quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Bom e mau caráter


O bom-caráter diz não mentir, e ensina a não mentir. Tem esta boa característica, ou seja, a capacidade de conduzir-se de modo a fazer o bem e evitar o mal. Ele diz que foi a mãe que lhe ensinou isto, uma mãe muito amorosa. Tem esta outra boa característica, ou seja, uma mãe amorosa e doadora de bons conselhos. Ele apresenta a si mesmo como agindo de determinada forma e possuindo determinado background, e o primeiro é coerente com o segundo.

O mau-caráter, quando pego mentindo, para se justificar, conta um rompimento com o lar: a mãe brigou com ele, ou disse não gostar dele; a mãe morreu e ele não teve mais um lar; ele deixou a boa mãe em sua cidade natal e, não tendo encontrado emprego na cidade grande, passou a roubar, indo contra o que ele mesmo achava que deveria fazer. Houve uma quebra de confiança em suas relações, com os outros ou com ele mesmo. Este homem diz ser incapaz de aplicar sobre si boas regras de comportamento, e diz ter sofrido um rompimento em importantes relações. Ele pode tanto contar que a mãe não gostava dele, como desconversar sobre essa pessoa.

O mau-caráter o é por ter a característica de fazer o mal, e por estar relacionado a relações más. Ele não recebeu amor, de alguma pessoa ou contexto, e leva o desamor adiante. Ele teve um rompimento afetivo, e quer causar isso nos outros. E continuar fazendo isso com ele mesmo.
O bom-caráter diz a uma criança que ela não deve mentir. O amor que recebeu da mãe será o mesmo que sente por aquela criança. E o conselho que transmite também é o mesmo que ouviu. Como ele não está rompido nas relações com os outros, nem com ele mesmo, prossegue com uma linhagem de afeto e ensinamentos.

Em uma palestra (http://videos.sapo.pt/pCOgOEaZovZl1lJlybZA) mostrada a mim pelo meu amigo Pedro de Faria, o escritor português Gonçalo Tavares conta de uma judia, num livro de Philip Roth, que é levada a escolher entre o marido, o filho ou o irmão. Deverá escolher um, e deixar que os outros morram. Duríssima decisão. Mas, para ela, não impossível. "Marido, eu posso conseguir outro. E um marido não conhece meus belos anos, na juventude". Deixa de escolher o marido. "Filho eu posso ter outro. E um filho terá um grande futuro que não será visto por mim". Um irmão ela não pode produzir. O irmão dela guarda os bons anos de sua vida, com os quais ela se identifica.

Aqui pára Gonçalo, e entra eu. O irmão é guardião da característica dela, que lhe é cara. Isso está fora do alcance do marido, por mais que ela tente apresentá-lo àqueles anos. E o filho terá os momentos dele, que não serão os dela. A escolha dela é pelo espelho que a mantém sabendo quem ela é, relacionando-se com ela mesma. Já que não pode optar por preservar a vida dos três, ou de dois, não pode ser responsável por suas mortes. Não são pecado dela, não a farão romper com o que ela mesma acha certo. O conflito aqui é com quem lhe ordenou as escolhas, alguém com quem ela não tem qualquer relação. O odeia mortalmente. Já que precisa submeter-se, que salve a si mesma.

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