terça-feira, 23 de setembro de 2014

De frente para um mundo

O corpo de um homem tem a parte da frente e a parte de trás. A parte da frente é a que recebe estímulos é onde ocorrem as ações. A atenção se dá com o voltar a frente do próprio corpo para alguma coisa, recebendo seus estímulos por toda a pele e sentidos. A parte de trás não permite saber de nada do que ocorre atrás do corpo. Também não emite qualquer sinal ou realiza gestos. A linha que separa a parte da frente da de trás é a da lateral do pescoço, descendo pela frente dos ombros até a parte interna do braço, seguindo pela lateral do ante-braço (onde os pêlos ficam menos abundantes), e a lateral da mão. Essa linha demarca e cria a palma e as costas da mão, o ante-braço de pele mais fina e o de pele mais grossa e tonalizada pelo sol, a região mais macia do braço e a região musculosa, e a parte da frente do pescoço e a nuca. A linha divisória também desce por trás das costelas, indo pela lateral dos quadris e da coxa. A parte de trás é desprotegida. Entretanto, bíceps, triceps e trapézio desenvolvidos são armadura e instrumento para as ações que ocorrem na frente. A parte da frente é tenra, sensível e atenta. O peito e a barriga peludos, de um homem, são mais fechados, menos francos e sinceros do que a barriga e o peito de um menino. A parte de trás é vulnerável à ação de outros corpos. Na fábula "O cágado na festa do céu", recontada por Monteiro Lobato em "Histórias de Tia Nastácia", haveria uma festa no céu, para a qual o cágado se encaminhava lentamente. Naquele passo, ele chegaria depois da comemoração. Viu uma garça levantando vôo. Pediu carona, e foi atendido. Após subirem um tanto, a garça pergunta ao cágado se ele ainda enxergava a terra. Sim, foi a resposta. Subiram outro bom tanto, e a garça repetiu a pergunta. O cágado afirmou não mais ver a terra. A garça virou-se de costas e deixou o cágado cair. "Se eu desta escapar, léu léu léu, se eu desta escapar, na festa do céu nunca mais me deixarei levar", cantou o bicho, que havia confiado na garça. A garça esperou ele perder a terra de vista, a referência de mundo, para cometer aquela deslealdade. O peito do cágado certamente não aguentaria o impacto, ao voltar para a terra. Será que o seu casco aguentaria? A proteção na sua parte de trás seria o suficiente? Ao quase terminar a queda, o cágado avisou às pedras e àrvores que saíssem do caminho, para não se machucarem. Elas não podiam imaginar que um cágado cairia em cima delas. O cágado caiu num clarão, quebrando-se em cem pedaços. Deus, com pena, rejuntou os pedaços do casco do cágado. Seu escudo é duro, e passou a exibir uma história de confiança traída, pois, no momento da traição o cágado não tinha qualquer chance de se defender, nem visão de terra para entender o que acontecia. O escudo também mostra o recado de que, se o cágado quiser se meter com aves e festas no céu, precisa tomar muito cuidado e escolher bem em quem confiar. A parte da frente do corpo de um homem é um campo delimitado pela abertura total dos braços, exibindo sua parte interna, além do que os olhos e os ouvidos conseguem captar. O que pode ser captado e manipulado, neste raio, compõe a parte da frente desse corpo e o mundo para este sujeito. A parte da frente do corpo e o mundo que existe para ele estão colados. Os acontecimentos próximos deverão ser sabidos. Alguma coisa à média e longa distância, o que puder ser ameaçador, também. Walter Benjamin disse que a imprensa fez com que o homem moderno soubesse mais do incêndio que se passava longe do que do incêndio em sua própria vizinhança. Andamos desatentos para o que se passa perto. Acabamos nos super-protegendo, e ficando insensíveis para o que sofrem pessoas próximas de nós. Recusamos vê-los. Em 1970, na cidade de Birminghan, Inglaterra, quatro jovens viam seus conhecidos, e até seus próprios pais, viverem entre a fábrica e o bairro pobre e feio. Ozzy saiu da escola e não parava em emprego nenhum. Passava o dia nas ruas, cometendo pequenos delitos. A vida não podia se resumir a trabalhar em fábrica e viver sem dinheiro, como vivia seu bom pai. Os Beatles brilhavam na tv, seus corpos comunicavam-se com multidões que se prendiam ao seu show. Ozzy também queria ser um mestre de cerimônias, um entertainer. Tony Iommi, outro daqueles quatro jovens, perdera as ponta de dois dedos, numa fábrica. Queria ser músico, reservar sua mão para a guitarra. Encontrou Ozzy. Bill Ward e Geezer Butler eram os outros. O mundo não era o que eles queriam. Havia algo de errado nele, mas as pessoas não percebiam. Geezer notou que as pessoas iam ao cinema para verem filmes de terror. Pagavam para sentir medo!, como pode? Os quatro fariam música para meter medo. Não queriam ser hippies. O primeiro cd do Black Sabbath começa falando de uma presença negra que desespera, e que é impossível de não sentir. Ozzy pedia a ajuda de Deus. Seu pai fez cruzes de ferro para os quatro integrantes da banda. A platéia se apavorava com as letras e a guitarra pesada, de Iommi. Era uma ópera direta, que visava atingir muito rápido a audiência e fazê-la entrar no drama. Um drama que era da vida de todos: os garotos da vizinhança, ao invés de só ficarem bêbados e serem presos, resolveram falar aquelas coisas até estourar os tímpanos e as pessoas desistirem de não sentir nada. Ou morrerem de uma vez. A música era atitude, ação. Iommi usava no peito a proteção dada pelo pai de Ozzy. Na parte de trás do corpo, punha um casaco de couro preto. Anos depois, os punks iriam incrementar a proteção com tachas de metal. O couro era grosso, e não refletia qualquer raio de luz. Era fechado e seguro. A cabeça era protegida pelos longos cabelos, que também estavam na cabeça de cada um dos outros membros. O peito, que podia estar aberto, tinha a cruz, na frente. A música pesada quer dizer que vida também o é. O som e as apresentações mexem com a platéia, e os próprios músicos se defendem do que podem vir a provocar. A jaqueta virará braços e costas tatuados. Haverá músicos sem camisa e de cabelo curto, mas repletos de desenhos. Dizem que é para "fechar o corpo". Os jovens da platéia batem cabeça, com os cabelos voando. Parecem expulsar algo. Voltando ao início da música pesada, Ozzy, o frontman, tinha a plateia na mão. Mas era o mais exposto. Seu cabelo, apesar de longo, era liso, fácil de atravessar. O de Iommi, encaracolado. O rosto de Ozzy, imberbe, como o de um garotinho numa festa de chamadores de atenção para o mundo, provocadores de pessoas. Ser uma pessoa para lidar com a própria atitude, platéias comovidas, viagens e dinheiro, tornava difícil de suportar. Para que o jovem Ozzy não morresse, louco ao máximo, de drogas e bebida, foi tirado da banda. Aquele corpo estava exposto, tendo que lidar com mais coisas do que homens dão conta de lidar.

Formas de não se ter experiências

Há dez anos, João Gordo brigou com Dado Dolabella, no programa de entrevista que o primeiro tinha, na tv. Dado disse que João tinha fama de encrenqueiro e, por isso, havia levado um porrete e uma machadinha, para o encontro. João respondeu à provocação pegando ele mesmo uma das armas e gritando para que Dado saísse dali. Antes disso, Dado havia chamado João de "traidor do movimento punk". "Encrenqueiro", se dizia a respeito do João, na tv. "Traidor", era dito apenas por um público restrito, o "público de rock". Ter sido chamado de "traidor do movimento punk" por alguém não identificado ao tal movimento causou um riso de nervoso em João. Entretanto, Dado possuía aquelas informações, e as usou, com aparente naturalidade. Não lhe foi preciso ser punk para se queixar com João, sobre o punk. Sloterdijk, em O Palácio de Cristal, conta como o mundo passou a ser representado pelo globo terrestre. O velho continente tinha no firmamento, a abóbada celeste, e na terra, os eixos de sustentação do mundo. O mar demarcava o seu final. Com as navegações, o horizonte do conhecido foi se ampliando. O oceano não necessariamente era devorador, e outras culturas e costumes puderam ser conhecidos. A demora da viagem, o tempo necessário para se percorrer o espaço, davam uma experiência ampla e de longa duração (erfahrung). Por meio de cartas, os navegadores informavam seus iguais sobre aquela aventura e os diferentes seres assemelhados com humanos, que haviam encontrado. Aqueles relatos informavam sobre o que se encontrava distante. Não era preciso estar lá para conhecê-los. O texto e a imagem foram substituindo o saber proveniente da participação, da experiência direta. O Iluminismo pôs o homem como aquele que tem capacidade de conhecer as coisas. A imprensa fez com que o conhecimento do distante fosse democratizado. Para Platão, a experiência direta das coisas era enganosa, pois o real estava num mundo atingível apenas pelo intelecto. Para os navegadores e reis, a experiência direta do distante também era para poucos, embora a viagem a ser feita não fosse mais de alma, e, sim, de navio. Com a imprensa, contudo, conhecer algo dava-se não mais pelo olhar imediato, mas pelo olhar mediado por uma boa representação. A banca de jornal falava do real, para uma cultura ainda suficientemente platônica para desconfiar do que soubesse apenas observando. O observador imparcial conhecia melhor o mundo, e até a própria interioridade do público do que quem tivesse experiência direta deles. E que experiência? Valia mais ver um Globo Repórter sobre a comida grega ou a favela carioca do que participar deles. Bons fotógrafos, jornalistas conhecedores de tudo, repórteres de comunicação ágil e pesquisadores de campo são como eu e você, não os invejamos (em alguns casos, não queremos ser eles), e apenas nos atualizam do que já sabemos. A criança chega à escola sabedora de tudo, e impaciente para o tempo longo da experiência de formação, do aprender a ler as informações que não param de chegar. O professor é visto como elitista, se é bom, ou como autoritário e atrasado. O mundo são as circulações eletrônicas, de dados e comerciais. Essas redes cortam a Terra, fincam pontos de redistribuição e fazem-na inteira para o nosso conhecimento. O homem fez uma estufa: nela ocorrem trocas, produção de histórias de vida, e sensação de conforto, com o mercado ou os direitos e a seguridade social. As distâncias geográficas são suprimidas, pois se vai do ponto A ao B com cliques no celular em um ponto Z. As distâncias de tempo e de idade também são irrelevantes. Todos os bens, e as experiências comunicáveis em identidades, também tornadas bens culturais, estão para consumo. Nada está disperso, é marginal ou exótico demais. Esses nomes viram adjetivos para o que eu tenho acesso. Há trinta anos, João Gordo canta no Ratos de Porão. Em uma entrevista para o Jô Soares, em 1991, João diz fazer música de protesto, a mais agressiva do mundo. Os punks colocam-se como portadores e porta-vozes de uma experiência de condições ruins de trabalho e de privações, as quais eles dizem ser do "povo". Suas roupas, bebidas, drogas e gritos são a expressão do que não concordam. Os que "não se revoltam" também serão descritos pelos intelectuais: os praticantes da cultura x, os portadores da história de sofrimento y, querem ser olhados com mais demora, diz a academia. Num ambiente de trocas rápidas entre coisas tornadas equivalentes pelo dinheiro, identidades são sub participações, pois a fixação leva a perda de oportunidades. Os punks e os rappers vão desautorizar-nos a falar sobre eles: nem tudo está aberto para visitação, e eles mesmos vão dizer, de um jeito despreocupado em ser agradável. Alguns rappers foram ao programa Esquenta, da Globo, e de lá disseram ao Mano Brown, avesso a ser cultura de massa, que aquilo não é tão ruim. Certa vez fui num show dos Racionais MCs. Era embaixo de um viaduto, e à noite, o lugar parecia escolhido para inibir "gente de fora". No meio do show, Mano Brown falou que, antigamente, e na quebrada dele, eles atravessavam a rua se vissem um branco vindo na mesma direção. Após dizer isso, abriu um champanhe e chamou gente da platéia para brindar com ele. "Aqui são todos minha gente. Nunca fiz show para playboy". João Gordo, tendo já escrito músicas contra a Igreja Universal, anos depois, foi funcionário da Rede Record. Traidor? Ele diz que ganhava muito bem, e que não era de movimento punk nenhum, onde, segundo ele, não dá para sustentar sua família e está sujeito a sofrer violência. Mas no último disco do Ratos, o protesto continua: contra o político corrupto, contra o pobre que espanca a mulher, a favor das manifestações recentes e contra a polícia, contra os selfies tirados enquanto o mundo acaba. Portador nenhum de uma identidade teria tanta coisa para reclamar. É um apanhado do que pode causar incômodo a muita gente diferente. João, Jão e Boka, a banda, são os representantes deles mesmos, e são uma família, e família precisa de dinheiro. A experiência deles sai num discurso sem a mediação de leituras teóricas ou políticas. O interesse é o de reportar tudo. Voltando à tv, Datena pinçará algumas queixas populares, os cientistas sociais, outras, as elaborarão e falarão. Isso será, respectivamente, o alimento do discurso da política de direita e da política de esquerda, que são refinados, definidos, e descolados da experiência, que não é tão clara e fácil de definir. O jovem que não gosta de estudar, que já conhece tudo (e para quem a própria experiência é avalizadora de conhecimento), que é "massacrado pelos pais, pelos professores e pela Globo", identifica-se com os pobres daqui e com os palestinos, e quer falar por eles. Esses "eles" nem sempre querem que alguém se meta nas suas falas: "quem somos nós, branquinhos, para sabermos do que eles passam?". Há o João Gordo, que não se compromete com o punk, nem com qualquer teoria ou partido, mas identifica-se com o protestar. E com as chances que a cultura de massa lhe dá. Se estamos trocando a experiência das coisas pela experiência de troca de coisas, que é experiência do descarte e, portanto, vazia, como pode alguém falar de uma experiência que considere só dele, sem que ele se absolutize numa identidade, dor ou necessidade, rechaçando a conversa, e viabilizando a conversa com a cultura de massa, aproveitando suas oportunidades, sem deixar que ela esgote sua expressão (que pode ocorrer também em vias particulares, como os "ouvintes de punk")? E como não ser um vazio, um incapaz se ter histórias para contar, e que não precise se defender num absoluto como um "público disso", um "especialista daquilo outro" ou um "defensor da causa tal"?

Sexo e metáfora

Os pais me diziam uma porção de coisas sobre seu filho, e ouvindo minhas elaborações. Um dia, eles ficaram espantados: o garoto, de quatro anos, disse ter ouvido que o colega tal lambeu o pinto do colega qual. O que eu achava? A sexualidade das crianças é um campo de descobertas como qualquer outro, só que, por ser no corpo delas e no dos outros, o que se descobre vem acompanhado de prazer. E é uma brincadeira, como tudo o mais, para a criança pequena. Tudo é para ser mexido e explorado por elas. Se for algo que enrubesce os adultos, então, deve ser algo fantástico. Como sua atividade já é lúdica, sua comunicação das descobertas que faz é literal. Um garoto lambeu o pinto do outro. Quem diria "chupou" somos nós, os adultos. Nós metaforizamos, pensando num sorvete, pirulito, etc. O garoto disse lambeu, pois é isso realmente que é feito, no sexo oral. Quando eu tinha uns seis anos, ouvi um cara mais velho dizendo que iria comer o cu do outro. Eu pensei que ele pegaria uma bolinha meio marrom, que ficava na bunda do outro, uma bolinha parecida com uma bala de tamarindo, mas não doce, e comeria. O outro ficaria sem cu. Há crianças que dizem ter visto o pai machucando a mãe, mas que, após terem perguntado a ela se estava bem, ela disse que não tinha problema, o pai lhe fazia carinho. Um carinho que machuca e faz a pessoa se debater, como é isso? Quer dizer que há horas em que é bom ser machucado, e ela não pode bater no colega da escola? Comer isso ou aquilo, chupar, machucar, e outros, são formas dos adultos falarem não diretamente sobre o sexo. Se precisamos de pornô e viagra para nos excitarmos, essas palavras são a nossa brincadeira, nosso lidar com o sexo de forma novamente interessante. Estamos fazendo isso como se fizéssemos outra coisa. Sinto que estou chupando um picolé ou um sorvete de morango no copinho. Estou dando, sem deixar de ter. Estou dando uma sapecada, uma estilingada, etc. É frango assado, cachorrinho e canguru perneta. Um filho surge, de tanto que fazemos papai e mamãe. Quem usa vagina, pênis, penetração, e outros, está aquém da experimentação infantil.

Se gay é alegre...

Um homem fica tenso diante do corpo de outro homem. É como o medo de sair de casa. O gay transa no cinema, na igreja, na escola e até no quarto, se der. Espalha-se na cidade. Dinho, dos Mamonas Assassinas, desfilava de Robocop Gay. Era inquieto, e o palco pequeno. Adorava um palco. Não havia quem não se sentisse brincando. Os homens lembravam da cueca puxada pra cima e das brincadeiras feitas para um público. "Você pode ser gótico, ser punk ou skinhead." Pode ser uma coisa ou outra. "Tem gay que é Mohamed, e come vatapá." Se pode ser árabe e baiano, pode ser multicoisas. O liberal vai à rua atender a uma necessidade privada. Se simplifica, para ter comprador. Se pudesse, venderia de tudo. Para vender sempre, conecta-se ao cara que compra o de de sempre, que também vende o de sempre. Então trata de se manter o mesmo, para os acontecimentos lhe serem favoráveis. Mas dança em casa, e vive a fim de dançar na rua, feito Madonna, Michael e Dinho. Consumidores ecléticos, mas buscando identidade entendível e estável, ser comprável garantidamente, sendo uma só coisa, somos todos. O gay pode ser qualquer um, e se oferece para consumo em todos os lugares: padre gay, tarado em mulher e gay, gay gay, policial gay, jogador gay, pai gay, matador gay, etc. Em qualquer lugar há um homem ficando diferente, como se um vírus da mudança se espalhasse. Uma coisa com o acréscimo do gay se enriquece, não do gay, mas pelo gay, que é a abertura. Um matador não precisa ser gay, para matar bem, mas se for gay, se tiver esse detalhe que não tem nada a ver com o matar, essa coisa não diretamente relacionável com nada, terá uma abertura para fazer outra coisa. Que coisa? Eu não sei. A gente pode ser gay.

Conversa de João com Maria

Oi, Maria. Tudo bem? Tudo, e vc? Bem! Estou com saudades de vc, vamos nos ver? Não sei. Gosto de conversar com vc, pelo zap, mas não quero encontrá-lo. Vc me machucou muito, no namoro. Desculpa. Foram muitas discussões, vc sempre quis ter razão, era estúpido, muitas vezes. Sim, às vezes sou grosso, querendo explicar meu ponto. Sabe, está sendo bom conversar com vc, estamos sendo amigos, coisa que não imaginei que pudesse acontecer, mas não quero envolvimento. Entendo. Tenho defeitos. Sim, vc tem defeitos. Eu passei a nossa relação toda mexendo e remexendo meus defeitos, querendo melhorar. Acho que é coisa dos trinta, refletir sobre os próprios defeitos e ver se evita alguma coisa. Os homens de trinta são imaturos. Mais do que os de vinte? Os de vinte não se preocupam em ser maduros. O que é pior, preocupar-se com ser maduro ou ser imaturo? Isso está me parecendo provocação, João. Sabe, vou dormir. Bj. Bj. Ele quis sair com ela. Entrou, contudo, numa discussão sobre ele mesmo. A conversa poderia ter sido encaminhada de outra forma, para, quem sabe, ele ter o que queria. Você não gostaria de me ver, não tem saudade? Tenho vontade, mas não dá certo entre a gente. Vamos ir num passo de cada vez. Sei que meu defeito é insistir em discussões, tentando sempre ter razão. Acho que ficarei mais calado. Sim, é bom para vc mesmo, escutar mais. Então, deixa eu ser mais carinhoso. Vou escutá-la mais. Não dá, já terminamos dez vezes. Vamos continuar como estamos, só amigos. Tudo bem, nos encontramos como amigos (de repente...). Podemos ir ao cinema. Você costuma convidar suas ex, para sair? Não, só vc. Sabe, vc tem razão, sempre acabo discutindo com a pessoa e estragando a relação. Vc é muito confuso. Estou fazendo sentido, agora? Não. Eu aceito sair como amigo, e a ouvirei mais. Sabe, está tarde, preciso dormir. Bj. Bj. Ele continuou sem conseguir o que queria. Seria amigo, foi avançando devagar. Prometeu fazer o que ela considerava bom que ele fizesse. Ela chamou-o de confuso, e ele quis apontar que estava sendo claro. Ele quer ser alguém claro. Sair como amigos podia ser um interesse em comum? Ela tinha outros interesses, que o excluiam. Ele foi chamado de discutidor? Ele sabe que é. É uma das características pela quais ele se reconhece, como sua essência. A conversa que lhe atendesse, contudo, deveria efetivamente ser tão conversa quanto possível, mais acordo e menos prova de si mesmo. O interesse dele é legíítmo. O receio dela, também. A conversa precisa ir se azeitando, na prática. É o que pode levar ao consenso e ao atendimento de ambos, mesmo que os interesses sejam modificados. Não há certeza de convencimento do outro, e de obtenção do que se quer. Mas é melhor conversar do que impor-se e seu mundo aos outros e a si mesmo, e viver ou em guerras, ou insatisfeito.

Psicologia de casais I: Carência

É sábado à tarde, e um cara vai ao mercado buscar uma comida, para passar a noite. Retorna, prepara e se serve, assistindo tv. Lê um pouco. São sete horas. Vê o facebook. Puxa papo com uma garota, a elogia. É rápido, sugere um encontro para aquela noite. Não. Fala com outra. Não. Mas essa conversa se estende, um pouco. Ela ri com ele. Acaba e é tarde. Ele ficou com os programas chatos da tv. Falta alguém. Alguém com quem conversar, se interessar por ele e recebê-lo. Alguém com quem beijar e ir ganhando pedaços de pele, para explorar. Um abraço, no primeiro encontro, diria que está tudo bem. Agora ela: Ela chegou em casa, terça à noite, cansada. Vê os recados no zap, uns caras querendo sair de novo, mais beijos. Um deles foi namorado dela.Ela lhe diz que não pode se deixar levar pela carência. Gosta dele. Ela gostaria de fazer um bom sexo, ter um carinho. Diz não. Ela sente falta de alguém com quem dê certo, se possível, com o mínimo de discussão. Pegar novamente o ex é ver que não está conseguindo. A mulher é o útero. O útero foi a casa do homem. Da mulher, também. Mas, repito, a mulher é o útero. O homem quer voltar para ele. Seria o seu lar, ele seria o dono, se sentiria aceito com seu jeitão e ações. A mulher quer os braços do homem, mas ela se sabe útero, aquela que recebe e acolhe. Dizemos que é a mulher quem come o homem, ela manda nele. Quer se sentir novamente preenchida e completa. O homem, aceito e acolhido.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Perereca solta na escola

Na escola, crianças de cinco, seis anos, faziam "experiências científicas". Com funis e tubos, a professora montou um estetoscópio. Precisou repetir o nome, para entenderem. Era para eles ouvirem o coração, como fazem os médicos com seus pacientes. Ouvir o coração eles já ouvem: após um pouco de corrida, o coração fica quase pulando para fora, e elas nem precisam por a mão sobre o peito, para sentir. O Emílio, de Rousseau, tinha de montar o próprio telescópio, se quisesse ver estrelas. A partir da vivência das crianças de que há algo batendo no próprio peito, a escola fala sobre a existência do coração, o seu funcionamento e sinais. Nesse conhecimento científico a que elas vão sendo introduzidas, há dados novos, elementos não observados pelas crianças, mas observados por alguem. Elas não estavam tendo êxito, com o aparelho de escutar coração. Não estava dando para ouvir nada. O garoto pediu-me para escutar o coração dele, pondo meu ouvido diretamente no seu peito. Está forte?, perguntou. Está rápido, respondi. O coração batendo não tão forte, apesar de rápido, preocupava o garoto. Numa aula subsequente, ouvimos que o interior dos ossos tem uma substancia esponjosa. Ainda sobre o "dentro" do corpo, a professora conta que chamam-se testículos o que elas, crianças, costumam chamar de ovinhos. E o que tem dentro deles, perguntaram. Uns bichinhos que nadam. A professora não diria o nome, sem antes verificar se eles lembravam. E dentro dos bichinhos tem o quê, perguntaram. Não sei te responder agora, mas eu e você podemos pesquisar isso, disse a professora. Mas não podem dar chute ali, heim?, completou. Dentro deles há coisas cuja presença ou funcionamento escapa à percepção deles. Coisas, portanto, que ocorrem dentro deles, mas à sua revelia. E estas coisas têm outras dentro, que a própria pessoa pode conhecer. E há coisas dentro destas, que o livro conhece. E outras dentro desta, que talvez ninguém conheça, e que estão muito longe dos meus sentidos. Mas o dentro do dentro do dentro não pode cessar, como a boneca Babuska, que contém uma cópia exata dela mesma, e que esta cópia também guarda uma cópia, e assim sucessivamente e cada vez diminuindo a escala, até se chegar na última, que é oca. A escola parte das experiências da criança, e a apresenta ao saber científico. A filosofia também começa com as experiências, mas faz perguntas que o livro não responde: "o que há dentro do dentro do dentro?", "quem controla o que eu não controlo em mim, e quem o controla?", etc. São exercícios de perguntar e pensar hipóteses. Os "experimentos" científicos desembocam no que a professora já conhece. Para as crianças é a primeira vez, e se surpreendem. Mas logo será experimento, repetição, não experiência, num sentido maior. Mais tarde, nesse dia, uma professora que sempre leva plantas e bichos para eles verem mostrou um pote com algumas pererecas. Explicou que tipo de bicho eram, o quao são frágeis e pequenas, e nada perigosas. Tirou uma delas do pote. As mãozinhas abriram-se para receber a perereca. Sobre uma mão, a perereca ficava parada. Depois, por alguma razão, sempre pulava. A professora a recolhia e passava para a outra criança. Esse pequeno ser tem uma forma bem diferente da humana. Tem a cor escura, porém brilhante. É linda, uma jóia, a meu ver. Na minha mão tive medo de, sem querer, machucá-la. Uma das crianças ficou com medo da perereca, e não conseguiu oferecer a mão. O fascínio e o medo, essas sensações diante de um determinado ser, são inexplicáveis ou inaplacáveis quando se é informado daquela espécie ou na nossa própria psicologia da percepção. É o momento da experiência, que vai ganhando sentidos aos poucos, nas brincadeiras das crianças. Nos próximos dias a pererequinha ficará à solta, por lá.

Sacos vazios

Não há casca, não há envoltório duro. O mundo é frio e não-humano. Vou criando estufas, para existir. O mundo é sem centro e sem ponto-fixo. Vou criando meus pontos de localização. Não estou dentro do mundo, mas sobre ele, girando na bola. Saí de um envoltório feto-placenta, quase caí no incomensurável, no frio. Criei um novo envoltório, uma esfera, que precisa sempre ser refeita. Olho para sacos vazios de supermercado entendendo que eles portam e aquecem coisas, dão-lhes chance de sobreviver e sentido para existir. Humanizo as coisas vendo-as num envoltório de plástico, que é mais confiável do que a minha própria bolha. Na escola, as crianças diziam: "dentro do meu corpo tem ossos. Dentro dos ossos tem coisas. Dentro do coisas." - "Vocês têm coisas dentro, como um saco com coisas dentro?". -"Somos sacos vazios com coisas dentro".

O que fazer nessas eleições

Sempre escutei dizerem, principalmente pessoas mais velhas, que não votavam em ninguém, "que político é tudo ladrão", "só aparecem para pedir voto", etc. Eu me perguntava: "será que todo político é ladrão?", e "porque não procuramos saber o que eles fazem depois de eleitos?". As manifestações iniciadas em junho de 2013 tiveram como característica a rejeição, por parte dos indivíduos que lá iam se manifestar, de partidos políticos, tanto à esquerda quanto à direita, e também da imprensa. Novas formas de reports surgiram, utilizando-se principalmente do vídeo, e sempre na internet. A Mídia Ninja foi a noticiada na mídia tradicional. O espírito é "esses que sempre falaram por mim, repórteres e políticos, não mais me representam. Agora eu mesmo falo por mim". Cada grupo organizador de sua própria mídia possui uma visão particular, que aparece no seu produto. Quem os observa filmando, ou assiste suas filmagens, também pode se imaginar fazendo aquilo, transmitir o seu próprio olhar. A expressão de opiniões teve inicio no facebook, ganhou as ruas, e se mantém online. Voltam-se à denúncia da proibição do direito à manifestação, patente na truculência da polícia, ao lidar com elas. Ainda não se fala sobre a cidade que se quer, tem se falado pouco sobre o que se espera da política. Pode ser que, ocorrendo falas propositivas, poderia haver uma coincidência no pedido por garantia de manifestações, mas dissensos quanto a todos os outros pedidos. A televisão tenta animar-nos a votar, assim como quis que entrássemos no clima da Copa. Mas a militância pró este ou aquele candidato está fraca. Volta e meia ficamos sabendo que a Dilma foi vaiada, numa aparição pública. Fosse o Aécio, no lugar dela, presumo que as vaias não seriam menores. Há certa indisposição para com os candidatos que nos foram ofertados. Carlinhos Brown chama-nos para a "festa da democracia". Dizemos de nós mesmos que somos despolitizados. Por isso, só nos animaríamos a votar se for por diversão. A reflexão sobre o que se vem fazendo e o que quer, o melancólico rejeitar tudo ao redor, voltar-se a si mesmo e não reagir ante propostas que lhe façam, vemos como um jeito de ser que não o do "brasileiro". Só que é este o clima em que estamos. Num sistema eleitoral em que os cardápio de candidatos já vem pronto pelo caciquismo e o poder econômico, ser cidadão não é escolher Dilma ou Aécio, ou achar que Marina é uma alternativa: ser cidadão é dar-se conta que, além do direito de escolha, temos o direito à liberdade de escolha, ou seja, podemos escolher, ou não escolher, quem foi posto como candidato. Abster-se, hoje, não é necessariamente afastar-se da política, mas dizer que se gostaria de participar da escolha dos candidatos. Entretanto, como não temos segurança dos nossos direitos, agarramo-nos ao do voto. O direito ao voto é algo em que nos apoiamos para contar certa história de heroísmo de nós mesmos. Orgulhamo-nos das manifestações pelas eleições diretas. Soa absurdo se declarar sem escolha política: "Como você não vai votar nele? E se o outro ganhar?" Ser politizado é uma obrigação pessoal, e a culminância disso é o voto. Aristóteles disse que somos "animais políticos", no sentido que tínhamos nossa humanidade definida pela participação nos assuntos da pólis. A pólis compreendia tudo o que era humano, e estar fora era ser bárbaro. Modernamente, passamos a ter vidas privadas. Delegamos ao Estado o atendimento dos nossos interesses individuais. No fim dos ano 70, no Brasil, saímos às ruas em entidades de classe, grupos de bairros, religiosos, de mães e de estudantes, em busca da redemocratização. Novos direitos também foram requeridos. Atualmente, há uma vontade de politizar tudo, de que se deve ser um indivíduo totalmente público. A direita reage, pesando a mão no lado oposto, dizendo que o Estado nunca deve se meter nas relações íntimas ou nas decisões individuais que não impliquem terceiros. A esquerda aparece querendo fazer com que o gozo e a experiência estética sejam políticos. Podemos ter uma existencia separada da política, e tê-la como uma das esferas da vida, não ela toda. Neste ano, teremos novos eleitos. Muitas abstenções, de pessoas que não deixarão de acompanhar, pelos jornais, o que eles estão fazendo. Elas querem boas coisas para todos, comentam isso. Mas olham enviesado o governante, um olhar que não é mais só do coroa ranzinza.