domingo, 28 de agosto de 2016


“Ouviram, do Ipiranga, às¹ margens plácidas”: algumas pessoas encontravam-se às margens do rio Ipiranga, em São Paulo. Curtiam um sossego;

“de um povo heroico, o brado retumbante.”: de repente essas pessoas ouviram um alto grito, emitido por um outro grupo de pessoas. Essas pessoas eram em muito maior número do que as primeiras, além de serem heroicas. Quando se fala em uma grande quantidade de pessoas, e se põe em relevo uma ação conjunta delas, elas são chamadas de “povo”.

“E o sol da liberdade, em raios fúlgidos, brilhou no céu da pátria neste instante”: no céu da pátria surge o sol da liberdade, de raios muito brilhantes. A pátria, terra paterna, antes plácida, é chacoalhada por algo do qual se diz que será um arauto da liberdade;

“Se o penhor dessa igualdade, conseguimos conquistar com braço forte, em teu seio, ó liberdade, desafia o nosso peito à própria morte”: no seio da liberdade encontra-se o motivo para cantar e lutar. O guerreiro, em seu ímpeto, desafia até mesmo a morte. A essa morte, contudo, o guerreiro só se entrega se, com isso, conseguir garantir a igualdade. Luta-se pela liberdade pois, assim, garantirá a igualdade. A liberdade aparece como um meio e um incentivo para se atingir a igualdade;

“Ó pátria amada, idolatrada, salve! Salve! Brasil, um sonho intenso, um raio vívido, de amor e de esperança à terra desce…”: a luta pela liberdade é, enfim, em prol da pátria amada. As calmas margens do rio e a doce terra, no entanto, ainda não são o Brasil. O Brasil é um sonho, uma terra de liberdade e igualdade, e isso começa a se realizar quando os raios da liberdade cruzam o céu e atingem o peito das pessoas, causando o seu furor;
“se em teu formoso céu, risonho e límpido, a imagem do Cruzeiro resplandece.”: assim como chega às pessoas a imagem do Cruzeiro do Sul, o sonho intenso Brasil também as atinge;

“Gigante pela própria natureza. És belo, és forte, impávido colosso, e o teu futuro espelha essa grandeza.”: a terra pátria ainda é um gigante adormecido. É bela, mas será ainda mais bela, e também forte, quando reconhecer-se um colosso que se move na direção apontada pelos raios. O espelho da terra pátria não está no presente, mas no futuro;

“Entre outras mil, és tu Brasil, ó pátria amada! Dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada Brasil.”: nesse canto de otimismo já se identifica a pátria amada ao sonho Brasil. O povo não há de falhar, até mesmo porque, apesar dos raios que atravessam o céu e o peito dos homens, a terra continua sendo mansa e gentil. Assim também é a natureza dos seus filhos, embora neste momento eles estejam enfurecidos;
“Deitado eternamente em berço esplêndido. Ao som do mar e à luz do céu profundo”: o mar embala nosso sono, que é imortal, como todo sono. Nosso olhar perde-se na profundeza do céu, até que nossos olhos se fechem;

“Fulguras, ó Brasil, florão da América. Iluminado ao sol do novo mundo”: o Brasil-terra-pátria possui brilho próprio. Mas os raios que riscaram o céu, e fizeram das pessoas um povo heroico, vieram da terra da liberdade e da igualdade;

“Do que a terra mais garrida, teus risonhos, lindos campos, têm mais flores. Nossos bosques têm mais vida, nossa vida em teu seio mais amores.”: a bela terra propicia muitos amores a quem nela vive;

“Ó pátria amada, idolatrada, salve! Salve! Brasil, de amor eterno seja símbolo, o lábaro que ostentas estrelado.”: há de se viver um amor eterno. A terra-pátria propicia muitos amores, mas acima de tudo ama-se a própria pátria amada;

“E diga o verde-louro dessa flâmula, paz no futuro e glória no passado.”: a bandeira que simboliza o amor eterno também simboliza a paz. Mas não a paz que se vive no presente, do sono e dos amores, mas aquela que se conquista. Essa conquista deverá ser aquela em prol da liberdade e da igualdade. Os que um dia virem a bandeira do Brasil lembrar-se-ão dos feitos gloriosos dessas pessoas;

“Mas se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta.”: para fazer justiça, o juiz bate o martelo. Quando a clava se levantar, e ameaçar baixar, o filho da terra-pátria não se negará a participar da justiça;

“nem teme, quem te adora, a própria morte”: a terra-pátria jamais pede o sacrifício do seu filho. Mas ele adora tanto os ideais do Brasil, o que eles farão à terra adorada, que, em sua defesa, não preocupa-se consigo próprio;

“Terra adorada, entre outras mil, és tu, Brasil. Ó pátria-amada! Dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada Brasil.”

As crianças cantam esse hino ao menos uma vez por semana, na entrada da escola. É a primeira vez na vida que escutam as palavras povo, liberdade, pátria, igualdade, seio, morte, idolatrada, salve, esperança, etc. É a primeira vez que elas escutam a maioria das palavras do hino, mas as que eu acabei de destacar são aquelas que elas conseguem articular melhor, na fala.

O instrumental do hino tem momentos fortes intercalados com amenos. Crianças e adultos cantam-no sentindo que estão exaltando um tipo de amor muito importante, como o que sentem pela mãe. É um amor que conforta, mas que é exigente. O filho sentirá alegria, mas deverá lutar em prol de certos valores. A terra é aprazível e amorosa, mas cada indivíduo deverá se engajar na conquista de um bem essencial para garantir o futuro da própria terra-mãe.

1- No texto do hino que consta no site do Planalto (http://www2.planalto.gov.br/acervo/simbolos-nacionais/hinos/hino-nacional-brasileiro-1) , este “a” não possui crase. Entendo que esta seja a versão original. Contudo, escrito desta forma, o trecho indica que as “margens plácidas” é que “ouviram o brado retumbante do povo heroico.” Na minha análise sugiro um sujeito indeterminado a ouvir esse brado, o mesmo sujeito que, mais à frente, fica “deitado eternamente em berço esplêndido.” E em relação a este sujeito eu contraponho aquele produzido pelos raios do sol da liberdade, que é um lutador pelos valores do Brasil. Portanto, inseri o acento grave naquele “a” a fim de fazê-lo indicar o sentido que eu desejei que indicasse. Mas, relembro, não são a grafia e o sentido originais.

O prazer e o além do prazer


Hoje assisti a um Tom e Jerry. Tom dormia ao pé da dona. Jerry viu a geladeira esquecida aberta, cheia de comida. Sem que ninguém o incomodasse, e sem incomodar ninguém, Jerry pegou tudo.

Enquanto ele armava um pic nic no jardim da casa, a mulher acordou e percebeu a falta da comida. Acusou Tom, que chegou a apontar para o buraco habitado por Jerry. “Nem adianta culpar o pobre ratinho”, disse-lhe a mulher, pespegando-lhe uma vassourada que o atirou no jardim.

Tom aterrisou na grama. Dolorido, procurou o conforto de uma rede. Engatou um sono, quando percebeu que Jerry preparava-se para abocanhar um hot-dog. Tom não chegou a fazer nada: uma formiga começava a carregar um bolinho para fora da toalha de Jerry, que largou o hot-dog e tratou de enxotar a ladra.

Tom achou curioso aquilo, e ficou assistindo. Após reaver o bolinho, Jerry descobriu a formiga embaixo de um cacho de uvas que se movia sozinho. Em seguida, a formiga atacou outra comida, e depois mais outra, e Jerry não conseguiu sossegar. A formiga tinha fome, assim como ele.

Jerry ficou extenuado ao lidar com a formiga. Suspirou, fechou os olhos por um segundo. Quando abriu os olhos, o pic nic inteiro havia desaparecido com toalha e tudo. Apenas uns pedaços de queijo restaram na grama. Jerry apanhou-os, triste. Tom apareceu para acariciar-lhe cabeça, como quem reconhece a dificuldade dele. Aquele carinho também disse que a uma pessoa cabe aquilo que ela tem diante de si. Mesmo que um rato tenha uma grande fome, a ele cabe, no máximo, um pedaço de queijo.

Jerry conformou-se, e saiu. Tom disfarçou, foi para uma outra parte do jardim e encontrou o pic nic perfeitamente arrumado pela formiga. Eles se cumprimentaram, Tom deu a ela um pedaço de bolo e então ficou com aquilo tudo só para si.

Tom realmente não tem fome. Ele comerá toda a comida simplesmente por ela ter ficado com ele. Caso isso não ocorresse, ficar dormindo aos pés da dona estaria bom. Mas o rato perturbou aquela harmonia de cozinha com geladeira cheia. A fome desmedida do rato fê-lo armar um banquete. Caso Jerry tivesse conseguido comer em paz, aquela comida o explodiria mil vezes.

Tom agiu sobre esta situação através de um bicho de tamanho próximo ao de Jerry. Próximo no tamanho, mas não na posse de um buraco impreenchível: a formiga só queria o bolo. Formigas são acumuladoras, mas parecem ter limites. Para Jerry aquela formiga está mesmo interessada em toda a comida, e lhe parece inconcebível que ela possa comer tanto. Jerry ficou como um homem que tenta salvar objetos seus em uma enxurrada: “pra que ela precisa comer tanto? porque essa força tão destruidora, consumindo a minha vida?”.

Não, a enxurrada não quer o que é dele. E quando é uma formiga, ela também não quer levar tudo. O homem acha que uma grande força conspira contra ele E que esta força eventualmente pode vir na forma de um pequeno assaltante, que carrega pouco, mas que se faz seguir por uma cadeia infinita.

O rato comeria até explodir. Ele quer o sabor. Mas alguma lei não o permite fazer isso. Em todos episódios do desenho, Jerry tenta ganhar acesso a um mundo de comida. Ele sempre tenta comer até explodir. Mas o Tom humanístico não permite essa folgança.

Comer dá prazer, mas, por isso mesmo, ficamos perturbados com isso. Achamos que é preciso buscar algo maior do que este prazer. Ou o prazer de algo maior.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Como conheci Elke


No Silvio Santos eu via a Elke, o Pedro de Lara e a Rogéria. Pedro escondia bem o próprio sorriso. Rogéria era uma senhora bem chique. Elke também era uma travesti, mas com um jeito de quem comeria o mundo. Boca e braços abertos.

Era mãe, compreensiva. E era uma mulher que deixava ver sua gostosura. No Silvio Santos, ela também era travesti. A Flor não era travesti, por ser a moça bonita que de vez em quando eu via por aí. Alegre de um jeito que te engole era a Rogéria, se você fosse especial. E Elke te fazia especial.

Havia os homens, a Flor e a Sonia Lima. E as travestis. Eu gostava dessa palavra, travesti, entendia que era uma mulher misturada com homem, e com o melhor das duas coisas. Imagina se sua mãe pudesse te olhar ao mesmo tempo como mãe e como amigo? E se o seu amigo te abraçasse e não fosse um homem?

Não faz muitos anos descobri que Rogéria era a travesti do programa. Então, de onde vinha aquela alegria da Elke? Sempre pensei que, quando se era uma pessoa rica, a alegria vinha junto. Pois ser alegre é irradiar, e só irradia quem tem de sobra.

Elke era incompreensível: não era a minha mãe, não era meu amigo, não era a mulher comum, da rua. Deixava-me confortável, enquanto criança. E me prometia um mundo divertido, quando eu fosse adulto. Um mundo divertido e seguro, pois seria guiado pela Elke.

Elke era conforto e aventura. Não que fosse familiar, pois veio de um lugar distante e há muito tempo. Mas deixava essas coisas atrás de si, para que de vez em quando te mostrasse. Na frente havia os seus olhos e longos braços que, quando não festejavam, se esticavam. Enquanto a boca abria.

Era uma mulher que, mesmo segurando um cigarro, nunca tinha as mãos ocupadas.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Um homem pra chamar de seu


Quem não teve um homem mais velho para explicar as razões das coisas. Quem não foi amado, enquanto o próprio peito não tinha pelos.

Ser um amado, destinatário de louvores, ou seja, educação quanto a tudo e aos prazeres. A esse a filosofia, quando ainda não adentrada, parece difícil. O quanto é difícil ser amado. Mas necessário.

Você traz, do senso comum, algumas ideias que um dia já foram de Platão. E de Sócrates. Ideias, por exemplo, sobre a alma e os deuses. Ocorre de você jamais ter gostado de uma ou de outra.

Então você ouve esse senhor. Ele é rico, homossexual e velho. Portanto, ele atrai jovens. E o que faz é falar para eles sobre seu próprio mestre, aquela figura estranha e ainda não de todo decifrada.

Platão fala e vai te envolvendo. Isso significa que vai te oferecendo um mundo, uma ordem para as coisas. Nas primeiras vezes você se recusa a entregar-lhe todas as suas noções. Está preocupado no que pode acontecer caso venha a dormir em seu sofá. Ou então você dorme, pois não há nada a perder.

Sim, sempre há o que se perder. Mas Platão, um generoso doador de mundos, não tira nada de ninguém. Ele não tira nada. Mas nos deixa em falta.

Falo como quem deseja. Não exatamente Platão. Ele não é o objeto do meu desejo. Por isso, não se preocupe em entregar-se a ele, entregar-se a um objeto. O desejo é uma falta, um ansiar.

Ao se escutar Platão se deseja. Deseja-se escutar mais, falar para outros, escrever, etc. Refiro-me, aqui, aos clássicos em geral, livros que tiram cada um da posição de nada querer, e tudo saber, para a de falta e a de querer.

Como diz Erasmo, sou uma criança e não entendo nada.

"Eu te amo": um ataque


“Eu te amo”, você diz para ela. É a expressão de um sentimento. Que sentimento? O de que ela faz algo que te dá prazer. Você diz esta frase no exato momento em que sente o prazer. O amante estica a mão para pegar a flor. O que você espera ao dizer aquela frase? Conservar aquele objeto, a fim de garantir o prazer futuro.

Você espera que a flor estique a mão de volta para você. O amante, o ativo do amor, quer ser o objeto do seu amado. Quer tornar-se o amado dele, que ele passe a esticar a mão para pegá-lo.

O homem presenteia a mulher, oferece coisas que primeiramente enchem os olhos dele. Coisas bonitas. Ele quer que a mulher se veja refletida nessas coisas bonitas, e goste do doador daquele espelho. Ao fazer isso, o homem quer a recompensa de ser uma flor nas mãos da mulher.

Fedro, em seu discurso no Banquete, diz que os deuses têm admiração pela forma como o Aquiles amou Pátroclo, ambos personagens homéricos. Aquiles era um guerreiro excelente. Em sua tenda, tinha a companhia de Pátrocolo, que o servia, por amor. Os gregos estava sendo dizimados pelos troianos. Encontravam-se encurralados nas naus, quando Pátrocolo, ao ver a relutância de Aquiles em ajudar, vestiu a armadura do amado.

Pátrocolo pôs-se a lutar, e levou muitos à morte. Encontrou seu fim em Heitor, o comandante dos troianos. Ao saber da morte do seu amante, Aquiles sentiu terrível dor. A morte do amigo mostrara-lhe o caminho para o próprio destino. Vestiu-se de uma armadura especial, criada pelo deus Hefesto, e foi combater Heitor. A morte do troiano seria o seu último ato, ele sabia disso.

A flor esticou a mão para o seu amado. Aquiles tornou-se o amante daquele que um dia foi o amante dele. Lacan, no Seminário 8, retoma este discurso de Fedro para colocar o amor como a situação em que o amante torna-se o amado. Aquele que recebia os gestos de amor, os louvores, torna-se o autor deles. É isso que o homem espera que aconteça entre ele e a mulher a quem ele se dedica.

Mas o amor nem sempre é o resultado dos gestos de amor. O amado não responde como o amante gostaria que ele respondesse. Ele toma os presentes como agrados. Os agrados podem ser percebidos como geradores de dívida: “ele quer algo em troca…” vêm à cabeça do amado que não acredita mais que possa ocorrer o efeito mágico dos gestos do amor, ou seja, não acredita que possa novamente converter-se em amante daquele amante.

Quando isto ocorre, o amante também sabe que a mágica não está ocorrendo. Por isso, os presentes ou a frase “eu te amo” soam como ataque, com o sentido de “olha o que faço por você, enquanto você não faz nada por mim.”

A inversão da relação amante-amado, causada pelos gestos do amor, enquanto mágica, efeito de algo maior do que nós mesmos, acontece algumas vezes em nossas vidas. Se tivermos sorte. Meu texto pode ferir Eros. Num diálogo exclusivo entre Sócrates e Fedro, o primeiro, após ter deixado passar por sua boca um discurso detrator do amor, lavou os ouvidos, de modo a que pudesse limpar-se do mal causado ao deus. Ele queria continuar recebendo as suas benção. É por esse motivo que estou indo lavar meus olhos e dedos.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Parabéns sinceros a Rafaela


Rafaela Silva ganhou o ouro no judô feminino nestas olimpíadas de 2016(http://aovivo.folha.uol.com.br/2016/08/08/4970-aovivo.shtml). Ela é moradora da Cidade de Deus, uma favela carioca, e aprendeu judô em um projeto social.

A quem Rafaela agradece à sua medalha? Rafaela pode agradecer ao projeto social, que ensina coisas a crianças e jovens desassistidos pelo Estado, e sem o qual eles ficariam mais à mercê da violência. Sem este projeto, lógico, não haveria sequer a judoca Rafaela.

Mas este agradecimento, quando feito pelos militantes de esquerda, tem uma mágoa que nega a vitória de Rafaela. No facebook tem havido comentários de que a luta que Rafaela empreendeu contra suas difíceis condições de vida, para que chegasse a ser judoca e às olimpíadas, é uma luta contra toda a sociedade, que lhe negou os direitos. Então, dizem estes comentários, ninguém a não ser Rafaela e os outros integrantes do seu grupo de minoria podem comemorar o ouro olímpico.

Os direitos à saúde, moradia e educação do pobre são mesmo inexistentes. O direito ao lazer e ao esporte, então, é impensável. Projetos sociais são implementados por gente interessada em doar seus recursos em prol dessas pessoas. Curiosamente, dentre esses projetos, os esportivos são os mais realizados.

O esporte é uma fuga da realidade, ao mesmo tempo em que deixa claro um programa a ser seguido para que alguém se torne excelente. Este programa é o de uma partida, em que um garoto se esforça, marca três gols e é adorado. E é o de um treino para o campeonato que ocorrerá em dois anos, em que a evolução do garoto recompensa o esforço dele.

Rafaela, enquanto aluna de um projeto desses, sabe o esforço que precisou fazer para disciplinar-se e desenvolver-se como judoca. Ela, sem dúvida, agradeceria ao projeto social, enchendo de orgulho o responsável por ele. Mas o responsável pelo projeto não é o responsável pelo brilho de Rafaela. Rafaela é a responsável pelo seu brilho.

Quando se diz que todos devem calar-se, culpados, por terem atrapalhado Rafaela, o que se está fazendo é diminuir a vitória dela. As olimpíadas, em sua origem, tinham a função de mostrar a excelência dos deuses. Um atleta, ao vencer, mostrava a todos que ali ocorrera a ação de um deus, que um deus havia estado com aquele atleta. A cidade se regozijava, com isso, e este era o espírito olímpico.

Hoje, apesar das nossas preferências por times ou seleções, queremos que “o melhor vença”. Mesmo acreditando no esforço do indivíduo, ainda queremos que algo maior do que nós se faça presente. É assim que olhamos para Rafaela. É um indivíduo que se fez excelente, e venceu. E é a demonstração de algo misterioso, que trouxe a vitória até ela.

Acredito que todos vejamos isso, mesmo aqueles que, num segundo momento, danem a falar que Rafaela é vítima social, mesmo sendo campeã olímpica. A vitória de Rafaela é para todos, pois mostra que o melhor pode vir de qualquer lugar, em nossa cidade. É uma vitória, também, que nos desce amargo, por ainda permitirmos que os projetos sociais pequenos sejam os únicos a olharem para os pobres.

E é uma vitória da Rafaela, não contra uma condição de vítima, a qual, se houvesse pesado sobre ela, certamente não teria deixado que ela fosse excelente como é, mas uma vitória contra a própria dificuldade em disciplinar-se. Esta luta é comum a qualquer atleta, viva aonde viva.

A mentalidade que cria a figura da vítima não compreende que um indivíduo possa ser o melhor por esforço próprio. Se ele vence, automaticamente é um usurpador do direito de alguém. Ou, no caso de Rafaela, é alguém que venceu usurpações. Não se chega no esforço do atleta. E fica-se incapaz de dar parabéns sinceros à Rafaela. E a nós mesmos, por termos visto aquele belo waza-ri.

Só a aceitação de que esta é uma vitória de todos é que nos fará valorizar e dar mais condições não só ao esporte, mas a todas as atividades formativas. Faremos isso porque queremos mais ocasiões para nos orgulharmos de nós mesmos.

Já a assunção de que a vitória de Rafaela é uma vitória apenas de uma minoria continua com o cultivo do vitimismo e da lógica da necessidade, que não leva nada de bom a ninguém. O parabéns que vem disso é cheio de mágoa.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

O luminoso corpo de Davi


Josué, quando precisou finalizar seu ataque aos filisteus, pedira à Javé que fizesse o sol e a lua esperarem para trocar de posição, no céu. Seu ataque deveria ser às claras. O que é do conhecimento de Javé, o que não precisa ser escondido de ninguém, certamente é bom. Só os perversos atacam à noite.

Por duas vezes Davi teve a oportunidade de matar Saul, que o perseguia furiosa e incansavelmente: a primeira vez foi quando o rei entrou numa gruta, onde se escondiam Davi e seus homens, e Davi apenas cortou-lhe um pedaço do manto; a segunda vez foi quando Saul e sua tropa dormiam pesadamente em um acampamento, e Davi aproximou-se e pegou a lança e o cantil dele. Nas duas ocasiões, Davi logo depois apareceu para Saul e seu exército dizendo-lhe que Javé havia entregue a vida do rei em suas mãos, mas que ele mesmo não poderia atentar contra aquele que fora escolhido por Javé.

Em Davi não havia um pingo de vontade de matar Saul: mesmo no escuro da gruta, ou no torpor do sono do outro, ele nada fez ao rei. As situações favoráveis não mudavam sua intenção. A lateral do corpo de Davi, frequentemente representada como estando desnuda, não tem gordura, pelos ou músculos, ou seja, não há qualquer sinal de um corpo de homem. O homem tem o aspecto de sujeira: a sombra que fazem os músculos ou a gordura, ou o turvamento que fazem o pó e os pelos ou a distração causadas pelas manchas de velhice impedem que se veja nele a superfície virgem de um anjo. Um anjo age numa história, decide-a, mas não tem qualquer intenção. A Davi, a esta altura da história, só importa fugir de Saul, fazê-lo cumprir sua derrocada.

Rei Saul, quando do ataque aos amalecitas, desobedeceu as ordens de Javé quanto ao anátema (o extermínio de tudo o que fosse vivo, do povo conquistado, de modo a evitar contaminação cultural. Mas um sentido mais profundo do anátema pode ser o combate da ambição aliada à desobediência. Ao homem cabe ser ambicioso, porém mantendo a obediência). Samuel avisou Saul que Javé arrependera-se de tê-lo feito rei, e que passaria a estar com Davi, e não mais com ele.

Javé agora mandou um espírito mau para Saul, turvador de sua consciência. Saul era frequentemente acometido de crises, e justamente o objeto causador do seu opróbrio, Davi, era terapeuta dele, tocando harpa para acalmá-lo. Na pintura acima, de Ernst Josephson, Saul tem a face escurecida e apontada para baixo, como quem tenta manter dentro da cabeça as próprias intenções. Davi tem a cabeça erguida e o corpo desnudo. Seu tronco seria o meio pelo qual Davi faria qualquer ação, boa ou má que fosse. O movimento das suas fibras o denunciaria.

Mas, nos retratos de Davi, principalmente naqueles em que está com Saul, ele está com o corpo relaxado, como se o que fizesse não estivesse em contradição com sua vontade, pois, se estivesse, ela tentaria puxar o corpo dele para fazer outra coisa e as fibras do seu tronco se retesariam. No quadro de Josephson, a único movimento causado por Davi é o das costelas da harpa.

Davi simplesmente está ali, tocando harpa, com seu corpo totalmente transparente. Já Saul é o tormento daquele que vive o prolongamento da punição pelo próprio erro. A perseguição a Davi é a ação que lhe resta como rei. Um líder derrotado dedica-se a perseguir inimigos imaginários, que o aterrorizam.

Algumas vezes Davi fugitivo confrontou Saul com a intenção de ambos, tentando fazer o rei ver a clareza da intenção do jovem. Mas Saul insiste em querer eliminar Davi, à medida que sabe que ele mesmo será eliminado.

Saul não sente inveja de Davi por seu crescente prestígio, pois seus olhos estão voltados para o terror nele mesmo. Caim invejou Abel, por ele ter sido elogiado por Deus, enquanto Caim é que se via como merecedor disso. Qualquer um diria que o trabalhador Caim merecia o elogio mais do que o irmão. Mas o funcionamento das coisas escapa ao entendimento dos homens. Deus escolhe quem ele quer. Ou talvez escolha justamente aquele que achamos que mereça menos, na razão de que nos seja dada alguma lição sobre nossa vontade de controlar os acontecimentos.

A ação de Saul não era fulminante como a de Caim. A tortura de sua alma era longa, e sua perseguição a Davi durou bastante tempo. Ele não se perguntava sobre sua desobediência a Javé, o que seria o motivo de ter sido por ele abandonado. Ele pensava apenas em sua nova tarefa de líder, que era eliminar Davi. Seu propósito particular deu a direção do seu governo. O egoísta perde-se em fantasmas internos. Saul queria recobrar a paz. Então só via à sua frente matar a pomba branca.

domingo, 7 de agosto de 2016

O torso


O Rei Tritão, pai da Pequena Sereia, tem um belo torso. Uma mulher tem rosto, seios, quadris e coxas. O homem só precisa do torso.

O abdômen sobe até o peito, que precisa ser duro feito uma caixa. Esta caixa armazena lembranças de feitos passados. E é vazia, para ser enchida no momento certo, pela energia da ação guerreira.

Os ombros devem ser largos, para apoiar o braço esticado da mulher ou do amigo. O amigo vai além, e aperta o seu ombro, com a mão. A mulher apenas pousa o braço.

Ao lado do peito tem a grande região da axila. Área de pele macia, a que os pelos da axila, propriamente dita, tentam alcançar a fim de protegê-la.

A espada do adversário escolhe este caminho para o coração, pois é ao mesmo tempo curto e macio. Atingido, o homem cai de joelhos, e assume que pertence ao outro.

Abaixo se encontra a sequencia de costelas. Elas há em boa quantidade, indicando quantos parceiros suporta um homem.

Passear no torso de um homem é conhecer as histórias da sua vida de mortal. É perceber a sua fragilidade e, justamente por isso, a força que aquele homem já foi capaz de gerar e empregar.

Uma moça abraça este torso, e em qualquer lugar dele deita sua cabeça. Nenhum travesseiro aceita tão bem ser segurado e trazido de encontro à sua cabeça. E dá a sensação de posse.

Um rapaz abraça o torso, em agradecimento a tudo o que recebeu. Longe de querer possuí-lo, ao jovem também não preocupa ser aceito amanhã: se pôde abraçar o homem, é porque está tudo bem para continuarem.

Aquele homem depois sentará no sofá, erguendo o livro até os olhos. O rapaz verá a pele alva da zona axilar dele, e sorrirá.

Um homem procura reparar na zona axilar grossa de um outro homem que ao longe trabalha. E também no padrão dos pelos das axilas e do peito: mesmo conhecendo os próprios pelos, os de outro homem guardam uma assinatura complicada, um brasão.

Olha-se o rosto, os braços e as pernas. O torso se quer junto do próprio torso, para que aqueles vizinhos, finalmente e por um momento, habitem uma mesma casa.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Go, Pokemon GO, Go!


Sou fotógrafo. Vejo as coisas melhor do que qualquer um. Meus olhos são meu objeto, minha palavra.

Não vejo diferença entre objeto e palavra na sua função de apoiar, para um sujeito, suas ideias de mundo e de eu.

Aceitamos que um velho, na rua, seja definido por sua bengala. A objetificação é um meio de fazer um mundo e um eu.

Há anos meus olhos estão no Facebook. Muitos dizem que falta "contato social real". Falta a vergonha em se aproximar da garota que você viu no metrô. No Tinder você rapidamente fala com ela.

A palavra, o objeto, o virtual não fazem você perder o contato com uma tal "realidade". Tampouco (agora considerando aqueles um pouco mais simpáticos a estas coisas) eles são mediadores entre um sujeito e um mundo. Não há sujeito e mundo sem palavra, objeto e virtual.

Diga-se, palavra e objeto podem ser sinônimos pois, sendo empregáveis de diversas formas, têm vários sentidos. E o virtual nada mais é do que a abertura do objeto e da palavra para novas possibilidades de sentidos.

No Atari você se distraía. Diziam que você se arriscava a alienar-se. Nos simuladores você brincava de realidade com algo que, sendo um objeto usado por você, já era a realidade. E te chamavam de completamente alienado. Uma pessoa que tenha perdido um olho, num acidente, e implanta um olho que capta elementos externos e os transforma em impulsos nervosos. Maravilha da ciência, não? Ninguém pensa em dizer que falta a ele um olho a olho ao paquerar alguém.

Vídeo-game, simulador e olho-chip são objetos que, poderíamos pensar, trazem realidade até nós. Mas, volto a te dizer, eles são a própria realidade. Um garoto que joga vide-game não é um garoto que poderia estar jogando basquete. Eu não posso dizer do que ele não é, apenas do que ele é: um garoto que joga video-game.

Aqueles objetos são a nossa realidade, assim como a caneta-tinteiro deixou de ser a nossa e a esferográfica ajustou-se à nossa mão, enquanto nossa mão ajustou-se a ela. Da mesma forma perdemos precisão de dedos e de raciocínio, com o fim das máquinas de escrever, e ganhamos agilidade e multiplicidade da mesma faculdade, nos pcs.

Nas redes sociais escrevo, sou lido e converso. Eu não fazia estas coisas antes. E agora não posso parar. Quero ir além disso, como um amputado de ambas as pernas que coloca aquelas próteses de corredor. Sua natureza mudou.

Pokemon Go, pelo nome, me manda ir. Não é mais o mundo que vem. A ideia é que eu vá. Que eu vá à padaria de sempre e lá veja o que pode acontecer. Se você é escritor ou pintor, isso não pode ser mal. Ou talvez você se incomode porque a novidade no cenário foi gerado por um computador, e não pelo acaso ou por Deus. Um homem criou um bicho que se esconde na sua rua, e este homem nem está próximo de você, para te ouvir. Mas não é assim que é feito com as mercadorias?

A realidade não é algo eternamente ameaçado pela aparência, conforme pensa o senso comum. O garoto que joga, o escritor, o fotógrafo e o corredor são potencialmente tão sensíveis à necessidade exposta de alguém na rua quanto qualquer outra pessoa. A realidade nada mais é do que um conjunto, sob o acordo de outras pessoas, de apareceres. E há os apareceres que sensibilizam mais.

O escritor bem sabe o quanto o que os olhos dele vêem está misturado ao que ele imagina. Aquele aplicativo de Snapchat, em que sua imagem aparece como a de um cachorro, que lambe, é uma proposta, dentre muitas outras que podem ser oferecidas, de como posso expressar o que imaginei para o meu aparecer.

Então o virtual não é só o Street View, que vejo no meu pc (e me procuro!), nem o Waze, que, no meu carro circulante, traça uma rota imaginária por várias ruas (e eu o sigo!). Agora é o Pikachu na praça do seu bairro. Lá existem crianças, e cada uma tem a sua brincadeira. E tem o Pikachu, com as brincadeiras dele. Posso escolher uma criança ou o bicho. Tanto faz, pois elas também escolhem entre mim e o bicho. Ou brincamos juntos, com o bicho.

A virtual-realidade tem tudo para deixar as coisas mais divertidas. Pense em filósofos que podem conversar com o Sócrates criado diante deles. Pense em cirurgiões que operem um corpo virtual conectado ao de um paciente, e tudo o que se passa com este também se passa com o virtual: o cirurgião intervirá sobre o virtual, abrindo-o, sem precisar abrir o não-virtual. No interior deste, um pequeno elemento dirige-se ao ponto em que o cirurgião está mexendo, e realiza sua operação com o menor dano possível ao paciente. Pense no estimulante sexual que não seria, quando você estiver cansada do seu marido, mudá-lo completamente, e fazer sexo com esse marido mudado?

Podemos assumir que o virtual é o além-da-realidade. Isso incomoda os "realistas", que fazem suas visões a partir de teorias sociais e econômicas, atacam Grandes Males, e não olham para o mendigo na rua. Em relação a este mendigo, a virtual-realidade é olhá-lo imaginando-o melhor do que aquilo.

O virtual é o que pode vir a ser. Tem que ter inteligência livre e coração generoso para embarcar nessa. Por enquanto, vá experimentando-o no Pokemon Go.

Aliás, você já foi, né? Não é como esses bobos que gostariam de ir, mas estão pondo defeito.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Mãe Gisele não está esgotada


Gisele foi assaltada por um jovem. A polícia tenta prender o jovem, mas Gisele o protege. Isso, na abertura das olimpíadas (http://emais.estadao.com.br/noticias/moda-beleza,organizadores-cortam-assalto-a-gisele-bundchen-na-abertura-dos-jogos-olimpicos,10000066397).

Os programas de crimes da tv têm enorme audiência. Eles são sintonizados em casa, no refeitório da empresa, no bar. São programas para se bater o olho a fim de saber duas coisas: "o que aconteceu?" e "a polícia pegou?". Todos os casos são mostrados em torno disso.

Você pode assistir almoçando, e terminar de ver com o término do almoço, pois aquilo continuará passando sempre igual. Imagine se um filme, ao invés de ter um começo e um fim, tivesse o começo atado ao final, de modo que ele se repetisse num loop infinito?

Quando se comenta esse tipo de "notícia", é elogiando o policial, condenando o acusado, lamentando pela vítima. "Poderia ser eu", pensa-se, não só pela vítima, fazendo a si mesmo experimentar alguma injustiça e reclamando dela: esta frase também é pensada a respeito do policial, experimentando punir o outro; e sobretudo, é experimentada a respeito do culpado, aquele que folgou, nadou de braçada no seu desejo e agora terá os braços decepados.

"As coisas não são iguais para todos. É preciso se contentar com isso. Ou a punição é terrível", tal é a lógica que alinhava os três papéis. Nestas cenas não há Gisele, para proteger o culpado. A versão da cena para as olimpíadas, então, tem algo errado.

Houve protestos para a retirada desta parte da abertura do evento. Não suportaríamos assistir a um assalto na nossa cidade estando ao lado de muitas outras pessoas, como olhamos um jogo de futebol ou uma votação. Um jogo ou um concerto são situações mantidas como reservatórios de boas promessas, promessas de que o mundo é alegre e bom. O pessimismo que expressamos com nossos pares é vivido em uma hora, o espetáculo do ser acariciado pelo artista ou pelo político é vivido em outra.

A cena de Gisele não poderia ser apresentada também pelo fato de não sermos Gisele. Assistimos a uma cena de crime, vivendo-a, mas sem que haja a possibilidade de perdão do criminoso. O homem que goza no roubo e no estupro não pode ser perdoado. Nunca devemos agir como ele, curtindo a sensação de fazer algo ruim. A "melhor sensação" de todas (assim considerada por nós justamente por ser a mais proibida) deve ter a maior punição.

Estar em uma multidão e ver o gesto de Gisele nos doeria muito. Ser perdoado, enquanto criminoso. Ser um policial tornado culpado de perseguir um jovem. Um espectador culpado por ter desejado o sangue do jovem. Aquilo que fazemos no escuro não queremos exposto. Gisele é como o sol, onde ela aparece tudo ao redor fica iluminado. Então, nada ruim ousa aparecer perto dela. Envergonhamo-nos do nosso ódio ao jovem que rouba. Este ódio é uma raiva de indivíduos que sentem que os bens do mundo são escassos, acham que todos vivem querendo pegá-los e que o que se tem deve ser defendido por armas.

Somos filhos ciumentos de uma mãe a quem achamos que privilegia nossos irmãos. A humanidade produz muita riqueza. De fato não nos falta nada. Mas insistimos em dizer que sim. Pensamos sob a lógica da escassez. Criamos sistemas de produção e distribuição de bens capazes de nos alimentar sem sentirmos fome. Criamos um modo de vida que nos faz sentir protegidos e estimulados como no útero da nossa mãe. Apesar disso, desde que caímos do Éden nossa experiência tem sido a da falta. É a experiência de que a vida é sofrida, de que sempre nos falta algo e, por isso, defendemos à unha o que temos.

Não percebemos que, se estamos aqui, escrevendo e lendo, algo nos sobra. E que este algo nos empurra à doação, inclusive para quem tem um grande potencial para desenvolver-se mas está na rua, pedindo dinheiro. Ou à adotar um cão.

Desde que perdeu a centralidade do poder, no Brasil, a auto-estima do carioca anda baixa. Ele pensa que só tem assalto e violência a oferecer ao mundo. A cena com Gisele quis mostrar algo além disso. Ela, sendo a beleza, não é o ódio da polícia e a carência do pivete. Ela é uma espécie de útero com recursos para ambos. Não é a mãe esgotada de crianças famintas e que se matam umas às outras.

Gisele quis mostrar que temos para dar ao mundo uma coisa diferente de carência e de porrada. Quis mostrar não só para os estrangeiros, mas também para nós, a beleza de um olhar mais generoso.

Não quisemos ver, e a cena foi cancelada.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Contra o fogo olímpico.


Queremos apagar o fogo olímpico. O fogo que corre nossas ruas e tenta evocar espíritos olímpicos em nós. E fazê-los girar em multidão de insetos na luz. Seria o "brasileiro que ama esporte".

Em época de Copa, Galvão gasta saliva e a paciência tentando fazer um Brasil, empurrando a paixão por futebol. É como se a Seleção, que "joga moleque", fosse como eu e você. E é como se ela desse exatamente o que nos falta: um povo carente precisa de um divertimento para a necessidade frustrada não virar abandono, e o orgulho ferido não virar ódio.

É por molecagem que eu e você falamos em apagar a tocha (enquanto a molecagem da Seleção é acrescida de habilidade, a nossa é para atrapalhar algo). Não há qualquer discurso, movimento, fazendo isso. Discurso e movimento são o olímpico.

Há esboços de discurso contra-olímpico lembrando das más condições das políticas públicas. É uma cutucada pela lógica da necessidade que não tem feito muitos adeptos, não está formando alguma coisa. É mais da ordem da reação.

Não sei o que é o Brasil. Somos algo indefinido. Quando há eleições presidenciais, mostra-se a multidão do candidato x e a multidão do candidato y. O Brasil, então, fica parecendo estar divido em dois. Para nós, o natural é sermos um. Tanto que, se grupos divergentes e pró-governo surgem durante um mandado presidencial, diz-se que o Brasil está patologicamente rachado.

O Brasil, na verdade, pode ser muitas coisas, e muitos. Mas os indivíduos têm brincado de tentar apagar a tocha. Se o Brasil que segura ou quer segurar a tocha é o "bom Brasil", que é pobre mas continua trabalhando, e levando fé nas olimpíadas, aquele que quer apagá-la é algo que não se importa com ela ou com o anzol da humildade, da fé e da alegria, que lhe lançam.

Não é o mau-Brasil. Não é o Brasil. Não é um todo, porque não há amor-necessidade, necessidade-que-faz-amar, unindo-o. São indivíduos que fazem pouco caso. Não são os que querem apagar a tocha por sentirem ódio. Até os há. Mas o espírito geral é o de não importar-se.

Se há a vontade de apagar a tocha, é quando ela "por um acaso passar perto da minha rua". Dou um pulo lá e jogo um balde d'água. Depois conto essa história, nos intervalos da atividade que eu faço, que considero um pouco mais importante para mim.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Pai por um dia


"Seu pai disse que viria hoje, mas ele não vai aparecer". Ninguém diz uma verdade dessas à criança. À criança se dá o direito da inocência.

Inocente é aquele que não sabe das coisas. Mais especificamente, não sabe da intenção das pessoas. Ou do funcionamento do mundo. Ignorante é aquele que não sabe matemática ou é bruto no trato com os outros. Burro é quem não sabe matemática e nunca virá a saber, pois empaca.

O inocente não está sendo avaliado por sua capacidade de aprendizagem de conteúdo escolar. E é uma pessoa doce, que se deixa levar pelos outros, acredita neles.

Não tem outro jeito, a criança precisa esperar pelo pai que não virá. A criança espera algo, por isso espera um pai. Acredita que ele dará "isso" a ela. Talvez esse "isso" seja a virada na condição, dela mesma, de ser uma "sem pai" para a de "tenho pai". Ela terá um pai, a criança acredita. O pai chegará, o dia com ele será ótimo, e ela dormirá sabendo que o pai faz parte da sua vida.

Quando uma criança fala com outras crianças, ela lança os momentos que viveu com sua mãe, sua avó, e também com seu pai. Um pai é meio prático demais, meio explicado demais; meio bonzinho, meio severo; gosta de ficar no sofá, gosta de levar a criança pra um lugar legal; gosta de ficar sozinho e em silêncio, gosta da alegria saltitante da criança; etc. Ela percebe tudo isso. E conta aos amigos as coisas que seu pai lhe disse, ou que ela fez com ele.

A mãe proporciona boas histórias. Assim também é a vó. Mas são histórias de casa. O pai tem potencial para histórias maiores. Ainda mais o pai com quem não se mora. Ele é um marinheiro que voltará com histórias incríveis, objetos impressionantes e o melhor: com vontade de levar a criança para também viver isso! A criança quer o pai fujão quieto com ela. Assim, um dia eles poderiam fugir juntos, mas para voltarem à noite pois ela precisa dormir com sua mãe.

Já com o pai com quem se mora, mesmo que não seja pai biológico (ainda tem sentido falar isso?), a criança quer ser escutada e atendida. Quando ela fala "pai", é para evocar uma figura de proteção. "Pai, proteja-me do mal interno ou do mal externo, que me aflige". É o mesmo sentido do "pai" dito pela mãe ou pela vó: "Proteja a criança do mal interno ou do mal externo, que a aflige".

É fácil para uma criança chamar alguém de pai. A criança precisa de um pai, por precisar sentir-se bem e ter algo para levar aos amigos. Por precisar, eventualmente, proteger-se da frustração com a mãe. Mas a um pai é difícil dizer filho. O homem duvida muito de si mesmo. Ele se envergonha.

O homem gosta de estar com o filho, deixá-lo feliz, ensiná-lo coisas. Adora ser chamado de pai. Isto o faz sentir-se gerador de algo. Mas ele teme chamar a criança de filha. Teme o olhar dos que estão ao lado da criança. Este olhar lhe diz: "você diz filho, essa é a sua geração. Mas o que você tem feito por ela?". Este homem deixa-se perturbar pelo amanhã, ou pelo passado. Ele não confia se o que fará após aquele momento com o seu filho lhe permitirá que haja um novo momento com ele.

O homem acha que não está conseguindo gerar bem o filho. Não tão bem quanto a mãe dele o gerou. A mulher sempre gera o filho muito bem: se ele está vivo, a gravidez foi ótima; e é óbvio que a mulher não vai deixar o filho ao natural, nem ela ser primitiva a ponto de não vestir, não alimentar, não acariciar e não ensinar os rudimentos de educação ao seu filho. Então uma mãe não falha.

Já quanto ao pai, é muito comum ele ser covarde. E a criança sempre o perdoa, e acredita nele. A criança sempre acredita. Deixamo-la acreditar em Papai Noel, mesmo sabendo que um dia ela descobrirá que ele não existe. "O mundo tem algo mágico", é o que queremos que a criança pense, e que o adulto em que ela se tornará conserve isso. "Existe o bem máximo, alguém cuja única intenção é sorrir e dar presentes." (a exigência de ser um bom menino não é lá muito forte).

O pai tem as dificuldades dele, a criança fica à mercê. A mãe bem sabe disso, tenta ajudar o pai, mas também preocupa-se com a criança. E nunca diz a ela que Papai-Noel não existe. "De repente aquele homem toma jeito e vira pai"; "Um dia esse pai será um pai melhor."

Então a criança começa a esperar menos. Ela está fazendo outras coisas, arruma suas próprias aventuras. Um marinheiro que aparecesse nesse momento seria interessante de escutar, mas o garoto não largaria a própria vida para segui-lo. Pensaria em largar, pois ainda tem fantasias, mas não largaria.

Essa criança será como a mãe, que não é mais inocente, sabe que os outros prometem e não cumprem e que não se pode ficar à mercê deles.

Mas ela ainda conserva a pitada de esperança que a faz ser uma pessoa que busca fazer coisas boas, no mundo. E ainda esperar que aquele homem um dia seja pai. Ao menos por um dia. Com a ajuda dela.