segunda-feira, 15 de junho de 2015

Pessoas virtuais e não-virtuais

Pessoas virtuais e não-virtuais

Imagine que em breve as telas dos celulares passarão a ser usadas na forma de lentes de óculos, ou lentes de contato, ou pára-brisas de automóveis. A realidade virtual estará à nossa frente, misturada com a não-virtual: a pessoa não-virtual, que olho na rua, estará vestindo roupas não-virtuais e roupas virtuais. As virtuais terão sido escolhidas por mim, aquele que olha, respeitando a vontade da pessoa olhada, ou seja, o que ela permite que vistamos nela. As roupas virtuais também serão escolhidas pela própria pessoa olhada.

Bem, o que será respeitar a vontade dela? A frase "meu corpo, minhas regras" deverá mudar. Se eu quero pintar a unha da minha mulher de laranja, o que ela tem a ver com isso? Ou se eu quero imaginar, criar uma imagem, que me venha agora, através da retina, e que não seja produzida sem participação de estímulos não-virtuais, e que seja de algum dano sofrido pelo outro, dano virtual, porque eu não teria a liberdade de fazê-lo? Até onde irá o não interferir na imagem do outro, se essa interferência é virtual?

Se os limites dessa interferência se alargam, no virtual, também acabarão se alargando na não-virtualidade: poderei mudar as roupas dos outros não-virtuais. Quem sabe, jogar futebol virtual com quem quer ficar parado? Vê-lo pelado? Dar-lhe um murro?

Os limites da liberdade de interferência de uma pessoa, virtual ou não, em uma outra pessoa-virtual não podem seguir os limites da liberdade nos contatos não-virtuais.

Hoje olhamos e escutamos o virtual. Como seria possível tocá-lo ou sentí-lo de outras formas? Fazer realmente sexo virtual? Comer uma pizza quentinha às quatro da manhã? Pontos especificos de nossa língua podem ser tocados, pelo pizzaiolo virtual, através de vibrações no celular, e o mesmo gosto da pizza não-virtual será sentida. Ou será isso pedir muito mais do que o possível? Tudo bem: o pedido virtual aciona aquele mais próximo de você não-virtual, que tenha os aromas e sabores sintetizados, prontos para chegarem porta adentro da sua casa e te dar a sensação certinha da pizza.

Haveria um estoque de sensações sintéticas ou, vá lá, de pizzas não virtuais, perto de você não-virtual, e a um clique da entrega. As mesmas possibilidades ocorrerão com o sexo: alguém virtual tocará pontos no seu corpo virtual, e a estimulação alcançará o corpo não-virtual. Ou pessoas não-virtuais, espalhadas em postos não-virtuais, estarão sempre perto de consumidores não-virtuais, para reproduzir o feito pela profissional-virtual-do sexo.

O nosso eu-virtual pode tornar-se consciente do que sente. O Super-Mario sentirá dor a cada golpe sofrido, justamente quando começa a saber que sente dor. Alguém não-virtual pode sentir as dores de Mario. Mais do que isto: tinha um namoro virtual que, um dia, acabou, e pôs a pessoa virtual para sofrer, sem afetar a pessoa não-virtual. Mas como a pessoa não-virtual saberá que a pessoa virtual está sofrendo? Talvez ela permita que algo desse sofrimento chegue até ela. Viverá algo do que vive a pessoa-virtual, mas podendo dosar a experiência. Se isto for possível, o que a pessoa não-virtual sente, como uma dor de amor, poderá ser posto todo para que a pessoa-virtual sinta em seu lugar. A pessoa não-virtual só sentirá o que quiser.

Pessoas falecidas poderão ganhar vida virtual na frente da pessoa não-virtual, e serem como ela lembra, ou como ela quiser. A um órfão não seria negado o direito de fazer sua mãe do jeitinho que ele mais precisa. Em outras relações, ou para certos atos, certamente se colocarão limites.

Estas são imagens de um futuro próximo, projetadas pela minha pessoa não-virtual. Quando eu clicar "publicar", estarei dando o texto para minha pessoa-virtual. Ela faz o que a minha pessoa não-virtual quer. Um dia, caso seja possível, eu poderei deixar que minha pessoa-virtual tenha experiências e textos próprios? Espera, quem sou eu para decidir pela minha pessoa não-virtual? Ela fará suas próprias regras. Ela quererá, inclusive, fazer regras para mim, e me levará a escrever num livro não-virtual o seu texto. Vai querer que eu coma pizza, para ela sentir o gosto. Gosto ela sente, mas cismou de sentir o que eu sinto.

E você, ainda acha que o contrário de virtual é real?

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