quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Por que você não pode dar conta de tudo.



Entrego flores à mulher que eu amo. Não, amo a mulher a quem entrego flores. O ato é preparado, executado e lembrado como um ato de amor. Não um ato que vem do amor, mas um ato que produz o amor. O que há são as coisas: palavras, ideias, atos, coisas de "pegar', etc. Não chamarei as coisas de "pegar" de objetos, pois objetos pressupõem sujeitos anteriores a eles, que os manipulam. Somos coisas que manuseiam outras coisas, e, assim, vamos fazendo e conduzindo pesamentos, sentimentos, falas e outros atos motores. As intenções, ideias e emoções, etc, são interdependentes das outras coisas. E tudo isto está em manuseio.

A menina bate duas panelas, uma contra a outra, para acordar o pai. Em seu rosto, uma expressão de leve vergonha. Ela não conseguiria bater palmas, ou gritar, para acordar o pai. As panelas permitem que ela diga "não fui eu".

Um jovem usa frases decoradas, ao abordar uma garota na balada. Se não as tivesse usado, não teria falado bem. Um homem diz que isso é imaturidade do jovem. Deve-se ser "espontâneo", ao falar com uma mulher a que se acabou de conhecer. O homem entende os "jeitos de se falar" como características dele próprio, não de um personagem. Esse "ele próprio/si mesmo" está em uso, sem que o utilizador se veja como utilizador "dele mesmo". Para esse algo que usa um "si mesmo", o "si mesmo" não desgruda, não se pode escolher ser outra coisa: é um eu.

A coisa, antes de ser um eu bem consolidado, ou seja, antes de fazer do "eu" tudo o que ela é, nele querendo esgotar a si mesma, é a coisa que bate panelas ou usa personagens, com vergonha. Há um interstício desconhecido entre uma coisa e outra. Bato panela - (sinto desconforto) - meu pai me olha - (meu rosto exibe vergonha) - falo que queria acordá-lo. Entre uma coisa e outra há algo que eu não sei. Algo que o eu não sabe. Isso fica mais perceptível na criança e no jovem, ou seja, em coisas ainda não tão atadas ao eu.

O eu entende que as coisas são propriedade dele mesmo. A criança e o jovem titubeiam, no que fazer. O manuseio de coisas, inclusive de si mesmo, tem mais coisas para lidar do que o eu consegue dar conta: querer acordar, saber que não pode acordar, vontade, contra-vontade; saber o que dizer à garota, não saber o que dizer à garota, querer usar o personagem, se sentir ridículo por usar o personagem. A criança e o jovem, se observados ou ouvidos, logo demonstrariam ou falariam sobre essas diversas coisas que lhes ocorreram. Ao menos sobre muitas delas. Já o manuseador do eu demarcou aquilo que fala e o que não fala, o que quer e o que não quer, e o que faz e o que não faz, colocando esses "não fala", "não quer" e "não faz" como "não-eu".

Essas segundas opções, contudo, ocorrem com o manuseador do eu: sem que você controle, você vai dizer, querer e fazer coisas que nunca achou que faria. O eu não pode conter tudo o que acontece a você.

Indivíduo digital


Cada pessoa possuía uma vitrola. Quem estivesse perto, compartilhava o som. De uso individualizado era o walkman, depois o discman, depois o aparelho de mp3. O personal computer, a despeito do nome, também era de uso da família. Os aparelhos sonoros estimulavam os ouvidos e os olhos do usuário. Com as máquinas fotográficas digitais ocorria o oposto: elementos nossos eram captados e convertidos em imagens. Mas ainda existiam na razão de uma por família, servindo à mulher e aos filhos, operada pelo pai. As fotos iam para fotologs e redes sociais. Assim, o indivíduo começou a estimular a máquina, ao invés de apenas ser estimulado por ela.

Cada um passou a ter o seu perfil, e também o seu computador. O celular, que há tempos já era receptor dos estímulos de apenas uma boca, ofereceu-se a ser câmera fotográfica individualizada, captadora das imagens apenas do seu dono. As selfies explodiram, como um ato de colocar a câmera para namorar o seu proprietário. Câmera fiel, faz a imagem que o indivíduo quer ver dele mesmo.

Ser famoso era vontade do jovem. A criança fantasiava o que assistia. O jovem queria estar na telinha. O adulto não tinha tempo para pensar em outra coisa que não o trabalho não espetacularizado. O velho, enfim, podia ser espectador (embora alguns fantasiassem, como a criança). Esta adultez demarcada pela separação entre show e trabalho não existe mais: todos queremos mostrar o que fazemos.

Qualquer emprego que se tenha rende selfies do percurso de ida, da mesa do escritório, do almoço, da conta do almoço, etc. Sou Fulano da Silva, tenho esta imagem para mostrar, e a partir dela eu e você vemos por onde e com quem tenho andado, o que tenho feito e o que desejo fazer

A imagem, contudo, não deve mais ser minha. Eu é que devo ser a imagem. O empregado com nome e sobrenome está morto. Eu sou uma marca, símbolo de uma empresa, ou seja, de uma infinidade de ações distantes do conhecimento de quem quer que seja: ninguém controla meu cartão de ponto, ninguém sabe quem são meus clientes, ou meus lucros e perdas. O que há para ser visto é o que preparo para mostrar, que são meus produtos, minhas ações de marketing.

Baseados naquilo, pessoas me elogiam. Rio por dentro, pelo elogio e pelo elogiador não saber tudo o que fiz. Eu também não sei tudo o que fiz, perdi a conta das noites sem dormir. Eu sei de mim mesmo tanto quanto o cliente sabe, que é a marca e todos os estímulos de marketing associados a ela. A marca é "no strings attached", com relação a mim e às outras pessoas. Não há mais eu e outras pessoas. Há a marca, construída por uma porção de feitos invisíveis, que são lixo, e por imagens combinadas aos elogios e demandas.

Nunca houve um sujeito como esse ser digital, pois, ao mesmo tempo em que oferta imagens e recebe elogios e demandas por mais imagens, oferece elogios às imagens que recebe, para receber, em troca, apreciação.

Quando é importante ser branco e negro. Quando não é importante.


Uma vez, eu era pequeno, minha mãe levou-me com ela numa visita ao amigo Milton. "É negro", disse-me, como quem conta nada de importante. Lembro-me que reparei que ele tinha a mesma cor dos garotos com quem eu brincava na rua. Mas, até então, não me passara pela cabeça que eles eram negros. Os negros só existiam nas aulas de história do Brasil.

Nos anos 80, a maior parte dos pobres já era de negros. Esta pobreza dá-se por subempregos e desempregos, e más condições de moradias. O negro tem menos escolaridade, porque começa a trabalhar em uma idade em que o branco ainda é criança. O ciclo baixa-escolaridade - baixos rendimentos - filhos com baixa-escolaridade mantém o negro como o mais pobre. Essa sociologia ainda é uma verdade, mas eu não a conhecia, quando criança.

Os garotos com quem eu jogava bola na praça não ganhavam tantos presentes quanto eu, no Natal. Eu sabia que eram pobres, mas não havia mais nada que nos diferenciasse. Sim, havia outra coisa: eles sabiam jogar bola. Não eram negros. O primeiro negro que vi na minha frente foi o amigo da minha mãe. Não foi a empregada, não foram os garotos na praça, não foram as mulatas da Globo. Como o Milton tinha uma boa casa e usava boas roupas, entendi que, se ele era negro, não tinha nada a ver com os negros escravos.

Como os negros eram só coisa de história do Brasil, ninguém sentia falta deles na minha sala de aula, no colégio particular. Como a empregada não era negra, lá em casa não tínhamos nada a ver com os senhores de escravos. Eles eram maus. A empregada tinha o quarto dela, mas ela era "praticamente" um membro da nossa família. Dizíamos sem corar. Não havendo negros, não havia exploração. Éramos cegos para as desigualdades.

Hoje se nota a falta do negro na boa escola. Se nota o negro miserável, ou no banditismo, na rua. Adotamos duas direções para a modificação desta percepção: expulsão, a partir de pedidos por prisão, mesmo sem julgamento, e aceitação de mortes, por exemplo, ou vontade de conviver, a partir de pedidos por cotas e de redução dos crimes cometidos, contra eles, pelo poder público, também por exemplo.

Adolescente, tive como melhores amigos, negros. Eu já sabia o que era "negro", e também o "pobre", porque aquela sociologia já começava a ser ensinada na escola. No entanto, eu e um deles, na rua, éramos apenas o "feijão com arroz", como um outro amigo dizia. Eram caras como eu, suas famílias eram como a minha. Bem, a família deles era maior. Na escola, para mim, não havia falta de negros, embora eu, hoje, diga que só havia um. A criança e o adolescente só enxerga quem é seu amigo, e quem não é.

Coincidentemente, tive esses amigões negros. Quero dizer, amigões. Não que a cor não importe. É importante falarmos nela, enquanto adultos, intelectuais, jornalistas, políticos, etc, para repararmos que ainda é necessário colorirmos mais as escolas, os shoppings, os bons hospitais, etc. Hoje tenho relação com mais brancos do que negros. Eu diria que seria bom que, ao menos, eles fossem na mesma quantidade. Mas, na minha experiencia cotidiana, de gostar de puxar assunto e contar e ouvir coisas interessantes, o fato de uns serem brancos, e outros serem negros, não faz muita diferença.

História de estranhos acontecimentos


Em uma discussão, um homem estapeia o outro. O estapeado abaixa ligeiramente a cabeça. As pessoas em volta interpelam o estapeador. O estapeado quer reagir, mas o corpo pesado não o permite. Imediatamente faz a si mesmo uma pergunta que ele passará a vida se perguntando: "por que eu não fiz nada?".

Freud diz que uma pessoa, ao reagir a um acontecimento que lhe cause uma intensidade afetiva, descarrega esta intensidade. Reações físicas e de pensamento, voluntárias ou involuntárias, a um acontecimento que provoque um afeto, fazem com que ela livre-se deste afeto e tenha o esmaecimento da lembrança do acontecimento.

A pessoa que não reage a um fato deste tipo, permanece com o afeto na mesma intensidade que havia no momento em que ele foi provocado. Este afeto ficará associado à representação que o sujeito tem da cena. Todas as vezes que ele contar a cena para alguém, ou se lembrar dela, ele sentirá esta intensidade afetiva. E à pergunta "por que eu não fiz nada?" ele não saberá responder.

Para a psicanálise, este motivo perdido pode ser explicado por uma outra cena, ou outras cenas, que o sujeito não lembra. Cenas em que ele, talvez, tenha sido impedido de reagir a uma agressão. Estas cenas, ou melhor, a representação delas, também têm um afeto ligado a elas. Elas não são lembradas, então o nexo entre a cena antiga e a mais recente não pode ser alcançado.

A origem do afeto que ocupou o sujeito na cena recente, e que não pôde ser descarregado, permanece desconhecida. Há muitas falhas, também, na lembrança da cena recente. Quando a pessoa conta do tapa que recebeu, sem ter reagido, ela novamente sente aquele afeto. O afeto pode esmaecer, caso a intensidade afetiva não tenha sido tão grande, e se essas cenas todas, enfim, não tenham lá tanta importância para a sua vida mental. Mas algo é sentido.

Estudávamos em grupo o texto de Freud em que estas ideias aparecem. Um dos participantes, Geraldo Pereira, distinguiu lembrança de reedição: lembrança é acessar o acontecimento, por sua representação, e reeditar é revivê-lo. Um fato será tanto melhor lembrado quanto menos intensidade de um afeto desagradável a ele estiver vinculada, ou seja, quando o sujeito reagiu à cena. E quanto maior for a intensidade afetiva retida, devido à não reação do sujeito, o mal-estar experimentado por ele por não ter feito o que queria fazer é reeditado, revivido.

O estapeado, de tanto falar daquela cena, com poucos detalhes, mas forte afetividade, revivendo-a mais do que lembrando-a, acabou formando uma lembrança da revivência: lembra-se de já ter contado a cena antes, e de que, nestas ocasiões, novamente sentiu-se mal. As lembranças da revivência vão ocupando o lugar da revivência. O estapeado, quando fala da cena do tapa, agora a revive menos, apesar de lembrar o que já sentiu.

Os detalhes do acontecimento que fez sofrer o sujeito nem chegaram a ser por ele percebidos, pois, após ter recebido o tapa, ele fora tomado por afetos relativos a outros acontecimentos, desconhecidos. Por isso, ele não podia lembrar-se desta cena. E ficou preso à revivência do afeto. A revivência da dor é a dificuldade de se falar sobre algo doloroso. Mas, após algumas tentativas, a dor torna-se familiar. E o sujeito passa a dizer: "teve uma vez em que estranhamente não reagi a um tapa, e senti um forte aperto no peito".

Moving selfie


No aplicativo Periscope (dê uma olhada em https://www.periscope.tv/, para entender melhor este texto), jovens falam para a câmera do seu celular, em transmissões em vídeo para o mundo todo. Até pouco tempo tirávamos selfies, que nos davam imagens de nós mesmos. Os vídeos feitos no Periscope são imagens em movimento. Imagens do rosto, pescoço e tórax.

Nas transmissões, sempre ao vivo, observadores comentam sobre o eu que se exibe. O sotaque e o assunto compõem o quadro. O assunto não é de especialista: é o que a pessoa está comendo, como está sua cama, como está seu rosto e seu corpo. Não se distancia muito do que mostrava a selfie. A imagem. O eu.

O eu é exibido e comentado sem que se extrapole o círculo dele mesmo. Funciona como O Espelho, do Machado de Assis, que, ao mostrar o Alferes, recompunha sua imagem, dava-lhe uma integridade que de outro modo estaria perdida. Os especialistas que falam no Periscope são, em sua maioria, especialistas de marketing. Ensinam a gravar vídeos, a falar, a se divulgar, a garantir a rodagem do círculo do eu.

Uma pessoa pode dizer que a própria voz é esquisita, o cabelo está ruim, e a roupa está engordando. Os observadores corrigem esta impressão, elogiando ou dando dicas. O eu respira aliviado. Mas precisa continuar mostrando novidades: a compra nova, a viagem para um lugar lindo, objetos e cenários para novamente emoldurar o eu.

O que se fala, no Periscope, não é escutado, mas visto. "Video killed the radio star". No vídeo, tudo é visual, show, e a fala é parte disso. Não há paciência para acompanhar raciocínios. O que importa é a boca mexendo, o tom de voz que combina com o rosto, e se o uso da língula não está muito incorreto, que deixam mais ou menos atraente aquele que se exibe.

Como sair do rosto? Mostrando mais o restante do corpo, e ele se movendo. Movendo-se pela casa, pelo prédio, pela rua, mostrando quem passa, oferecendo outras imagens a quem observa. Eu ando por aí, tenho algo a ver com outras coisas. Mas, para não ser simples sucessão de imagens, tenho que enlaçá-las em uma narrativa, contar algo sobre elas. Posso estar no meu quarto, fazendo isso, em dupla com um observador. Pensando junto. Pode ser junto da câmera-espelho. Desenvolvendo a imagem através da fala que traz memórias, vivências.

A melhor dança das nossas vidas


O professor de Whiplash (dir. Damien Chazelle, 2014) não queria mais ser o melhor professor, dos melhores alunos de música. "Balançar os braços e manter todo mundo no ritmo, qualquer idiota faz". Ele queria ser algo mais.

O homem não quer se conservar. Nietzsche nos deu isso. Ele sobe o Everest, pula de bungee jump, usa drogas loucas, para mostrar o quanto ele é demais. Pelo Everest, ele terá o próprio nome registrado. No bungee jump, os amigos o comentarão por uma semana ou duas. A droga é curtição solitária ou em pequenos grupos, que logo precisa se repetir. O beijo da morte satisfaz pela vida toda o primeiro, por menos tempo o segundo, e é compulsivamente ansiado pelo terceiro.

Era do feitio do professor estapear e xingar, como chicotadas (whiplash, em inglês) no aluno, para ele se superar. Um de seus alunos era muito bom baterista. O professor é grosseiro com ele. E o observa. O garoto fica puto, mas volta a atacar a bateria. Melhora. O professor o estapeia. Em uma edição do programa Hora da Coruja, especial sobre este filme (http://horadacoruja.com.br/filosofia/whiplash), a filósofa Francielle Chies nota que uma lágrima desce o rosto do garoto, e que o professor questiona se ele é um "one single tear guy". Um cara assim é aquele que se enfurece com uma chicotada, mas engole esse sentimento e passa a querer se vingar do professor, que se torna o culpado dos problemas dele. O aluno do filme não é desses: o professor o faz gritar que está puto. O aluno toca bateria até sangrar.

Um caminhão bate com tudo no seu carro, e ele sai debaixo do carro para correr para se apresentar. Toca feito trem, até se acabar. Desconhece limites. Nos preocupamos muito com nossos limites. O trabalho cansa. O trabalho não vale a pena. Sempre me faz pensar que não aguento mais, e a vontade de não fazer nada não me deixa. Desde cedo achamos que não vale a pena ser outra coisa que não um Superstar. Mas há aqueles que embarcam em determinadas vontades que possuem, e jamais param. Não se sabe se essa determinação é deles mesmos ou dos professores que os chicotearam. É da natureza do cavalo correr, ou é pela ponta do chicote? É ambos.

O aluno de bateria foi um pequeno ser cujo mundo sempre esteve na iminência de que algo muito quente ira acontecer, algo que surpreenderia a ele mesmo e a todos que o vissem de perto. Esse algo era um texto, um solo de bateria, uma construção, ou uma arte, fantásticos. O lar era acolhedor e estável. O aluno determinado viveu nele, mas algo aconteceu que lhe deu a sensação que ele mesmo seria muito maior do que ele mesmo. O professor o fez dar-se com tudo para este objetivo.

Na última apresentação do filme, o aluno não parou de tocar, quando deveria. Virou uma máquina que corria por conta conta própria. Mas não sozinha. O professor olha para ele, espantado, e pergunta "o que está havendo, MAN?". Aquele não é mais um aluno. E, desde o início, com ele, o professor alternou as lições brutas com um olhar de satisfação muda. Ele só esperava alguém que virasse um automotor (agora não me ocorre em nada que mostre melhor o que poderia ser um automotor do que um baterista excelente e enfurecido. E que precisa da plateia), para que ele mesmo curtisse um grande som, e regesse não a música que queria ensinar, mas a que gostava de escutar.

Os movimentos de regência foram como os do Mickey, no filme Fantasia, quando ele se torna senhor da magia e faz as ondas levantarem-se juntas dos seus braços. A mágica está nas ondas ou nos braços do mágico? Está nas baquetas ou nos gestos do regente? O aluno foi além de si mesmo. Era pura performance. Junto dele estava o professor, que também foi além de si mesmo. E foi pura performance emocionada. E ele esperou tempo demais por essa emoção.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

A propaganda pró-direitos dos deficientes


Recentemente, na cidade de Curitiba, instalou-se um outdoor com a frase "Pelo fim dos privilégios para deficientes" (http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2015/11/outdoor-em-rua-de-curitiba-pede-pelo-fim-de-privilegios-para-deficientes.html). Também foi divulgada uma página no Face, afirmando que os direitos concedidos aos deficientes limitavam os direitos dos não deficientes. A página também propunha uma redução nos direitos dos deficientes. A maior parte dos comentários a ela foi de desaprovação.

Um dia após esta divulgação, o outdoor ganhou uma faixa preta, com os dizeres "Se tantos se revoltaram, por que tantos ainda despeitam?" (http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2015/12/outdoor-contra-privilegios-de-deficientes-e-acao-da-prefeitura.html). O outdoor e a página de Face foram uma ação do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Na matéria constante no link acima, a Presidente do Conselho, Mirella Prosdócimo, lembra o que é sabido por todos: que as vagas para deficientes, as filas especiais, e outros direitos, são desrespeitados. A frase "Não é privilégio. É direito", também constante no outdoor, expõe e rebate uma fala comum, privadamente, de que os deficientes, e outras minorias, vêm sendo privilegiados.

As falas e intenções anti-direitos, quando publicadas, geraram muitas opiniões contrárias. As pessoas que reagiram deste modo, enaltecendo os direitos e atacando as posições anti-direito, provavelmente não são elas mesmas boas observadoras destes direitos, no seu dia-a-dia. Isto foi sugerido pela segunda parte da ação de marketing (e, com bom senso, podemos concordar com ela), ao chamar as pessoas para transformarem a revolta pela propaganda anti-direitos em observância deles. Inclusive observância de si mesmos.

A propaganda expôs nossas práticas cotidianas. E o fez, criando um alguém imaginário que possuísse aquela intenção e tivesse dito aquelas frase anti-direitos. Esse alguém foi atacado por muita gente. Com a segunda parte da propaganda, porém, ficou demonstrado que quem pensava e agia contrariamente aos direitos eram as próprias pessoas que anteriormente haviam se posicionado pró-direito. A publicidade de palavras e intenções que costumavam ser ditas entre-dentes gerou mal-estar. Como, na primeira parte da propaganda, o autor daquelas opiniões era alguém que criou o outdoor e o post de Face, e que não tinha nada a ver com quem os acessou, o mal-estar pela exposição deu num impulso de ataque contra ele. Com a segunda parte, as pessoas tiveram que olhar para si mesmas.

Os sentidos do olhar


A escrita preenche a página do topo ao final. O início do texto traz a tese e os argumentos principais. Olhando uma página frente a frente, vendo-a como também um corpo humano, a base está na altura dos olhos, da garganta e do peito. Correspondem ao que se vê, ao que se diz e ao que se enfrenta. A elaboração dos argumentos é a caminhada.

Em uma competição, o vencedor vem no topo da lista. Como ocorre na lista de compras, o importante vem primeiro. É o que interessa, capta-se numa batida de olhos. Os piores baixam os olhos, procurando, até chegar ao fim da lista e mirar os próprios pés.

Quanto a construções e desenvolvimentos, prédios, plantas e pessoas crescem de baixo para cima. Mas a fundação de um prédio, as raízes de uma planta e as ocorrências da infância de uma pessoa são desconhecidas. Crescem como que querendo se libertar do baixo. A fundação do prédio imagina tudo o que virá acima. As raízes distribuem-se pelos lados, atrás de água. Também vão para cima, atrás do sol. E querem atrair abelhas, borboletas e passarinhos, seres que vêm por cima. O "o que eu quero ser quando crescer", da criança, diz que o ser que importa é o ser que existirá quando ela crescer.

Algo de um milímetro de altura olha para os lados e para frente, não para baixo. Olha também para o que está acima da cabeça. Com mais um milímetro crescido, permanece olhando para os lados e para a frente, em busca do que pode ser utilizado, e para cima, aspirando a algo. Nunca para baixo, que é a base sobre a qual vai se erguendo. Mas a base é o histórico dos feitos, de cada milímetro, que garantiram a sobrevivência, o crescimento e produziram experiências.

A consciência que se tem de experiências é a de uma história com algum emprego, seja no manejo das coisas do ambiente, seja no manejo de coisas de quem está tendo a consciência de experiências. Escapam à consciência o que, da experiência, está além deste emprego. Isto pode ser as sensações e os gestos, sem sentido, que se relacionam à experiência. Como a consciência é apenas do que tem emprego, portanto sentido, somos cegos para muito do que faz nossa experiência. Esse muito vai formando a base. As técnicas, os saberes que atualmente estão empregados, também fazem parte dessa base cega, pois a consciência atinge, no máximo, seus últimos desenvolvimentos (o IPhone 6 lembra melhor do 5, o adulto lembra melhor da fase pré-adulta).

Cada nível é mais elevado que os anteriores. Quer encurtar a distância para com o que vê acima. O vencedor de uma prova de atletismo acaba de se sentir no auge. Esqueceu as dificuldades do começo. Por um breve momento lembra, a quem vê, a lenda do esporte. Olha para seus fãs, e é olhado por eles.

Olhos de boneca


Narizinho passava horas trepada na jabuticabeira. Perdia a conta dos frutos comidos. As vespas também se interessavam. Uma vespa passava horas mergulhada na doçura de uma jabuticaba.

Sem querer, Narizinho catou uma jabuticaba com vespa. Nhoc! Ai, ai, ai! Correu para Tia Nastácia, que arrancou da língua o ferrão. A menina deu por falta de sua boneca. A Tia buscou-a do pé da árvore.

Narizinho supôs que Emília estaria chatada, por ter sido esquecida. Qual! A boneca havia passado algum tempo parada, com os olhos vidrados, no nível das jabuticabas no chão. Ela queria contar à menina sobre um plano de vida que olhos humanos não alcançam.

A jabuticaba dolorosa, para Narizinho, estava caída. Em seu interior jazia uma vespa, retorcida. As formigas, seres com quem sempre se pode contar, organizaram a retirada dela do local, e combinaram o local do enterro.

Arrumada para ser enterrada, a vespa parecia melhor. Mas dormia o sono eterno. Um besouro sacou o papelzinho, de onde leu o discurso. A audiência assistiu. O discurso, porém, não terminava nunca, e as formigas foram embora.

Um sapo, que também se aproximara, estava adorando o falatório do besouro. No clímax, a língua encompridou, abraçou o discursador, e trouxe-o para dentro da boca. Nhoc! Mas, desta vez, sem gritos.

O besouro era exatamente o que deveria ser comido, pelo sapo. A vespa não era para ser comida pela menina. Ela é do plano daqueles que se embriagam com uma pequena fruta, são removidas por formigas trabalhadoras, recebem discursos de um nobre, de casaca. Um plano que é observado pelos olhos de botão da boneca.

A boneca a menina leva consigo, porque ela sempre lhe conta o que a menina mesma não consegue ver.

Baseado na edição chamada "As Jabuticabas", história de Monteiro Lobato extraída de "Reinações de Narizinho".

Mad Max: de volta ao Eden



Em "Mad Max: Estrada da Fúria", há uma tribo de mulheres velhas. Uma delas diz ter matado todos os homens que havia por ali. Houve uma época em que não se derramava sangue. Ela carregava uma bolsa com sementes, dentre as quais uma desenvolvera um broto verde. Surgindo a oportunidade, ela plantava. Aquele universo era terra pura, sem água, portanto sem verde, sem nada.

As tribos montam veículos, e vestem roupas super-montadas. Batalham entre si, e na tela voam pedaços de carne e metal. Caos. Finda a batalha, uma rajada recobre tudo de poeira. Vazio. A mulher é uma terra fértil, e o homem é o semeador. Os filhos são do homem, têm seu nome. Criados pela mulher. Apenas agora isso começa a mudar, mas é cultural. A Bíblia nos situa nisso.

No filme, a Cidadela é de um rei que produz seu exército engravidando mulheres de seu harém. Faz "garotos de guerra", que só conhecem o que é efetivo nas batalhas. Diante da morte, se atiram, levando muitos consigo. Serão lembrados, e ganharão uma espécie de vida melhor. Uma população miserável e deformada é mantida com migalhas.

A heroína foge com as mulheres, terra fértil que é o bem maior do rei. Lutam, sangram, ganham a perspectiva de 160 dias no deserto de sal. Max não as acompanha. Não espera nada da vida. Uma menina fantasma acusa-o de não tê-la salvo, como prometera. Ele vive em fuga, sozinho na areia sem fim. Naquela vez, a menina atira algo, e ele se defende. Pega na mão. Uma marca. Ele tem que ser salvador. Agora há as mulheres, há como salvar. Corre ao encontro delas, e as avisa de que à frente só há sal. Têm que voltar à Cidadela, derrubando o rei que as persegue. É o que fazem.

As mulheres tomam o poder e soltam a água para todos. Tornarão a terra verde, novamente. Assim, qualquer homem poderá semear.

As pedras de um analista


No consultório com gabinete contíguo, de Freud, havia livros. Também inúmeras placas, estátuas e outros objetos antigos. Ele dizia, brincando, ter lido mais sobre arqueologia do que psicologia. Acompanhava as últimas descobertas arqueológicas. No mediterrâneo estavam suas raízes mais profundas, dizia, e como não poderia viajar em busca delas, mantinha-as perto, o quanto fosse possível. Com seus pacientes também se comportava como um arqueólogo, desencavando pedras e descobrindo tesouros há muito escondidos. Seus amigos presenteavam-no com objetos deste tipo. Seus pacientes não se sentiam na sala de um médico.

As paredes do consultório de um analista têm prateleiras cheias de livros. Há os adquiridos durante a faculdade. Nem todos os livros desta época estão ali: foram suprimidos os de qualquer assunto que não fosse psicanálise. Os adquiridos posteriormente também só puderam estar ali se se mantivessem nessa área de interesse, a única que poderia aparecer, para contar a história de formação de uma analista.

Freud lia sobre figuras históricas. Comovia-se com os conflitos psicológicos apresentados em óperas, algumas das quais, após ter assistido por mais de trinta vezes, tornavam-se objetos revestidos por diversas mãos de verniz e poeira. Fazer a história deles, ou de um paciente, era descobrir tanto sua origem como seus acidentes.

O psicanalista encontra nos livros de psicanálise e, em bons casos, também de mitologia, filosofia e literaturas, as imagens e ideias, de biografias ou de teorias, que relê em grupos de estudo e em seus próprios pensamentos. Freud, ao escrever, acariciava suas estátuas, o suficiente para brevemente descortinar algo. Partes delas, dos pacientes e dele mesmo permaneciam inacessíveis.

Na minha estante há Iliada, que muitos me dizem ser difícil. Respondo que não, não é difícil, no sentido em que tomam algo por difícil: dependendo da edição, é possível de ler, sendo escolarizado e tendo alguma paciência.

Este livro permanece bastante inacessível, para mim. Eu a li, e entendi. Um analista entende tudo o que um paciente fala, por algumas seções. Essas duas coisas não querem dizer nada. Elas precisam novamente ser lidas, em parceria. As descobertas da leitura de livros como esse, e de falas de pacientes, não põem fim à sensação de que há algo a se entender.

Quando criança, tive alguns bonecos. De um deles eu venho me lembrando: era um rinoceronte com corpo de um homem. Os olhos eram raivosos. Eu passava um tempo olhando para aqueles olhos. Eu queria ver a raiva deles. Eu queria chegar no limite da sua raiva, quando eles ficavam com menos movimento, e pareciam bons. Para ver isso, eu precisava não ver as pálpebras, os músculos que mostravam a intenção. Devia ser apenas o redondo dos olhos vermelhos. Coelhos têm olhos vermelhos. Vampiros e alguns monstros, também. Os olhos, enfim, não param de mostrar coisas.

Freud olhava atentamente para seus pacientes. Que ele os escutava atentamente, já se comenta bastante. Nós, livrescos, dizemos que o analista baseia-se na escuta: de professores, supervisores, seu próprio analista e pacientes. Mas falta atenção aos objetos de um analista.

Uma análise, leitura, começa no olhar. É através dele que nos prendemos amorosamente. Aí, então, pode-se deixá-lo de lado, e escutar e falar.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A obrigatoriedade de se ler a Iliada


Diz-se que é obrigatório ler a Ilíada, como uma exigência para alguém se tornar culto. Ser alguém culto é apropriar-se da sua própria cultura. Não é, portanto, uma erudição vazia, sem sentido para fora dela mesma. É ter condições de entender seus próprios valores, seus hábitos, coisas que se tem sem que se perceba. Essa necessidade cultural, então, torna obrigatória a leitura deste livro.

Considero a Ilíada obrigatória para mim. Como isso começou? Minha primeira leitura dela não foi por curiosidade. Ao começar a ler, e avançando um bocado, a curiosidade tornou-se obrigatoriedade. Eu simplesmente tinha que continuar lendo, para saber não tanto o que aconteceria, mas como isso seria contado. Muitos livros despertam isso em nós. Mas a Ilíada tem algo de especial, que poucos livros têm: cada cena, ao ser lida, dava-me a sensação de que precisava ser entendida melhor. As intenções dos personagens, suas emoções, suas decisões, eram lidas com facilidade. A primeira leitura é fácil. A questão é que esse livro te obriga a continuar pensando em cada coisa que ele diz. Desde que você o lê, você começa a relê-lo. Desde o primeiro momento, a Ilíada me deu a sensação de que havia mais a ser entendido.

A exigência cultural de se ler os clássicos torna-se, para quem lê, uma exigência do leitor consigo mesmo. Pode-se induzir alguém a ler a Ilíada dizendo da obrigatoriedade disto. Pode-se, também, dizer que a sua leitura proporciona prazer. Os dois motivos estão corretos, quanto a este livro. Mas, para quem lê, a obrigação vira uma imposição da pessoa a si mesma, pois a pessoa não se furtará ao prazer da leitura, e estará tomada pela necessidade da releitura, do pensamento sobre o livro.

Eu digo a você para ler a Ilíada porque quero ter à minha volta mais gente que passe por essa experiência. É por isso que, geralmente, se recomenda livros. Uma professora me recomendava certo texto de Freud. Ela queria que, depois, eu mostrasse a ela o que entendi (e esse entendimento é do texto, como também de mim mesmo, da pessoa que entendeu o texto. Ao expressar o entendimento de algo, expresso meu próprio processo de pensamento. Expresso, por isso, a mim mesmo). Ela queria, também, e isso estava subentendido, que eu vivesse Freud junto com ela, que eu apreciasse o raciocínio dele, as novidades que ele trazia, e que os associasse a ela. Ao fazer isso, eu também os associava a mim. Quem fazia matérias específicas de terapia existencial-humanista, por exemplo, passava por outras experiencias, outra formação.

Formação requer convivência, viver junto os clássicos. É uma certa amizade, e é a construção de certas imagens para quem ensina e para quem aprende.

P.s.: Agradeço ao meu amigo Kelson JS, por ter me perguntado por que eu leio a Ilíada.

Para ler Platão



Peter Gay conta que Freud, anti-metafísico, ao ser acusado, pelos seus colegas médicos, de sempre apelar à “causa sexual”, dizia que seu Eros era como o de Platão. Platão é o criador do gênero literário chamado filosofia (lembra-nos Paulo Ghiraldelli Jr.): um relato das investigações em torno de um problema, buscando suas causas e razões. Os textos de Platão, contudo, apresentam imagens, cenas e personagens inspiradores dentro e fora da filosofia. Participantes de outros gêneros literários, como por exemplo a ciência, a ficção, os ensaios, etc, que sejam cultos, ou seja, que tenham lido Platão, assumem como eternas provocações imagens como a do Anel de Giges, cenas como a do encômio de Alcibíades a Sócrates, ao final do Banquete, e o comportamento e as falas de Sócrates. Em relação a estes elementos, permanece a sensação de que temos algo a descobrir e, por essa descoberta, se conversa, se escreve, intermitentemente, e por uma vida.

Um clássico dá a sensação que a própria vida que se tem seria bem usada nesse trabalho em torno dele. Sempre dá vontade de abrir um grupo para ler Platão. Quem é dado a isso não diz “reler”, mas ler, justamente porque a leitura trará coisas novas, e o pedido para que seja em grupo serve para garantir que a própria pessoa que pretende ler não faça uma leitura repetida, não pense as mesmas coisas... não por culpa do texto, mas de uma falha da própria pessoa, que pode não conseguir se inspirar por algo que é sumamente inspirador.

Freud se inspirou em Roma, com Michelangelo e os renascentistas. A Roma católica inspirou a sua aversão. Lou Andreas Salomé o fascinou, embora ele, pelo avançado da idade, não tivesse mais potência sexual. As boas sensações são curtidas, Freud se aproximava delas. O apaixonado de Platão é o arrebatado, que se torna ao mesmo tempo devoto enlouquecido, cuja sublime condição eleva sua alma a alturas impensáveis, faz o homem transcender a si mesmo. Todos os que sentem, os que ainda têm sensibilidade, e têm a imaginação se desenvolvendo a partir dela, são amigos de Platão. Mesmo que sejam neurologistas-psicólogos, ou filósofos pragmatistas: se são suficientemente cultos e apaixonados, volta e meia estão com o braço por sobre os ombros de Platão, para ouvir suas histórias sobre o amor.

sábado, 5 de dezembro de 2015

Jovens velhos antipáticos



Internação, no hospital, a comida é ruim, a cama é ruim, a tv é ruim, tudo é ruim. A enfermeira começa a ser xingada: se for japonesa, é japa, se for gorda, é rolha de poço, se for negra, crioula. Chega a visita da amiga, justamente japonesa, gorda e negra. As reclamações ao hospital continuam, e a amiga fica desconfortável. Sabe que a internada é boa pessoa, e passa por um momento difícil. Em situações normais, somos generosos. Entretanto, é a situação piorar um pouco, e a generosidade também. Internado, enjoado, com dores, diarreia, a pulsão volta-se inteiramente para o Eu, como diz Freud, e o mundo que se exploda.

Conheci um sinhozinho que era a alegria das crianças e dos cachorros que passavam pela sua porta. Era o "gente-boa". Nossa conversa se alongava. Surgiam as queixas sobre a família, especialmente o neto, e também contra a empregada, a quem chamava de "negra". A respiração ameaçava falhar, e ele me lembrava que seu transtorno de ansiedade era real.

Quantos "gente-boa" você não conhece que, se conhecer melhor, verá que têm atitudes e opiniões não generosas? Isto não diminui o ser "gente-boa", do vovô, pois ele realmente era um vovô fofo para os pequenos. Fazia-lhes bem. Mas, ao me permitir escutá-lo melhor, tomava-me de receptáculo para seus males. Era como se eu fosse seu exorcista.

O mundo ocidental não tem situações de guerra, não enfrenta terríveis crises econômicas, e não há escassez de alimentos. Tempos leves, em que a juventude se expande, como diz Paulo Ghiraldelli Jr (https://youtu.be/6CD9Zdc_mdI). Expande-se pelo tempo e pelo espaço: hoje se é jovem até aos 45 e, em reuniões de negócios, têm valido mais a energia e a inovação do que a seriedade e o conservadorismo.

Jovens fazem vídeos para a internet, comentando assuntos que, antes, apareciam apenas na boca de especialistas. Na mesa do jantar, discutia-se a política do país, para além do JN. Agora a opinião sai de casa. Pode-se ser jovem, fazer o que "dá na telha" em qualquer lugar, e a todo momento. O tempo de escolarização, para se ter uma disciplina de estudos, de aquisição de conhecimento, é muito lento. Entra-se na escola já se sabendo de tudo, e se sai dela se sabendo o mesmo. Isso porque hoje a educação inexiste, enquanto valor social, e o jovem é jovem integralmente, não há um corte.

O jovem, ou a velocidade cada vez mais sem barreiras, diz o que é a realidade, o que é bom e o que´é mau. Como diz Ghiraldelli, por serem balões com tendência a não pararem nunca mais de subir, buscam gravidade, algo que os puxe para baixo. Tatuar âncora está na moda. Da liberdade comportamental em geral não vão recuar. Atacarão tudo o que pareça restrição a essa liberdade: qualquer senão ao aborto, ao feminismo, à liberação das drogas, é entendido como insustentável conservadorismo, que não vale a pena sequer ser ouvido.

Uma pessoa com ótimo trâmite social, como um comerciante, num churrasco de domingo dizia coisas preconceituosas: "não gosto de viado. filho meu é homem". Quem o ouvia, mesmo que não concordasse, dava-lhe o direito à opinião, e tributava sua expressão a um momento de relaxamento em uma vida não tão fácil. Hoje, quem escuta o comerciante dizer aquilo, toma sua fala como pública e, portanto, séria.

Trabalho e lazer, privado e publico têm se separado menos. O jovem vai trabalhar de bermuda, e em casa se incomoda muito com as ideias menos socialmente generosas, dos pais. Uma moça chamada Jout Jout deu uma entrevista, em mídia escrita (http://m.folha.uol.com.br/voceviu/2015/11/1707052-jout-jout-diz-que-se-sentiu-desconfortavel-em-entrevista-com-jo-soares.shtml), em que disse ter se sentido desconfortável na entrevista que dera ao Jô. Ela havia lhe dito sobre uma amiga cujo namorado mandou-a tirar o batom vermelho, "que era de puta". Jout Jout fez um vídeo em que relatou a cena como sendo de uma relação abusiva. Jô pediu para a produção exibir o "vídeo da puta". Foi uma tirada, uma piada que poderia provocar riso até em pessoas que passaram por problemas semelhantes. Mas Jout Jout se incomodou.

O incômodo da mesa de jantar foi levado para a mesa do Jô, que é uma situação social, embora relaxada. A juventude incomodada ocupa todos os espaços, desconhecendo diferenças entre o que um pai fala no churrasco, o que ele fala no escritório e o que é para o Jô.

Todos queremos viver em um mundo melhor, o que quer dizer menos pobre, menos burro (o que inclui menos preconceituoso), menos feio, menos triste, menos desrespeitado, menos controlado. Falas privadas devem poder ser livres. Um preconceito dito em casa pode ser visto com um peso menor, caso o ponto central dos problemas dos grupos seja atacado. Quanto mais a vida for favorável a todos, sem esquecer ninguém, menos perseguiremos piadas, menos desconfiaremos do riso, mais liberdades diferentes nos daremos no privado e no público.