quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

A melhor dança das nossas vidas


O professor de Whiplash (dir. Damien Chazelle, 2014) não queria mais ser o melhor professor, dos melhores alunos de música. "Balançar os braços e manter todo mundo no ritmo, qualquer idiota faz". Ele queria ser algo mais.

O homem não quer se conservar. Nietzsche nos deu isso. Ele sobe o Everest, pula de bungee jump, usa drogas loucas, para mostrar o quanto ele é demais. Pelo Everest, ele terá o próprio nome registrado. No bungee jump, os amigos o comentarão por uma semana ou duas. A droga é curtição solitária ou em pequenos grupos, que logo precisa se repetir. O beijo da morte satisfaz pela vida toda o primeiro, por menos tempo o segundo, e é compulsivamente ansiado pelo terceiro.

Era do feitio do professor estapear e xingar, como chicotadas (whiplash, em inglês) no aluno, para ele se superar. Um de seus alunos era muito bom baterista. O professor é grosseiro com ele. E o observa. O garoto fica puto, mas volta a atacar a bateria. Melhora. O professor o estapeia. Em uma edição do programa Hora da Coruja, especial sobre este filme (http://horadacoruja.com.br/filosofia/whiplash), a filósofa Francielle Chies nota que uma lágrima desce o rosto do garoto, e que o professor questiona se ele é um "one single tear guy". Um cara assim é aquele que se enfurece com uma chicotada, mas engole esse sentimento e passa a querer se vingar do professor, que se torna o culpado dos problemas dele. O aluno do filme não é desses: o professor o faz gritar que está puto. O aluno toca bateria até sangrar.

Um caminhão bate com tudo no seu carro, e ele sai debaixo do carro para correr para se apresentar. Toca feito trem, até se acabar. Desconhece limites. Nos preocupamos muito com nossos limites. O trabalho cansa. O trabalho não vale a pena. Sempre me faz pensar que não aguento mais, e a vontade de não fazer nada não me deixa. Desde cedo achamos que não vale a pena ser outra coisa que não um Superstar. Mas há aqueles que embarcam em determinadas vontades que possuem, e jamais param. Não se sabe se essa determinação é deles mesmos ou dos professores que os chicotearam. É da natureza do cavalo correr, ou é pela ponta do chicote? É ambos.

O aluno de bateria foi um pequeno ser cujo mundo sempre esteve na iminência de que algo muito quente ira acontecer, algo que surpreenderia a ele mesmo e a todos que o vissem de perto. Esse algo era um texto, um solo de bateria, uma construção, ou uma arte, fantásticos. O lar era acolhedor e estável. O aluno determinado viveu nele, mas algo aconteceu que lhe deu a sensação que ele mesmo seria muito maior do que ele mesmo. O professor o fez dar-se com tudo para este objetivo.

Na última apresentação do filme, o aluno não parou de tocar, quando deveria. Virou uma máquina que corria por conta conta própria. Mas não sozinha. O professor olha para ele, espantado, e pergunta "o que está havendo, MAN?". Aquele não é mais um aluno. E, desde o início, com ele, o professor alternou as lições brutas com um olhar de satisfação muda. Ele só esperava alguém que virasse um automotor (agora não me ocorre em nada que mostre melhor o que poderia ser um automotor do que um baterista excelente e enfurecido. E que precisa da plateia), para que ele mesmo curtisse um grande som, e regesse não a música que queria ensinar, mas a que gostava de escutar.

Os movimentos de regência foram como os do Mickey, no filme Fantasia, quando ele se torna senhor da magia e faz as ondas levantarem-se juntas dos seus braços. A mágica está nas ondas ou nos braços do mágico? Está nas baquetas ou nos gestos do regente? O aluno foi além de si mesmo. Era pura performance. Junto dele estava o professor, que também foi além de si mesmo. E foi pura performance emocionada. E ele esperou tempo demais por essa emoção.

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