quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Por que você não pode dar conta de tudo.



Entrego flores à mulher que eu amo. Não, amo a mulher a quem entrego flores. O ato é preparado, executado e lembrado como um ato de amor. Não um ato que vem do amor, mas um ato que produz o amor. O que há são as coisas: palavras, ideias, atos, coisas de "pegar', etc. Não chamarei as coisas de "pegar" de objetos, pois objetos pressupõem sujeitos anteriores a eles, que os manipulam. Somos coisas que manuseiam outras coisas, e, assim, vamos fazendo e conduzindo pesamentos, sentimentos, falas e outros atos motores. As intenções, ideias e emoções, etc, são interdependentes das outras coisas. E tudo isto está em manuseio.

A menina bate duas panelas, uma contra a outra, para acordar o pai. Em seu rosto, uma expressão de leve vergonha. Ela não conseguiria bater palmas, ou gritar, para acordar o pai. As panelas permitem que ela diga "não fui eu".

Um jovem usa frases decoradas, ao abordar uma garota na balada. Se não as tivesse usado, não teria falado bem. Um homem diz que isso é imaturidade do jovem. Deve-se ser "espontâneo", ao falar com uma mulher a que se acabou de conhecer. O homem entende os "jeitos de se falar" como características dele próprio, não de um personagem. Esse "ele próprio/si mesmo" está em uso, sem que o utilizador se veja como utilizador "dele mesmo". Para esse algo que usa um "si mesmo", o "si mesmo" não desgruda, não se pode escolher ser outra coisa: é um eu.

A coisa, antes de ser um eu bem consolidado, ou seja, antes de fazer do "eu" tudo o que ela é, nele querendo esgotar a si mesma, é a coisa que bate panelas ou usa personagens, com vergonha. Há um interstício desconhecido entre uma coisa e outra. Bato panela - (sinto desconforto) - meu pai me olha - (meu rosto exibe vergonha) - falo que queria acordá-lo. Entre uma coisa e outra há algo que eu não sei. Algo que o eu não sabe. Isso fica mais perceptível na criança e no jovem, ou seja, em coisas ainda não tão atadas ao eu.

O eu entende que as coisas são propriedade dele mesmo. A criança e o jovem titubeiam, no que fazer. O manuseio de coisas, inclusive de si mesmo, tem mais coisas para lidar do que o eu consegue dar conta: querer acordar, saber que não pode acordar, vontade, contra-vontade; saber o que dizer à garota, não saber o que dizer à garota, querer usar o personagem, se sentir ridículo por usar o personagem. A criança e o jovem, se observados ou ouvidos, logo demonstrariam ou falariam sobre essas diversas coisas que lhes ocorreram. Ao menos sobre muitas delas. Já o manuseador do eu demarcou aquilo que fala e o que não fala, o que quer e o que não quer, e o que faz e o que não faz, colocando esses "não fala", "não quer" e "não faz" como "não-eu".

Essas segundas opções, contudo, ocorrem com o manuseador do eu: sem que você controle, você vai dizer, querer e fazer coisas que nunca achou que faria. O eu não pode conter tudo o que acontece a você.

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