segunda-feira, 15 de junho de 2015

Como viver um momento?


Você levou seu filho para a Disney. Ele adorou os brinquedos, os personagens, as lojas, tudo. Você gastou bastante dinheiro, e ficou satisfeito. Algo da sua satisfação se deve justamente ao fato de ter gasto dinheiro.

Em um dia, na escola, foi aniversário de um coleguinha. Os pais dele decoraram o pequeno pátio, levaram bolo, cachorro-quente, pipoca e suco. Puseram chapéus nas crianças, que enchiam a boca e subiam nos brinquedos já conhecidos, corriam com os amigos. A boca cheia de comida obrigava o sorriso a ser ainda mais forte, para que pudesse ser solto. Periodicamente, cada um voltava para reabastecer bocas e mãos para, então, voltar a perseguir e ser perseguido.

A festinha passou e virou assunto por algum tempo. “Disney custou mais”, pensava aquele pai. O custo importava era para ele mesmo. O filho se divertiu tanto na Disney quanto na festinha. Cada momento de emoção de uma criança é absoluto: se está feliz, a sensação dela e de quem a vê é de que dura para sempre; se algo acontece e a deixa triste, o lamento é profundo e parece sem solução. Tal como a arte, que respira, a situação emocionante é também “respirante”, e enche os pulmões da criança de ar, para sorrir ou chorar. Novamente, tal como a arte, essas situações roubam as suas palavras. Um adulto fica sem ter o que dizer, quando presencia uma arte. Uma criança ainda não tem repertório verbal para entender suas experiências e, por isso, as sente muito.

O passar das experiências, e das conversas sobre elas, faz com que a criança vá construindo uma bagagem de sentidos, que será usada para entender o que já aconteceu e o que acontecerá com ela mesma. O adulto tem muitas experiências, e sabe muitas coisas. Ele diz para uma criança que aquela tristeza irá passar. Mas ele próprio não é capaz de sentir a alegria que ela sente diante de uma situação nova. Ele não tem situações novas, é como se não tivesse mais experiências.

Walter Benjamin disse que perdêramos a capacidade de termos experiências plenas, e de contarmos histórias. Os acontecimentos da vida moderna eram acelerados e impactantes, e a vida tradicional se esvaía. O homem não se afetava mais com as coisas, e não encontrava mais com quem conversar, contar de si mesmo. Além disso, a Segunda Guerra devolveu soldados que viajaram, lutaram, mas que não tinham nada para contar, como se houvessem sido tão expostos ao horror que este ficou banal, e sem assunto. Os soldados nada diziam por não terem o que dizer. O apreciador de uma arte nada diz por estar estupefato. Os soldados nada sentem. O estupefato sente tanto que não sabe o que dizer.

Em uma loja de brinquedos, a criança entra feliz, e chora em três minutos, bastando o tempo de a mãe lhe dizer que não comprará nada. A entrada é apoteose de bonecos para se ter à mão, brincar. É a intensidade de emoções da criança espalhando-se e encarnando mil brinquedos, que sorriem de volta para ela. Ela escolhe dois ou três, para pegar. São a concentração de toda a alegria que foi trocada com a loja. O "não" que a criança ouve é um corte da ligação dela com os mil brinquedos, que havia chegado a uma definição quando ela segurou dois deles. Ela se desespera com o desmoronamento do castelo de areia que era esse vínculo. A mãe diz não ter dinheiro, não ser aniversário, dar depois, etc. Oferece sentidos para que a criança se desvencilhe da emoção que toma conta dela.

Aos poucos a criança vai aceitando as razões da mãe, deixando para depois o brinquedo que a religará com todos os outros. O choro vai diminuir também a alegria com a apoteose. A parte da alma responsável pelo ímpeto vai sofrendo com os “nãos” duros, e sendo domada. Algumas recompensas podem vir, e a criança relativizar a alegria e a tristeza, ou pode não vir qualquer recompensa, e a criança ficar dura, para não mais sentir. A apoteose se transformará em apenas brinquedos, a que, um dia, ela poderá ter, se se comportar, etc. Ou será uma festa para a qual nunca será convidada. No segundo caso, sempre voltará magoada, àquele momento. No primeiro caso, uma situação dará lugar à outra, e à outra, não mais havendo perduração de emoções.

O adulto tem momentos, vive uma história, enquanto a criança tem não-momentos, pois flerta com o absoluto, o sem história. Ela viveu pouco, tem poucas memórias, então sente como se tivesse acabado de chegar aqui, neste mundo. Por isso se agarra a cada coisa que acontece, e às suas emoções.

Quem não quer ser um milionário?

Um juiz confiscou os bens de um dos homens mais ricos do mundo, e que é brasileiro. Ser rico nos parece ser o único modo de se ter o que quer, em um país em que todos estão abandonados pelos direitos. Sendo rico, não se precisaria pedir mais nada. Aos poucos até a classe média começa a pedir direitos sociais! O rico não pede, então pensa não dever nada a ninguém. Esse é o nosso conjunto de crenças.

Eike, enfim, está sofrendo restrições, por responder a processo. O juiz mostrou que rico não faz o que bem entende. A lei é sempre mais severa com os mais pobres. Cometemos crimes em busca de poder, mas jamais queremos encontrar um juiz pela frente. Ele tem a chave da fechadura da nossa liberdade, essa é a sua metafísica. Eike é os bens dele. Prendê-los é como prender o próprio Eike. Assumimos que uma justiça, enfim, havia sido feita. Não justiça contra Eike, mas contra os ricos que tudo podem. “Talvez as coisas se acertem, e valha a pena ir pela lei.”, começaremos a pensar.

Um olho bateu nas contas das empresas de Eike e construiu as denúncias de crime. Um olho bateu foto do juiz querendo ser Eike. O equilibrador não é, vejam só, equilibrado. Ele está no nosso costume de pegar o que o outro deixa cair. É como se o cara pego dirigindo o carro não fosse o mesmo que confiscou o bem, pois o segundo mostrou firmeza em seu trabalho de cumprir a lei, e o primeiro se aproveitou do acesso ao Porsche.

Se víssemos a alma humana como tripartida, por sugestão de Platão, o homem dos apetites estaria com os apetites descontrolados, buscando satisfação o tempo todo, como se esta lhe houvesse sido há muito negada. Esse homem, que deveria aprender a ser um bom comerciante ou produtor, ou seja, a lidar sabiamente com provisões e economia, foi parar no âmbito da aplicação da lei na cidade, âmbito este que deveria ficar a cargo dos que têm a parte intelectual da alma mais proeminente.

Um vendedor que se empanturra com os próprios produtos está na cadeira de um juiz. O juiz confiscou bens e os olhou com gula. Tomou posse do carro, ou seja, do próprio Eike. Todos queriam ser um juiz, e punir Eike. Mas jamais perderiam a chance de ser Eike, e dar uma volta no carrão. Hoje eu ouvi de um taxista que o erro do juiz foi ter sido pego dirigindo o carro, sendo tão desgovernado a ponto de confundir Eike com o carro dele, esquecendo o indivíduo a ser punido e se empanturrando de carro-Eike.

Se Eike era o carro, e agora o carro foi para um lado, e Eike para outro, para alguém se tornar o milionário basta entrar no carro, vestir sua roupa. Este carro vale bem mais do que um Porsche.

Amar é estar ajeitadinho


No texto “A sereia desmistificada”, Bento Prado Jr., fala que há três formas de discurso possíveis sobre a literatura: o comentário, que pretende facilitar o acesso ao texto, então explicita o que ele diz; a explicação, que lê o texto a partir de outro texto, referente a uma estrutura mais geral ou a uma cadeia de acontecimentos, dos quais o primeiro texto foi derivado; e a interpretação, que também fala palavras que não as do texto, mas nem por isso se situa externamente a ele, como ocorre na explicação, pois pretende descobrir-lhe novos sentidos internos, mudar a perspectiva de sua leitura.

Interpretarei, aqui, a “História de dois amores”, de Carlos Drummond de Andrade, e o farei para dizer que a idéia de “porto-seguro” é de tudo ou nada, ou seja, não se refere a um lugar onde o eu vai descansar ou se proteger do mundo, mas é o chão que se cria quando um elemento encontra outro, como um sapo a uma mosca, ou um bebê a um seio. Eles se ajeitam um ao outro, passam a viver um clima de acolhimento, proteção e conforto, e, dessa intimidade, emergem como eu, sapo, ou seja, elementos definidos. Desse chão em comum nenhum deles nunca sai, a não ser que o porto-seguro anterior se perca e um novo seja constituído, e isto é um processo de quase queda no abismo do nada. Seres desprovidos de um lugar onde possam se sentir bem ajeitados vivem no desconforto, e ficam raivosos. Seres que participam da condição de estarem bem encaixados, participando de trocas tão equivalentes que se tornam imperceptíveis, são seres que vivem no amor, e por isso, sentem-se bem.

A pulga Pul aparece na história como sozinha, realmente sozinha, à deriva, como se alguém pudesse existir assim. Ela faria morada na primeira coisa que pintasse em sua frente. Passou por ela a orelha de Osbó, um elefante. Lá se meteu Pul. A pulga se achava o Rei das Pulgas. O seu elefante obviamente deveria ser era o Rei dos Elefantes, e era servidor dela, dando-lhe transporte e visão integral de tudo o que havia. Mas o elefante era indiferente à sua voz, às suas mordidas, aos seus chamados. Ele era colossal, ela minúscula. Ela estava acolhida na orelha de Osbó, mas não tão bem ajeitadinha. Aquilo era muito grande e barulhento. Mas estar ajeitada importava menos do que ter o maior poder de todos.

Um dia, ao encontrar o restante da manada, Osbó foi surpreendido pela oposição, de um grupo de elefantes, a que ele continuasse sendo o líder deles. Ao ouvir isso, Pul inchou de raiva, virou um pulgão, e pulou de olho em olho dos elefantes, picando e pondo-os cegos. Os opositores desistiram do seu intento, e deixaram o lugar. Osbó, enfim, reparara em Pul, e já pôde ver a sua enorme força. Passaram a conversar, viraram amigos. Pul pediu a Osbó que utilizasse a sua influência de Rei dos Elefantes para convencer as pulgas de que ela, Pul, era o Rei das Pulgas. Osbó não sabia se aprovava a idéia. Para convencê-lo a ajudá-la, Pul iniciou um zumbido fortíssimo, bem no interior do ouvido do seu amigo. O rock era de dia, era de noite, não parava. Osbó perdera o sono e o apetite.

O elefante foi encontrar um amigo, com quem conversou de um jeito que a pulga não pudesse escutar. Um pulga com raiva, ninguém segura. Osbó teve uma idéia: para esquecer a ira de sua amiga, só se ele mesmo entrasse no estado oposto, o estado do amor. O elefante passara a vida muito tímido. Agora olhava as elefantas, à procura da que pudesse ser o par dele. Encontrou a mais bela elefanta da floresta, e a ela se declarou. Ela também gostava dele, e então formaram um felicíssimo e grudadíssimo casal.

Osbó esqueceu o zumbido antes insuportável de Pul. Pul ficou triste, com a distância do amigo. Saiu de sua orelha e foi sentar-se à beira do rio. Osbó percebeu e foi falar com ele. Disse que considerava o amigo como zangado, sim, mas uma pessoa muito querida. Pul merecia amar! E seguiu o conselho do elefante, logo topando com uma linda pulga, do tamanho certo para ser seu par. E passaram a vida pulando por aí, sempre perto do casal de elefantes.
Pul não tinha um lugar dele. Encontrou um orelhão que o abraçava, mas que não podia ser seu complemento, sua continuidade. Era uma grande cabana, que o mantinha lá no alto das coisas, dando-lhe a impressão de reinar absoluta, e solitária. Mesmo tendo a amizade de Osbó, Pul só pensava na posição que queria ocupar, perante as outras pulgas. Imagine se você se sentiria bem, no sentido de bem acomodado, no chão de uma floresta, tendo como abrigo apenas as copas das árvores altíssimas. Você não se sentiria bem, e provavelmente viveria como fera, à flor da pele. O leão é o Rei da Selva, mas vive com "sangue nos olhos".

Osbó não se considerava o rei da sua espécie. Ele queria vencer a timidez e conseguir um amor. A gritaria desesperadora da pulga apressou isso: é grande o mal-estar provocado por um irado insatisfeito, e amar se torna urgente. O elefante formou a sua relação íntima, grudada e doce, e, para Pul, só poderia aconselhar que tratasse de fazer o mesmo. Pul assim o fez, e também passou a viver o doce estado. Parou de pensar em ser o Rei das Pulgas, e passou a dedicar-se a ser o rei e o escravo da sua pulguinha. Um amor precisa ser algo próximo do nosso tamanho, assim como um lar precisa ter um teto possível de ser tocado pelos dedos, mesmo que usemos escada e só toquemos com a pontinha. Assim, nos sentimos harmoniosos, tão importantes quanto a quem damos importância, sem dar ou receber demais, sem nos sentir desfavorecidos ou dominando alguém. Um lar e um amor são coisas que precisam e fazem com que fiquemos ajeitadinhos.

Considerações sobre a contribuição da filosofia para a psicologia

A psicologia científica é o estudo de processos psicológicos como a percepção, a memória, a atenção, etc. Como intervenção, atua em empresas, escolas, hospitais e outras instituições, com a intenção de favorecer a participação dos indivíduos nas propostas destes lugares, sem perder de vista se o indivíduo está tendo os seus interesses considerados e o seu bem-estar assegurado.

No consultório, o indivíduo fala suas ideias e o que sente, e a terapia aponta na direção de ele se sentir melhor consigo mesmo, e com mais capacidade de desempenhar bem seus papéis.

Birman, em seu livro “Freud e a Filosofia”, conta que Foucault, em “As Palavras e as Coisas”, observa que na Teoria do Trauma, da psicanálise, as palavras ainda, necessariamente, devem refletir as coisas. Freud observou que alguns de seus pacientes traziam, sob hipnose, relatos de cenas em que foram seduzidos por um adulto, enquanto eram crianças. Para a Teoria, o relato correspondia a uma cena de fato ocorrida, e que havia ficado marcada no psiquismo do paciente. Contudo, quando Freud passou a considerar a cena de sedução um fato psíquico, uma fantasia do paciente, e não um fato que tenha realmente acontecido com ele, finalmente desconectou as palavras das coisas. A fantasia é um discurso sobre um fato imaginado, e levá-la em consideração significava conferir autonomia ao psiquismo. A psicologia, contudo, não deu esse passo dado pela psicanálise, pois permaneceu buscando a correspondência entre o discurso do paciente e as coisas às quais ele se referia.

Os processos psicológicos são categorias do pensamento, e este, desde Descartes, precisa ser racional, ser conduzido sem erro, não levar à falsidade. A psicologia é herdeira desta filosofia, encontrando na razão o fundamento da verdade e também do eu. Neste racionalismo, alucinações e delírios eram avaliados como erros. Sonhos e imaginação, vistos como dificultadores da razão. A psicanálise conferiu valor positivo, de razão, à imaginação, aos delírios, alucinações. Mas tratava-se de uma outra razão: era o pensamento e a lógica de um sujeito desconhecido, habitante do interior do antigo sujeito cartesiano, e que o atropelava.

Voltando à psicologia, ela olhará o indivíduo na sua adaptabilidade à “realidade”. Seus esforços se voltarão ao entendimento das características e propriedades de determinados objetos circunscritos, como o funcionamento da consciência, das emoções, a linguagem, etc, além do desenvolvimento de técnicas mais eficazes para entendê-los e manejá-los. Toda ciência tem diante de si objetos a serem conhecidos, e técnicas de obtenção de conhecimento ou de intervenção sobre eles, a serem desenvolvidas. A filosofia, de outro modo, dá um passo atrás em relação ao objeto, e o estranha. Ela antes pergunta o que é consciência ou pensamento, do que como eles funcionam. Ou pergunta sobre o modo como podemos viver e conversar melhor, e, para isso, pergunta pelas modificações que podemos fazer nos conceitos que utilizamos, como o conceito de pensamento.

Um problema advindo da prática técnica, em torno de um objeto, se coloca para a ciência, mas não para a filosofia. A preocupação desta, desde o seu surgimento, é com as razões ou as causas das coisas, para estabelecer a sua lógica, conta Paulo Ghiraldelli Jr. Ao lado de uma filosofia explicadora, a história da filosofia tem filosofia morais, que comentam questões relativas aos comportamentos. A filosofia pergunta “O que é pensar? O que é verdade? Porque, em nossa cultura e práticas científicas, ou leigas, atribuímos a estes elementos um valor que não atribuímos a outros?”, e estas perguntas vão fazendo elaborar outras, e uma visão de mundo vai sendo constituída. A filosofia moral, por sua vez, interessa-se em saber sobre o nosso modo de viver, e inspira intervenções para fazer-nos viver melhor.

A atitude de pensar sobre o que é aquilo com o qual se está lidando, atitude esta que pode ser compartilhada com as pessoas a quem atende, permite ao psicólogo enriquecer sua leitura sobre seus casos. Analisar as formas de amar, de ser justo, de ser liberal, de ter valores, de desempenhar bem funções e papéis, de ser feliz, de atribuir sentido à vida, etc, leva à ampliação das narrativas que se constrói acerca de um paciente. A interpretação de um indivíduo é a perseguição da sua lógica própria, mas precisa recorrer a noções que não dizem respeito a ele. É preciso saber, por exemplo, o que é “eu’, “indivíduo”, “social”, “habilidades” e “representações”, antes de se falar em psicoterapia, “individualidade”, “habilidades sociais” e “representações sociais”. E se entende melhor aquelas noções quando se tem experiências com um eu, um individuo, um social, uma habilidade e uma representação. A interpretação de um indivíduo, sem o recurso às narrativas da filosofia, acaba dando em uma narrativa solipsista, fechada em si mesma e, por isso, pouco rica.

Conhece-se alguém a partir de narrativas que não provém dele. Por outro lado, o uso de uma categoria psicológica, sem que se a reformule a partir de noções filosóficas, dá todas as condições para que se a imponha sobre aquele a quem deveria interpretar. Conhece-se alguém a partir de uma narrativa que provém dele, mas é preciso também conhecer os instrumentos de leitura que se está utilizando.

O meu Dia das Mulheres

(A propósito do último Dia das Mulheres)

O Dia das Mulheres é para lembrar, como diz Zélia Duncan (https://www.facebook.com/ZDoficial/posts/869523626422313). Lembro do rosto da minha mãe. Lembro mais ainda da sua estatura: ela era baixinha. E brigona. Não permitia que ninguém a pusesse em desvantagem. Também não deixava, advogada que era, que ninguém pusesse outra pessoa em desvantagem. Dava “a cada um o que lhe era devido”. Eu a procurava mil vezes por hora, para qualquer coisa. Ela respondia o quanto podia, e não mais. Eu sempre pude saber qual era o limite. O limite não era curto e, por ser existente, não era infinito. Infinita foi sua energia para dizer que não podia. Sua estatura era de um enorme paredão na minha frente. Um paredão que nunca deixei de ver como uma cama macia.

Demorei para entender que ela não me dava pouco. Cresci me bastando naquilo, sendo uma pessoa que se ajustava àquele quantum de reciprocidade. No dia em que eu tivesse a minha mulher, ela me seria mais recíproca, mas também não poderia ser infinita. Um dia diferente do outro significa que em um se tem mais desejo, no outro, um atendimento, que me fez esperar a hora certa. Minha mãe tinha muitas emoções guardadas, e não as deixava virem para mim. Ela era do jeito que eu precisava. Eu era solicitante, ou seja, do jeito que ela precisava. Ela precisou de mim para dizer os nãos que não pôde dizer de outras formas. Assim, conseguiu vislumbrar os próprios sins. Ela namorou, viajou, jogou, bebeu, sorriu muito. Aos poucos eu passei a ser admirador, e não mais querer ser participante. O sorriso dela, fosse para quem fosse, estava bom para mim.

Mulher é aquela que sorri, passando por situações que às vezes são ruins. Ela as recebe, porque pensa poder melhorar o ruim, usando a beleza e a delicadeza. Minha mãe era inteligente, e conseguiu ajudar a si mesma a viver, mesmo tendo um coração partido. O homem é bruto. Às vezes bom, às vezes mau, mas essencialmente indelicado. Ele sempre tem muito o que melhorar, frente a qualquer papel, seja de marido, irmão, pai, filho. E está à espera de uma mulher que o receba. Tendo pouca experiência, sente como se fosse plenamente aceito. Não leva a sério as queixas. Quando ama, quer fazer o melhor que está na sua cabeça. Tendo alguma experiência, sabe que seu erros não foram só na relação com a mãe, e que também foi capaz de errar no “mundo lá fora”. Quando ele ama, já ouve mais as queixas, e ajusta à mulher a sua idéia do que é melhor para ele mesmo.

A vida me presenteou com uma mulher e uma filha. Não preciso dizer o quanto são maravilhosas, apenas que são minha mulher e minha filha: aceitam e dão reciprocidade para o meu jeito, que existe para amá-las, ser amado por elas e por elas criticado. Conversamos e nos entendemos; conversamos e não nos entendemos; trocamos carinho; fazemos e desfazemos planos; paramos ou damos passos. Temos cada um o jeito certo para o outro. Vou com tudo, e elas me fazem puxar o freio de mão. Até que me sorriem, mostrando o quão inesperada é a hora em que se faz a coisa certa.

O mundo bem legal das crianças


A criança nos tira da mesmice das nossas vidas. Queremos que ela aprenda o que temos para ensinar. Isso nos faz sentir que sabemos algo, e que sabemos nos comportar. Efetivamente, sabemos nos comportar, mas fazemos do "meu jeito", embora existam limites. Não percebemos este jeito, e nossas aspirações. Voltamos a experimentá-los na transmissão para a criança.

Ficamos, então, interessantes para nós mesmos, tanto quanto nos parece interessante alguém com uma ocupação ou uma origem "diferentes". Queremos saber! O comportamento diferente, por outro lado, nos cheira a desadaptação, fraco desempenho e insucesso. Rejeitamos.

Também queremos que elas descubram e nos apresentem novidades. O brilho dos olhos delas molha o nosso, e vemos as coisas como novas. O mundo acabou de surgir diante de mim, o que fazer? O que querer? Estas coisas, o mundo, o fazer e o querer ainda estão acontecendo. Não há só a mesmice de querer o pão diário e o vinho festivo. A criança come e comemora, ao mesmo tempo. Sobreviver vem junto do prazer. Depois os separamos, e o trabalho fica repetitivo.

Alguns profissionais precisam sempre que o novo se apresente para eles, ou dormem de vez e não vêem mais nada. Mas o quanto da novidade da criança suportamos, se temos necessidade de esinar o comportamento bem visto e técnico? E, em outra direção: como não mergulhar de vez no olhos da criança, se este mundo é tão feio, bobo e chato?

Ed Motta, com pobre a gente tem que ser muito delicado.



Ed Motta reclamou, na internet, das pessoas que gritaram em um show dele, no exterior (http://noticias.r7.com/domingo-espetacular/videos/preconceito-ed-motta-diz-que-brasileiros-nao-sao-bem-vindos-em-shows-na-europa-12042015). Queriam que ele cantasse as músicas que ele tem em português. Ele disse que não tocava para as pessoas “se lembrarem de sua terra natal”. Ele só tocaria músicas em inglês, e usaria este idioma para se comunicar com o público. As reclamações contra ele chamavam-no de elitista. Ed disse que aqueles brasileiros, em seu show, comportavam-se como se estivessem em uma torcida de futebol, ou em um show de um artista de sucesso de massa.

Elite quer dizer “eleitos”, e isso se diz baseando-se em determinado tipo de características: em um país há a elite intelectual, a elite econômica e a elite política. Dentro de uma instituição específica também há uma elite: determinada religião tem o seu líder, determinado esporte tem um atleta notável, etc. Estas pessoas se notabilizam por suplantarem a maioria nas características valorizadas pelo conjunto da população, ou pelo grupo (às vezes, pelos dois ao mesmo tempo). A elite o é por apresentar determinada característica (um excelente pianista, um grande filósofo, um importante político), e por ser reconhecida nisso, pelas demais pessoas.

No Brasil, não valorizamos a intelectualidade. Consideramos elite as pessoas com mais dinheiro, e que, em decorrência disso, moram em lugares mais caros, viajam freqüentemente para o exterior, etc. Estas pessoas espraiam-se no meio artístico e no político (mais no primeiro, pois, no segundo, despertam desconfiança dos que vêem), e figuram em capas de revista e na internet. A maior parte dos artistas não é da elite econômica, mas a elite econômica adora aparecer junto a grandes artistas, mesmo não possuindo talento artístico. Em muitos casos, jovens ricos não possuem talento para administrar as empresas de seus pais, mas tornam-se fundamentais para o ganho de dinheiro destes, pois, à medida que aparecem ao lado de um artista, atraem a atenção do público para as marcas.

Há alguns meses, a socialite Danuza Leão recebeu críticas de internautas por reclamar que, com o aumento da condição de consumo dos mais pobres, os porteiros dos prédios estavam conseguindo viajar, e ela temia o dia em que veria algum deles na mesma loja que ela, nos Eua ou na Europa (http://www.brasil247.com/pt/247/cultura/86189/Danuza-lamenta-que-todos-possam-ir-a-Paris-ou-NY.htm). Ela tem dinheiro, mais do que a maioria, e quer um lugar que lhe diga isso, um lugar em que ela não encontre qualquer pessoa. “Qualquer pessoa” ela quer encontrar do outro lado da sua coluna no jornal, como leitor-admirador. Ela reage à melhoria das possibilidades de consumo, das pessoas. Está errada por discriminar os pobres que, se estão no exterior, não são mais pobres. Ela reage à perda dos “seus pobres”.

Deve-se mostrar tudo o que o dinheiro compra, mas não se pode falar mal do pobre. Esse trabalho deve ficar para o próprio pobre, que adora falar mal do vizinho que viajou, que apareceu na TV, etc. Ele é o maior vigilante do comportamento dele mesmo. Quanto ao rico, “tudo bem ele ser rico, mas não pode esnobar pobre”. Esse é o aspecto do nosso ethos que usamos para condenar Danuza.

Tem uma do Rubem Braga (“O compadre pobre”), em que o compadre rico ajudou o pobre com alguma coisa grande. Este, como demonstração de gratidão, todos os meses enviava umas dúzias de ovos, para o compadre rico. As despesas do envio ficavam por conta do rico, naturalmente. Mas o preço daquele monte de ovos compensava, e o agrado era feito. Não, na verdade os ovos não compensavam. Eles sempre chegavam quase todos quebrados. O filho do rico sugere ao pai que diga ao pobre não mais enviar os ovos, pois deles pouco se aproveitava, sem falar que devem fazer falta para o compadre pobre. O pai diz que não pode dizer isso, pois o compadre ficaria muito sem graça. “Com pobre a gente tem de ser muito delicado, meu filho”.

Neste vídeo ( https://youtu.be/pcg-z_OyUlU) do quadro de humor “Primo pobre e primo rico”, interpretado por Brandão Filho e Paulo Gracindo, respectivamente, o rico pergunta como vai o pobre, e este diz que vai mal. O rico não se condói, e afirma ir muito bem. Ele mostra o quão bem pode ficar com o dinheiro que tem, sem sentir nenhum pudor. E pensa que o pobre também deve estar bem. Escuta as queixas deste, que não lhe fazem eco. No final, o rico permanece sorrindo, e o pobre, que começara queixoso, termina revoltado. Podemos falar no quanto o rico ignora a condição do pobre. Por ora, prefiro dizer: às vezes o pobre tampouco pode aprender com o rico. O jeito e as idéias do rico indicam certas atitudes necessárias ao pobre, e coisas que ele precisa aprender, para deixar de ser pobre. Mas ocorre de o pobre ficar se menosprezando. O rico apresenta-se como um modelo sorridente. Ser uma inspiração é uma das melhores ajudas que ele pode dar ao pobre que quer deixar de ser pobre, mas é revoltante ao pobre que quer permanecer pobre.

O aumento do potencial de consumo pressionará o aburguesamento do comportamento de todos, ex-pobres ou novos-ricos. O novo-rico vai ao show do Ed Motta, no exterior, e comporta-se como torcida de futebol. Ele se acha mais educado do que o filho da empregada, que visita a casa dos patrões da sua mãe, usando chinelo, e almoça na cozinha. O novo rico se lambuza, e quer que o Ed fale português. Tudo indica que Ed não é Danuza: ele quer ver brasileiros na Europa, mas falando inglês e se comportando como elite. Os novos-ricos se incomodam com a petulância de um “cara que até pouco tempo estava no Conexão Japeri (Japeri é uma cidade do subúrbio do Rio), cantando Manoel, e que agora quer ensiná-los a se comportar”. Aí a nossa infantil indisposição para aprender se junta ao preconceito racial e contra o ex-pobre. Os pobres, aí, são os novos-ricos.

Ed, meu filho, com esses pobres a gente tem que ter uma delicadeza quintuplicada.

“Brasil, pátria educadora”



No filme Gran Torino, o jovem asiático era assediado pelo primo mais velho para que entrasse em sua gang. O garoto não encontrava muitas perspectivas para o futuro, e tinha tudo para repetir a trajetória de roubos, drogas e violência, do primo. Ao lado de sua casa morava um velho rabugento (Clint Eastwood), com desprezo pelos asiáticos, e um desprezo especial pela velha avó do garoto. O garoto começou a se oferecer para cortar a grama, consertar a calha e lavar o Gran Torino do vizinho. O veho começou a demandar dele serviços mais difíceis. Após alguns trabalhos bem-feitos, o vizinho levou o garoto para a barbearia, para aprender a falar feito homem; levou-o também à loja de ferramentas, pois um homem de bem precisa ter suas próprias ferramentas, e não mais ficar pegando emprestadas as dos outros.

Na escola, a criança e o jovem entram em relações interpessoais com os outros da mesma idade, e com a professora, e a partir destas relações desenvolvem uma disciplina ou um comportamento que permite o conhecimento e a contenção da própria vontade, além do aprendizado e do raciocínio sobre conceitos e questões morais. A criança recebe o adulto interessado em relacionar-se com ela, em ser de sua confiança e estima, então é levada a aprender. Fora da escola, e quando já se é jovem, o aprendizado ocorre antes da relação. O saber fazer é requerido, e não se recebe nenhum elogio anteriormente ao desempenho.

Seguindo pela teoria da alma constante no Fedro, de Platão, o jovem gostaria de ser acolhido pelo adulto, mas uma parte de sua alma o obriga a se conter, como se ainda não houvesse chegado o momento da acolhida. Ele precisa esperar este momento ou, antes, merecer a chegada dele. Na pederastia grega, um jovem aprendia um ofício com um homem. Era por ele introduzido na vida da pólis, no círculo social que completaria o trabalho de fazer dele homem, cidadão. A pederastia também era uma relação de namoro. Entre Alcibíades e Sócrates, o segundo não apenas ensinou ao primeiro que ele não sabia o que imaginava saber, indicando o que ele precisava para ser um governante, como ensinou-o a conter seu impulso amoroso e a esperar a hora certa.

Hoje não existe mais a cultura de se ter um aprendiz ou um mestre. Quando um jovem encontra um adulto antes ouve ameaças que aviltam sua dignidade, rebaixando-o e às vezes revoltando-o, do que orientações e instigações que o façam buscar se superar e orgulhar-se de si mesmo. “A vida ensina na porrada”, é o que alguns pais dizem. Fora da escola, o adulto é hostil para com o jovem, que tem impulsos e força. Dos professores, a sociedade espera alguém abaixo da capacidade de sentir hostilidade: o professor é alguém que, de tanto pedir e não receber, cansou de esperar pelo momento da recompensa. Depois, começou a achar que não merece qualquer recompensa, seja amorosa ou material (pagar bem ao professor significaria que se os ama). Ao contrário de honra, o professor sente vergonha.
Não gostamos, por isso não educamos, tanto os jovens quanto os professores. Não exigimos deles, nunca os recompensamos. Tornamos-nos um país com indivíduos que não enfrentam dificuldades utilizando o empenho e o raciocínio, mas usam o jeitinho e os acordos facilitadores. O que fazemos sempre tende a descambar para a ilegalidade. A casa não ensina, a escola não ensina, não mais nos educamos mutuamente, resta para a pátria ser educadora. A pátria pode ser a seleção de futebol. Pode ser o batalhão choque. Estas são as formas como vemos a pátria em nosso dia a dia. É assim que ela nos educa, pais, jovens e professores.

A autorização da violência



Ficou mais caro comprar as coisas. Aquele projeto não fechou por pouco. Cobrei abaixo do mínimo, mas ainda assim os clientes estão chorando. Ninguém entende estes problemas, mas os experimenta. Bate panela para mostrar o mal-estar, sem tentar entender. O governo bate em você, então você deve bater de volta. Como não entende, não tem outra forma de agir.

Mais um parecido comigo foi esfaqueado. Pode ser eu, morto no chão. Se eu pudesse, levantava e esfaqueava de volta. Um cidadão não tem mais o direito de aliviar o stress do trabalho, dando uma bicicletada. Peço que o governo esfaqueie por mim. Chamo de "redução da maioridade penal" o que eu não sei muito bem como funciona e os possíveis efeitos. Mas quero que seja feito logo. Como não conheço, não me comprometo, e faço passeata para mostrar que sou da paz. Estou louco para também esfaquear, mas ei, Estado, eu só quero andar por aí. Eu não sei quem você é, Estado, por isso não precisarei olhar nos seus olhos de assassino, e me ver refletido. Para todos os efeitos, eu sou da paz.

Ah, a Dilma está aí, a grande culpada! Eu te xingo de tudo, mesmo, e quero que você suma. Não sou da paz, não. Acabou o tempo de eleger e esquecer do presidente. Você deu dinheiro para o pobre, então você existe, o Estado ganhou uma cara. Você é a minha inimiga, Dilma, e todos estão comigo nessa. A população contra o Estado-com-face. Ninguém vai achar ruim se eu esquecer que sou da paz e até sugerir violência contra você. Eu mesmo não vou fazer, mando o exército.

O indivíduo quer um salvo-conduto para ser violento em público. Quando se vê perto de uma cena de esfaqueamento, colhe incentivos para poder se vingar. Ele até gostaria de chegar perto da cena, para fazer esta colheita. Quem sabe os incentivos ficam tão grandes que, ops, matei um bandido, mas foi por pressão externa! Entre os pressionadores e o esfaqueado, que sempre foi esfaqueador, os olhares são de cumplicidade.

Contra a presidente, alguns sugerem, sem pudor, a violência. Sentem-se autorizados, pela população, para cometê-la. Ninguém, contudo, quer ser o bobo da turma, que realiza o desejo destrutivo que todos têm, mas os faz saírem como culpados. Quem seria louco de tacar bolinha na professora chata? Então vamos amassar panela, que assim a gente não fica de castigo na sala, depois da aula.

O meu muito obrigado


Em um grupo de amigos conversava-se sobre os problemas em ajudar alguém. Um deles dizia estar preparando um trabalho acadêmico para um colega. Ao saber disso, o grupo protestou. O mal não era ele estar fazendo o trabalho por outra pessoa mas, sim, permitindo que outra pessoa o aproveitasse para fazer um trabalho que deveria ser dela própria. "Você deveria cobrar", disse uma amiga, "pois, assim, ele daria valor e, quem sabe, passaria a fazer os próprios trabalhos!" "Cansei de ajudar os outros. Quando era para me ajudarem, todos faltavam", disse outro.

O grupo dizia que o trabalho devia ter uma contrapartida financeira. O detalhe era: para que o outro aprendesse. Pagar um preço pelo trabalho deveria custar mais do que a quantia gasta: o preço deveria ser algo da atitude ou do do modo de ser do pagador.

Marx apontou a modernidade como a época em que, tendo o valor de uso das coisas sido substituído pelo de troca, em um mercado que para tudo estabelece uma base comum (o dinheiro) de comparação e equiparação, o trabalho de uma pessoa vale o mesmo que mil reais ou dez calças ou meio computador. A injustiça, no sentido de desajuste, desta lógica, começa quando aquele que faz o trabalho não vê, em sua vida, a justa recompensa pela sua atividade. Ele chamará a atenção do patrão para onde mora, as suas dificuldades, até sua história e visão de mundo. Precisa ser mais bem pago! Esta reinvindicação é por um aumento na remuneração, embora aponte para algo além dela. O mercado desequilibra os preços, em nome do lucro de uns poucos. Então o trabalhador precisa ganhar mais, e isso porque ele passa pela dificuldade x ou y, ou por ele ter essas ou aquelas virtudes que merecem valorização. Essas virtudes podem não se refletir na forma com que ele trabalha, ou podem incrementar o que ele produz.

O dinheiro é apontado como um frio mediador, na troca de apreciação entre as pessoas. Minha amiga queria uma mudança no sujeito que não fazia seus trabalhos acadêmicos. Freud disse que a análise deve custar um preço tal que faça o paciente considerá-la cara, mas, como o paciente também a considerava necessária, se empenhava mais pela resolução dos seus problemas psíquicos.

Trabalhamos e queremos algo mais do que dinheiro, em troca. Queremos reconhecimento que chegue sem mediação, incentivos ou conselhos de impacto direto em nossas ideias e emoções. Rousseau falou de um menino coxo a quem sempre encontrava na rua. Este lhe pedia dinheiro, no que era atendido, e respondia contando casos de sua vida. Inicialmente o filósofo dava dinheiro com prazer. Depois, passou a se sentir obrigado em dar. Para evitar o menino, mudou seu caminho habitual. A gota d'água foi ter sido chamado de Sr. Rousseau, pelo menino. De Sr. Rousseau qualquer um na sociedade o chamava. O menino deveria conhecê-lo melhor do que isso. Deveria reconhecê-lo, recompensá-lo chamando-o de algo não impessoal.

O menino de Rousseau fê-lo sentir-se vítima de ingratidão. Ingrato é quem não reconhece o bem que lhe foi feito. Em trocas comerciais, este bem tem um preço claro. Bem, nem sempre. Odiamos um restaurante com um garçom eficiente e de nariz em pé.

Demonstrar gratidão não é pagar pelo que consome. É sorrir para o garçom que nos traz comida. Alimento-me e me visto com coisas oriundas de várias transações. Alguém que me vê na rua não viu ou participou delas. Quem participa de transações comigo, parece frio. Como não sou pago só com dinheiro, alguém mais precisa me pagar. O mundo tem que me sorrir. Também sou frio com meu chefe, meu empregado ou meu cliente. Minha esposa e filhos não têm o melhor de mim. Para todos os outros, sorrio, agradecendo o amor que acho que vem deles.

Tem havido feiras e correntes "de gratidão", gente doando objetos, histórias, oferecendo abraços gratuitos. Na verdade não são gratuitos estes objetos, histórias e abraços: minhas relações são frias, me medem pelo dinheiro, não elevam meu valor, mas, veja, o universo conspira a meu favor, os olhares na rua são o "bem" que recolho por aí. Assim, arrumo de ser pago (afinal, essa vida tem que valer a pena). A vocês, o meu muito obrigado.

A vida de Adaline


Para o filme "A incrível história de Adaline", em cartaz nos cinemas, prefiro o título original , "Age of Adaline". Harrison Ford, quando jovem, viu o céu ser cruzado por um novo cometa. Desde então, ele passou a sua vida olhando para a estrela, à espera do reaparecimento do cometa.

A jovem Adaline sofreu um grave acidente. A conjunção de um lago gelado e da descarga elétrica de um raio fez com que ela passasse a viver sem envelhecer um segundo a mais. Adaline viu sua filha crescer e envelhecer, enquanto ela permanecia com a mesma aparência de jovem. Não aparentava ter armazenado todo o conhecimento que acumulou por décadas, e que empregava no trato com as pessoas.

Um jovem por ela se interessou, mas ela evitou envolvimento. A cada década, Adaline mudava de endereço e de identidade. Agentes do FBI queriam capturá-la para estudos. Algum tempo depois, os perseguidores não mais existiam. Ela continuava sem se fixar a nenhum lugar.

Ela também sentiu afeição por este jovem. Lembrou, contudo, das vezes em que esteve apaixonada, e apaixonou alguém, e abandonou tudo. Ela vivia o começo das relações, mas as estancava. Era eternamente jovem. Em um encontro com sua filha, já idosa, recebeu aconselhos de não mais fugir das pessoas.

Nossa vida é uma sucessão de presentes, com um passado e uma hipótese sobre o futuro. Quando envelhecemos, temos mais passado e um tantinho de expectativa do futuro. A filha de Adaline lhe disse que, se tivesse a juventude da mãe, correria para se apaixonar agora. Era velha, contudo, e não se via com forças. Adaline tinha um longo passado, mas cortava os seus futuros. Acaso faria mal a alguém, se com ele se juntasse e o visse envelhecer, sem que ela o seguisse na idade? Sofreria muito se, de época em época, visse os seus queridos morrerem e deixarem-na ali? Drácula também não envelhecia, mas isso não lhe trazia os dramas de Adaline. Ela era boa, mas, ao se afastar de quem tocava o seu coração, e era por ela tocado, fazia mal para ele e para ela mesma.

O jovem vê a morte como distante. Talvez, também, porque se veja com um curto passado. Suas emoções são fortes, têm o gosto da eternidade. Quando cresce, acumula experiência. Ainda sente o amor, sente o eterno. Mas também compara esse amor a amores do passado. Aquele amor, ao mesmo tempo em que é tudo para ele, não é tudo para ele. É eterno, mas pode acabar.

O receio de Adaline em se envolver era uma marca de uma perseguição que uma vez sofreu, que se rebatia nos presentes dela, dizendo que aquilo deveria ser cortado. Cada paixão nossa é inesquecível. Adaline as interrompia no auge, sem viver a relação que se seguiria. Ela não conhecia o futuro que poderia ter com alguém. Não conhecia o desenrolar das histórias que poderia ter vivido (muito viveu, mas nada a tocou, foi vivido por ela). Por não terem sido transformadas em um relacionamento, suas paixões, mesmo estando no passado, permaneciam fortes, fogo não extinto.

Adeline era um cometa que encantava, entusiasmava e seguia seu rumo independente e indiferente. Eis que, um dia, resolveu parar de correr, e viver a paixão que também sentia. Neste momento, o relógio voltou a correr. Ela ganhou um cabelo branco.

Mulher bonita mora na rua



Uma mulher se veste para si mesma, mas seu espelho são os olhos dos outros. Seu homem tem olhos que lhe importam muito. Os olhos da rua também. O conjunto roupa+maquiagem+cabelo foram feitos para desfilar por lugares elegantes. E para as calçadas da cidade.

Em lugares elegantes, a mulher bonita recebe gentilezas, gestos suaves que visam ajudá-la em alguma coisa. Recebe sorrisos e interesses em conversar sobre qualquer assunto. Nenhum assunto é aprofundado, exceto aquele ao qual o lugar especificamente se destina. Por exemplo: em uma reunião sobre a venda de uma empresa de pescados, cabe extensa conversa sobre o seu andamento comercial, e sobre pescados. Uma mulher bonita, contudo, pode falar que odeia peixe, e ser ela mesma o assunto. Mas este será tratado pelos sentidos que recebem sua aparência, a conversa será entre órgão estimulado e órgão que estimula: o nariz cheira o seu perfume, os olhos se encantam pelo brilho dos seus olhos, a pele sente os movimentos quentes da sua, e a língua não se ocupa em falar, só em salivar e ansiar pelo seu gosto. A morada da mulher bonita é na sensorialidade do homem ou da mulher que a encontram.

Em lugares degradados ou públicos também se sente isto tudo, mas a língua do outro solta uma cantada. Há cantadas que visam transportar a mulher para uma situação de dominação, como se se dividisse com ela uma intimidade. Estas dizem do homem que quer antes tirar o poder da mulher do que enaltecê-la. E há cantadas que elogiam, dizem do homem que foi afetado e ficou sem ar, fraco, na presença da mulher.

Em casa, pode ocorrer violência, e isto é inaceitável. Mas também há momentos específicos em que se retira o poder da mulher, e ela quer isto. Estes momentos são os mesmos em que também ocorre, em outras vezes, o estrebuchar do homem, de tanto que ele sentiu.

Quando se leva o desejo de dominar para a rua, a cantada sai grosseira. Aquilo que era parte de uma intimidade, fica exposto, peixe que secou quando levado fora d'água. Quando se leva um tanto de enfraquecimento do homem para a passarela-rua por onde passa a mulher, e ele se derrete em galanteios, a patricinha diz não gostar, que foi "fora do contexto". Já a periguete mostra que o canteiro de obras é onde sua beleza está em casa. A patricinha ou a feminista, de tanto reclamar, acha a si mesma chata , e sente saudades dos olhos sequiosos da rua.

P.s.: A mulher mais bonita que existe, a minha, inspirou-me neste texto. Enquanto escrevi, pensei na sensação que causam os seus passos e o seu ar, dentro de casa, em mim, e nas passarelas que se abrem para ela, na rua. É impossível que, quem a sinta, não se apaixone. E não consigo segurar a minha alma, que voa e vai com ela em todas as vezes que ela me diz "até logo".

Quem é o casal Boticário?



"Não se deve falar de problemas pessoais em fila de banco." Mas, quando alguém fala de problemas pessoais, a pessoa que proferiu aquela sentença espicha o ouvido para escutar.

Uns se queixam de homem com homem na tv. Não apenas as justificativas dos evangélicos são empregadas. Talvez as deles sejam as que mais apareçam. Outras pessoas apóiam os homens juntos, e nem sempre pelo argumento do "toda maneira de amor vale a pena", do Milton. E tem quem nada fale. Aqueles que mais emitem opinião, de todos os lados, vivem pedindo para os sem-opinião compartilharem as propagandas deles, no face.

À primeira vista, o cabo de força está sendo puxado pelos partidários dos que "consideram justa toda forma de amor", agora com Lulu, e dos que levantam a "definição tradicional de família". Quem os assiste, imita seus jargões. Alguns desta audiência, mesmo quando espremidos, não superam o slogan. Outros conseguem ir além, e dizem outras coisas. Na fila do banco, contudo, fica-se na fórmula fácil. Na tv, também.

A disputa também parece ser entre o poder mostrar o que antes não se mostrava, e o continuar não se podendo mostrar o que atualmente não se pode mostrar. Velhas reclamam da minissaia das moças. As moças querem mostrar as pernas, por elas mesmas mas também por uma contra-opinião. As moças reclamam das velhas de minissaia. As velhas querem mostrar as pernas, por elas mesmas mas também por uma contra-opinião. No desejo de uma tem um boicote ao desejo da outra, na disputa por ser aceita pelo Outro.

A militancia gay quer muitas coisas, mas, no mais expressivo, quer o que os evangélicos não querem. Espera a voz deles para ir contra o que disseram. É como aqueles que assistem ao "Fala que eu te escuto" para arrumar seu ateísmo. E a militância evangélica segue o mesmo comportamento.

Assuntamos o "gay". Ele deve ou não aparecer? Essa é a questão colocada, e respondida por afirmações das próprias opiniões, e ciúmes das do alheio. Mas, por que não um anão com uma mulher alta? Um anão com uma mulher vestida de palhaça? Permanecendo no gay: por que não dois homens presenteando um terceiro? Um grupo trocando presentes de namorados? Por que quem pode formar dupla amorosa pública é o que está em jogo.

Que cinco homens vivam uma paixão conjunta, isso não preocupa. A soleira da porta para o público é vigiada apenas para as duplas. A dupla é que inicia a família, a união de amor é sempre de dois. Esta é a foto que usamos para checar suspeitos de desvio. Em público, duas pessoas devem dar as mãos. O passeio é o lazer que exibe aos olhos de todos a célula formada por dois, que se mantém, na maior parte do tempo e sem ser vista, fazendo-se família e contribuindo com a sociedade. O que se discute é precisamente se o gesto de dar as mãos, às vistas, pode ser homo ou hetero.

A decisão sobre quem pode formar a dupla parece ter como desdobramento a liberação, ou a restrição, das outras formas de amor. Superando-se a questão de se é homem ou mulher quem dão as mãos, não haverá controle da quantidade de amantes, ou do seu tipo físico ou cor de pele. Os evangélicos prevêem isso, e dizem: "aonde passa um boi, passa uma boiada. A perdição será geral." Eu digo que a imagem da dupla harmoniosa, que formamos com um homem e uma mulher da mesma altura, tamanho de barriga e cor, sendo quebrada, fará com que notemos cada vez menos as variações de quantidade e qualidade, nas uniões.

Aqueles cinco amantes passam na frente de alguns militantes gays, e dos militantes evangélicos, e nem são notados. Estes se merecem. Malafaia sonha em estar na novela da Globo. E, pensando bem, não tem como um gay não comemorar o beijo gay na novela também como uma desforra.

A autoridade é má



Não mandamos em nossas crianças. Pedimos a elas. E devemos explicar sobre tudo, o tempo todo. A autoridade é má, dizer "não pode porque não pode" é ser mau.

Na academia, um professor não pode expressar uma doutrina. Não pode expressá-la não por ela ser errada, mas para não ser acusado de ferir o direito do aluno de escolher livremente (como se ele vivesse num vácuo social) a própria doutrina.

Devemos ser todos iguais em poder. A autoridade do pai é para ser igual à do filho, a do professor igual à do aluno. Assim é que pensamos. Os pais gostariam de deixar os filhos fazerem tudo, e sentem-se em débito com eles. Trabalham muito, e passam muito tempo distantes deles? Não, o débito existia antes de eles nascerem. Ao saberem que terão filhos já pensam no que precisam fazer, na responsabilidade inimaginável de ser pai, em como isto precisa transformar totalmente a vida de uma pessoa. Com sorte, verão que não podem oferecer tudo. Sem sorte, achar-se-ão merecedores de entrar para o SPC da Paternidade.

Socialmente, certa militância de minorias as apresenta como credora de uma dívida impagável, e representante de uma cultura que não pode ser criticada. A cultura é antiga, passou por disputas, muita gente foi morta, então é meio sagrada. Seus praticantes identificam sua história pessoal com a história dela, e não aceitam que "que alguem de fora" fale delas. Homem não pode falar sobre mulher. Branco não pode falar sobre racismo contra negro.

Como a criança aprenderá o não, que cria os limites de um mundo que, sem limites, é uma banheira onde se fica de boca aberta, só recebendo comida, sem buscar outras coisas? Como as culturas e ideias refletirão sobre si mesmas, e poderão melhorar, se não ouvirem o contraponto e receberem uma análise mais objetiva?

Não se deve mandar, e não se deve expor saber, com o aluno sentado e escutando, para não oprimí-los. Em resposta a este excesso de cuidados, vemos professores indo para o extremo de defender amalucadamente (sem crítica) a própria doutrina, e pais espancando crianças. Quando se evita a própria força, não se a conhece. Aí ou a pessoa se anula em tudo o que poderia ensinar, ou se descontrola.

Onde ainda existe professores e alunos? Em grupos de estudos dentro de universidades públicas, com professores e alunos mais selecionados, e que funcionam com alguma independência em relação à própria universidade. Talvez o sistema de ensino precise ser reformado, baseando-se na força motriz dessas experiências.

A pessoalidade no ensino acadêmico parece ser garantida pelo liberalismo, mas não o é: ela impede que se seja professor e aluno, necessariamente desiguais no saber, e a análise dos saberes e dos fatos. A pessoalidade é inimiga do próprio liberalismo. Já podíamos observar isto na nossa relação com as leis. Agora as vemos em casa e na escola. A criança e o jovem têm o direito ao contorno de mundo que só o limite do não pode e do não sabe dão. Sem eles, pode-se tudo, até se destruir e ficar burro.

O indivíduo e o divino, entre Homero e nós mesmos



Na Ilíada, Aquiles é considerado o maior guerreiro dentre os gregos. Batendo-boca com Agamenon, este diz que Aquiles só é ótimo guerreiro por ser protegido pela deusa. Em um outro trecho da história, outros personagens gregos dizem esperar que Zeus conceda-lhes a glória de tomar determinada cidade troiana. Mais no início da história, uma mortandade por doença, também do lado grego, foi atribuída a Apolo: o deus cumpria o pedido de um sacerdote que fora humilhado pelo líder dos gregos.

Este modo de pensar, do grego antigo, que atribuía aos deuses poderes sobre a vida dos homens, é o mesmo que o nosso, quando dizemos que Deus é responsável pelo que nos acontece? A resposta é não.

Para os gregos antigos, o mundo seguia a vontade dos deuses. O homem podia cuidar da própria ação, mas não das consequencias destas. Este misticismo não se dava por ignorância do povo grego. Para ele não havia a figura do individuo, figura na qual modernamente se atribui a vontade, e também a responsabilidade sobre as consequencias dos atos e o poder de decisão sobre o próprio destino. Como disse Marco Casanova, num Hora da Coruja sobre Heidegger (http://flixtv.com.br/tv/hora-da-coruja-flixtv-3/#.VXZKEXO5dAh): O lugar onde nasce um indivíduo não determina o destino dele. Ele é móvel, pode (e, chegamos a dizer, deve) mudar tudo em si mesmo e "não se acomodar".

O homem antigo tinha funções, ocupações definidas. Não vivia muito, por doenças ou pelo envelhecimento ou cansaço com pouca idade. Então aproveitava seu tempo para exercer bem e honradamente a sua ocupação e posição social. Seu horizonte de experiência, agora do ponto de vista geográfico e social, era restrito à pessoas e lugares por onde circulava, no atendimento de sua função.

Facilmente se demarcava os limites da ação de um homem. As consequencias dos seus atos, e os acontecimentos que se desenrolavam a partir deles, eram tributados aos deuses, seres eternos que conhecem melhor do que o homem o funcionamento do mundo, e seu proprio destino.

O homem atual não tem limites espaço-temporais, estipulados por outrem, para agir ou intencionar agir. Seus limites são constantemente re-estabelecidos. Ele expande seus limites naturais, com o Viagra. Através do virtual, amplia o que seus olhos podem ver, e até onde vai a sua presença. Os limites dos seus atos estão na moral e na lei, dadas pelos homens, também em constante modificação.

Não é Deus quem diz o que o homem pode fazer, senão ele mesmo. Não é Deus quem criou o mundo, senão ele mesmo. O homem chegou a ponto de se dizer criador de Deus.

Esse é o nosso modo se ver as coisas. Hoje, quem atribui responsabilidades a Deus busca esquivar-se de suas próprias, como no caso de quem diz que "entregará nas mão de Deus" o resultado de um teste de gravidez; também há quem busque proteger-se por Deus, dizendo que ele garantirá que uma viagem ocorra em segurança.

Há atos nossos cujas consequencias podemos prever e controlar. Para isto entram nossos princípios técnicos e morais, de ação ("preciso seguir procedimento x", "não posso falhar moralmente, fazendo y"). E há consequências, para nossos atos, que fogem do nosso controle, como a segurança de um vôo de avião. Também há doenças de cura não garantida, nas quais encontramos o limite do que podemos fazer ou escolher.

Invocar Deus serve para me desresponsabilizar sobre o que eu deveria ter responsabilidade. E também serve para amparar o homem, nas situações em que ele não sabe o que fazer, ou não consegue fazer o que sabe, e busca proteção.

Pessoas virtuais e não-virtuais

Pessoas virtuais e não-virtuais

Imagine que em breve as telas dos celulares passarão a ser usadas na forma de lentes de óculos, ou lentes de contato, ou pára-brisas de automóveis. A realidade virtual estará à nossa frente, misturada com a não-virtual: a pessoa não-virtual, que olho na rua, estará vestindo roupas não-virtuais e roupas virtuais. As virtuais terão sido escolhidas por mim, aquele que olha, respeitando a vontade da pessoa olhada, ou seja, o que ela permite que vistamos nela. As roupas virtuais também serão escolhidas pela própria pessoa olhada.

Bem, o que será respeitar a vontade dela? A frase "meu corpo, minhas regras" deverá mudar. Se eu quero pintar a unha da minha mulher de laranja, o que ela tem a ver com isso? Ou se eu quero imaginar, criar uma imagem, que me venha agora, através da retina, e que não seja produzida sem participação de estímulos não-virtuais, e que seja de algum dano sofrido pelo outro, dano virtual, porque eu não teria a liberdade de fazê-lo? Até onde irá o não interferir na imagem do outro, se essa interferência é virtual?

Se os limites dessa interferência se alargam, no virtual, também acabarão se alargando na não-virtualidade: poderei mudar as roupas dos outros não-virtuais. Quem sabe, jogar futebol virtual com quem quer ficar parado? Vê-lo pelado? Dar-lhe um murro?

Os limites da liberdade de interferência de uma pessoa, virtual ou não, em uma outra pessoa-virtual não podem seguir os limites da liberdade nos contatos não-virtuais.

Hoje olhamos e escutamos o virtual. Como seria possível tocá-lo ou sentí-lo de outras formas? Fazer realmente sexo virtual? Comer uma pizza quentinha às quatro da manhã? Pontos especificos de nossa língua podem ser tocados, pelo pizzaiolo virtual, através de vibrações no celular, e o mesmo gosto da pizza não-virtual será sentida. Ou será isso pedir muito mais do que o possível? Tudo bem: o pedido virtual aciona aquele mais próximo de você não-virtual, que tenha os aromas e sabores sintetizados, prontos para chegarem porta adentro da sua casa e te dar a sensação certinha da pizza.

Haveria um estoque de sensações sintéticas ou, vá lá, de pizzas não virtuais, perto de você não-virtual, e a um clique da entrega. As mesmas possibilidades ocorrerão com o sexo: alguém virtual tocará pontos no seu corpo virtual, e a estimulação alcançará o corpo não-virtual. Ou pessoas não-virtuais, espalhadas em postos não-virtuais, estarão sempre perto de consumidores não-virtuais, para reproduzir o feito pela profissional-virtual-do sexo.

O nosso eu-virtual pode tornar-se consciente do que sente. O Super-Mario sentirá dor a cada golpe sofrido, justamente quando começa a saber que sente dor. Alguém não-virtual pode sentir as dores de Mario. Mais do que isto: tinha um namoro virtual que, um dia, acabou, e pôs a pessoa virtual para sofrer, sem afetar a pessoa não-virtual. Mas como a pessoa não-virtual saberá que a pessoa virtual está sofrendo? Talvez ela permita que algo desse sofrimento chegue até ela. Viverá algo do que vive a pessoa-virtual, mas podendo dosar a experiência. Se isto for possível, o que a pessoa não-virtual sente, como uma dor de amor, poderá ser posto todo para que a pessoa-virtual sinta em seu lugar. A pessoa não-virtual só sentirá o que quiser.

Pessoas falecidas poderão ganhar vida virtual na frente da pessoa não-virtual, e serem como ela lembra, ou como ela quiser. A um órfão não seria negado o direito de fazer sua mãe do jeitinho que ele mais precisa. Em outras relações, ou para certos atos, certamente se colocarão limites.

Estas são imagens de um futuro próximo, projetadas pela minha pessoa não-virtual. Quando eu clicar "publicar", estarei dando o texto para minha pessoa-virtual. Ela faz o que a minha pessoa não-virtual quer. Um dia, caso seja possível, eu poderei deixar que minha pessoa-virtual tenha experiências e textos próprios? Espera, quem sou eu para decidir pela minha pessoa não-virtual? Ela fará suas próprias regras. Ela quererá, inclusive, fazer regras para mim, e me levará a escrever num livro não-virtual o seu texto. Vai querer que eu coma pizza, para ela sentir o gosto. Gosto ela sente, mas cismou de sentir o que eu sinto.

E você, ainda acha que o contrário de virtual é real?

Quem é o ator?



Em entrevista recente para o Jô (http://globotv.globo.com/rede-globo/programa-do-jo/v/alessandra-maestrini-lanca-o-cd-draman-jazz/2474373/), a atriz Alessandra Maestrini disse estar em cartaz, com uma peça, interpretando uma mulher judia que se veste de homem, para freqüentar a universidade em um tempo em que mulheres judias não podiam estudar. Um dia ela se apaixona por outro homem. A atriz afirma que o conflito da personagem está na contradição entre ser vista socialmente de uma forma, e sentir-se de outra forma. Vestir uma roupa de homem estaria na contramão de sentir desejo por homem.
Mais adiante, na entrevista, Jô pede que Alessandra conte sobre a assunção pública da sua bissexualidade. A atriz diz que, volta e meia, perguntavam-na em entrevistas sobre quem ela estava namorando. Às vezes perguntavam especificamente pelo homem com quem ela estava. Ela disfarçava, chamava de “ele” quem queria chamar de “ela”, e elogiava o próprio “namorado”.
Rousseau, filósofo, deu-nos a noção de “sentimento interior”. Segundo conta, sua sociedade não soube reconhecer sua bondade, e retribuir, sendo boa para ele. Ele procurou ajudar pessoas, agir bem - intencionalmente, mas sofreu com a incompreensão e a aproximação de pessoas que, fazendo-se de admiradoras, tiraram proveito da sua fama e bondade. Que sentimentos ele tinha? Para responder isso, ele partiu em caminhadas solitárias, a fim de conhecer os sentimentos que ocupavam seu coração. Rousseau queria conhecer o verdadeiro eu dele, através do conhecimento dos próprios sentimentos.
O social era máscaras e insinuações. Outro filósofo, Pascal, viu nessas coisas não o encobrimento de um “verdadeiro eu”, mas simplesmente os formadores indispensáveis do “eu”. O “eu” é o aglomerado das suas posses, dos seus títulos e honrarias, das suas funções e cargos, sem os quais nada sobra. O eu surge quando algo veste a as roupas de quem somos, e aquele algo torna-se “eu”.
Falando com o Jô, Alessandra contou que sempre diz, nas entrevistas: "sou gaúcha, atriz, namoro a... ou melhor, o... " Essa parte ela mudava. Ela se sentia traindo algo em si mesma. É rousseauniana, neste sentido, como seu atual personagem no teatro. Quem ela verdadeiramente é precisava ser expresso, mas era escondido.
O eu de Alessandra e de sua personagem conflitavam com seus “verdadeiros eus”. O eu da personagem deveria ser masculino, caso quisesse estudar. Mulher nenhuma podia estudar! Uma paixão, porém, tornou difícil manter a mesma aparência. Rousseau comemoraria a força do coração, e rebaixaria o eu social ou público. Alessandra, porém, tem o eu público em alta conta.
O eu de um ator conhecido é público. Ele é perguntado sobre tudo em sua vida, e precisa ter algo para contar que seja visto pelos outros como “quem ele realmente ele é”. O teatro é, geralmente, onde o ator diz se revelar e, quando o faz, o público sente-se também revelado, embora não exposto como o ator. É o local da exposição do mais íntimo, e a forma como um ator se expõe é sua marca pública. Alessandra, embora rousseaniana, ou seja, dotada de um “sentimento íntimo”, não tira a importância do eu que mostra.

Thiago Ricardo de Mattos, psicanalista

O empolado e o minimalista

Você vai comer um cachorro-quente gourmet. No cardápio, até o nome dele foi gourmetizado. Tem alguns lanches gourmet que você acaba de comer e, se for sincero, diria que é o mesmo cachorro que sempre comeu, talvez com linguiça até ficasse melhor.
Em uma palestra, ou entrevista na tv, o especialista usa linguagem rebuscada. Ou exibe elementos recolhidos nos quatro cantos do mundo, e semi-exclusivos. Nem sempre a exposição é realmente original ou boa. E não é surpreendente que você considere o crochê que sua vizinha faz bem mais bonito do que aquele treco indiano que foi mostrado.
Volta e meia eu mesmo uso de mais empolação do que tem valor o meu conteúdo. Mas aqui eu falo dos que exageram na empolação, e entregam de fato muito pouco.
A empolação facilmente entra no lugar do feijão com arroz bem feito, do estudo paciente e aprofundado. Muitas vezes ela não te prepara a comida que te alimentou antes de você ir para a escola, e te fez crescer, não te dá a análise que acrescenta algo novo, ou inspira mudanças boas. Mostra a mesma coisa, com aparência de novidade.
Já que vendemos imagem, acaba ocorrendo de se produzir algo que veicula uma imagem de que o produtor é qualificado, acrescida da imagem da produção, completada com a imagem para a venda, como uma sucessão de fotografias montadas, que escondem preparação, produção e apresentação pobres ou velhas.
Você é diferente do empolado, e vai comer um podrão na esquina. No churrasco, elogia a trilha do Molejo. Você é universitário, mas não gosta que lhe digam explicações longas. Odeia o manual do seu trabalho: ninguém o segue, não se recompensa o certinho. Você é minimalista, odeia quem aparece. Quer ser visto no Leblon, comendo pão-na-chapa, mas "quase sem querer". No restaurante, não dispensa o cafezinho, vai no simples e no tradicional, para não parecer com o empolado.
Para que serve estudar muito, fazer algo com mestria, ou ser uma boa pessoa? Estas coisas não fazem diferença, para se obter dinheiro e amor. O que faz diferença é a imagem destas coisas, mesmo que seja imagem vazia. Ou melhor: a imagem precisa ser vazia! Você quer um namorado inteligente, mas que não passe uma noite ou outra estudando.
Como ser realmente bom em algo foi trocado pela mera imagem do ser bom em algo, essa caracteristica perde o sentido. O personagem-empolado serve para o palco. O verdadeiro especialista, quando fala diretamente com você, é visto como chato, arrastado ou detalhista demais.
O minimalista finge não gostar de aparecer, pois quer se diferenciar do especialista que ninguém gosta, e não ser confundido com o empolado que adora o palco. É a mulher que se enfeia. Ela faz o jantar e fala que cozinhou mal. Mas ninguém pode dizer que não gostou, pois esse show é só dela.
Tem, também, o minimalista estilo popular: ele faz da própria imagem o chinelo de dedo e o mocotó no boteco, mesmo que tenha dinheiro. Quer ser retratado em matéria de um grande veículo de comunicação, mas esconde isso. Enquanto o minimalista puro quer mostrar que não se entusiasma com nada, e poderia estar morto, sem problemas, o minimalista popular gosta de deixar claro que só lhe importa estar com o "povo", a obra social, etc.
Diante da perda de sentido do mundo, o empolado faz de conta que se importa com algo, a ponto de se dedicar a ele. O minimalista faz de conta que não se importa com nada, e o popular faz de conta que sublimou para o "campo social".

Conhecimento e vida (Gênesis, 1)

Um camponês hebreu antigo poderia ter as seguintes circunstâncias e questões à frente de si: eu espero o momento certo para plantar, preparo a terra, semeio, observo as chuvas, vejo o surgimento dos primeiros brotos, depois os caules. Então as chuvas não ocorrem como eu previ. Ou ocorre uma geada, e eu perco todo o meu trabalho.
Outra situação foi da dificuldade que tivemos para a minha mulher engravidar: tentamos de tudo, mas nunca havia acontecido. Eis que a barriga dela começa a crescer e, segundo a sabedoria do meu povo, o formato da barriga, e o tipo de sensações que minha mulher experimenta, indicam que será um menino. Nasce o menino, mas, por obra do destino, ele adoece e nos deixa. Ou a minha mulher é que adoece e falece, ou eu mesmo.
Todo o saber que tem o homem não garante o seu domínio sobre a natureza e seus acontecimentos, e sobre a própria vida e seu destino.
Deus semeou a terra do Jardin do Eden de plantas que produzissem suas próprias sementes. Criou o homem, também com capacidade de se auto-gerar. O homem cuidaria das plantas e animais sem grande esforço, pois eles reproduziriam a si mesmos e comeriam os abundantes frutos da terra.
No centro do Jardim estava a árvore do conhecimento, e o conhecimento era do que era bom e do que era mau. O homem comeu o fruto desta árvore, vedado por Deus. Porque ele iria querer saber do bom e do mau? Ele podia apenas esticar o braço e comer algo que lhe faria bem. Não precisava selecionar. Não precisava olhar o que comeria, por onde andava e dormia. Estava seguro e confortável, como um cego que tem pleno domínio de onde está. Esta sensação de confiança é especial, e seu rosto não se contrai por nada.
Logo após a maçã, os olhos do homem se abrem. No que era bom, ele já estava mergulhado. A primeira coisa em que reparou foi no mal. Mas, que ironia, o mal estava nele mesmo, e não no ambiente. Ele toma consciência da própria nudez. O ser que vivia em plenitude cai na fragilidade. O homem se esconde da mulher, e também de Deus. Assim, ele mesmo se acusa, acusa o mal em si, e se mostra indigno para estar no Éden.
Deus diz ao homem que seu destino é lutar com a terra para tirar o alimento. E é morrer, após um tempo. A natureza não lhe seria generosa como era a casa do seu pai. Ele podia ter o dom do conhecimento das coisas, mas o uso deste dom, e a sua própria vida, chegariam a um termo na morte.
No centro do Jardim havia uma segunda árvore, também proibida para o homem. Esta proibição fora feita após a expulsão dele. A segunda árvore era a árvore da vida, aquela que daria vida eterna ao homem. O homem conhece as coisas da terra, mas permanece bem distante de Deus, ou seja, do controle do curso da vida. Diante dela, ele sempre será um animal nu e envergonhado, como o homem que vai, nu, pegar o jornal na própria porta, e ela fecha atrás dele. Sua vida é estar sem recursos em um ambiente hostil.

Que uso você dá à sua emoção?



Na Ilíada, Agamenon e Aquiles discutiam acaloradamente. O primeiro era o líder dos gregos. O segundo, o maior guerreiro deste exército. Agamenon tinha de devolver aos troianos uma jovem que estava em seu poder, tomada como despojo de guerra. Preocupado com o prejuízo que isto acarretaria à sua imagem, junto aos seus comandados, o líder exortou a estes que lhe recompensassem esta perda. Aquiles era o único que dele discordava frontalmente. Segundo ele, ninguém ali deveria abrir mão do que possui.

Agamenon dissera que um dos seus guerreiros guiaria de volta para casa a jovem a ser devolvida, juntamente com oferendas a Apolo. Aquiles afirmou que ninguém ali tinha que fazer isto por ele, por se tratar de assunto pessoal. O guerreiro afirmou que ele mesmo não possuía contas a acertar com os troianos, mas se engajava na guerra pela glória de Agamenon.

Enfurecera ao líder, esta oposição. Ele disse que os gregos, e mesmo Zeus, estavam ao seu lado, ajudando-o. Disse já saber de quem tiraria uma compensação pela jovem perdida: o próprio Aquiles lhe daria uma de suas mulheres, também recebida como prêmio de guerra.

Sentiu uma forte dor no peito, o guerreiro, e a espada foi desembainhada. Imediatamente desce do Olimpo a deusa Atena, e de Aquiles se aproxima. Enviou-a Hera, protetora de ambos litigantes. Se ele obedece a uma deusa, que guarde a arma. Antes insultasse o adversário. Futuramente, para ele, haveria uma compensação pelo desaforo sofrido de Agamenon, previu Atena. A espada voltou à sua morada, sem que o coração de Aquiles cedesse em sua raiva.

Parte daquela raiva fora empregada em insultos dirigidos a Agamenon. Outra parte fora gasta na promessa de que os gregos seriam chacinados pelo inimigo troiano, e que todos veriam a insensatez de Agamenon em desonrar seu melhor guerreiro, que se retirava desde já da batalha.

Em seguida levanta-se Nestor, ancião que já convivera com gerações de homens mais fortes do que aqueles. Sempre fora ouvido por estes heróis antigos, por respeito. Presenciara ao fim da vida deles, na batalha dizimadora. Nestor era dono da autoridade da experiência. Que, então, lhe obedecessem Aquiles e Agamenon: poderoso embora seja o comandante, que não agisse por ira e tomasse a mulher do outro; o guerreiro, por seu lado, era forte, mas dotado de mais poder era o líder, então, que não lhe fizesse oposição.

Ao escutarem estas razões, puderam não diminuir a própria ira, mas encaminhar o pensamento a respeito do que fariam, e do que comunicariam um ao outro. Agamenon considerava Aquiles insolente, e abria mão da sua ajuda, na guerra. Aquiles respondeu que jamais obedeceria ao líder, e que a mulher fosse a única coisa a lhe ser retirada ou, enfim, inevitavelmente usaria a espada.

A reunião se dispersou. Sentado, em sua nau, Aquiles é visitado pela comitiva que levaria embora a mulher. Ela se vai. O guerreiro afasta-se, para chorar. A deusa Tétis, sua mãe, aproxima-se. Pede para que lhe fale o que lhe entristeceu o espírito. Fale, para que ambos saibam.

Após ter obedecido à deusa, evitando uma catástrofe, e a Nestor, mantendo a dignidade de não continuar atacando Agamenon, Aquiles precisava consultar a si mesmo, refletir. Tétis disse que tudo o que o filho disser para ela, ele próprio também saberá. Lançar uma sentença para si mesmo e se responder são o bate-volta da reflexão, do pensamento. A consciência é sempre uma dupla. Dada a emocionalidade de Aquiles, naquele momento, Tétis seria o ouvido para o qual ele poderia lançar as sentenças, e depois escutar a si mesmo.

Aquiles narra os últimos acontecimentos, ressaltando a ira de Agamenon, e a injustiça que sofrera dele. Pediu à mãe que convecesse Zeus de favorecer aos troianos, para que os gregos sintam bastante a falta dele. Ao fim do desabafo, os olhos de Aquiles secaram, a raiva resultara num plano racional.

Quando se está com raiva de alguém, se diz algo a mais ou algo a menos do que se gostaria se dizer, para ele. Não se diz algo que satisfaça, ou a resposta que o outro lhe dá o faz sentir que o bastante ainda não foi dito. A discussão se alonga, a emoção cresce e fica cada vez mais dificil pensar no que se vai dizer, e se satisfazer com que se diz.

Atena impediu que Aquiles chegasse à vias de fato, com Agamenon. Redirecionou a raiva para os insultos. Nestor chamou-os aos seus lugares, mostrou a indignidade de ambos, ao conflitarem. Cada um pôde arrumar a própria impressão do outro, comunicá-la e também ao que faria. Puderam ficar sozinhos com o que estavam sentindo. As próprias razões para ter agido como agiu, e para guiar os planos dali para frente, demandaram a reflexão. Tétis atendeu Aquiles nisso.

Com um plano em mente, Aquiles pôde, irado, assistir ao desenrolar dos acontecimentos.