domingo, 20 de julho de 2014

Jogo e amor frios

O jogo e o amor não têm mais a ver com talento ou sorte, não dão mais emoção. Em uma seleção de vendedores para uma grande rede de livrarias, a psicóloga e um dos gerentes fazem-se de casal de clientes insatisfeitos. Eles falam alto, não aceitam as soluções oferecidas pelos vendedores, e todos vão ficando mais e mais nervosos. O candidato que mostrou-se mais calmo, e que ao mesmo tempo teve a melhor iniciativa, as melhores ideias, ficou com a vaga. A chamada "dinâmica" é apresentada como uma simulação do trabalho real. Entretanto, no trabalho real, o que conta é conseguir permanecer horas de pé, com a mesma boa cara e solicitude, para os clientes, e arrumar muitas prateleiras de expositores e de depósito, com a mesma atenção. Um cliente nervoso é acontecimento raro, por isso, o não explodir diante dele também não é requerido sempre. E boas sugestões e conhecimento em livros, quando oferecidos, são coisa de vendedor chato, falante demais. O funcionário que se contém em discussões, e em tarefas não se contém e mostra-se criativo, é o sujeito moderno, que governa suas emoções, e consulta a si mesmo e se aciona. Ele é tudo o que não permanece em uma empresa, média ou grande. Grandes empresas, no Brasil, formam conglomerados. Não há competição no mercado, e no cotidiano do do trabalho, a criatividade e a garra devem dar-se dentro do já estipulado. Em uma das Lojas Ameticanas a locutora fala o placar de uma outra loja e incentiva as caixas a atenderem rápido e a sugerirem aos clientes o cartão da rede e outros produtos. Em uma festa infantil, os animadores dividem as crianças em equipes e pedem que busquem isqueiro no meio dos adultos, adivinhem a música, etc. O dia a dia em uma empresa é uma gincana: a aparência é de competição e de que há chance de o desempenho individual ser bem recompensado, ou tornar-se uma ideia-mestra do setor ou do negócio, mas não há real competição. E todos sabem disso. Uma atendente de caixa ou um executivo que sejam elogiados num dia, no outro podem ser mandados embora. Ou terem que repetir o brilho de novo e de novo, pois o brilho não dura. As relações pessoais também seguem o script. Nas histórias, o homem corre, agarra a mulher e a beija. Faz isso todos os dias, com pequenas variações. É ousado, vive suas emoções intensamente. Ainda existe verdade humana, acreditamos. Eis que alguém se interessa por você. Manda um whatsapp de bom dia, liga à noite. Você imaginava mais ou menos isso, está dentro do esperado para alguém interessado. Então ele resolve dizer que tem pensado muito em você, e que deseja um encontro. Para Platão, a paixão é uma loucura divina: sob efeito de Eros, a pessoa esquece tudo e todos, e quer atirar-se ao seu amado. É incoveniente, atrapalha a própria vida e a do outro, mas lisonjeia o amado, vê nele belezas que outros não vêem. Deseja-lhe coisas maravilhosas. O objeto do amor ajudará seu amante a aprender a conter-se. Entre nós, a emoção real é a da história, e tem que continuar nela, a não ser que se dê conforme um script. A possibilidade de perder tudo no amor e nos negócios não existe, nem de ganhar, pois todos são iguais, chances num jogo sem novidades. A ousadia do homem resume-se a um topete e a "ter pegada". As emoções devem não ser curtidas, sofridas e excitarem, mas serem tensão, alegria e tristeza em jogos de lances repetitivos ou já previstos, e com o objetivo ou curto ou já traçado. Não há expectativa, surpresa, nem real espontaneidade, euforia ou depressão.

As lições e o erro de Laerte

Laerte tocava flauta e namorava Helena. Encantava outras garotas, com sua arte. Não conseguiu, contudo, encantar completamente Helena. Ela tinha o Virgílio. Laerte não conseguiu casar-se com ela: foi detido por um atentado contra o rival amoroso. Assim que desvencilhou-se da justiça, viajou. Formou-se um homem integral. Além dos estudos regulares, estudou música. Ficou lindo de corpo e refinado de espírito. Um nobre, como sua mãe desejou que ele se tornasse. A mãe fez de Laerte um mito, o filho que se preparava para tornar-se o herdeiro da nobreza da família. "A mulher é atendida e honrada não só como um ser útil, como sucede no estágio campesino descrito por Hesíodo, não só na qualidade de mãe dos filhos legítimos, como se vê na burguesia grega dos tempos posteriores, mas acima de tudo e principalmente porque, numa raça orgulhosa de cavaleiros, a mulher pode ser mãe de uma geração ilustre. Ela é a mantenedora e a guardiã dos mais altos costumes e tradições." (Werner Jaeger, Paideia. p. 46). Laerte voltou excelente em tudo. Seu som atraía a atenção de todos, principalmente das mulheres. Foi parceiro de uma. Professor de outra. Sua beleza integral encantava, atraía. Cada ato seu, tocando, fazendo sexo ou discutindo pretendia educar, transmitir sua nobreza. Não as amava. Seu amor estava com a única mulher que não conseguiu fazer render-se: Helena. Ela o amava com uma dedicação de sentimentos, não de atos. As encantadas, sim, eram só dele. No dia do casamento com Luísa, estava confiante. Encorajou a estudante de piano, a quem ensinava, a expressar toda a urgência do seu desejo por ele. Ele adorava ver a mulher se rendendo. Beijou-a brevemente. A antiga parceira chegou, a aluna escondeu-se, e a conversa foi sobre a necessidade dele em possuir as mulheres. Para ele, eram lições de refinamento. Mas, na verdade, fazia-as experimentarem a beleza dele para, então, entregarem-se por completo, ficarem suas escravas. Em algumas horas, ele teria a sua Helena. Finalmente a dobraria. Descuidou-se na conversa, perdeu a nobreza e disse estar apenas passando o tempo com aquela menina, a estudante. Jamais ficaria com ela. A estudante ouviu. Ela era um nada na história de Laerte, uma conquista menor frente às outras. No casamento, todas assistiram ao grande conquistador aliançar-se com Luísa. Elas sempre seriam dele. A estudante foi a única de quem o encanto se quebrou e virou choro. Laerte não a viu na igreja. Não viu de onde veio o tiro. O tiro veio de lugar nenhum. Laerte morreu sob a chuva, olhando para cada uma das suas mulheres e tendo flashbacks de beijos. A última imagem foi a da garota com raiva e salto alto, segurando uma arma, com o braço esticado, relaxado.

Duas mulheres de Laerte

A mãe de Laerte, e Shirley, viajaram pelo mundo, experimentaram de tudo e agora curtem a família. O marido da primeira morreu. A segunda não chegou a se casar. No desenrolar normal da sua vida, a família burguesa se desintegra. Estas duas mulheres ocupam-se em narrar a vida daquele que sofreu por amor, quase matou um amigo, foi preso e exilado, especializou-se e brilhou no exterior, e agora está de volta. A mãe de Laerte o mantém como homem especial, bom demais para qualquer mulher. Shirley o mantém como dono da noite mais quente dela, e dono das noites incríveis de outras mulheres. Mulheres que correm para confirmar o bom gosto de Shirley. Casar com Helena seria o fim dele, a mãe avisou. A fixação por ela, tê-la só para si, uma vez realizado, cessaria o brilho dele. Shirley anunciou o casamento como o último dia de vida de Laerte. No dia seguinte o sol nascerá... sem ele. Ela é o demônio que sabe o seu fim. Sempre acompanhará aquela alma. Ela o avisa sobre a porta que o leva à morte. Deixa-o ir. Passando da porta, só a mãe conversará com ele, observada por Shirley. O corpo do filho é um desconhecido, assim como a própria face, no espelho. A mãe conversará com Laerte e o marido, mortos. Ainda se encaixam, as peças da família.

Meu amor me bateu

Um amigo te dá um tapa na cara. Ou é você quem bate nele. Não há raiva envolvida. Se há, já não se era amigo. Um quer que o outro "caia na real", "pegue no tranco". No sexo, o tapa na cara ou na bunda é para atiçar o fogo de ambos. Sócrates conversa com Gláucon sobre as características físicas e de alma dos guardiões da República (que Platão estava montando, em seu livro de mesmo nome). Os guardiões devem ter força, percepção aguda e velocidade. E combinar animosidade, prontidão para defender a cidade, em caso de ataque externo, e brandura com seus concidadãos. Animosidade combinada com brandura: será possível existir um bom guardião? Sócrates lembra do caráter dos cães de boa raça. O que faz com que tenham prontidão para atacar os inimigos, e ao mesmo tempo, docilidade com os concidadãos, é o fato de se guiarem pela sabedoria. O cão de boa raça é filosófico "no sentido de que distingue em tudo (e em todos os indivíduos) que vê um amigo ou um inimigo com o único fundamento de conhecer o primeiro e não conhecer o segundo. Como negar o amor ao conhecimento a uma criatura cujo critério do que lhe é (próprio e) amigável e do que lhe é (estranho) e hostil é conhecimento e ignorância?" (Platão, A República. v.376b). Em relaçôes amorosas, o thymos está mais para orgulho do que para animosidade. O amante se jogaria ao encontro do seu amado. Algo o pára. Quando enfim se joga, e os beijos são intermináveis, algo faz seu corpo pular da cama, depois de algumas horas. Pode ser um pedido de calma, por parte do amado. Pode ser a ameaça do fim do dinheiro para o vinho, o chocolate e os filmes. A razão mesma nos diz para frear os desejos, as paixões. A parte da nossa alma de onde elas vêm sofre com a contenção, a ordem de que espere um pouco mais. A alma sangra internamente, mas se segura. Espera o momento do sim. Espera a primeira vez. Não quer deixar faltar os agrados à amada, e vai trabalhar. Ele mesmo lava a cara e se estapeia. O tapa que a mulher dá é o mesmo tapa interno, que hora manda esperar, hora não deixar faltar o que tem que ter. E no sexo funciona como o ferro em brasa na carne que esfriava, fazendo-a cavalgar. Entre amigos é uma sacudida para quem faz menos do que pode e deve fazer: quem pensa mal, decide ou opina mal, trabalha mal ou casou mal leva um tapa para cair em si e usar melhor o potencial que tem. Por isso não é por raiva, nem dá raiva. Dá raiva de si mesmo, "como posso ser essa besta?". Ninguém está livre de fazer merda. Aquele por quem se tem amor torna-se a razão, quando falha nossa razão interna. Ao lado do amor, há que levarmos a sério o orgulho e a hostilidade. Isso, ou amaremos porcaria. Ou amaremos os nossos inimigos, mesmo sabendo-os inimigos, ou não os conhecendo o suficiente. Sem orgulho, dignidade, moral, etc, a razão e o amor-próprio são atirados pela janela.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Bater, rir e passar uma cantada

Para Hobbes, o ser humano é naturalmente desconfiado de outro ser humano. E competitivo. Um estado de constante guerra de todos contra todos seria inevitável. Para poder viver em paz, sem medo de ataques, os homens criam um "pacto coletivo de renúncia ao uso irrestrito da força" (Castro e Ghiraldelli, A Nova Filosofia da Educação, p.160), em que cada um abre mão de parte da sua liberdade e delega a um soberano (o Leviatã) o monopólio do poder da coerção. O Leviatã age em nome de cada um, cuida da proteção do indivíduo enquanto participante da coletividade de homens. Na República, do Platão, o guardião deveria combinar, em sua alma, a animosidade e a brandura. A animosidade é prontidão para reagir a qualquer ataque à cidade. Brandura é a característica do cão que não morde seus companheiros cães e humanos. O bom guardião defende a casa, e não a destrói internamente. Ele precisa ter sob controle o seu impulso guerreiro. As ações da polícia nas recentes manifestações de rua, no Rio de Janeiro e em outras cidades, mostram que não tem havido esse autocontrole, por parte dos policiais. O Estado não fornece uma escola que permita a melhoria das condições de vida da população, que se ocupa no setor de serviços e comércio, na maior parte sem direitos trabalhistas. No comércio ilegal de drogas, as armas permitem que os jovens experimentem algum poder sobre suas vítimas e a própria comunidade em que vivem. Querem encantar as garotas. O soldado (de curta vida) do tráfico tem a animosidade turbinada pela droga e pela excitação dos tiroteios e outros crimes. A violência é o modo com que nos relacionamos. Policiais não se vêem como guardiões equilibrados, funcionários da tarefa estatal de segurar uma arma para proteger quem está à sua frente: o poder que conta é o dele mesmo, e ele se apresentará em qualquer situação com a intenção de coagir alguém. O Estado os solta assim, despreparados técnica e psicologicamente, para lidar com a "massa". Em relações baseadas em pequenos poderes violentos, o sexo, já isento de erotismo, é confundido com agressão. Muitas relações íntimas dão-se num clima de dominação, e o carinho é parte de um ritual bruto. Em Negrinha, conto de Monteiro Lobato, a Senhora tem por maior passatempo os castigos cruéis sobre a menina negra orfã. A menina nada fala, sente-se merecedora, acha que a vida é mesmo aquela. O padre visita e abençoa a Senhora, por cuidar tão bem de uma criatura que sem ela estaria perdida. A falta de poder de Negrinha enseja os abusos surdos. Neste vídeo (http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/07/pm-canta-ativista-agredida-no-rio-e-ironiza-ataque-machucou-que-pena.html), o policial ouve de uma manifestante os motivos dos seus protestos. Ele os qualifica como imaturos. Depois, ouve que ela sofreu algumas agressões. Ele pergunta se machucou, em tom de ironia. Então ele diz que está sentindo uma química entre eles, e que não é efeito do gás lacrimogêneo. A jovem não tem poder. O policial ri, domina aquela cena e participa do arrasamento dos policiais sobre os manifestantes. Passar uma cantada, pegá-la para uma agressão confundida com sexo, está dentro do esperado. Esses pequenos poderes não têm nada a ver com proteção de indivíduos. Não há trabalho por uma coletividade. Não há sentidos ou objetivos maiores, além da dominação imediata do outro. E há a certeza de que esse outro não falará nada. E se falar, que diferença faz? A ação dele não parte da consulta a uma instância de razoabilidade interna (sigo uma inspiração em Sloterdijk). Os chutes do policial, os sprays e balas de borracha na cara, são pura ação compulsiva, sem reflexão.

Por que o beijo gay incomoda?

Marina e Clara casarão, na novela Em Família, numa cena que será linda. Eu gostaria de ver o Gianecchini, o Malvino ou outro galã fazendo um gay, e todo dia aparecendo dando uns pegas em alguém. Quero outras bonitonas, como a Antonelli, fazendo lésbicas e também beijando mooooiito! O afeto e o tesão aparecem na tela e fazem coçar quem está em casa. A sensação é gostosa, se insinua, alastra e faz pensar e desejar coisas, involuntariamente. Muita gente reage a isso com raiva. Reclama de casal gay não por "defender a moral e a família", mas pelo que sente e não queria sentir. Nossas morais baseiam-se no autocontrole sobre o que é involuntário em nós (não matar, não roubar, não insultar, não agredir...). Requerem um aperfeiçoamento dos comportamentos (modernamente, apontam para a suavização das relações e a tolerância com as diferenças), mas que reconhece que somos humanos e passíveis de descontrole. O moralismo ocorre com a aplicação taxativa das regras morais, proibindo comportamentos e censurando partes do corpo. O moralista terá ódio à novela, como tem a tudo o mais. No que vocifera contra essas coisas, exibe seu descontrole. Prefere exibir o descontrole da raiva do que do amor. "Eu nunca posso me divertir como os outros. Não posso ter o que quero, então, que os outros também abram mão"; ou "o mundo é ruim, eu sofro e todos também devem sofrer": são a psicologia do ressentido, que quer a diminuição do prazer, no mundo, e vê o controle como válido por si só e um meio de negar as coisas da vida e do corpo (é uma mortificação). Isso acontece muito entre nós, brasileiros, em que a falta de direitos e de busca por direitos civis, ou seja, pelo que a vida em sociedade poderia nos trazer de bom, cria a idéia de que se deve suportar o ruim e o desagradável, tornando-se tanto melhor pessoa quanto mais se suporta e se nega os prazeres e aspirações sociais. E se sentimos prazer e atração, pela pele e as entranhas, com as cenas gays (apesar de batermos o pé que não) é porque as não-gays já não despertam isso. Gianechinni e Clara são banais. O sexo hetero está chato, não provoca mais nada. As novelas, logicamente, pensam no impacto que as cenas gays terão na nossa atenção e audiência. Mas mexem conosco, fazem-nos ver, sentir, novamente a beleza e o tesão. Vão acessando nosso corpo e fazendo nosso espírito alegre e generoso, menos carrancudo.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Sequestro de indivíduos e sequestro do espaço

Moro perto da Praça Saens Peña, na cidade do Rio de Janeiro. Frequento-a quase que diariamente. Hoje, domingo, um solzinho rompeu o frio e me chamou para ir lá e levar um livro para ler. Havia muitos idosos sentados nos bancos. Crianças e cachorros brincavam. Tudo calmo. Entretanto, extensos grupos de policiais militares e do exército cruzavam a praça, interrompendo a calmaria. Eu sabia que uma manifestação estava marcada para acontecer em algumas horas. Logo fui para casa. À tarde, voltei para participar da manifestação. Em um dos acessos, uma barreira impedia a entrada e saída de pessoas. Fui para outro acesso. Não havia barreira. No entanto, um cordão cercava a praça. Havia manifestantes dentro, impedidos de sair. E pessoas fora, querendo participar da manifestação ou ir para casa. Estas não podiam entrar. Por toda a extensão da barreira, pessoas discutiam com os policiais, perguntando o porquê do cerceamento do ir e vir. Na ditadura militar, manifestar-se, como todo mundo sabe, era proibido. Estudantes e moradores de cidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro organizavam protestos clandestinos, respectivamente, contra a proibição de falar e as más condições de vida. Eram reprimidos, presos, torturados e mortos. A figura do "subversivo" individualizava o protesto, criando um responsável pela perturbação da ordem e justificando a ação criminosa do Estado. O conjunto da sociedade não exprimia publicamente qualquer contrariedade ao regime. Chegando ao fim dos anos 70, o desemprego atinge altos níveis, e a massa de miseráveis nas regiões mais visíveis da cidade torna inegável a deterioração das condições de vida. Movimentos em outras cidades ganham força. Filhos da classe média são cada vez mais atingidos, mostrando que suas famílias não estavam seguras. Quem se manifestava contra o Estado vai deixando de ser "eles", os "subversivos", e passa a ser o "nós", composto por estudantes, diversas categorias profissionais, inclusive públicos, e seus usuários. No início dos 80, a opinião pública estava desfavorável ao regime militar. Nas manifestações iniciadas em junho de 2013, isolou-se a figura do "vândalo", sobre a qual construiu-se o discurso de que atacava o patrimônio público e privado, agindo violentamente no seio de uma "manifestação pacífica", e que deveria ser preso e punido. Passou-se a escutar da boca de qualquer um, mesmo manifestantes, que o protesto era necessário, mas que os violentos estavam errados e precisavam ser contidos. Muitos foram presos, sob a acusação de participação em atos de vandalismo em protestos. Chegou-se a prender gente por suspeita de que viriam a cometer tais atos. Não existe manifestação pacífica, pois a ausência de direitos não pode fazer-nos pacíficos. E é impossível prever que alguém fará qualquer coisa. O fechamento da Praça Saens Peña foi um sequestro do espaço. O impedimento que manifestantes saíssem, um sequestro de pessoas. A maioria dos policiais do cordão, quando interpelada, nada respondia. Alguns diziam estar cumprindo ordens. "Ordem militar é assim, para ser cumprida." Perguntei a um deles se concordava com aquela ordem. Ele respondeu que, sob ordens, não pode pensar. Eu disse a ele que o triste é que ele pensava, embora não pudesse exprimir isso. Hannah Arendt observou que os soldados nazistas eram meros cumpridores de ordens: seres bestificados, sem nada de grandioso, que sequestraram e mataram como se engraxa um coturno. O mal era banal, igualado a qualquer outra ação. O soldado é desprovido de reflexão, um autômato, controlado por outro tão autômaro quanto ele. O policial me disse que de nada adiantava questioná-lo, se não se questionasse a ordem militar. Depois corrigiu-se, dizendo que a ordem era política. É da administração da cidade, não apenas por causa da Copa, a arbitrariedade contra os indivíduos. E, também, o sequestro do espaço. Mas, com essa última ação, o trancar a praça, a política atrapalhou a vida da sociedade. Não foram só os "vândalos", os manifestantes e os jornalistas os impedidos de circular, mas todo mundo. Não dá mais para individualizar os acusados. O espaço agora é proibido de ser utilizado, pois é "vândalo". Sim, a Praça Saens Peña agora é vândala, e teve de ficar isolada! Com esse transtorno geral, causado pela polícia, por causa do comando militar, por causa da política militarizada, pessoas que antes não participavam das manifestações, e até que não as apoiavam, terão que participar. Fechando as ruas, não vai ter outro jeito. E os protestos só aumentarão e, sim, tocarão nas altas esferas do poder.

Molecagem

O garoto vai fazer xixi no vaso interditado, envolto num saco plástico, da escola. Os amigos vêem. Quando termina, os mesmos amigos contam para a professora. O garoto leva uma baita bronca, e deverá limpar o xixi e falar com a coordenadora. Eu o acompanhei. Uma molecagem, façanha curtida entre os amigos. O garoto faz besteiras divertidas. O adulto dá esporro. Cada um sempre se apresentará em seus papéis. O esporro mostra que tem um adulto ali vigiando e cuidando. A façanha dá orgulho e mantém ativa a curiosidade. Orgulho é o motor de toda ação que se quer bem feita, da intenção de bom desempenho em atividades regradas ou que rompam regras. A curiosidade é o interesse por conhecer, pesquisar. "E se eu fizesse xixi aqui, hahaha?": façanha também é imaginação. Imaginação é o poder de estar numa situação e pensar em outra, criando soluções e problemas. Também é o se ver de uma outra forma. É ter experiências ricas, além do poder pensar em melhorias em si mesmo e nas coisas. O garoto faz xixi, os amigos riem. Eu rio, mas chamo a atenção. Às vezes ponho de castigo. O garoto está com a corda toda, no início de uma bela vida.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Ser viril é ser livre

Na Ilíada, o maior guerreiro dos gregos, Aquiles, tinha suas mulheres, mas era Patroclo o seu amor. A pederastia, entre os gregos antigos, era a relação de namoro e educação entre um homem e um jovem. A homossexualidade ocorria com a continuidade da relação quando o jovem se tornasse homem. Esta, sim, era motivo de riso. A pederastia, enquanto relação amorosa, era sobretudo de aprendizado do governo de si mesmo: além de um ofício, ensinava-se ao jovem a controlar o próprio jeito de viver o amor, e também o de viver outros prazeres. Tornar-se senhor de si mesmo, das próprias necessidades. Ser forte, e não fraco. As carícias eram de frente, não pelas costas, curvadas. O feminino era não virtuoso, uma falha enquanto cidadão. A rejeição ao homem feminino sempre baseou-se na preocupação quanto à sua capacidade de responder aos problemas internos da cidade e à sua defesa em guerras. Platão era homossexual, mas ninguém faria piada de um escritor e filósofo com o seu poder. Outras figuras históricas importantes inibiram, com sua excelência, a ousadia de alguém em comentar qualquer coisa sobre a sexualidade deles. O ponto sensível sempre foi o de ser viril ou não. Quem nos conta isso é o Ghiraldelli. Hoje queixamo-nos de grupos que tiram a liberdade de outros. É do nosso momento democrático e liberal esse aprendizado do falar sobre as próprias necessidades e das do outro, e do conhecer a si mesmo, fazendo isso. Mulheres realmente ganham menos do que homens, nas mesmas profissões. Sofrem violência em casa. Gays também sofrem. Isto tem a ver com a antiga rejeição ao feminino. Precisamos abraçar o feminino não apenas no outro, como em nós mesmos. A força, ou seja, o auto-governo, virtudes úteis na vida privada e pública, não precisa passar pelo masculino ou pelo feminino. Estes podem ser questões apenas do que se gosta mais. Na escola, vejo alguns dizendo-se meninos, outros meninas, a partir de como gostam de brincar. Depois, virão as preferências de cada um para amar. Virilidade tem a ver com outra coisa. O movimento gay afirma sua cores e alegria. É altivo e forte. Afirmativo. No entanto, o movimento negro e o feminista apresentam um discurso de vitimização: brancos oprimem negros, homens oprimem mulheres. Há, sim, muitos contextos de opressão. Cotas étnicas têm levado a brancos a conviverem com negros em espaços onde essa convivência não existia. O preconceito racial tende a diminuir. Também contribui para isso a cultura de massa. Nunca houve tantos personagens negros numa novela das nove quanto há na novela atual, Em Família. Quanto às mulheres, a lei Maria da Penha foi criada, e precisa ensejar mais denúncias a agressores. Professoras, quando fazem greves, são tratadas com truculência pelo Estado. Isso diz do nosso desinteresse pela educação, mas também, de uma desqualificação do trabalho da mulher. Mais greves precisam ocorrer, com mais apoio do restante da sociedade. Essas são lutas contra problemas de negros e mulheres. No caso das mulheres, dizer que o machismo encontra-se em todas as relações não ajuda a entender e resolver os problemas delas. A troca de posições de dominação ocorre na maioria da relações, com consentimento e prazer para ambos. E a mulher tem uma grande força, na beleza associada à inteligência, e no cuidado dos detalhes da casa e, cada vez mais, em ambientes públicos e profissionais. Falar sobre um machismo geral enseja uma reação das mulheres não de demonstração de força, afirmação de si mesma, mas de rejeição delas quanto à feminilidade. Esse movimento (https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/pelo-direito-de-broxar-falir-e-ser-sensivel-campanha-pede-que-homens-libertem-se-do-machismo/) diz que o homem também é oprimido pelo machismo. Que ele sofre pressão para gostar de futebol, e ridicularização quando broxa. Nietzsche alertou-nos para o igualamento de todos na fraqueza, na desconfiança da vida e no temor ante a exigência que ela nos faz, que é a de sermos fortes. Ficamos todos oprimidos, pedindo compaixão e jurando sermos bonzinhos. O vídeo deste link diz para o homem libertar-se e encontrar-se. Que ele deveria ver o que ele realmente quer e não o que a sociedade quer para ele. Eu digo: a sociedade somos eu e você, e agimos de um jeito e não de outro porque assim o queremos. Se um elemento da cultura e ethos incomodam, trazem infelicidade, precicamos não nos colocar como vítimas deles, e começar a por nossos interesses novos. A queixa de que não se pode broxar (constante no link), não está pedindo uma maior compreensão da pessoa com quem faz sexo: antes mostra um pedido do homem para que parem de cobrar-lhe ação, orgulho, etc, num momento em que são exatamente essas coisas que estão faltando. Estamos sem saber o que fazer com nossa própria vida, e querendo desistir. Não há querer "mais real" que não esteja já sendo atendido. Procurá-lo numa interioridade é fugir deste mundo, indo para o nada. É ser mais prisioneiro, não mais livre. O gay, a negritude e o feminino precisam colocar-se como virilidade. Quanto mais bebermos dessas referências, mais interessantes seremos, e com mais tesão pela vida. Libertar-se é isso. Eu advogo o querer ter mais tesão e gozo, também para todos, e não o direito de broxar.

O nada e o alguma coisa

Uma mulher, andando com sua namorada, é agredida verbal e fisicamente, em Ipanema. Passou no RJTV. Nossa vida em sociedade é um constante retraçar de regras para o comportamento público e o privado. A criação de quartos individuais e banheiro privativo, no aburguesamento da casa brasileira, a partir de de 1808; proibições ao homem batendo em mulher, em casa, ou em filho gay; leis contra "palmadas pedagógicas"; o direito do divórcio para a mulher, e outras mudanças, são retraçamentos de regras do comportamento privado, com vistas à civilização enquanto suavização de relações e ampliação de liberdades individuais. O esgotamento sanitário das ruas do Rio, em meados de 1800, interrompendo o transporte de dejetos, por escravos; a abolição da escravatura; a lei seca, a lei anti-racismo, e as propostas de lei anti-homofobia, entre outras, fazem as mudanças no público. São um recolocar das regras de convivência social, que apontam mais do que para a tolerância das diferenças: levam ao prazer do contato com elas, e ao enriquecimento das nossas experiências. Há resistências a este processo. Geralmente os que não se sentem vencedores no trabalho, negócios, e se ressentem de quem é ajudado pelo governo, em ações de equalização de oportunidades. Os que temem mudanças de valores e ethos, por não entendê-las, devido à deseducação, e não se sentem podendo intervir na cultura, não aparecendo na comunicação por imagens, e incapazes de opinar. Esse é o cara que agrediu a mulher na rua. Não pôde ver um novo casal andando, conversando, brigando, amando, vivendo o que ele não vive. Defende soluções violentas para problemas sociais e pessoais. Desconhece a reflexão. Está perdido, num mundo que anda sem ele. Nossa condição atual de subjetividade é a ausência de pontos permanentes de auto-reconhecimento, para o eu, e de incapacidade de desinibir-se e agir, ser sujeito, num mundo de liberdades e um "não saber o que fazer com a própria vida". Uma minoria sexual tem existência, dada pela política, pela cultura de massa e pela erudita. Uma pessoa pode se definir por ela, para se entender e se apresentar. Mais vai vivendo também à parte disso, tendo suas experiências de prazer, desprazer, amor, ódio, etc. O homem do bar é raivoso por ser um nada. É só um cara que reclama de tudo, enche a cara e bate em mulher. Desistiu de ser alguma coisa que valha a pena.

"Mãe, compra aquele jogo pra mim?"

Começamos a vida desconhecendo regras de comportamento. Soltamos pum à mesa do jantar, e os pais acham fofo. Vamos sendo apresentados às regras da casa. Vemo-las como ameaças à nossa espontaneidade: o não enxergar limites e a espontaneidade elogiada pelos pais, mesmo. Os ganhos que se tira da espontaneidade são óbvios. E os ganhos com a contenção? O aprendizado dessas regras dá-se por negociações, em que a criança estará bem atenta ao que ganha ao conter-se para não fazer xixi na roupa ou na cama, e não fazer escândalo na rua. E também o que ganha ao comer tudo no que está no prato, incluindo as verduras. Ela tem tais tarefas à frente, e que são antecedentes das tarefas que terá no resto da vida. Seus novos comportamentos seguem um estilo próprio, um modo particular de fazê-los, e a criança encontra um prazer ali. Mas grande parte da recompensa que espera é a que virá dos pais, que a vêem agindo desta maneira, e não de outra. A criança percebe que o parecer que fez é tão importante quanto o fazer. Se percebe que os pais agem de jeito diverso do que lhe dizem para fazer, contudo, sacarão que a imagem do comportamento é mais importante do que o próprio comportamento. Buscará, então, a medida do mínimo a ser feito, para atingir a aparência de que fez. Uma nota baixa na escola virá com uma desculpa. Ela sempre vem com uma desculpa, mas a criança que não teve a perda de valor dos seus feitos reais, o que ocorre se viu seus pais não cuidarem dos próprios feitos, e dissimularem-no, saberá, por si mesma, que precisa estudar mais. Se o aprender conteúdos e o ir bem nas provas não têm outro valor que não o da imagem que livra do castigo ou dá recompensas, a criança só pensará em formas mil de dissimular. Somos o que parecemos, inclusive, o que parecemos para nós mesmos. Imagens. E vivemos num mercado. O mercado faz o meu trabalho valer o mesmo que uma viagem, ou dez calças, ou mil reais. Um valor em dinheiro é atribuído a tudo, e tudo passa a ser comparável. E o mercado é a troca do que se mostra. Nossa existência é comunicação entre imagens que se apresentam. Queremos mostrar sagacidade, capacidade de consumo, bom desempenho sexual, bom desempenho esportivo, etc. Adoramos uma propaganda. Eis que a propaganda, a imagem do feito, substitui o feito em si. Não importa bons resultados no trabalho. Não importa preparação e disciplina. Os resultados buscados são a produção de imagens maquiadas. E a disciplina que desenvolvemos é para isso. Veja as propagandas políticas dos partidos no poder, mostrando hospitais e escolas. E essas imagens maquiadas também são as utilizadas no olhar do indivíduo para si mesmo. O eu é um efeito de auto-reflexão utilizando imagens, que, nesse caso, são enganadoras. Acreditamos nelas, e, ao mesmo tempo, sabemos que nosso trabalho é dissimular. Nos auto-enganamos e sabemos que fazemos isso, a ponto de nos esmerarmos no auto-engano. Nos relacionamos mais com as imagens do que com as coisas reais. Tiramos fotos de mendigos, ao invés de fazermos algo que ajude. Postamos a foto na internet e nos tornamos pessoas que ajudam. Mas sabemos bem que não ajudamos. Não fizemos nada para nos orgulharmos, exceto a imagem (verdadeira ou falsa, não importa. O importante é ganhar a Copa), a foto bem tirada. Somos a mesma coisa que a CBF, o Luciano Huck e governos (no que tange as políticas públicas). O 7 a 0 rasgou nossa foto de povo do futebol. A tv procura no sofrimento das crianças a representação do sofrimento nosso. Queremos voltar à idade da inocência, o de se estar isento de regras. A foto de reis do futebol era falsa, e foi rasgada em sete pedaços. Qual outra foto nos resta? O filme das escolas e hospitais públicos já está queimado. Não podemos usá-lo. Vamos em busca de uma imagem. Uma boa imagem, que dê auto-estima e sirva de apoio a que façamos algo. Que tal uma boa imagem real, feita no contato com as deficiências das coisas da cidade e de si mesmo, e um agir para melhorá-las? Uma boa imagem terá que começar com uma péssima imagem. Conseguimos encarar esse espelho? Se você quer ter habilidades, faça-se habilidoso. Se vocè quer um bom governo, faça o governo ser bom. Olhe-se com vergonha por não estar indo bem, na construção da vida individual e coletiva, e por ter feito parecer que sim. Preocupe-se, sobretudo, com essa dissimulação pública e auto-engano íntimo. Somos criativos e alegres. Isso somos, mesmo. Temos a força de quem apanha e quer a revanche. Podemos nos olhar nisso e, não agir, mas reagir.

terça-feira, 8 de julho de 2014

"Aceita que dói menos."

Brasil finalmente terá que ser esportista, e disputar o terceiro lugar do campeonato. "Reis do futebol" é coisa que só estava na nossa cabeça. É difícil acreditar que perdeu. O "rei do futebol" se ilude. Um pouco de ilusão é bom, mas não quando deixamos de encarar os fatos: um time ruim num campeonato de times fortes, a falta de condições míninimas de vida, para muita gente, etc. Os "reis do futebol" já podem guardar a fantasia. Será que conseguimos parar de brincar com tudo? Quer dizer, só se pode realmente ser bom em alguma coisa desempenhando-a bem. Antes, não dá para saber. Ficar achando "inacreditável" é ainda dificuldade nossa de aterrisar, ver o que quer, o que precisa ter e agir. Então até seria bom perder da Argentina. Achar que a perda foi vergonhosa é cabível: vergonha por não sermos quem prometemos ser. Uma pessoa que não faz nada na vida, não mete a cara, não usa sua força, testa-se, conhece-se, mas que se diz capaz, inteligente, é como um filhinho de mamãe. Faz pirraça para ser levado a sério, mas não muito a sério: quer colo. Temos que sentir muita vergonha. Quem sabe não nos mexemos?

Joga quadrado

Não chegamos a ter uma seleção. Foi só Neymar. Sem ele, não soubemos o que fazer. As bolas entraram como enxurrada, ante nossos olhos bobos. E há tempos a seleção tem mantido só um ou dois talentos para fazer gol, e um time sem entrosamento. O futebol virou show, não é mais companheirismo e esporte, no Brasil. Foi divulgado um vídeo da seleção alemã treinando e divertindo-se na Bahia. Sempre junta, sorrindo entre si e com os brasileiros. Agora o Julio Cesar diz que cada jogador brasileiro vai chorar no ombro da sua família. Com a torcida, jamais. A desconfiança é mutua. A seleção brasileira não estava curtindo a Copa. E Felipão tomou a culpa toda da derrota para si. A vitória ou a derrota não deveriam ser individuais. Deveria haver uma base de grupo para permitir o brilho individual, uma virtude coletiva que passa para cada jogador, e o inflama. O que há é um grupo desmantelado, que não se vê como grupo de atletas. A derrota, no nosso caso, não é sentida pelo grupo. Não é absorvida e transformada em companheirismo, depois em novos rumos. Cada jogador está sozinho na vergonha. Sem amigos. Sem torcida, que deixou o estádio antes do segundo tempo, ou que aplaudiu o adversário. Esse futebol meia boca dá raiva. E o torcedor lava suas mãos. Quem quis o time coeso estava coeso, amontoado, fora dos estádios. Gente que se olha no olho pelos problemas do país, e olha uma seleção que tem que ser uma equipe, inseparável da torcida. Um círculo nosso deveria ter sido formado, com cada um de seus componentes sendo atraído para dentro, e desempenhando bem, na harmonia esférica. Essa Copa deixou o torcedor de fora, pemitiu que existisse um Fred inútil para o time, retirou a base deste (Neymar, a base da estratégia), e manterá os indivíduos sem saber explicar o que houve. Não há explicação, porque não houve sentido de grupo, não houve sentido de grupo para o porquê de jogarmos. Ninguém saberá explicar a derrota. Faltou fazermos um todo. Ficamos só com a FIFA e a Globo dizendo o que havia para ver e sentir. Funcionam como céus totalizadores, ajeitando nosso jogo quadrado, irregular. Céus, contudo, artificiais, pois nossa condição é destituída de céu, e requer que façamos nós mesmos nossas parcerias, irmandades. Está difícil honestidade para sofrer junto, e para protestar também junto. Continuaremos sozinhos, auto-isolados, nas próximas eleições. Ou vamos para a rua, ver se mexemos em alguma coisa?

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Alive and kicking

Uma tampinha, uma semente, uma mancha no chão da rua. Prepara a aproximação com jeito. Aquelas belezinhas só esperando o pé. Conhecidas, na marca e na necessidade de tal pegada no chute. Não vá errar. Acréscimo meu ao "Afinação da arte de chutar tampinhas", conto de João Antônio. As peladas viraram esporte, que viraram show. O cara atento ao que aparece, driblando e aprimorando sua arte, seu mandar bem, fica atordoado com os milhões de reais, telespectadores, erres do Galvão e câmeras. O futebol, assim como as outras coisas populares, são da necessidade do corpo que cruza a cidade, vê e aparece, ali, rés do chão. Nos 70 lembraram-nos que fazemos parte de 90 milhões. O público deveria animar a seleção e animar-se de Brasil. A cola era o "ame-o ou deixe-o". O chutador de repente era brasileiro e amante do Brasil. Um exército sem heróis torcendo para uma seleção de heróis que nada tinham a ver com o Estado-sociedade. Sloterdijk fala sobre a arma de fogo criadora do heroísmo à distância, heroísmo covarde, e destituidora de qualquer valor para o soldado no front. Éramos pé-rapados em marcha. A música da nova Copa diz para amarrarmos o amor na chuteira. Nosso fazer melhor está nos pés, viemos de baixo e estamos para construir uma democracia, um mercado, dizendo, petulantemente, que os do poder não me representam (é assim que dizemos, "me", mesmo formando uma multidão. Não estamos no "nós"). Mas de novo querem nos atribuir um amor que ate-nos em um "nós brasileiros", a ser doado aos onze em campo, em um jogo que não é o que está nos preocupando, emocionando e exigindo arte. Nossa briga está no espantar-se com a Lei Geral da Copa, o indignar-se com os candidatos a governador, que teremos para escolher, e o ir pra rua aprimorar a arte do chute. Aparecem na minha frente, dizendo que sou brasileiro torcedor do maior do mundo. Respondo não. Sou daqui, mesmo. E a FIFA não é tudo, nem a dona dos meus pés.

domingo, 6 de julho de 2014

Viver, a que se destina?

As pessoas saíram decepcionadas da exibição de Pompéia (Paul W. S. Anderson, 2014). O filme, que esteve em cartaz, aqui, em março, passa-se no início da Era Cristã. O protagonista fora levado para Nápoles, a fim de servir de escravo-gladiador. A cidade recebia a visita do imperador, e o governante tratava-o bem, oferecendo comida, os aplausos da população e as lutas. Buscava, com isso, que a cidade não sofresse tanto, com a inevitável dominação do imperador. Ao apresentar-para lutar, o gladiador reconheceu no imperador o homem que matara sua família e o vendera, criança, como escravo. Seu desejo de vida era matá-lo, e essa força era seu motor para lutar e derrotar seus adversários. O rei e sua esposa estavam sendo humilhados pelo imperador. O gladiador e o outro, com quem lutaria, eram grandes lutadores. A glória que almejavam não era a da consagração que pudesse vir dali, mas a da vingança, no caso do primeiro, e a promessa de liberdade, para o segundo. Este percebeu que o espetáculo havia sido conduzido a que ambos morressem. Para ele, ser livre agora dependia de lutar contra o espetáculo. Apoiou o outro gladiador no ataque ao imperador. Nesse momento, o monte Vesúvio começou a lançar bolas de fogo no ar. O fogo causou a debandada do público e a destruição do estádio. Os gladiadores lutavam seu caminho até seus objetivos. O rei viu a mulher morta sob os escombros. Logo deparou-se com o imperador. Atentou contra ele, mas recebeu um golpe fatal. O protagonista persegue o imperador em fuga da cidade, levando consigo a bela filha do rei. Alcança-o e, numa dura luta, mata-o. A lava lambe a cidade. O herói foge com a princesa para um morro. O manto destruidor cobre-os. Viraram estátuas de cinza, durante um beijo. "O filme é bom, mas porque ele tinha que morrer?": Ouvi-o duas vezes. Por que ele viveria mais? Na Ilíada, Aquiles ouve de Hera, sua mãe, que a vida dele será curta. Chegará ao fim assim que ele cumprir seus objetivos. O destino se cumpre, a vida termina. Aquiles passa a história profundamente desgostoso com Agamenon, líder dos gregos, pois este lhe havia retirado honrarias. Ele não ajudaria a evitar o avançar dos troianos sobre os gregos, apesar dos pedidos desesperados, por ajuda, de seus companheiros. Quando os gregos estavam quase arrasados, Aquiles recebeu a notícia que Heitor, líder troiano, havia assassinado Patroclo, amado de Aquiles. O grande guerreiro ergueu-se em cólera. Armou-se e amedrontou os troianos. Matou muitos, com o peso da sua lança de longa sombra. Lutou ferozmente com Heitor, fazendo-o encontrar seu fim. A guerra agora estava ganha, para os gregos. Aquiles sabia: morreria tão logo cumprisse seu destino. Ele nunca soube exatamente o que aconteceria no decorrer de sua vida, nem a forma como morreria. Mas sabia a hora de sua morte, e agora ela estava próxima. Para um guerreiro, como ele, vivendo a mais de 900 anos antes de Cristo, a glória era o que importava, além de prestar adorações a seu deus. Ele era reconhecido como o melhor lutador, e assim permaneceria para sempre. Na antiguidade vivia-se para ser virtuoso. O fim da vida era ser inteligente, corajoso, justo, etc. Os fins individuais dependiam de uma cidade que os possibilitasse, e cujos fins se realizariam junto dos de cada um. Os meios para um indivíduo ter uma vida feliz, ou virtuosa, passavam pela melhoria do seu desempenho na sua arte (guerrear, governar, plantar, construir, etc). E os deuses estavam próximos dos homens, servindo de modelos das virtudes: "Ser um bom guerreiro como Ares", "Esmerado na carpintaria como Hefesto". Passo para os dias atuais. Oscar Schimidt vai ao programa do Faustão falar sobre a doença que lhe acomete: câncer cerebral. Oscar diz saber que morrerá daquilo. Opera, retira o tumor, isso tudo se repete, e se repetirá até que a luta termine. Ele diz que naquela platéia umas 30 pessoas passarão por aquilo. Responde ao possível espanto de todos, dizendo que todos morrerão. Ele, ao menos, sabe do que morrerá. Para nós, o objetivo da vida não está mais no céu, nem acreditamos na realização de um paraíso na Terra. Nosso Deus não está aqui, como o dos gregos, mas também não apostamos seriamente num final maravilhoso. Sloterdijk ajuda-me a contar o que segue: se não há crença de que a finalidade da vida é o céu, não faz mais sentido seguirnos doutrinas religiosas. Como não há fim, não precisa haver meio para ele. Para que vivemos, então? Ou porque agir bem, se os meios não levam a lugar nenhum? Em conversa com Benilton Bezerra, Paulo Ghiraldelli comenta que nossa situação de modernidade tardia é de perda de restrições quanto a sexualidade, e da participação em culturas tradicionais, ou em uma boa formação humanística, que davam parâmetros para a vida. O sujeito filosófico, que desde o século XIX teve abalado seu suporte, o "eu", e considerado superfície de uma cisão (por Freud), alienado (por Marx), uma criação disciplinar (por Foucault), e tornado parente de outras espécies (por Darwin), busca um suporte. Encontra uma possibilidade de escoramento no corpo. O que eu consumo, como me visto, os objetos que troco e como meu corpo é um deles; como me apresento, meu estilo, meu face e minha sexualidade são identidades corporais; meus amigos de partido e sua ideologia, ou da igreja, meu estilo musical e minha turma de futebol: práticas corporais que têm por característica a troca rápida, ou a aceitação de um fim a se almejar, para que eu me conduza de certo jeito (mas fim, este, que não posso acreditar seriamente, se não sou um dinossauro e, além disso, se não sigo o fim particular oferecido por um pastor ou ideologia). Essas práticas visam ser meios para um fim que não está mais lá. São ações para se evitar a perda distímica de qualquer vontade de agir. Qual é o fim do Oscar? Ser um excelente atleta, o melhor. Ele disse, na tv, que a vida é como o esporte: você perde uma partida, perde o campeonato, mas tem uma nova chance, volta para o jogo. Todo atleta sabe que seu fim não demora. E sua finalidade é vencer. A vida te dá novas chances. Oscar diz que o tumor que tirou é do tamanho de uma laranja. Laranja como uma bola de basquete, mas que nem se compara a ela. "Essa doença escolheu o cara errado!", diz o campeão, aquele que joga o melhor até que o fim chegue.

A olho nu

A primeira manifestação é a do olhar. Olho para a cidade e para mim, e sou olhado fazendo isso. Dizemos que o brasileiro não olha os problemas coletivos, separando-os dos individuais. Um "individualismo na precariedade". "Diógenes perscruta o idealismo presunçoso e a arrogância cultural dos atenienses. O que lhe interessa não é nem a máscara, nem a pose idealista, nem as justificações, nem os embelezamentos. Ele observa fixamente os fatos nus da natureza. (...) O olhar kynikos se orienta sempre em direção à nudez; ele quer identificar os fatos "crus", animais, simples, que os admiradores das alturas de tão bom grado negligenciam. Sim, o kynikos originário é capaz de se regozijar com o nu e com o elementar porque experimenta aí verdade e desvelamento." (Sloterdijk. Crítica da razão cínica. pgs. 206 e 207) Olhamos, mas nem sempre dizemos. Quer dizer, não dizemos verbalmente. Não será a nudez e o turbilhão do samba e do funk uma expressão, e um exorcismo, expulsamento do corpo, dos males que nos atingem? Vemos as coisas nuas. Estou nu. Elas são caóticas. Eu estou bêbado, suado e gritando! "Em contrapartida, o olhar do cínico da classe dos senhores é desgraçadamente fendido, reflexivamente rachado. Com ele, os poderes observam sua própria estratégia, reconhecendo que por trás de tudo o que se apresenta como lei esconde-se uma grande porção de violência e arrogância." (op cit. p.207) O poder não quer ser visto sendo visto. Que o olhemos, tudo bem. Mas que terceiros não nos vejam olhando-o. Isso o compromete. Quem vem de fora sabe, através do nosso olhar, que há um problema com o governo. Fica mais difícil para este desviar (quando se olha e fala, quem desvia é o outro, mesmo que ele "tenha o poder". Quando há um poder minoritário, quem esquiva, dissimula, são os governos e empresários. Foucaultianos há que não percebem isso) quando tem alguém para dizer "há um povo insatisfeito". E quem vem de fora com dinheiro participa como vip, na festa, e, por isso mesmo, sabe qual a "violência e a arrogância" que ocorre ali. E sabe que não é ele o culpado. Ele não espera que assistamos à Copa calados...

No feijoada, yes coca

"Me paga uma coca? A menina de rua pede uma coca. Você não quer um suco e um salgado, que alimentam mais?, responde a moça. As pessoas falam "não vai ter Copa". Estão querendo redução na passagem? Mais médicos no hospital? O que vocês querem dizer com "não vai ter Copa?". Vocês são um povo sem direitos. Sambaram até ontem e agora deram pra reinvindicar. Então reinvindiquem clara e ordenadamente." Usamos aqui e ali, sem, contudo, entender, o "a gente não quer só comida. a gente quer comida, diversão e arte". Achamos que era para patrocinar uma escola de capoeira na favela. "Afinal, negro e pobre, que já está meio que sem saída, só pode ser capoeirista, sambista, malandro." Eduardo Giannetti, no Na Moral, da Globo, fala da maravilha que é a feijoada, feita dos restos que o negro tinha para aproveitar. Que maravilha o improviso, improvisar na senzala! Improviso com a lei não. A lei deve ser seguida. E informalidade não combina com protestos, prossegue Giannetti. "A gente quer saída pra qualquer parte". Quem faz uma escola de capoeira pensa estar tirando jovens do tráfico. Alguns, está. Mas não deveria ser assim, de se ter gente precisando de "saída pra qualquer parte". Mas tem outras coisas acontecendo. A menina pede coca. O cara tá de smartphone, morando num lugar sem água. As pessoas não nascem para sobreviver, mas para viver. Elas querem viver. Mesmo sendo pobre, ele não quer a sua dica de saúde ou de economia doméstica. Temos medo do desejo. Medo do pobre. Medo do desejo do pobre. Tony Ramos, ainda no Na Moral, reitera que devemos ter educação. O que queremos com a tal "educação para o povo"? Que pensemos numa meta para os protestos, e que, chegando lá, não precisemos protestar mais? Ou educação seria um modo de protestarmos ainda melhor? Bial diz que reclamamos da corrupção, mas somos corruptos. Que moral temos para gritar? Bem, os direitos da maioria não são garantidos. Não temos uma ideia do que seja sociedade civil. Então cada um acha que tem que garantir o seu. Andamos facilmente pela ilegalidade. Mas não devemos olhar muito, muito menos comentar, as vantagens que o outro leva. O máximo que se fala é na fila do mercado. No mercado popular, fala-se dos empresários e do governo ladrões. No mercado caro, fala-se do pobre vagabundo e do governo que o favorece, e prejudica quem tem dinheiro. Agora estão todos falando na rua. Começamos a nos desinibir. Giannetti falou que sem ordem o que se tem é isso aí: "nenhuma mudança". E as greves? O acirramento do confronto entre a sociedade e o Estado? Tem algo acontecendo, sim. Bial relembrou-nos que somos (e devemos ser) sambistas, e politicamente passivos. Bom é feijoada! Walter Benjamin conta que o que chamamos de cultura são coisas que faziam parte da experiência das pessoas, mas que foram desvalorizadas e suprimidas, junto com o modo de viver que lhes correspondiam. Então celebrar a cultura é celebrar a destruição, a barbárie, da qual a cultura é documento. Comer orelha e rabo de porco é uma desgraça! Há, também, aquelas mágoas de rico x pobre. Só que o "o governo não me representa" e o "não vai ter Copa" nos fazem falar ainda mais, pelo prazer de falar. "A gente quer" o que? Não responda agora. Eu só sei que não ando a fim de gritar gol.

Algo sob o sol

Vejo formigas andando na parede, nesta manhã de domingo. Ocorre-me que a luz que dá mais nitidez às coisas é o sol. Mas logo penso em Kant (no ponto do Crítica da Razão Pura, em que estou): ele usou a razão para pensar a si mesma. No juízo "a formiga é um inseto", a noção "formiga" já contém a de inseto. Não preciso ver uma formiga para dizer isso. Mas dizê-lo desdobra a noção de formiga, esclarecendo-a. Posso dizer que a formiga é pequena. Aí, sim, já dependo da experiência para dizer, pois só o desdobrar da noção de formiga não me garante isso. Digo-o com a experiência. Então Kant conta que posso dizesma ou a partir da experiência. Ele diz mais uma coisa: de uma noção posso dizer algo independentemente da experiência, isto é, a priori, e que também não está pressuposto na noção. É como se tivesse vindo uma outra noção, saída da minha cabeça, acoplar-se à primeira, acrescentando informações a ela. "A formiga morreu." Você me perguntará, se tiver o apreço pelos pequenos animais, que eu gostaria que você tivesse: "morreu como?" Estou seguindo uma inspiração de Kant, aqui. A formiga morta, ao ser vista por mim, não me indica algo que tenha ocorrido antes e que causou a morte. A noção de causa sai da minha cabeça e vem acrescentar à de acontecimento. Na noção de acontecimento não está incluída a de causa, mas, quando penso ou vejo um fato, penso também na causa. No funcionamento da nossa razão há o que penso desdobrando uma noção (uma noção aprendida anteriormente), há o que vejo e junto à noção, e, a novidade do Kant, há o que penso de totalmente independente da experiência e também não pressuposto numa noção aprendida. É totalmente uma categoria vinda da própria razão! Kant esclareceu a razão usando a luz da razão dele, não a do sol. Ou usou a do sol? O que o sol tem a ver com a razão e formigas? As formigas continuam andando por aqui, super-nítidas. Diógenes olhava os transeuntes de Atenas. Ele olhava o sol. Ele precisava de sol, de alguma comida e uns panos para pôr no corpo. Para que mais? Ter mais do que isso o faria escravo, e não senhor, das próprias necessidades. Alexandre ofereceu ajuda ao sábio. O filósofo fê-lo sair da frente do sol, que aquece seu corpo e é o único soberano para um ser vivente na Terra. Mas só um filósofo pode ver o sol. Eu e você apenas percebemos a cor dourada recobrir os corpos e deixá-los melhores, mais nítidos. Bem, com isso já dá para imaginarmos o que Platão contou sobre o filósofo: é aquele que vê não essa formiga, ou aquela, mas A Formiga, a forma ou ideia de onde originaram-se todas as formigas que os não-filósofos vêem por aí. Essa forma, como todas as outras formas, são o modelo perfeito, infinito e imutável do que há na Terra, que são cópias degradáveis e mal acabadas. E sobre todas as formas está o sol. O sol banha diretamente essas formas, garantindo que elas sejam as melhores coisas que há. E tanto é vedado olharmos diretamente para o sol, quanto não podemos enxergar a realidade. Só um filósofo, com a parte nobre da sua alma, o intelecto, pode chegar a ela. Eu vejo a formiga nítida. Percebo que algo incide sobre ela, e a deixa mais maravilhosa. Também faz isso com os olhos do cachorro. A mulher bronzeando-se. Faz comigo. Faz com todo mundo. Algo que está sobre nós. Uma razão para ser bem usada. Um sol para dar nosso lugar aqui na Terra e nos fazer melhores. p.s. Todas essas explicações de filô vc tem no Aventura da Filosofia, do Paulo Ghiraldelli Jr.. Pega lá, e venha tomar um solzinho!

Cuecas e calcinhas

O cara tem as mesmas cuecas há anos. Cuecas tipo sunga, mesmo. Quando vai encontrar uma mulher, coloca a que ainda tem a cor parecida com de quando era nova, um elástico que ainda segure um pouco e sem furos. Se a mulher for muito boa, aí compra um daqueles pacotes de três unidades da C&A ou da Americanas. Vem três cores. O cara vai de preto, porque quer ser homem. No primeiro niver de namoro ganhará uma boxer. Usará três vezes, como short, quando estiver com a namorada. Nunca como cueca. E a perderá em algum lugar. Voltará para as velhas amigas. Uma vez por ano a namorada presenteará com novos pacotes de três, para tentar dar alguma dignidade para ela mesma, quando olhar o cara com quem dorme. Desde que fizeram o primeiro sexo, o homem sentiu grande vontade de chutar a cueca para debaixo da cama e andar sem (pedroca), principalmente quando em companhia da mulher. No trabalho, jamais. A não ser que a mulher o visite. A preocupação de um homem com a própria cueca, como se ela fosse uma roupa que precisasse ter estilo e cor (azul não é cor, numa cueca, só variação do preto e do branco), é do gay. As cuecas do gay são bonitas, roupas, mesmo. Falando agora de calcinhas. Calcinha de renda é de mulher complicada. Rendas são desenhos complicados, e só já tendo uma confusão de ideias na cabeça para usar isso sem se embananar mais. E rendas pinicam. Só estando confuso para não sentir. O homem bate o olho e já vê que é complicada, da mesma forma que o homem é realmente um desleixado, como a cueca puída e desbeiçada mostra. A calcinha lisa e de algodão é a ideal. Simplifica o que não precisa ser complicado. Se tiver muito poliéster no tecido, o toque fica um pouco incômodo. Transparente é para garotinhas ou coroas. É divertido de ver os pelos ou a falta deles, por baixo, mas também não chama para o toque. Será que elas se tocam? Gostam de toque, como a que usa de algodãozinho, simples, esticada sobre um lençol claro? Certas coisas são boas demais para acharmos que são possíveis. Cuecas e calcinhas são nossa segunda pele. Colam-se aos sacos, paus e bocetas nas horas alegres e tristes, e na tensão de um tesão ou de um perigo. A pele tem uma capacidade de renovação que a segunda pele não tem. Esta se modifica com o uso. Corrói-se com os liquidos e as lavagens. É mantida durante anos, ou é sempre renovada. São eus muito permanentes. Posso ser o desleixado, o conquistador, o gay, a complicada, a transparente ou a descomplicada dos 30-40 anos. Escondo, mostro coisas, e aparento estar diferente. Lavo-me e fico pronto pra outra. Mudo de ideia quanto ao que quero, no mesmo dia. Mas as cuecas e as calcinhas ainda precisam de tempo para envelhecer.