quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

História de estranhos acontecimentos


Em uma discussão, um homem estapeia o outro. O estapeado abaixa ligeiramente a cabeça. As pessoas em volta interpelam o estapeador. O estapeado quer reagir, mas o corpo pesado não o permite. Imediatamente faz a si mesmo uma pergunta que ele passará a vida se perguntando: "por que eu não fiz nada?".

Freud diz que uma pessoa, ao reagir a um acontecimento que lhe cause uma intensidade afetiva, descarrega esta intensidade. Reações físicas e de pensamento, voluntárias ou involuntárias, a um acontecimento que provoque um afeto, fazem com que ela livre-se deste afeto e tenha o esmaecimento da lembrança do acontecimento.

A pessoa que não reage a um fato deste tipo, permanece com o afeto na mesma intensidade que havia no momento em que ele foi provocado. Este afeto ficará associado à representação que o sujeito tem da cena. Todas as vezes que ele contar a cena para alguém, ou se lembrar dela, ele sentirá esta intensidade afetiva. E à pergunta "por que eu não fiz nada?" ele não saberá responder.

Para a psicanálise, este motivo perdido pode ser explicado por uma outra cena, ou outras cenas, que o sujeito não lembra. Cenas em que ele, talvez, tenha sido impedido de reagir a uma agressão. Estas cenas, ou melhor, a representação delas, também têm um afeto ligado a elas. Elas não são lembradas, então o nexo entre a cena antiga e a mais recente não pode ser alcançado.

A origem do afeto que ocupou o sujeito na cena recente, e que não pôde ser descarregado, permanece desconhecida. Há muitas falhas, também, na lembrança da cena recente. Quando a pessoa conta do tapa que recebeu, sem ter reagido, ela novamente sente aquele afeto. O afeto pode esmaecer, caso a intensidade afetiva não tenha sido tão grande, e se essas cenas todas, enfim, não tenham lá tanta importância para a sua vida mental. Mas algo é sentido.

Estudávamos em grupo o texto de Freud em que estas ideias aparecem. Um dos participantes, Geraldo Pereira, distinguiu lembrança de reedição: lembrança é acessar o acontecimento, por sua representação, e reeditar é revivê-lo. Um fato será tanto melhor lembrado quanto menos intensidade de um afeto desagradável a ele estiver vinculada, ou seja, quando o sujeito reagiu à cena. E quanto maior for a intensidade afetiva retida, devido à não reação do sujeito, o mal-estar experimentado por ele por não ter feito o que queria fazer é reeditado, revivido.

O estapeado, de tanto falar daquela cena, com poucos detalhes, mas forte afetividade, revivendo-a mais do que lembrando-a, acabou formando uma lembrança da revivência: lembra-se de já ter contado a cena antes, e de que, nestas ocasiões, novamente sentiu-se mal. As lembranças da revivência vão ocupando o lugar da revivência. O estapeado, quando fala da cena do tapa, agora a revive menos, apesar de lembrar o que já sentiu.

Os detalhes do acontecimento que fez sofrer o sujeito nem chegaram a ser por ele percebidos, pois, após ter recebido o tapa, ele fora tomado por afetos relativos a outros acontecimentos, desconhecidos. Por isso, ele não podia lembrar-se desta cena. E ficou preso à revivência do afeto. A revivência da dor é a dificuldade de se falar sobre algo doloroso. Mas, após algumas tentativas, a dor torna-se familiar. E o sujeito passa a dizer: "teve uma vez em que estranhamente não reagi a um tapa, e senti um forte aperto no peito".

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