quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O que é a diferença na escola?




Achamos que todos são iguais, em uma sala de aula. A cidade é o lugar de pessoas diferentes e, por isso mesmo, a princípio, desconhecidas umas das outras. Condomínios, clubes, associações e escolas dão a sensação de que uma pessoa tem ao menos uma coisa a ver com a outra. Contudo, expressões de afetividade e outros comportamentos diferentes do esperado, na situação de suposta igualdade, acontecem.

Crianças de até cinco anos entendem que o que define "menino" ou "menina", mais do que a diferença anatômica entre os sexos, são as coisas que um e outro gostam de fazer: ser menino é gostar de jogar bola, ser menina é gostar de brincar de boneca. A definição da identidade sexual está ligada, neste contexto, à prática, especificamente ao que cada um gosta de pegar para brincar.

Alguns pais também definem as crianças desta forma, entendendo, por exemplo, que um menino se forma, independentemente da genitália que possuir, se a pipa, a luta, a bola e o carrinho forem preferidos às princesas e bonecas. Dentre estes pais, há os que olham para o que a criança gosta de brincar para, justamente, "descobrir a sexualidade" dela, e usar esta informação para atacá-la.

Há crianças que têm um gosto exclusivo por brincadeiras e figuras femininas. No entanto, não é possível dizer que determinado gosto, e a identificação que se segue a ele, produzam, quando as crianças chegam aos oito anos de idade, determinada sexualidade. Muitas vezes as crianças não apresentam a coerência que especialistas e pais esperam encontrar entre gosto/identificação e sexualidade.

Na escola vemos preferências de identificação e brincadeiras indo para um lado, preferências amorosas indo para outro, temperamento indo para um terceiro lado, etc. Em um grupo ocorre a mesma imprevisibilidade que ocorre à pessoa.

"Faca sem ponta, galinha sem pé", da Ruth Rocha, era um livro que eu adorava: dois irmãos, um menino e uma menina, passam embaixo de um arco-íris e, como resultado, os gostos de um passam a ser os do outro. A menina se diverte chutando bola e sendo um moleque. O menino se maquia, embeleza. No fim, eles cruzam de novo o arco-íris. Os gostos voltam a "seus donos"... bem, não completamente: a menina e o irmão passam a voltar da escola trocando passes com uma latinha.

Os gostos não têm donos. As pessoas buscam criar conceitos sobre as coisas. Uma criança, ao definir a si mesma pelo que curte fazer, e ao outro pelo que o vê fazendo, também fica próxima de fazer com que essa definição se essencialize, ou seja, tenha uma validade extra-práticas, no caso, extra-gosto. A criança que se vê como menino pode entender que menino sempre gosta de futebol e desgosta de boneca, e que ele próprio só pode seguir esta ordem de preferências e, acompanhando isto, sempre deverá ser um menino. Acho que isso se dê por causa da participação do adulto na adjetivação de um como menino, e de outra como menina, e na vigilância das escolhas das crianças por brincadeiras. Este adulto acaba ajudando a fixar certos gostos e identidades.

Em uma escola, eu brincava de lobo mau com um menino. Cansei. Reparei que havia um grupo de crianças brincando de Hello Kitty. Do ponto de vista da anatomia, as crianças deste grupo eram meninas. Ainda sob aquele ponto de vista, entre elas havia um menino. Sugeri ao menino que brincava comigo, de ir brincar de Hello Kitty com eles. O menino do grupo grita: "só meninas podem brincar de Hello Kitty!". Por esta e por outras situações, eu observara que este menino tinha uma profunda identificação com figuras femininas, o que aparecia em seus gostos e comportamentos. O menino com quem eu estava, respondeu: "eu gosto de Hello Kitty!" E imitou a personagem. "Eu gosto de Hello Kitty". E novamente a imitou. O outro respondeu, surpreso e contente: "Jura?! Eu também adoro! Vem brincar com a gente!"

Enquanto aquela brincadeira durasse, todos ali de certa forma seriam meninas. A brincadeira era feminina. Talvez o menino que foi brincar depois não se dissesse menina, mas ele não se furtou a achar interessante um tipo de brincadeira "de menina". E, com isso, o outro menino, já uma menina, pôde ver que o outro não precisa gostar de coisas "de menino" e que, portanto, "menino" ou "menina" não precisam ter contornos tão rígidos.

Edgar Allan Poe tem um conto chamado "O homem da multidão". Nele, alguém toma uma bebida, confortavelmente sentado em um bar. Através do grande vidro, ele vê um grupo se deslocando de uma rua para a outra. O observador identifica a origem, as características psicossociais e o destino dos passantes. Passa outro grupo, e o observador também o interpreta. Surge um homem, que cruza a rua, apressado. Acerca dele, o observador não sabe o que pensar. Levanta-se de sua cadeira, sai do bar e vai atrás do homem, que cruza ruas, carros e pessoas. O observador mantém-se no seu encalço, sempre tentando decifrá-lo. Por fim, o homem da multidão some. A curiosidade com o indecifrável fez com que o observador, antes impassível, levantasse e percorresse lugares diferentes, se sujasse de lama e suor. Ele teve experiências novas.

São estes lugares e pessoas diferentes que achamos que se dão a conhecer por inteiro, na escola. Um eu é algo que se constrói e usa para se reconhecer a si mesmo, e para ser reconhecido pelo outro. Uma professora conhece os eus que compõem a sua turma. Entretanto, cada um é mais do que um eu: são vontades e afetos novos, a depender das situações que ocorrem entre as crianças, e junto com a própria professora.

Por curiosidade, a professora pode levantar da cadeira, e ir onde as crianças estão, para observar o que elas estão fazendo, aprender o que gostam e como se nomeiam, e como ela própria pode incentivar a vontade de um de brincar com a brincadeira (e a identidade) do outro.

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