terça-feira, 23 de setembro de 2014

De frente para um mundo

O corpo de um homem tem a parte da frente e a parte de trás. A parte da frente é a que recebe estímulos é onde ocorrem as ações. A atenção se dá com o voltar a frente do próprio corpo para alguma coisa, recebendo seus estímulos por toda a pele e sentidos. A parte de trás não permite saber de nada do que ocorre atrás do corpo. Também não emite qualquer sinal ou realiza gestos. A linha que separa a parte da frente da de trás é a da lateral do pescoço, descendo pela frente dos ombros até a parte interna do braço, seguindo pela lateral do ante-braço (onde os pêlos ficam menos abundantes), e a lateral da mão. Essa linha demarca e cria a palma e as costas da mão, o ante-braço de pele mais fina e o de pele mais grossa e tonalizada pelo sol, a região mais macia do braço e a região musculosa, e a parte da frente do pescoço e a nuca. A linha divisória também desce por trás das costelas, indo pela lateral dos quadris e da coxa. A parte de trás é desprotegida. Entretanto, bíceps, triceps e trapézio desenvolvidos são armadura e instrumento para as ações que ocorrem na frente. A parte da frente é tenra, sensível e atenta. O peito e a barriga peludos, de um homem, são mais fechados, menos francos e sinceros do que a barriga e o peito de um menino. A parte de trás é vulnerável à ação de outros corpos. Na fábula "O cágado na festa do céu", recontada por Monteiro Lobato em "Histórias de Tia Nastácia", haveria uma festa no céu, para a qual o cágado se encaminhava lentamente. Naquele passo, ele chegaria depois da comemoração. Viu uma garça levantando vôo. Pediu carona, e foi atendido. Após subirem um tanto, a garça pergunta ao cágado se ele ainda enxergava a terra. Sim, foi a resposta. Subiram outro bom tanto, e a garça repetiu a pergunta. O cágado afirmou não mais ver a terra. A garça virou-se de costas e deixou o cágado cair. "Se eu desta escapar, léu léu léu, se eu desta escapar, na festa do céu nunca mais me deixarei levar", cantou o bicho, que havia confiado na garça. A garça esperou ele perder a terra de vista, a referência de mundo, para cometer aquela deslealdade. O peito do cágado certamente não aguentaria o impacto, ao voltar para a terra. Será que o seu casco aguentaria? A proteção na sua parte de trás seria o suficiente? Ao quase terminar a queda, o cágado avisou às pedras e àrvores que saíssem do caminho, para não se machucarem. Elas não podiam imaginar que um cágado cairia em cima delas. O cágado caiu num clarão, quebrando-se em cem pedaços. Deus, com pena, rejuntou os pedaços do casco do cágado. Seu escudo é duro, e passou a exibir uma história de confiança traída, pois, no momento da traição o cágado não tinha qualquer chance de se defender, nem visão de terra para entender o que acontecia. O escudo também mostra o recado de que, se o cágado quiser se meter com aves e festas no céu, precisa tomar muito cuidado e escolher bem em quem confiar. A parte da frente do corpo de um homem é um campo delimitado pela abertura total dos braços, exibindo sua parte interna, além do que os olhos e os ouvidos conseguem captar. O que pode ser captado e manipulado, neste raio, compõe a parte da frente desse corpo e o mundo para este sujeito. A parte da frente do corpo e o mundo que existe para ele estão colados. Os acontecimentos próximos deverão ser sabidos. Alguma coisa à média e longa distância, o que puder ser ameaçador, também. Walter Benjamin disse que a imprensa fez com que o homem moderno soubesse mais do incêndio que se passava longe do que do incêndio em sua própria vizinhança. Andamos desatentos para o que se passa perto. Acabamos nos super-protegendo, e ficando insensíveis para o que sofrem pessoas próximas de nós. Recusamos vê-los. Em 1970, na cidade de Birminghan, Inglaterra, quatro jovens viam seus conhecidos, e até seus próprios pais, viverem entre a fábrica e o bairro pobre e feio. Ozzy saiu da escola e não parava em emprego nenhum. Passava o dia nas ruas, cometendo pequenos delitos. A vida não podia se resumir a trabalhar em fábrica e viver sem dinheiro, como vivia seu bom pai. Os Beatles brilhavam na tv, seus corpos comunicavam-se com multidões que se prendiam ao seu show. Ozzy também queria ser um mestre de cerimônias, um entertainer. Tony Iommi, outro daqueles quatro jovens, perdera as ponta de dois dedos, numa fábrica. Queria ser músico, reservar sua mão para a guitarra. Encontrou Ozzy. Bill Ward e Geezer Butler eram os outros. O mundo não era o que eles queriam. Havia algo de errado nele, mas as pessoas não percebiam. Geezer notou que as pessoas iam ao cinema para verem filmes de terror. Pagavam para sentir medo!, como pode? Os quatro fariam música para meter medo. Não queriam ser hippies. O primeiro cd do Black Sabbath começa falando de uma presença negra que desespera, e que é impossível de não sentir. Ozzy pedia a ajuda de Deus. Seu pai fez cruzes de ferro para os quatro integrantes da banda. A platéia se apavorava com as letras e a guitarra pesada, de Iommi. Era uma ópera direta, que visava atingir muito rápido a audiência e fazê-la entrar no drama. Um drama que era da vida de todos: os garotos da vizinhança, ao invés de só ficarem bêbados e serem presos, resolveram falar aquelas coisas até estourar os tímpanos e as pessoas desistirem de não sentir nada. Ou morrerem de uma vez. A música era atitude, ação. Iommi usava no peito a proteção dada pelo pai de Ozzy. Na parte de trás do corpo, punha um casaco de couro preto. Anos depois, os punks iriam incrementar a proteção com tachas de metal. O couro era grosso, e não refletia qualquer raio de luz. Era fechado e seguro. A cabeça era protegida pelos longos cabelos, que também estavam na cabeça de cada um dos outros membros. O peito, que podia estar aberto, tinha a cruz, na frente. A música pesada quer dizer que vida também o é. O som e as apresentações mexem com a platéia, e os próprios músicos se defendem do que podem vir a provocar. A jaqueta virará braços e costas tatuados. Haverá músicos sem camisa e de cabelo curto, mas repletos de desenhos. Dizem que é para "fechar o corpo". Os jovens da platéia batem cabeça, com os cabelos voando. Parecem expulsar algo. Voltando ao início da música pesada, Ozzy, o frontman, tinha a plateia na mão. Mas era o mais exposto. Seu cabelo, apesar de longo, era liso, fácil de atravessar. O de Iommi, encaracolado. O rosto de Ozzy, imberbe, como o de um garotinho numa festa de chamadores de atenção para o mundo, provocadores de pessoas. Ser uma pessoa para lidar com a própria atitude, platéias comovidas, viagens e dinheiro, tornava difícil de suportar. Para que o jovem Ozzy não morresse, louco ao máximo, de drogas e bebida, foi tirado da banda. Aquele corpo estava exposto, tendo que lidar com mais coisas do que homens dão conta de lidar.

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