terça-feira, 15 de julho de 2014

Sequestro de indivíduos e sequestro do espaço

Moro perto da Praça Saens Peña, na cidade do Rio de Janeiro. Frequento-a quase que diariamente. Hoje, domingo, um solzinho rompeu o frio e me chamou para ir lá e levar um livro para ler. Havia muitos idosos sentados nos bancos. Crianças e cachorros brincavam. Tudo calmo. Entretanto, extensos grupos de policiais militares e do exército cruzavam a praça, interrompendo a calmaria. Eu sabia que uma manifestação estava marcada para acontecer em algumas horas. Logo fui para casa. À tarde, voltei para participar da manifestação. Em um dos acessos, uma barreira impedia a entrada e saída de pessoas. Fui para outro acesso. Não havia barreira. No entanto, um cordão cercava a praça. Havia manifestantes dentro, impedidos de sair. E pessoas fora, querendo participar da manifestação ou ir para casa. Estas não podiam entrar. Por toda a extensão da barreira, pessoas discutiam com os policiais, perguntando o porquê do cerceamento do ir e vir. Na ditadura militar, manifestar-se, como todo mundo sabe, era proibido. Estudantes e moradores de cidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro organizavam protestos clandestinos, respectivamente, contra a proibição de falar e as más condições de vida. Eram reprimidos, presos, torturados e mortos. A figura do "subversivo" individualizava o protesto, criando um responsável pela perturbação da ordem e justificando a ação criminosa do Estado. O conjunto da sociedade não exprimia publicamente qualquer contrariedade ao regime. Chegando ao fim dos anos 70, o desemprego atinge altos níveis, e a massa de miseráveis nas regiões mais visíveis da cidade torna inegável a deterioração das condições de vida. Movimentos em outras cidades ganham força. Filhos da classe média são cada vez mais atingidos, mostrando que suas famílias não estavam seguras. Quem se manifestava contra o Estado vai deixando de ser "eles", os "subversivos", e passa a ser o "nós", composto por estudantes, diversas categorias profissionais, inclusive públicos, e seus usuários. No início dos 80, a opinião pública estava desfavorável ao regime militar. Nas manifestações iniciadas em junho de 2013, isolou-se a figura do "vândalo", sobre a qual construiu-se o discurso de que atacava o patrimônio público e privado, agindo violentamente no seio de uma "manifestação pacífica", e que deveria ser preso e punido. Passou-se a escutar da boca de qualquer um, mesmo manifestantes, que o protesto era necessário, mas que os violentos estavam errados e precisavam ser contidos. Muitos foram presos, sob a acusação de participação em atos de vandalismo em protestos. Chegou-se a prender gente por suspeita de que viriam a cometer tais atos. Não existe manifestação pacífica, pois a ausência de direitos não pode fazer-nos pacíficos. E é impossível prever que alguém fará qualquer coisa. O fechamento da Praça Saens Peña foi um sequestro do espaço. O impedimento que manifestantes saíssem, um sequestro de pessoas. A maioria dos policiais do cordão, quando interpelada, nada respondia. Alguns diziam estar cumprindo ordens. "Ordem militar é assim, para ser cumprida." Perguntei a um deles se concordava com aquela ordem. Ele respondeu que, sob ordens, não pode pensar. Eu disse a ele que o triste é que ele pensava, embora não pudesse exprimir isso. Hannah Arendt observou que os soldados nazistas eram meros cumpridores de ordens: seres bestificados, sem nada de grandioso, que sequestraram e mataram como se engraxa um coturno. O mal era banal, igualado a qualquer outra ação. O soldado é desprovido de reflexão, um autômato, controlado por outro tão autômaro quanto ele. O policial me disse que de nada adiantava questioná-lo, se não se questionasse a ordem militar. Depois corrigiu-se, dizendo que a ordem era política. É da administração da cidade, não apenas por causa da Copa, a arbitrariedade contra os indivíduos. E, também, o sequestro do espaço. Mas, com essa última ação, o trancar a praça, a política atrapalhou a vida da sociedade. Não foram só os "vândalos", os manifestantes e os jornalistas os impedidos de circular, mas todo mundo. Não dá mais para individualizar os acusados. O espaço agora é proibido de ser utilizado, pois é "vândalo". Sim, a Praça Saens Peña agora é vândala, e teve de ficar isolada! Com esse transtorno geral, causado pela polícia, por causa do comando militar, por causa da política militarizada, pessoas que antes não participavam das manifestações, e até que não as apoiavam, terão que participar. Fechando as ruas, não vai ter outro jeito. E os protestos só aumentarão e, sim, tocarão nas altas esferas do poder.

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