conosco, não nos "ferir". Temos que participar das coisas que nos chegam. Participar de um texto é pensar dentro dele, olhando as coisas sob seu prisma e, depois, fora dele, olhando por outro prisma, ou desenvolvendo o que fora dito antes. Participar dos acontecimentos da vida não é incompatível com provocar acontecimentos, lançar novas interpretações criadoras de novos ambientes, e neles tomar participação.

Nietzsche acusou Sócrates de ser a epítome do homem que se distancia da vida, para pensar. O racionalismo do nosso tempo, o do século XVIII, imagina o homem como um conhecedor impassível do mundo e de si, justificou a crítica nietzschiana: o homem tornou-se insensível à vida. Contudo, tampouco o homem está pensando.

No Brasil de hoje, tem-se uma falsa sensação de se estar operando com a razão. Não se tem repertório para ler o mundo e a si mesmo, não há sofisticação para se criar um ambiente novo para nele se engajar. Emite-se opiniões que reiteram o senso comum, e isso parece ser intelectual o bastante.

Surpreendentemente, a liberdade nietzschiana acaba ficando com aqueles que refletem e criam uma senda nessa realidade e senso comum, e não com aqueles que se propõem a se engajar nas posições e objetivos já conhecidos. Sócrates queria se retirar da vida, para ser alma intelectual e universal. Já nós queremos ficar aqui mesmo, presos ao engajamento em objetivos imediatos. Sócrates e Nietzsche, então, fariam sentido juntos: não temos que permanecer no óbvio, resignados ao mesmo mundo, pois participaremos de um ambiente novo que criaremos aqui mesmo, com o pensamento.

Em um grupo de filosofia, aqui do Face, um amigo fez um post dizendo que tirou a roupa, e a mulher que o acompanhava exclamou algo como "Ai meu Deus! Espírito Santo!". Uma fala que em outros lugares seria indecorosa, num grupo de filosofia não deveria ser. Filosofia não é grupo social, é confraria, e confrades falam o que querem, uns aos outros.

Meu amigo recebeu uns pitos, em resposta, como se faz com uma criança. "E se ele fala isto em outro lugar, para a minha esposa?", foi pensado por gente que não entende que o espaço filosófico é um espaço à parte, e que não pode aceitar inibições pessoais que reforçam resistências sociais.

Um pai, uma mãe ou uma professora controlam o que uma criança diz, pois querem sua inserção social. Mas também devem permitir que ela fuxique, pense alto e fale. Crianças são assim, espantam-se com o mundo e nele abrem uma senda, através do pensamento. Adultos antes querem posição social do que liberdade.

Filosofia é o lugar do descobrir-pensar-falar. Está mais com a criança que pergunta e fala, do que com o adulto que se cala, faz outro se calar, e que se supõe livre.

p.s.: Este texto surgiu a partir de uma conversa com meu amigo Kelson JS.

Igreja católica e igreja evangélica


Em uma ocasião recente, estive numa igreja católica. Em outra ocasião recente, estive numa igreja evangélica.

Esta não é uma observação etnográfica pura, pois insiro informações não adquiridas nos eventos.

Na católica, havia o padre e seus ajudantes, em pequeno número, todos vestindo roupas especiais. Eles cumprem um programa de orações, intercalada por falas. Este programa, em celebrações, é o mesmo de há muito tempo. As falas que intercalam as orações seguem o seu tema, embora tenham alguma improvisação. O que fazem os celebrantes é estudado, e ocorre ordenadamente e sempre da mesma forma.

O público fica em silêncio, olha para frente, e às vezes para o alto, para ver a decoração. Em uma passagem lida pelo padre, a cerimônia coloca os homens, seres que passam, no caminho para aquilo que não passa. Por isso é que a cerimônia é sempre a mesma, e em relação a ela os celebrantes e o público têm reverência. É algo maior do que todos eles. É uma relação entre criador e criatura. O fato de as vestes e o comportamento dos celebrantes ser diferente de todos os outros presentes, diz respeito a uma tradição que coloca certas pessoas na importante função de comunicadoras do que está além do homem.

Na igreja evangélica, a bíblia que usam para orar não tem a palavra Yahweh, que é impronunciável pelo homem. Deus é tratado como Senhor, na proximidade que um filho tem para um pai. Deus não está distante, não é um ser de outra natureza. As músicas e orações dizem de agradecimentos por benefícios alcançados (o que provavelmente faz as pessoas do público pensarem no que vai bem, em suas vidas, e agradecerem por isso), e de reconhecimento de que se não está tão bem assim, e se precisa pedir melhorias (o que provavelmente faz as pessoas do público pensarem no que vai mal, em suas vidas, e pedirem melhorias).

O clima é de reunião comunitária, com todos falando entre si. Ou melhor: poucas comunidades se abraçam tanto quanto a formada pelos membros desta igreja. O pastor tem muitos ajudantes, e nenhum deles usa roupas de ritual. Os ajudantes movem-se rapidamente, cuidando da orientação de pessoas, da condução de crianças, e de tudo o mais que é feito por quem lida com um grande público.

Enquanto isso, o pastor canta, ritmado e com os olhos fechados. Ele agradece e pede. Todos o acompanham. Ele diz que o público forma uma comunidade irmanada pelo sangue de Jesus. Pede que uma pessoa olhe e abrace a outra. Um observa o outro. O pastor observa a todos. É como se fosse o irmão mais velho, aquele que melhor dirige comportamentos. Fazer parte da igreja é entrar nessa comunidade do olhar.

Uma conversa sobre a transferência e a filosofia do amor


Freud nomeou de transferência negativa a tomada da figura do analista pelo paciente, como personagem das fantasias deste. Estas fantasias dizem respeito a representações inconscientes, e o paciente não quer se dar conta delas. O que o paciente quer é “dar corpo”, atuar a fantasia. No diálogo platônico O Banquete, Aristófanes diz que a concentração do amado na busca pelo prazer corporal, junto do amante, negligenciando o conhecimento e o cuidado da alma deste, é obra de um Eros vulgar.

Para se atingir o conhecimento do que é, o amor aos rapazes deve ser o primeiro degrau na escada de Diotima, professora de Sócrates na arte de amar: é uma escada que leva à admiração do Belo, e ao seu conhecimento, junto ao conhecimento das outras qualidades divinas (Sabedoria, Bem e Justiça). Na escada de Diotima, o primeiro degrau é o amor à beleza, e ela leva ao amor pelo saber, filosofia.

Na clínica psicanalítica, o manejo da transferência objetiva que o amor ao analista, que acompanha a suposição do paciente de que o analista tem um saber sobre o que causa o seu mal-estar, passe a ser amor à análise, ignorância quanto a si mesmo e busca por saber mais sobre isso.

Freud começou suas pesquisas sobre histeria e hipnose perto do ano em que Nietzsche adoeceu e parou de escrever. Na filosofia, o cogito cartesiano era o fundamento da verdade . Vigorava, também, o platonismo, em que se apostava na Verdade situada não no mundo sensível, mas alhures. Nietzsche ainda não havia destruído o que Heidegger chamou de “metafísica da subjetividade” .

O eu se definia pelo trabalho metódico da sua própria consciência, conhecedora das leis do mundo, e também voltada para si mesma. “Assim, o eu penso e o eu sou se uniam à luz da evidência. A representação fundava o próprio ser do homem.” (WINOGRAD, p. 34). Em Kant, esse eu sou adquire determinação : o sujeito transcendental cria juízos sobre o mundo externo e separado dele, tendo, em seu interior, uma percepção de tempo, que aplica a si mesmo.

O eu uno e idêntico a si mesmo, e competente para representar o mundo e a si, não poderia servir a um médico que estava diante de uma crise histérica, corajosamente esperando dar fim àqueles sintomas e, quiçá, entendê-los. O fenômeno histérico, composto de sintomas físicos e delírio amoroso, escapava totalmente da vontade e da razão do eu do paciente . Com a descoberta da existência de um pensamento alheio à consciência, que opera à revelia do eu, Freud inevitavelmente se distanciava da filosofia da sua época. A filosofia, por sua vez, não poderia considerar lógico um pensamento não consciente.

Os outros médicos evitavam tratar da histeria, acusavam-na de simulação, falsidade. No “século das luzes”, o XVIII, os delírios e alucinações eram, respectivamente, distorções do pensamento e da percepção. O seu sujeito, portanto, demonstrava estar desajustado em relação à realidade. Freud era um estudante de neuroanatomia patológica quando visitou Salpetriére. Lá ele conheceu Charcot. Segundo o eminente psiquiatra, a histeria era uma neurose, ou seja, uma doença para a qual não havia correspondente orgânico no qual basear o entendimento dos seus sinais e sintomas . Freud também viu o emprego que Charcot dava à hipnose, para a eliminação dos sintomas através de sugestões.

Após retornar de Salpetriere, Freud tomou conhecimento do emprego que Joseph Breuer dava à hipnose: por meio dela, o terapeuta fazia o paciente voltar à história psíquica da própria doença, ou seja, aos fatos traumáticos, invariavelmente sexuais, que se alojaram no inconsciente.

Inicialmente, Freud considera que o trauma psíquico diz respeito a um abuso sexual real, sofrido pela paciente. Logo Freud descobre que tais cenas de abuso eram fantasias inconscientes . Os sintomas decorrentes dos afetos desconectados dessas fantasias, mas conectados a membros e órgãos, fazendo-os ficarem anestesiados, paralisados, etc, eram reais, diziam respeito a um outro pensamento, insistente.

Um grande sistema inconsciente começava a se fazer reconhecer, clivando a subjetividade. Freud o deduz a partir das falas das histéricas sob hipnose que, por força da resistência do próprio ego, não podiam vir à tona na vigília . O inconsciente também está presente nos atos involuntários cotidianos. Freud encontrará nos sonhos a principal via de acesso ao inconsciente. As imagens oníricas são as ideias que um dia foram retiradas da consciência.

Durante o sonho, as resistências se afrouxam, e as ideias retornam à percepção. No entanto, as resistências não estão inoperantes, e as ideias inconscientes apresentam-se, após terem passado pelo trabalho da elaboração onírica, que lhes impõe uma cifra. O relato de quem lembra de um sonho parece inteligível, e o é para proteger o sonhador do caráter ameaçador dos seus próprios desejos. A interpretação será sobre os enunciados do sonhador, que ocultam os desejos interditados.

Segundo PRADO JR , o capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos traz uma mudança no estatuto lógico da teoria freudiana, em comparação com o apresentado no Projeto de 1895: a concepção de um aparelho psíquico dá lugar a uma prática original de interpretação do sentido dos sonhos, a partir do seu emaranhado de significações. A teoria freudiana subverte a objetividade das ciências modernas, pois a interpretação a precede. Os conceitos utilizados por Freud na leitura do psiquismo falam de um lugar mítico, são ficções teóricas elaboradas para dar inteligibilidade aos fenômenos com os quais ele se depara.

Portanto, a psicanálise não é uma ciência comum, baseada em uma descrição objetiva da realidade. A filosofia, por sua vez, após a crítica não só da possibilidade de fundamentar o conhecimento num sujeito unificado e idêntico a si mesmo, mas também dessa própria imagem do homem, acolhe a narrativa freudiana que afirma o homem como não mais o senhor em sua própria morada. Na filosofia, hoje, o inconsciente situa-se como uma categoria da subjetividade, ao lado da consciência, da identidade e da autonomia.

Eu gostaria de retomar Platão, especificamente nos diálogos Fedro e O Banquete, para ampliar minha leitura acerca do amor de transferência, e do seu manejo na clínica psicanalítica.
Em “A dinâmica da transferência”, Freud conta que todo ser humano tem um modo particular de conduzir sua vida amorosa. Isto resultaria de disposições inatas e de experiências infantis. Parte dos impulsos de alguém perfaz o desenvolvimento psíquico, ficando disponível à personalidade consciente. Outra parte desses impulsos, contudo, fica retida em alguma representação inconsciente, permanecendo separada da consciência e da realidade.

O bebê sente fome. A mãe lhe dá o seio, satisfazendo-o. A fome é um aumento de excitação interna, que causa desprazer. O mamar reduz essa excitação interna, é a sua perda, e isso leva ao prazer . A cessão do desprazer dá prazer. No inicio da vida, a criança busca a mãe, pois esta realiza a ação específica que a alivia do aumento da excitação interna. Para o eu se constituir, é preciso que se instaure certo distanciamento entre o bebê e a mãe .

Após as fases do desenvolvimento psicossexual, ocorrerão o que Lacan chamou de estádio de espelho: a criança olha o próprio corpo inteiro, no espelho, e olha o olhar da mãe sobre ela . A mãe nomeia a criança. A criança reconhece-se como um corpo íntegro, eu corporal. Não mais se refere a si mesma na terceira pessoa, como se fosse um objeto dentre outros, que lhe dão prazer, mas na primeira pessoa. Fala em nome próprio. O eu é formado pela identificação com a imagem de um próximo. É um se ver nele, não se confundir com ele.

O amor e o ódio, entre outros afetos, ocorrem nessa relação especular, onde se vê no próximo características apreciadas ou desgostadas, e que se busca ou se rejeita, de forma conscientemente justificada . Na clínica, a transferência é a condição de possibilidade da análise: o paciente tem sentimentos amigáveis em relação ao seu analista. Isto é o que o faz ir à análise, num primeiro momento. Seguindo a regra da associação livre, sob a qual o paciente deve dizer ao analista todos os pensamentos que lhe ocorrerem, procurando não se censurar, o paciente subitamente interrompe a fala. Sua fala percorreu a cadeia de representantes, dos conscientes aos inconscientes, e chegou ao núcleo da sua neurose, ou seja, uma fantasia investida de libido.

Freud diz que, na neurose, ocorre uma baixa de investimento libidinal em representações conscientes, e ligadas à realidade, e um aumento de investimento libidinal nas representações inconscientes, afastadas da realidade. A fantasia que porventura é tocada, na análise, aparece ao paciente como diretamente relacionada ao analista. É por isso que a fala é estancada. O paciente evita tomar consciência da fantasia, e procura atuá-la, o que significa que ele procurará realizar uma ação dirigida ao analista.

Esta é a transferência negativa, que não deve ser correspondida, nem conjurada, pelo analista, mas incentivada a falar . Aqui não estamos mais no campo do amor por identificação, de um eu para um outro, mas no da paixão, ocorrência totalmente estranha ao eu. Trata-se da ação da pulsão, que se situa fora do aparelho psíquico, em um interstício entre o orgânico e o psíquico, portanto, fora das possibilidades de representação. É como se houvesse no eu um buraco negro, impossível de ser iluminado, e que empurra alguém em direção a outro alguém, sem que ele possa explicar. Este movimento é dissolutor do eu, pois visa à refundição do eu com o Outro do qual um dia o eu se desprendeu, para justamente poder ser um eu .

Em O Banquete, Aristófanes proferiu um discurso em que se contava a existência de um terceiro tipo de ser humano, além do macho e da fêmea: o andrógino. Era um ser de forma esférica, dotado de quatro braços, quatro pernas, e de uma agilidade correspondente a isto. Possuía ele dois rostos, um virado para cada lado da esfera, e de cada lado também ficavam o genital masculino e o feminino. Dotado de grande inteligência, este ser congeminou um ataque aos deuses, subindo o Olimpo. Zeus castigou-o: o ser esférico foi cortado em duas metades. O local da cisão foi suturado por Apolo, tendo como nó o umbigo. Zeus virou o rosto de cada uma das metades para o lado do corte e da sutura. A punição se justificava porque os seres resultantes do corte deveriam ser mais ordenados, e não ousarem igualar-se aos deuses. A totalidade esférica não é para os humanos.


“Ora, como a forma natural fora cortada em dois, cada metade passou a sentir falta de sua outra metade, no desejo de reintegrá-la, e assim enlaçavam-se com seus braços, nesses amplexos, ansiando por serem unidos. (PLATÃO, O Banquete. p. 52 e 53).

O filósofo alemão contemporâneo Peter Sloterdijk identifica um Eros primário nessa origem mítica do desejo sexual. Um Eros secundário ocorre quando os seres que, ao se abraçarem, recusavam-se a comer e a novamente ficarem sozinhos, causando a sua morte, tiveram suas genitálias trazidas para o lado em que as metades haviam sido cortadas. A união das metades passou a permitir a reprodução sexuada, e durava o tempo do intercurso sexual. Com a perda da ereção masculina, desfazia-se o abraço , apenas para logo mais as metades ansiarem novamente a união.

No final de O Banquete, chega Alcibíades, embriagado. Faz um discurso elogioso a Sócrates. Um corajoso soldado, alguém moderado. Sócrates era admirável. O jovem Alcibíades tinha pretensões políticas. Foi ter com Sócrates, que procurou fazê-lo observar a si mesmo, se ele tinha o necessário para exercer esta função. Alcibíades certa vez propôs a Sócrates que viesse dormir em sua casa. Segundo o jovem, foi o mesmo que passar a noite com o pai ou o irmão. Sócrates resistia à beleza dele. No diálogo Alcibíades I, Sócrates diz amar o jovem por sua alma, não por sua beleza. O comportamento de Sócrates e as questões que levantava a Alcibíades eram uma proposta de namoro filosófico, ou seja, a admiração do corpo, ao vir acompanhada do auto-governo na fruição dos prazeres, permitia que ambos desenvolvessem a parte divina das suas almas, o intelecto.

A busca desregrada pelo prazer sexual, que inclui o feminino, que é o fraco e o não racional, no seu rol de interesses, em contraposição à busca pela força e pelo caráter, masculinos, que é a busca pelo Bem, foi o assunto do discurso de Pausãnias: há um Eros comum, relativo à Pandemos, uma Afrodite mais jovem, que “é o amor que vemos entre as pessoas vulgares, as quais, para começar, amam mulheres bem como rapazes. (PLATÃO, O Banquete. p. 31), e que leva à contemplação fortuita ora do bom, ora do seu oposto; e há um Eros celestial, oriundo da Afrodite chamada Urânia, destituída de desregramento, de atração pelo feminino, respondendo pela atração do homem pelos rapazes que exibem os primeiros pelos, junto dos primeiros sinais de inteligência, com quem ficarão, à livre vontade, por toda a vida.

A relação baseada na admiração pelo corpo e na entrega ao sexo encerra-se na busca pelas coisas que passam, e dá-se pela irreflexão do amante. Paixão é desmedida e insensatez . O apaixonado, quando governado pelo Eros comum, afasta-se da própria família e amigos, e obriga o amado a também afastar-se dos seus ; ele aparece onde quer que o amado esteja, e faz cenas de ciúmes, provocando o constrangimento deste; procura manter o amante afastado de pessoas ricas ou inteligentes, pois teme ser trocado por elas; afirma que sempre amará o seu querido, faz promessas que, finda a paixão, desconhece, não cumpre. Isto é o que consta no discurso de Lísias, lido por Fedro, a Sócrates, no diálogo platônico de mesmo nome.

Sócrates, em resposta, também discursa desfavoravelmente ao apaixonado. Contudo, Eros não pode ser mau. Eros é generoso com todos aqueles que dele participam, se o amante fizer o que Diotima, lembrada por Sócrates em O Banquete, recomendou: age corretamente o amante que, ao se apaixonar por um corpo em particular, e a respeito dele discursar, observar que aquela beleza é cognata à de qualquer outro corpo belo, sendo a beleza uma e a mesma; após isto, tornar-se-á um amante de todos os corpos belos, e menos um amante de um só corpo belo; em sequencia, dará mais valor à beleza das almas que a dos corpos, e discursará para a melhoria dos jovens; contemplará, então, o Belo nas ocupações, nas leis e, por fim, nos ramos dos conhecimentos, verificando que o Belo é um só, e afastando-se do amor servil a uma beleza em particular.

O amante deve progredir da contemplação dos belos particulares ao conhecimento do Belo em si. A beleza é, das virtudes divinas, a mais apreensível pelo olho humano. O intelecto, a maior parte dos homens apaixonados não o enxergam. Em Fedro, conta-se que toda a alma é como uma biga formada de cavalos alados e um auriga. Quando é chegada a ocasião do banquete, a alma dos deuses se conduz bem, subindo verticalmente, em marcha organizada e ininterrupta, guiada por Zeus, até a região localizada fora da abóbada celeste. Lá eles entram num fluxo que os leva a passear para contemplar as Formas, o que é. As almas humanas tentam acompanhar a ascensão dos deuses. A alma humana é formada por um cavalo de boa raça, elegante e disciplinado, e outro de má raça, bruto e indisciplinado, além do condutor, que é a razão.

A maioria das almas humanas não consegue subir muito, em direção ao banquete. Elas caem, espatifam-se, numa grande confusão que as faz perderem as asas. Certas almas, contudo, conseguem subir e vislumbrar, por um breve instante, o que está além da abóbada celeste. O cavalo mau, porém, torna a biga de difícil condução, e o auriga precisa olhar para ele, desviando-se do que o interessa mais. Logo esta biga também cai.

Quando estão encarnadas, as almas que não subiram muito serão de homens que se apaixonarão apenas pela beleza física. As almas que contemplaram ao menos um pouco das Formas, por sua vez, não perderam as asas, mas as têm secas e atrofiadas. Ao verem um rapaz belo, e por ele se apaixonam, rapidamente recordam-se do Belo. Neste momento, seus poros são irrigados e as asas voltam a crescer. Quando estão distantes do amado, as asas murcham, embora lutem para crescer, aguilhoando e causando terrível dor ao corpo, lembrando o amante que é urgente reencontrar o amado.

Diante do amado, o cavalo bom posta-se em reverência. Já o cavalo mau atira-se em direção ao jovem desejado, querendo entregar-se ao sexo. O auriga puxa-o violentamente, e ele ainda insiste, mas um segundo puxão o obriga a também ajoelhar-se e esperar a sua hora .
O amante admira a beleza do rapaz. A beleza deste flui como uma enxurrada para os olhos do amado, inundando-os e transbordando, também atingindo os olhos do amado, fazendo-o também se apaixonar.

A paixão é uma loucura que, se conduzida com arte, leva à melhoria dos envolvidos. Esta melhoria refere-se à alma deles. “Eles, os dois do par amoroso, melhoram e intensificam o cuidado um do outro, bem como a amizade recíproca, e isso irá capacitá-los a enxergar o que antes não viam.” (GHIRALDELLI JR., p. 48). A sabedoria não pode ser olhada diretamente. Então começa-se olhando a beleza. Os amantes trocarão carícias sexuais, mas respeitosamente.

Da mesma forma que o melhor espelho para um olho é a pupila, a parte virtuosa de outro olho, o melhor espelho para uma alma se conhecer é a parte virtuosa, o intelecto de outra alma. O jovem verá o auto-governo do amante, e o seu apreço por coisas mais permanentes que a beleza física dele mesmo, o amante: a formação do caráter deste, o cuidado com o próprio caráter, e a reflexão sobre o Belo e as demais virtudes divinas. O jovem estará vendo a alma intelectual do amado, e poderá, então, cuidar desta mesma parte, em sua própria alma. E a sua alma intelectual servirá ela mesma de espelho para a alma do amante, que agora também é amado.

A alma é imortal. Encarnada, ela adquire características oriundas das experiências que se tem, na terra. Estas experiências formam o indivíduo, o si mesmo (auton hekaston), que é uma identidade do tipo ipse, “eu sou eu”. Contudo, devido a alma também ser universal, ela tem uma identidade idem, “A=A”, uma mesmidade, que refere-se ao mesmo em si (auto to auto), que é o substancial. Quando a alma sai do corpo, após a morte deste, ela perde a identidade do si mesmo, e fica com o mesmo em si, que é universal e divino. É esse si mesmo que o filósofo busca conhecer .
Voltando à situação de análise, o analista aposta que o paciente capturado pela paixão conseguirá falar sobre a sua fantasia, conseguir fazê-la adentar nas associações conscientes. O paciente está arrebatado pela paixão, perdido de si mesmo. O amor cego ao analista, com a suposição de que ele sabe sobre meu sintoma, deve dar lugar à ignorância, amor à análise, amor ao saber do mesmo em si. A paixão não se esgota no plano do visível, do eu. Não é entendível por ele. A análise deve recolher pistas, fragmentos deixados pela passagem da pulsão pelo eu . Pequenos cacos de lembrança que permitam falar sobre algo relativo ao meu desejo. Quando eu finalmente voltar a mim - porque não se vive apaixonado, não se vive todo o tempo fora de si, e este tempo foi de análise - estarei diferente do eu que eu antes era.

Thiago Ricardo, psicanalista

Referências bibliográficas

PRADO JR., Bento. Hume, Freud, Skinner (em torno de um parágrafo de G. Deleuze). In: Alguns ensaios: filosofia, literatura, psicanálise. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
COUTINHO JORGE, Marco A. e FERREIRA, Nadiá Paulo. Freud: criador da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
FREUD. Sigmund. A dinâmica da transferência. In. Obras Completas. Vol 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Observações sobre o amor de transferência. In. Obras Completas. Vol 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
GARCIA-ROZA, Luis Alfredo. Freud e o inconsciente. 2. ed. 25. reimpressão. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

GHIRALDELLI, Jr. Paulo. A aventura da filosofia. São Paulo: Manole, 2011.
Sócrates, pensador e educador: a filosofia do conhece-te a ti mesmo. São Paulo: Cortez, 2015.
PLATÃO. Fedro. São Paulo: Edipro, 2012.
O Banquete. São Paulo: Edipro, 2012.
SLOTERDIJK, Peter. Spheres. vol I, Bubbles: Microspherology. Los Angeles: Semiotext(e), 2011.
WINOGRAD, Monah. Genealogia do sujeito freudiano. Porto Alegre: Artmed, 1998.
VIEIRA, Marcus André. A paixão. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

O herói da Vida


Sábado, dia dezoito de setembro de 2015, presenciei um pai falar sobre o seu filho. Era um evento sobre doação de órgãos.

Na poesia épica Ilíada, o maior guerreiro grego, Aquiles, soube que morreria cedo. A mãe, deusa Tétis, disse-lhe que a vida dele seria o cumprimento do seguinte destino: alcançar enorme glória, matando Heitor, o terrível troiano. Para evitar isto, Aquiles poderia não lutar, e procurar fazer outra coisa. Abriria mão da glória, mas viveria por mais tempo. Por mais quanto tempo? Se ele não cumprisse o seu desígnio, viveria uma vida pequena.

O grego antigo se referia a si mesmo como "mortal", aquilo que passa. As coisas que não passam, eram divinas. A presença da morte no horizonte da experiência do grego levava-o a tomar a vida como devendo ser o cumprimento de algo. Os grandes homens eram assim considerados por terem grandes feitos, a cumprir.

No teatro trágico grego, o homem também tomava conhecimento do seu destino, e contra ele combatia com máxima força. Nietzsche apontou que havia aí o encontro entre uma força avassaladora, de ordem divina ou cósmica, e o homem, que se heroifica ao resistir a ela com tudo o que podia. Ao final, o destino se cumpria, mas o herói, nem por um momento, havia desistido, fraquejado. A platéia se emocionava.

Era bela a dramatização do cosmos e da vida como presenças muito maiores do que o homem, e o que o homem fazia, levantando e mostrando a sua força. A tragédia era transformada em arte.

Na vida, a todo momento ocorre o que não gostaríamos que ocorresse: o inesperado, o desagradável. Ocorre o terrível, incontornável, injustíssimo. Ocorre com pessoas boas, que procuram ser saudáveis. E também com quem supõe conhecer aonde sua vida vai chegar. A morte não está em nosso horizonte: acreditamos que, depois de mortos, subiremos aos céus exatamente como somos, para uma vida eterna, espiritual.

A perda de uma vida não é exatamente a cessão do funcionamento de um organismo: é a perda do que se imaginava que seria uma vida, do que pensamos e planejamos para as características físicas e de modo de ser, e das realizações, de filhos, pais, conjuges, amigos, etc, já existentes ou vindouros. A morte é a perda dessas expectativas. É aquilo que está além do limite do que conhecemos. É o inconcebível.

O pai, que eu conheci sábado, há dez anos descobriu que seu filho, enquanto este ainda era, organicamente, um feto, teria poucos meses de vida. O sofrimento foi enorme. A meu ver, não houve choro. Houve a recriação da vida do seu filho.

Não é possível concebermos o não ser de algo. Há quem amargure, por toda a vida, um ser que foi perdido, por causa da falta de sentido do que não é, mais. A proximidade da morte fez o pai repensar o que é o seu filho. Da vida que ele esperava, para o seu filho, passou para a vida que efetivamente o bebê tinha, diante dos seus olhos. A vida é o que ocorre. Qualquer força, por maior que seja, não o impediria de ver o filho que sorria e brincava. Seu bebê estava vivo, para viver a vida que estava tendo.

Ocorria, com seu filho e com ele mesmo, a vida. A vida ocorre com todos os que estão vivos. Então temos que admitir que exista a Vida, uma deusa. O pai reparou nela, agindo por toda a parte. A morte, ocorrência injusta, em si mesma, não pode ser adorada e favorecida por homens burocratizados, que não deixam vidas se prolongarem. O pai tornou-se um agente da Vida, sendo um construtor da possibilidade da doação de órgãos. E contra tudo o que dificulta as doações, deixando de evitar mortes, parecendo adorá-la, ele foi um herói da Vida.

Este pai compreende que o destino do seu filho bebê é ser bebê, é encantar-se com o mundo e ensinar os pais. Essa é a vida dele, e foi cumprida com alegria. A vida está aí para ser cumprida, e ninguém precisa morrer antes do tempo. A Vida está em todos, querendo que cumpramos a nossa vida para, assim, nos eternizarmos. O filho deste pai eternizou-se, foi o bebê mais feliz e atento. Foi o mais vivo, dentre os vivos. ("Repare no olhar dele! Que bebê vivo!") Este pai eternizou o seu filho. Ele não se amargurou. Amargurar-se é se dar por vencido antes do fim. Compreendeu qual era a vida do seu filho. Compreendeu a própria vida. A Vida.


Dislike


A internet é um lugar onde se pode inserir e compartilhar todo tipo de conteúdo. Este conteúdo é visualizado por acaso, ou por meio de buscas ou ainda, como apontam alguns, pela exibição específica que o Google, ou alguma outra rede social (o Google é uma rede social), fazem para uma pessoa, a partir das pesquisas que ela própria costuma fazer.

Nas redes sociais que permitem ao postador receber respostas dos visualizadores, como o Facebook, o botão "curtir" é usado para mostrar ao primeiro que o post dele foi curtido, e quem curtiu, e ao segundo oferece uma forma de atestar sua apreciação e, até, de identificação com o conteúdo.

No infinito da internet, para algumas coisas um visualizador faz questão de mostrar não apenas que gostou, mas que, de certo modo, aprova a existência daquele conteúdo na internet. Um botão "dislike" foi anunciado, para o Face. Apertá-lo, para um conteúdo, não é uma ação neutra como o não apertar, nem como o desapertar, do like: é um posicionamento desfavorável ao conteúdo em questão. Esse posicionamento pode significar que não se gostou do conteúdo, ou que, além de não se ter gostado, considera-se que seria melhor que ele nem tivesse sido visualizado por quem o viu.

A internet era um lugar de ver uma infinidade de conteúdos, e envolver-se com alguns deles, de forma positiva. Isso permanece. Mas agora o envolvimento pode ser de forma negativa. Teme-se que o uso desta novidade provoque conflitos.

Para mim, o botão "dislike" pode dar ensejo a uma conversa sobre os motivos, o conteúdo e a forma de um post, ajudando mais a melhorá-lo do que permitia o clique no "like". Haverá menos a sensação de se estar alinhado ou endossado pelos amigos que se tem no face. A princípio, uma pessoa pode diminuir muito seu número de amigos. Contudo, caso se desenvolva o costume de se conversar a partir do dislike, sem tomá-lo como um horror e sem se fechar na mesma opinião e identidade de antes, pode-se ter opiniões mais diversas e ponderadas. E haver uma menor adesão às identidades oferecidas por ideologias.

Escrevo um longo texto, e o coloco no face. Recebo um dislike, sem motivo. Eu gostaria de saber o motivo, e não por obtusidade minha: a pessoa teve o trabalho de ler algo que deu trabalho para escrever. Que comente algo, alem do "dislike" ou "like". Esses botões são um índice de aprovação/rejeição, mas é com as suas explicações que o leitor terá desenvolvido um argumento, e dado algo para o postador pensar. E os argumentos, à medida que forem desenvolvidos, ou seja, à medida que razões para se gostar ou não se gostar de algo forem elaboradas, talvez achemos que "like" e "dislike" são pobres demais, e os deixemos de lado.

Como olhar o jovem


A educação dos jovens, em diferentes épocas, baseou-se na relação entre um adulto e o jovem a ser educado. Relação é troca. Relação educativa é uma troca de saberes, ou melhor, entre a disposição de um em ensinar, e do outro em aprender.

A instituição educacional dos gregos antigos era a pederastia (para escrever sobre a pederastia, e também sobre Sócrates, que abordarei a seguir, inspiro-me e baseio-me no livro "Sócrates, pensador e educador: a filosofia do conhece-te a ti mesmo", do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr.). Imagine a cena: jovens atenienses exercitavam-se, ao ar livre. O sol banhava seus belos corpos. Dois homens aproximaram-se, para vê-los. Um deles, marceneiro conhecido pela grande qualidade do seu trabalho, mira um dos garotos, especialmente belo. Faz a aproximação. O jovem interrompe os exercícios. Ele ri mal-disfarçadamente para os outros jovens.

O homem apresenta-se como um grande marceneiro (- "aquela porta que podes ver daqui, com uma das batalhas de Homero entalhada, rica em detalhes." - "sim, eu vejo. bacana."), e influente na cidade. Não tem herdeiros para o maior bem que possui, sua arte. Os finos e firmes movimentos daquele rapaz mostraram que ele leva jeito para a delicada e precisa marcenaria.

O homem convida o rapaz para ser aprendiz. Eles frequentariam as reuniões da cidade. O jovem teria um mestre, orientador, zeloso pelo melhor para ele. O jovem, acostumado a receber convites, novamente sorri para os outros. Pede que o grande marceneiro venha vê-lo novamente, amanhã.

Em uma sociedade em que Eros se fazia presente na educação e na política, a atração de um homem por um rapaz, o desejo de unir-se a ele, era tanto para troca de carícias sexuais, quanto para o ensino de algo que seria fundamental para o jovem: profissão e prática política.

Jovens sempre se reúnem em espaços públicos. Adultos os vêem, e têm expectativas para eles. O marceneiro da minha cena sorri e vê algo promissor no jovem que escolheu: ali há beleza, e também algo bom (o belo e o bem vinham juntos, para o grego antigo), ou seja, a possibilidade do desenvolvimento de excelências. O jovem tinha tudo para ser a melhor obra do marceneiro, fazendo-o feliz, na velhice. E estava em condições dele próprio realizar grandes obras, e também um dia ser feliz.

Os jovens de uma grande cidade frequentemente não são vistos com bons olhos: indisciplinados nos estudos, indecisos quanto ao que fazer da vida e possíveis ameaças à ordem e trangressão dos costumes são vistos pelos adultos que por eles passam. Frequentemente os pais deles são os primeiros a vê-los assim. A prevalência deste olhar vazio de boas expectativas é maior quando dirigido a jovens de famílias de baixa renda, ou jovens negros. Podem ser belos, dançando funk sensualmente na rua, mas isto é tomado como mais um fator que os levará ao mal (sexualização e gravidez precoce, e vadiagem).

Eles de fato conhecem muito do mundo, pois passam muito tempo em grupo, na rua e nas redes sociais. Não cessam de buscar o que querem. O que um pai, um professor e um psicólogo lhes oferece parece ser a última coisa que querem. A animação, as músicas e o compartilhar de movimentos torna-os sem paciência para aulas e sermões. Eles sabem muitas coisas, e não têm culpa.

Existem figuras que atraem a curiosidade de todos. São um imã para jovens. Sócrates amava o jovem Alcibíades, mas era por ele procurado. Como? Isso invertia a pederastia! Entre nós, um professor quer muito ser esse tipo de imã.

Sócrates era um coroa feio. Não se vestia direito. Mas sabia fazer boas perguntas. Boas no sentido de que animavam o interlocutor a falar longamente sobre o que fazia. Sócrates se interessava pelo que o jovem, ou qualquer outro, fazia. A um soldado corajoso: "o que é a coragem?". A um escultor: "o que é o belo?". Todos esmeravam-se nas respostas. Sócrates percebia, e apontava, que só estava a ouvir exemplos, não definições do que perguntava. O interlocutor tentava outra resposta, incorrendo no mesmo erro.

Alguns, que se consideravam importantes, irritavam-se com essa conversa. Outros tornavam-se seguidores do filósofo. Ouvir os discursos de qualquer pessoa, seguido dos comentários de Sócrates, era um prazer. Ele conversava com atenção e argúcia profundas. Com quem não desistia, Sócrates mostrava consideração a respeito do que a pessoa conhecia de si mesma, no sentido de conhecer a própria alma, as reais condições de fazer o que pretendia fazer, de ter o tipo de vida que queria ter. De Alcibíades, Sócrates diz-se amante, não do seu lindíssimo corpo, mas da sua alma. Ele queria o melhor para o jovem. E Alcibíades incessantemente buscava Sócrates, pois precisava ser alvo da atenção, das perguntas dele.

Sócrates era um homem mais velho e provocador. O jovem, curioso de tudo, tinha muita curiosidade por Sócrates. E, assim, sentia mais curiosidade sobre as coisas e sobre si mesmo.

É preciso ter espaços com música, internet, esportes, lugares para o jovem se interessar e se entusiasmar um com o outro. Também é preciso haver espaços com aulas. Nestes espaços, é preciso uma figura que inexiste quando o professor ganha pouquíssimo, e não olha com bons olhos, olhos promissores, ao aluno e a si mesmo: o homem, a mulher, interessante, que tenha valor, generosidade, mas que não seja óbvio. Que ensine o que é preciso, mas que olhe para o jovem e queira conhecê-lo. Queira que ele conheça a si mesmo.

O rapaz gosta de uma colega de turma. Ele não falta a um dia de aula. O professor tem a chave de como ele deve conversar com a garota. O professor tem alguma experiência de vida, e os garotos vão querer saber como ele arbitra um lance engasgado de uma partida de futebol, que eles tiveram, ou o que ele pode dizer de qualquer questão do dia a dia deles. É o professor-amigo, que consegue, sem querer, fazer com que os garotos venham e queiram ser vistos e ouvidos por ele. Admirados, olhados com olhos promissores.

MC Pai

Gustavo, Mc de Niterói conhecido como Black Alien, acabou de lançar online seu novo disco (https://m.youtube.com/watch?v=ALFAG8dvycY). Segundo disco, após dez anos do primeiro, muito querido pelos fãs de rap. Eu esperei pelo novo disco. Gustavo disse, em entrevista recente, que respondia aos pedidos dos que queriam ouví-lo, que ele próprio também queria ouví-lo. Mas um disco é um filho, ele diz, que você traz para este mundo e precisa conduzí-lo pela mão. Nem de pé ele consegue ficar, sozinho. Gustavo estava fazendo-o com muito carinho.

Gustavo passou a maior parte desses anos usando drogas, ele mesmo diz. Faltava a shows, ou se apresentava não tão bem para quem o via e chamava seu nome. De poucos anos para cá, entrou em uma clínica arborizada, espaço para refletir. Ele gosta de falar, e suas letras são extensas, mas calou-se. Pensou sobre a vida. Queria não mais dar sofrimento a quem gostava dele. Não queria jogar o próprio sonho no lixo.

"Eu vou ficar bem" é um verso repetido em uma das músicas novas. Em outra, ele é um avô dizendo tin tin por tin tin como será um avô que cuida do netinho. Gustavo tem 42 e, se não me engano, não tem filhos. Ele não conheceu um avô. Conheceu mãe, sempre fala dela. Ele quer pegar na mão dos jovens, acelerados. Cantar músicas de amor, para que namorem. Músicas de guerra, porque o rap vem da guerra. "Mas é sempre de amor".

Gustavo quer cuidar. O disco novo cuidou dele: começou a ser produzido na clínica. Antes disso ser possível, Gustavo olhou muito para a folha branca, sem o apoio da bebida e da coca. Escreveu e jogou papéis fora. Escreveu e amassou papéis, patinou e caiu. Todos caímos. As drogas te suportam, no início, não te deixam cair. Mas depois põem o peso do mundo sobre você. Limpo, Gustavo saiu do branco. Escreveu bem. Gostou do que escreveu. As rimas eram, afinal, amigas que o apoiavam.

Completou o tratamento na clínica. Mantém-se em tratamento fora dela, diz. "Só por hoje". Vai a religiões e diz que a própria vida está mudada e melhor. "Há uma inteligência que cuida de tudo, equilibra". Zen, mantém para si este pai, que lhe faz bem.

Hoje, disse ver tudo do palco, todos os cabos. Se o som falha, conta piada. "A arte é um trabalho especial, fazer as pessoas pensarem outras coisas, dançarem". É o seu modo de se sentir responsável por quem o vê. Hoje ele olha no olho de cada um, no público. São seus jovens, filhos. A filhos se passa recados. Na música do vovô, ele ensinava a andar. Tudo isso é cuidado.
Gustavo encontrou um mundo de proteção e suporte, para si mesmo e para os muitos que ele ouve chamarem-no. Pai.

Reconhecimento com ou sem esperança?

Uma criança passa em frente a um mendigo. Pergunta à mãe o porque daquele homem estar no chão, sujo, pedindo. Fica pensativa, e gostaria que as coisas fossem diferentes. O idealista mantém isso da criança: a pergunta, a esperança, o sentimento de injustiça doendo no peito. O thymos era, para o grego, a parte da alma do homem responsável pela ira e seus derivados. Um destes derivados é o orgulho, a busca por reconhecimento, "o outro deve me valorizar como eu me valorizo".

Na Ilíada, Aquiles sentiu-se injustiçado por Agamenon, e seu peito apertou. Teria matado o comandante grego, não fosse a intervenção de Atena. Recolheu-se, então, passando a repetir para si mesmo os fatos que fizeram-no sentir-se aviltado. Os gregos, sem a ajuda do melhor dos guerreiros, não negaram a ele o direito de se sentir injustiçado e, com isso, encolerizado. Lamentavam o fato, pois os troianos poderiam vencê-los, mas entendiam e levavam a sério a ética do guerreiro, a ética timótica, segundo a qual quem é excelente em sua função é destinatário de glórias, e está elevado perante os outros.

Aquiles tinha o que Hegel disse sobre o homem: ele arrisca a própria vida fazendo algo que lhe trará um grande reconhecimento (isto, do Hegel, e as noções de megalotimia e de isotimia, de Fukuyama, foram debatidas no último Hora da Coruja, dos filósofo Paulo Ghiraldelli e Francielle Chies: http://flixtv.com.br/tv/identidade-odio-e-politica-de-reconhecimento-hora-da-coruja-flixtv/). Quem sobe o Everest sente-se o mais fantástico dos homens, com autoridade para mandar nos outros, porque não?

Porque não? Fukuyama apontou o homem antigo como megalotímico (Aquiles é um dos mais célebres exemplos), mas o homem atual como isotímico: na ideologia liberal, entendemos que o estudo leva ao trabalho, Sobre Máscaras e Espelhos
ste leva ao próprio sustento e à condição de manter uma família e, além disso, esta pessoa escolhe candidatos a cargos públicos e torce para times de futebol. Esta pessoa nasce inserida no conjunto de expectativas sociais, e de pequenos reconhecimentos que advém do cumprimento delas, que valem para todas as outras pessoas.

Todos vêem a si mesmos como devendo seguir o mesmo percurso social, e tendo o mesmo direito, do que os outros, ao pequeno reconhecimento, e pequeno orgulho. Não observamos nosso thymos, nossa necessidade de reconhecimento. Nos vemos como racionais e emocionados por emoções racionalizadas. A criança tem seu brinquedo tomado por outra, e se sente injustiçada. O adulto vê esse thymos como bobagem de quem ainda não amadureceu, entendido como o amadurecimento da razão.

A criança ainda não abafou o seu thymos. Ela gostaria muito que não pegassem o brinquedo dela. Ela gostaria muito que na cidade dela não houvesse gente na sarjeta, passando necessidade de tudo. Ela gostaria de fazer alguma coisa, o thymos a empurra. Ela olha para o pai, e pergunta porque ele não faz nada. O homem comum atribui ao milionário e ao político o poder de fazer algo a respeito disso. Mas sabe que eles não têm vontade. Atribui a eles o direito, que ele mesmo não tem, de orgulharem-se e sentirem-se donos do mundo, mas não associa a este poder possíveis consequencias sociais positivas. A atuação que se imagina para este poder é sobre o próprio gozo pessoal.

Quem cai no mundo e pode ter a expectativa dos pequenos reconhecimentos, sentirá que deste lugar faz parte o testemunho da humilhação de muita gente. Você fará coisas em sua vida que lhe darão algum pequeno orgulho, e volta e meia se lembrará daqueles a quem é negado qualquer valor. Uma pequena alegria e uma pequena tristeza. Não se é o Eike para gozar. Não se é o Lula para ser cobrado.

Lula ainda deposita esperanças e cobranças de redução da miséria. Penso que o PT ainda não morreu na função de catalizador do thymos coletivo (a ideia de catalizador de thymos coletivo está no Ira e Tempo, do Peter Sloterdijk). E se ainda se espera algum projeto de mudança concreta e social do PT e Lula, após todos os abusos deste partido, é porque o homem comum vê como totalmente fora da sua mão a possibilidade de intervir sobre algo que sempre o incomodou: Aquiles não diria que há algo que o incomoda em sua cidade, e em relação ao qual não soubesse o que fazer. O pai não sabe o que dizer ao seu filho, em relação ao mendigo. Ele é impotente. Ou, se fica potente, é para agir como um integrante de grupo de extermínio, mascarado, de vergonha.

Até quando os assuntos do orgulho, do reconhecimento, atrelados a um bom feito, serão tratados como fantasias infantis? Veja como tornam-se infantis as pessoas que procuram fazer coisas boas para o mundo: negam que fazem aquilo por reconhecimento e/ou dinheiro. Fazer algo bom vai para um lado, reconhecimento vai para outro. Deveríamos ser educados para buscar reconhecimento por ganhos que nos fizemos ter, mas também pelo que ajudamos outras pessoas a melhorar. Não fazemos coisas boas só por amor. Também as fazemos por ira.



Bom e mau caráter


O bom-caráter diz não mentir, e ensina a não mentir. Tem esta boa característica, ou seja, a capacidade de conduzir-se de modo a fazer o bem e evitar o mal. Ele diz que foi a mãe que lhe ensinou isto, uma mãe muito amorosa. Tem esta outra boa característica, ou seja, uma mãe amorosa e doadora de bons conselhos. Ele apresenta a si mesmo como agindo de determinada forma e possuindo determinado background, e o primeiro é coerente com o segundo.

O mau-caráter, quando pego mentindo, para se justificar, conta um rompimento com o lar: a mãe brigou com ele, ou disse não gostar dele; a mãe morreu e ele não teve mais um lar; ele deixou a boa mãe em sua cidade natal e, não tendo encontrado emprego na cidade grande, passou a roubar, indo contra o que ele mesmo achava que deveria fazer. Houve uma quebra de confiança em suas relações, com os outros ou com ele mesmo. Este homem diz ser incapaz de aplicar sobre si boas regras de comportamento, e diz ter sofrido um rompimento em importantes relações. Ele pode tanto contar que a mãe não gostava dele, como desconversar sobre essa pessoa.

O mau-caráter o é por ter a característica de fazer o mal, e por estar relacionado a relações más. Ele não recebeu amor, de alguma pessoa ou contexto, e leva o desamor adiante. Ele teve um rompimento afetivo, e quer causar isso nos outros. E continuar fazendo isso com ele mesmo.
O bom-caráter diz a uma criança que ela não deve mentir. O amor que recebeu da mãe será o mesmo que sente por aquela criança. E o conselho que transmite também é o mesmo que ouviu. Como ele não está rompido nas relações com os outros, nem com ele mesmo, prossegue com uma linhagem de afeto e ensinamentos.

Em uma palestra (http://videos.sapo.pt/pCOgOEaZovZl1lJlybZA) mostrada a mim pelo meu amigo Pedro de Faria, o escritor português Gonçalo Tavares conta de uma judia, num livro de Philip Roth, que é levada a escolher entre o marido, o filho ou o irmão. Deverá escolher um, e deixar que os outros morram. Duríssima decisão. Mas, para ela, não impossível. "Marido, eu posso conseguir outro. E um marido não conhece meus belos anos, na juventude". Deixa de escolher o marido. "Filho eu posso ter outro. E um filho terá um grande futuro que não será visto por mim". Um irmão ela não pode produzir. O irmão dela guarda os bons anos de sua vida, com os quais ela se identifica.

Aqui pára Gonçalo, e entra eu. O irmão é guardião da característica dela, que lhe é cara. Isso está fora do alcance do marido, por mais que ela tente apresentá-lo àqueles anos. E o filho terá os momentos dele, que não serão os dela. A escolha dela é pelo espelho que a mantém sabendo quem ela é, relacionando-se com ela mesma. Já que não pode optar por preservar a vida dos três, ou de dois, não pode ser responsável por suas mortes. Não são pecado dela, não a farão romper com o que ela mesma acha certo. O conflito aqui é com quem lhe ordenou as escolhas, alguém com quem ela não tem qualquer relação. O odeia mortalmente. Já que precisa submeter-se, que salve a si mesma.

Carga morta


Uma carreta de frigorifico tombou, em São Paulo. (http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/08/carreta-que-transportava-porcos-tomba-no-trecho-oeste-do-rodoanel.html)

Não, não darei esta notícia, mas esta: mais de cem porcos foram mortos ou gravemente feridos com a queda da carreta que os continha. A tentativa de por a carreta em pé, com eles ainda dentro, causou uma segunda queda do veículo, amassando os porcos.

Não deveríamos noticiar a queda da carreta, e a obstrução do trânsito. Carretas podem cair, o trânsito sempre para. Mas, mesmo um âncora de tv que disse que os porcos deveriam ter sido retirados antes que se tentasse erguer a carreta, começa noticiando a queda da carreta e a obstrução do trânsito, e deixa as vidas perdidas em segundo plano.

O que é vivo não pode ser tratado como destinado à morte. Se isto ocorre, é como se nunca tivesse vivido. Quando foram postos na carreta, os porcos já eram considerados carga morta. Viva era a carreta. Se ela tomba, ninguém pensa que ela possa estar levando algo diferente dela, e que esteja vivo. Caso se considere que a carreta em deslocamento levava porcos vivos, pelo que a notícia de hoje mostra, todos os porcos morreram imediatamente à queda da carreta, e não era preciso verificá-los e resgatá-los.

Quando os porcos nasceram, nasceram como coisa a ser manuseada por máquinas (incluindo homens-máquina). A vida do porco é desde o início a vida das máquinas que o fazem nascer, crescer, ser transportado, morrer, virar presunto, ser comprado, ser comido e ser defecado.

O ambulante que foi atropelado por um trem, no Rio de Janeiro e, caído sobre os trilhos, teve o corpo retalhado pelo próximo trem, que não podia parar "para não atrasar e causar tumulto" (segundo justificou-se a operadora Supervia), mostra que os passageiros são vivos enquanto seguem o fluxo previsto. A queda de um deles é a queda de algo que não já não vive mais.

O trem do Rio é considerado transporte de "gente pobre". Gente pobre é tratada como porco: só existe se estiver em uma engrenagem, que é a vida que existe.

Mas isso também ocorre com gente que não é pobre. Um médico acredita que existe para curar doenças, e salvar vidas. No seu consultório particular, em um bairro de classe média, ele atende muitas pessoas. Tem uns pacientes que insistem em não tomar o remédio que precisam tomar, para determinada "função vital" dele continuar. O médico insiste um pouco, mas persistindo a recusa, ele desmarca aqueles pacientes, ou diz que não quer mais atendê-los.

O médico poderia tentar uma outra abordagem com estes pacientes, mas passou a vê-los como gente que agride sua função de "máquina de salvar vidas". São deixados morrer.

O medico tem nome, tem características individuais. Atende pacientes que têm características individuais. Contudo, tem com estes um funcionamento de máquina. Não sabe quem é o dono do órgão, e porque esse aí quer tratar do órgão, enquanto aquele ali não quer tratar. Não sabe nada do vivo, e imagina saber da vida.

A oposição "eu ou o outro"

João pergunta a José se ele gosta de Carlos, e ouve como resposta: "Eu não gosto de Carlos".
Em outra situação, Manoel, sem ser peguntado, diz para Paulo: "Eu não gosto de Carlos."

Na segunda situação, a oração expressa a oposição de Manoel em relação a Carlos. Na primeira situação, a frase dita por João também é negativa, em relação a gostar de Carlos. Esta provavelmente expressa o que sente João. No entanto, se é isso que está ocorrendo, a frase dita por João não é uma resposta lógica à José. José perguntou se João gostava de Carlos, e a negativa de João pode ter sido ao gostar, não implicando um desgostar. O contrário lógico de gostar não é desgostar, mas a ausência de gostar.

Quando se fala em desgostar, costumamos nos sair melhor com a lógica: - "Você desgosta de Carlos?" - "Desgosto, não". Não entendemos, com isso, que ele goste de Carlos. Está neutro.


Se deixarmos Carlos em paz, e falarmos de brócolis, o "não gosto de brócolis" também é tomado mais como um desgosto de brócolis do que um "não faz o meu gosto".

Não temos o costume de dizer que algo não faz o nosso gosto, que nos é indiferente. É como se, a princípio, tudo fosse gostado por nós, e então pinçamos um coisa ou outra pra dizer que não gostamos.

Nossas falas estão carregadas de afetos, e afetos não são gramaticalmente lógicos. Ou melhor, a gramática não estranharia isto que estou estranhando, pois incorporou a lógica da nossa fala corriqueira.

Os primeiros momentos de vida pós-nascimento são, para o bebê, imersão em um ambiente em nada separado dele. Ou melhor, não é possível considerar que haja um "ele". O bebê é um elemento num ambiente de outros elementos. Ele recebe olhares das pessoas muito próximas, e reage. Este elemento também envia os seus olhares. Tudo o que está à volta é para ser olhado e pegado. Aos poucos, porém, ele vai começar a recusar uma coisa ou outra, devido ao desprazer que elas proporcionam (a coisa pode ser apenas desinteressante: será desprazerosa se é repetida, não satisfazendo a necessidade de curiosidade).

Um pouco depois disso, o bebê começará a nomear a si mesmo, como um nome, ainda não como um eu. Ele é algo que não é a mesma coisa que o resto. Depois ele se nomeia como um eu, assumindo a condição de ser ele próprio a coisa que não é o resto. Antes disso, na fase de começar as recusas, ele já tinha gosto e "não faz meu gosto". Agora, como um eu, ele se tornou o ponto elaborador dessas considerações. A criança procede à negação do que o cerca, para ser um eu. A diferenciação em relação ao restante não é neutra, não é um "não faz meu gosto", mas tem o peso do "não", do ódio.

O que é recusado pelo bebê é o entorno sem forma. Daí emerge um eu. Quando João diz "Não gosto de Carlos", a recusa é específica a Carlos. Apesar disso, levamos para esse trato específico a "recusa por medo de ser soterrado". Por isso não dizemos simplesmente que "Carlos não é do meu gosto", mas carregamos nossa posição de negatividade. Esperamos de João mais do que indiferença: queremos saber a sensação ruim que Carlos provocou nele, e a opinião própria de João, dizendo quem ele próprio é.

Quando alguém recusa algo do mundo, não entendemos como isso pode ser neutro, um "não posicionar-se". Achamos que a negação de algo sempre tem que conter ansiedade, e ser a afirmação de algo diferente, um outro mundo, sem concordância possível com o primeiro algo, o primeiro mundo.

O que impede que nos vejamos em associação íntima com as coisas, não encerrados em nós mesmos, e como podendo cotejar diversos pontos de vista, ao invés de nos fixarmos em um, em contraposição a outro, é essa ansiedade por nos diferenciarmos do nosso ambiente.